quarta-feira, 4 de março de 2015

Entrevista a Vitorino Fróis, por Luís Teixeira (jornal Gazeta das Caldas, de 20/12/1925)





VICTORINO FROES
Fala-nos do seu Tempo e da sua Arte
Por Luiz Teixeira (1)

     Toiradas de verdad, gente de sangue azul, audaciosa, aventureira e fidalga a lidar toiros de afamados ferros com valentia e nobreza. Praças repletas, tempo em que os camarotes do Campo Pequeno eram canteiros povoados de sorrisos das mais lindas mulheres de Lisboa, olhos belos vivendo a emoção da faena e em que a primeira sorte era sempre oferecida a Sua Majestade…
     Triunfos, apoteoses de palmas calorosas, e nuvens de lenços brancos acenando como bando de gaivotas sobre o mar imenso da multidão ululante de entusiasmo. Boémia literária e fidalga do século que passou…
     Fala um pouco de tudo isto o nome de Victorino Froes.
     Mestre dos maiores toureiros do nosso Pais, ele é o monte Himalaia, o nome-cartaz da tauromaquia nacional.
     Não há quem melhor que ele saiba da arte de tourear. Da Espanha das toiradas-festa nacional, onde o toureiro é culto e é paixão, mandou Cañero, o cordovês que é hoje a assinatura do seu país traçada com a ponta de uma farpa, um cavalo para que Victorino Froes o ensinasse à maneira de tantos que ele tem ensinado, e que são sempre uma garantia de êxito para o cavaleiro que os possui.
     Conhecendo bem cavalos e cavaleiros, ele foi um grande colaborador da vitória de Tanganho no Circuito Hípico de Portugal. Em todos os pontos de controlo lá havia para o caldense glorioso – seu discípulo muito querido – uma carta sua com indicações, a lembrar cuidados, a incutir coragem…
     Victorino Froes, nascido em 1862, na Quinta Velha de Alfeizerão, é um dos maiores amigos das Caldas.
     Num destes dias invernosos, com lama a atapetar as ruas, e com promessas de chuva no cinzento-chumbo do céu, fui visitá-lo e colher pormenores da sua vida que eu pudesse transformar num álbum, e oferecer aos leitores da Gazeta, rico pelo recheio de recordações, pobre e modesto pela encadernação humilde em que os meus recursos limitados e prosa descolorida da minha forma descritiva as poderiam envolver.
     É uma velhice risonha, Victorino Froes. O seu espírito tem a mocidade dalgum rapaz da minha geração. Na sala em que me recebe tudo respira alegria. A sua casa banhada de vermelho é uma gargalhada de cor…
     - Impressões da minha vida? Olhe que eu não tenho nada que contar. Ainda há tempos aqui esteve um jornalista de Lisboa, a quem eu nada disse.
     Insistimos.
     - A Gazeta é o jornal do povo caldense, do povo que tem por si uma grande admiração e estima.
     - Pois sentemo-nos e vejamos se alguma coisa de interesse para os seus leitores, eu lhe posso dizer.
     Ficamos, vis-à-vis, separados por uma pequena mesa, perto da janela.
     Victorino Froes faz do fumo do seu charuto a moldura das suas frases, caixilho de névoa azul para evocações dum passado distante.
     - As grandes recordações da vida de um toureiro são os trambolhões sob as patas dos toiros
     - Onde toureou pela primeira vez?
     - Na Golegã, na praça particular do Sr. Carlos Relvas… tinha eu então 14 anos. Acompanhava-me o meu professor, Conde de Castelo Melhor.
     A cinza de charuto vai-se amontoando no cinzeiro modesto.
     Toda a gente tem na sua vida um cofrezinho de marfim onde guarda as suas recordações do tempo que passou. Não são fotografias nem documentos, são apenas lembranças…lantejoulas a brilhar na distância do tempo…
     Sinto que o grande cavaleiro dá a volta à chave do seu cofre e prodigamente vai espalhando na intimidade daquele cantinho perto da janela as suas melhores confidências.
     - Depois tomei parte em todas as corridas promovidas pelo rei D. Carlos, e cuja receita era oferecida a S. M. a Rainha para manter a Creche de que era protetora.
     Foram essas as melhores corridas da minha vida. Há quantos anos isso vai.
     - O Sr. Victorino conviveu muito com o Rei?
     - Sim, senhor. Vê esta fotografia? Foi tirada em Vila Viçosa depois do almoço, em dia de caçada.
     Contemplei, por momentos, aquela relíquia do passado do grande cavaleiro, e, de todo o grupo, não me foi difícil reconhecer duas pessoas. Uma, de mazantini caído para a nuca, era o Rei que a carabina do Buiça matou e, perto dele, o Victorino Froes de há quarenta anos. Vai-me apresentando o resto do grupo: …aquele o Albuquerque, este o Pinto Coelho, médico do Paço, e espalhados o Conde de Pindela, o general Queiroz, o Guerreiro…Quantos que a morte levou
     O seu sorriso deixou por momentos de iluminar a nossa conversa. Lê-se saudade nos seus olhos e adivinha-se no fumo do charuto que se eleva pelo ar, todo um mundo de sonhos, imagens do passado que morreu…
     - O Rei e a Corte vinham muitas vezes às Caldas?
     - Muitas. A propósito não quero deixar de lhe contar um episódio que um dia, há muitos anos já, me aconteceu: Eu estava comendo em Alfeizerão um modestíssimo almoço de chouriço com ovos que a criada da Quinta Velha me havia arranjado à pressa, pois cuidava que eu nesse dia não almoçava lá, quando um criado esbaforido me veio avisar: El-Rei! – Pois El-Rei que venha. E depois da criadagem ter tomado conta do cavalo, eu não quiz deixar de oferecer do meu pobre almoço a Sua Majestade, embora fosse mais um «lunch» próprio para um criado do que uma refeição para um Rei.
     «Pois supõe-me um criado, se quiseres, mas hei-de ajudar-te a comer o chouriço com ovos…».
     «E tirando o seu grande chapéu claro, sentou-se e comeu.
     «Era assim D. Carlos… Tornava-se necessário não esquecer que ele era o Rei, porque a liberdade e intimidade com que nos tratava fazia-nos esquecer a distância que devíamos guardar.
     - O Sr. Victorino passou longas temporadas em Lisboa?
     - Bons tempos. Eram então meus companheiros de boémia o Alexandre Vila Real, o Mascarenhas, o Paraty, Conde de Caparica, Alfredo Tinoco e outros. Não nos interessava a Política. Nunca sabíamos quem era o Presidente do Conselho. Interessava-nos somente onde melhor e com mais alegria poderíamos passar a noite. Nesse tempo também o Grandela e o Ferreira do Amaral eram nossos companheiros…ainda eram monárquicos…
     Enquanto íamos falando assim os seus olhos em êxtase parecem seguir algum pensamento intimo. Acende um novo charuto, e durante momentos permanece calado. Eu envolvo-me mais na capa do meu silêncio para melhor ouvir os seus gestos…
     - Saudades? Se não há de ter saudades quem como eu teve épocas de grande felicidade na vida…
     - Nunca toureou em Espanha?
     - Não. Toureei uma vez em França. O D. Ruy estava em Bayonne e convidou-me a tomar parte numa corrida promovida por ele. Escreveu-me, também, pedindo-me que lhe mandasse ferros, prospetos, etc. Eu, como ele não pedisse bolas para a embolação, mandei-lhe o que me pedia e perguntei-lhe se se havia esquecido disso. Respondeu-me que lá se toureava á espanhola, e perguntava-me se eu tinha relutância em tourear daquela fôrma. Mandei dizer então ao bom D. Ruy que em lugar da lide ser em hastes limpas, podia anunciar, se quisesse, que os toiros que me coubessem trariam punhais de morte nas hastes.
     - É talvez d’aí que vem a lenda do Sr. Victorino ter toureado em Espanha toiros nessas condições.
     - Talvez.
     - D. Ruy da Camara foi seu discípulo?
     - Ele, o Núncio, o D. João de Mascarenhas e muitos outros.
     - Quer dizer-nos qual é atualmente o melhor cavaleiro tauromáquico português?
     - Conheço-os a todos e sou amigo de todos. Não posso, por isso responder-lhe.
     - Cañero?
     - É um bom cavaleiro…espanhol, mas não se pode comparar com os nossos. Ele não sabe tourear: caimpina…Os nossos campinos doutros tempos, que sabiam muito bem do seu ofício, faziam tanto como ele faz. Toureio há apenas o toureio português. Nobreza, valentia e, sobretudo, arte a lidar o toiro. Cañero não é um cavaleiro tauromáquico, é um sportsman que campina toiros.
     - Como se explica então o seu formidável sucesso?
     - Olhe, os nossos podiam fazer incomparavelmente mais, se como ele trouxessem a acompanhá-los toda uma «equipe» de jornalistas, fotógrafos e até desenhador. Ele deve ganhar por ano uns mil contos mas metade é só para essa gente que lhe faz o nome. Fique certo: Cañero não faz a mínima sombra aos cavaleiros portugueses.
     - As toiradas de Espanha?
     - Uma brutalidade. Uma verdadeira selvageria. É improprio de povo civilizado o espetáculo bárbaro dos cavalos mortos, de tripas ao sol, em dolorosa agonia.
     - Viu tourear o Gallito?
     - Muitas vezes. Tinha pela sua arte uma verdadeira admiração. Era inexcedível de perfeição e audácia. Quando me vieram dizer que ele tinha morrido, estava eu em Badajoz para o ver tourear, e perguntei se ele havia sucumbido com alguma congestão, ou outra qualquer doença, pois me repugnava acreditar que ele tivesse morrido nas hastes de um toiro.
     A expressão do meu entrevistado ilumina-se de entusiasmo.
     - Tomou parte em muitas corridas nas Caldas?
     - Em todas que eram organizadas em benefício da Associação dos Bombeiros. Os meus colegas em Lisboa riam-se de eu vir às Caldas tourear vacas, mas eu ficava sempre satisfeito por me tornar útil a tão simpática coletividade…Afinal…
     - Ingratidão?
     - Nada. É melhor não falarmos nisso.
     Só depois me quis recordar de alguma homenagem que a Associação dos Bombeiros Voluntários lhe tenha prestado, mas de nenhuma me lembrei. Que me conste, nem no Quadro de Honra que existe na sua sede, está o nome desse homem que tem empregado sempre o seu melhor esforço e boa vontade para que mais brilho e prestígio tenha o nome desta terra, que não é a dele, mas que ele distingue com a sua grande afeição (2).
     A entrevista tinha acabado. Eu agora já não era o jornalista curioso interrogando. Era apenas alguém que escutava com interesse as confidências com que o grande cavaleiro me quis premiar e que não passaram daquele cantinho, perto da janela, em volta da mesa pequena e íntima.


Luiz Teixeira

[GAZÊTA DAS CALDAS, Ano I, nº 11, de 20 de Dezembro de 1925]





            (1) Luís Teixeira (ou Luiz), que realiza esta entrevista a Vitorino Fróis, merece uma apresentação condigna. Nascido nas Caldas em 1904, inicia a sua carreira jornalística no jornal A Época, e transita depois para os jornais O Século e Diário de Notícias. Cultivou a crónica, o ensaio e a ficção literária, estreando-se na literatura com um livro de contos e crónicas – Feira de Amostras (Empreza Nacional de Publicidade, 1931). Entre as suas muitas obras, destaca-se a Pequena Crónica da Índia (Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1954), a Vida de Antero de Quental (Livraria Clássica Editora) e sobretudo, e atendendo à época em que foi escrito, o seu esboço biográfico de Salazar: Perfil de Salazar: Elementos para a história da sua vida e da sua época (Edição de autor, Lisboa, 1936). No ano de 1940, quando se realizam as comemorações do Duplo Centenário (1140 - fundação da nacionalidade / 1640 - Restauração), é um texto de Luís Teixeira (adequadamente patriótico e inflamado) que prefacia as reportagens sobre esse evento a nível nacional no Boletim da Junta da Província da Estremadura.


(2) - No Quadro de Honra do moderno quartel dos Bombeiros Voluntários das Caldas da Rainha, continua a não figurar o nome do Vitorino Fróis.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

O avião Junkers na Quinta do Fróis

     Num testemunho oral registado em 1987 e já recuperado neste blogue, um nonagenário, António Faustino Junior evocava desta maneira o avião que se lembrava de aterrar na Quinta do Fróis:

     «O primeiro aeroplano que veio para o nosso sítio foi um que pousou na Quinta do senhor Vitorino. Pousou no campo dele, lá em baixo. Aquilo era uma admiração, aquela coisa no ar, e todo o povo desta região, de Alfeizerão, dos Casais Norte, de Vale Maceira, Macarca…este povo foi todo para lá e aquele campo estava cheio de gente. E, quem queria, podia andar no aeroplano, ia uma pessoa de cada vez, pagava quinze tostões e ia dar uma volta no aeroplano, que aquilo também não ia muito longe».

     Recentemente, descobrimos no espólio da Biblioteca Municipal de Caldas da Rainha os quatro postais ilustrados com esse avião, um monomotor Junkers F-13, que aqui reproduzimos.

     O Junkers F-13 é um engenho pioneiro na aviação civil em Portugal: um Junkers com a matrícula C-PAAC e batizado com o nome de Lisboa, foi a primeira (ou o terceira, segundo outras fontes) aeronave civil a ser registada em Portugal. Estes postais permitem entrever parcialmente essa matrícula na asa do avião (...AAC). O C-PAAC foi enviado pela Junkers para Portugal em 1925 para ser colocada ao serviço dos Serviços Aéreos Portugueses (SAP), companhia fundada pela Junkers e por diversos investidores portugueses, entre os quais avultava o capital de António Eça de Queirós, o filho do escritor. 
       O objetivo inicial da SAP era estabelecer uma rota aérea com a Albânia, mas na prática, este Junkers solitário da companhia foi utilizado numa ligação aérea entre Lisboa (Alverca), Madrid e Sevilha; em conexão com os voos na mesma rota da Unión Aérea Española (U.A.E.), companhia que dispunha de diversas aeronaves Junkers F-13 e Junkers G-24. Os serviços aéreos da SAP são suspensos em 1930, ainda que a companhia se mantenha em funcionamento depois disso.

       Uma informação colhida no portal de genealogia Geneall.net, indica-nos que António Eça de Queirós e um dos irmãos, José Maria, eram amigos próximos do José Rino de Avelar Froes, o filho varão do Vitorino de Avelar Froes. Esta ligação poderá explicar a presença deste Junkers na Quinta de Alfeizerão.


Avião Junkers, Alfeizerão (impresso em Caldas da Rainha, 1929)


Avião Junkers, Alfeizerão (Caldas da Rainha, 1929)
No verso, carimbo de José Neto Pereira FOTO - Caldas da Rainha


Avião Junkers, Alfeizerão (Caldas da Rainha, 1929)


«Aluguer de avião Junker nos campos de Vitorino Frois em Alfeizerão» (Caldas da Rainha, 1929)


Uma versão (colorida digitalmente) da primeira imagem



José L. Coutinho


quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A visita da rainha D. Maria II

Retrato pintado por William Charles Ross (1852)

     Depois da passagem do rei D.Miguel I por Alcobaça nas vésperas do triunfo dos liberais e da partida dos monges do mosteiro, é a rainha D. Maria II quem visita as províncias do norte, apaziguando diferenças e esbatendo clivagens no término de uma conturbada e devastadora guerra civil. Acompanham-na o esposo; o príncipe D. Pedro e o infante D. Luís, mais uma pequena comitiva onde se destaca o duque de Saldanha. A viagem é narrada numa obra (digitalizada pelo Google) cujo autor assina como J. A. S. T., e que possui um título inequívoco: Descripção da Viagem de Suas Magestades às Províncias do Norte, desde que sahiram de Lisboa até o seu feliz regresso; com as felicitações das Camaras e respostas da soberana, e a narrativa do desastroso incendio no palacio de Barcellos (impresso na Tipografia de Sebastião José Pereira, Porto, 1852).
     Transcrevemos alguns parágrafos da obra, atualizando a escrita, ultimando com uma anotação que julgamos pertinente.

(…)
     No dia 18, por volta das 7 horas da manhã, partiram Suas Majestades da Vila das Caldas, e seguiram a estrada de Pombal. Chegaram a Alfeizerão, distante das Caldas légua e meia, e não se encontrava outra coisa, a não ser grande alegria no rosto dos habitantes desta povoação campestre, toda abundante de sentimentos, e encantos. Homens, mulheres, velhos, e crianças, todos queriam aproximar-se a SS. MM., e felicitá-las.
     A Câmara Municipal de S. Martinho, a cujo concelho pertence esta povoação, bem como as suas autoridades, achavam-se logo a entrada, junto de um arco, que se levantou no princípio do lugar: cumprimentaram SS. MM., e felicitaram a Rainha. Era belo e sublime quando SS. MM. apearam para almoçar: imensa quantidade de povo afluiu a querer beijar a mão aos augustos hóspedes. Mui brilhante e patética se tornava esta cena. El-Rei, rodeado pelo povo, não podia romper; era-lhe impossível dar um só passo.      Não passaremos em claro sem notarmos as expressões sinceras, que ditava El-Rei aos circunstantes, quando apinhados em volta dele, o felicitavam fervorosamente, correspondendo-os com a amabilidade de que é dotado tão excelente coração. Continuaram sua jornada por entre mil festejos, e por volta das duas horas e meia da tarde estacionou o Real cortejo.
     Alcobaça não pôde jamais certamente apresentar um espetáculo tão tocante; é impossível. A notícia da chegada de SS. MM. fez despovoar todos os lugares mais e menos próximos, e correr todos os povos, velhos e moços, àquela festejante vila. Reinava um só pensamento em todos os ânimos; era — a receção da Família Real. — Digamo-lo com verdade; Alcobaça esmerou-se no acolhimento dos Herdeiros das nossas heróicas tradições, e timbrou, com toda a delicadeza, em hospedar a SS. MM. Os habitantes de Alcobaça deram mais que exuberantes provas de que são portugueses. As janelas do trânsito achavam-se todas, elegante e ricamente armadas.
     Com profusão se viram derramar cestos de flores sobre o coche em que ia a Rainha. O povo amontoava-se aos centos, aos milhares, na ocasião da passagem, entoando vivas com todo o entusiasmo à Família Real, e vitoriando maravilhosamente a Sua Majestade. Custa-nos debuxar devidamente este quadro tão vistoso. Os sinos, as músicas, os foguetes, a alegria espargida no coração dos povos, um exemplo tão nobre e magnífico, um prazer que tanto realçava, tudo se nos torna mui difícil tarefa.
     Suas Majestades dirigiram-se ao Mosteiro, sendo recebidas debaixo do pálio pelo Clero, Câmara Municipal, e mais funcionários públicos, e muitos cavalheiros das principais famílias da vila. Depois de darem graças ao Todo-Poderoso, recolheram-se com grande entusiasmo à casa que lhes fora preparada, tornando a sair, pouco mais tarde, a visitar o Mosteiro, e suas antiguidades, voltando a pé, seguidas pela música dos curiosos da terra, vitoriando-as por mais esta vez o povo, que em numerosos grupos se apinhava para tal fim. Continuaram os festejos cada vez com mais entusiasmo. SS. MM. receberam as diferentes corporações, e autoridades, tanto daquele, como do concelho de Pederneira, que muito desejavam felicitar Sua Majestade, e apresentar-lhe os seus respeitos. Tal foi a memorável receção que SS. MM. tiveram naquela vila, sinal verdadeiro do carácter de um povo nobre, português, e exemplar.
     Em seguida damos cópia da felicitação das Câmaras de S. Martinho do Porto, e Alcobaça, que neste entrementes foram entregues a Sua Majestade
(…)

     Seguem-se as felicitações laudatórias das duas Câmaras, que tributam à rainha terem libertado o povo. A mensagem da Câmara de Alcobaça é particularmente incisiva, evocando o domínio opressivo dos monges da abadia: «As próprias estradas nos eram concedidas por favor e até do ar se nos fazia questão!! Agora tudo é nosso, e é livre».

     Uma última nota para as assinaturas dessas duas mensagens. O presidente interino da Câmara de Alcobaça chama-se António Victorino da Fonseca Froes. E na mensagem da Câmara de S. Martinho do Porto, encontramos também um José Vicente da Fonseca Froes, e um outro nome que já havíamos encontrado antes: Aureliano Pedro de Sousa e Sá; este, morador em Alfeizerão, foi amigo pessoal de António José Sarmento, que lhe dedica as Memórias da Vila de Alfeizerão.

Post Scriptum: Informa-me o Jorge Froes, bisneto do Victorino de Avelar Froes, que o António Victorino da Fonseca Froes era o tio deste, e que o nome do segundo Froes está mal escrito na obra original, trata-se na verdade de José Vitorino da Fonseca Froes, irmão do António e pai de Victorino de Avelar Froes. Falar-se-á novamente destes dois ganadeiros numa entrevista a José Rino Fróis cuja transcrição aqui publicarei brevemente, e que foi realizada pelo jornal O Alcoa no ano de 1949.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

A estadia do rei D. Dinis no castelo de Alfeizerão

Gravura de 1791 (Lusitanorum Regum Icones Ordinis Temporum Expositae),
Biblioteca Nacional, Lisboa.
«(...) No principio poz el rey D. Dinis a Universidade primeyro em Lisboa; pouco depois mudou-a pera Coimbra, donde outra vez el Rey Dom Fernando a tornou a por em Lisboa, & ahi esteve atè que ultimamente elRey D. João III lhe deu casa certa outra vez em Coimbra, & assento proprio no seu mesmo Palacio Real, ampliando-a, &reformandoa na mesma forma que a vemos hoje. 
«Porem, não foi Deos servido que visse o Abbade d. Fr. Martinho o dezejado fim nas suas ãciozas diligencias; porque quando o Pontifice em Roma despachou a Bulla, & elRey em Portugal ordenou a Universidade já elle era no Ceo, porque morreo no fim do mes de Julho de 1290; mas Deos Senhor nosso satisfeslhe com outra grande felicidade o excessivo contentamento, que ouvera de ter, se vira em seus dias a nova Universidade que dezejava; porque agazalhou; & teve por sua hospeda no Real Mosteyro de Alcobaça a gloriosa nossa Raynha Santa Izabel. 
«No mes de Mayo de 1287, succedeo que fez jornada elRey D. Dinis de Lisboa pera Coimbra & na sua companhia a mesma Raynha Santa, & tomaraõ ambos a via de Alenquer; de Alenquer vieraõ a Obidos, & da hi teve avizo o Abbade Dom Fr. Martinho da vezinhança das Pessoas Reaes, pelo que os foy esperar à sua Villa de Alfeizaraõ, que he entre Obidos & Alcobaça. Chegaraõ a Alfeizaraõ os dous Reys em 9. do mes de Junho, & no Castello da mesma Villa os agazalhou o Abbade com o devido esplendor a tãta Alteza; do Castello abalaraõ pera Alcobaça e, 12. de Junho, & quando foy na tarde do mesmo dia se foraõ apear junto do Mosteyro, aonde os estava esperando à porta da Igreja a devota Comunidade dos mõges; & todos (ao que se deve entender) com hum grande alvoroço por averem de tratar tam de perto a huma Princeza, de quem cantava a fama de tantas maravilhas de santidade. A mesma Senhora tambem trazia mayor dezejo de ver a casa, tanto pela boa opiniam de seus moradores, quanto por ser o Real Mosteyro em toda idade o primeyro empenho, & desvelo dos nossos Reys (...)».

( Frei Manuel dos SantosAlcobaça Illustrada - Noticias, e Historia dos Mosteiros, e Monges insignes Cistercienses da Congregação de S. Maria de Alcobaça da Ordem de S. Bernardo nestes Reinos de Portugal, e Algarves. Parte. 1. Contém a Fundação, progressos gloriosos, Privilegios, Regalias, e Jurisdiçoens do Real Mosteiro de Alcobaça, Cabeça da Congregação no tempo de seus Abbades perpetuos, e Administradores Cõmendatarios até a morte do Cardeal D. Henrique, com muitas noticias antigas, e modernas do Reino, e Serenissimos Reys de Portugal, Parte I, página 122, impr. de Bento Secco Ferreira, Coimbra, 1710).

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Sousa Viterbo e os dois carpinteiros quinhentistas em Alfeizerão

Fernandes (João). – 4.º - Era carpinteiro, morador em Alcobaça e tinha de empreitada as obras de carpintaria do castelo de Alfeizerão. Aparece assim designado numa carta de perdão a António Fernandes de Arca, lavrador de Alfeizerão, que tinha ido arrancar madeiras ao castelo, que estava em ruínas e abandonado – aberto e devasso sem nele morar pessoa alguma. João Fernandes, segundo o suplicante, dera licença para isso.
A carta de perdão é de 13 de Abril de 1538, e acha-se registada na Chancelaria de D. João III, a fol. 137 do liv. 14 das Legitimações e Perdões.
Vide sobre o mesmo caso as cartas registadas no mesmo livro a fol. 138v., 243.



In:
VITERBO, Sousa (coordenação de), Diccionario Historico e Documental dos Architectos, Engenheiros e Construtores Portugueses,ou a Serviço de Portugal, volume I, página 566, Imprensa Nacional, Lisboa, 1899,


Carpinteiros a trabalhar em «Noé Construindo a Arca», quadro do pintor italiano Jacopo da Ponte, Il Bassano (1510-1592)

João (Mestre) – 2º
Uma carta do cardeal infante, dirigida em 4 de Junho de 1537 a Pedro de Videira, nos revelou a existência de um mestre João, que arrematou a obra de carpintaria e marcenaria do novo dormitório que se fazia no mosteiro de Alcobaça. Ignorávamos quem fosse este mestre João, quando percorrendo o livro 6º dos Prazos do mesmo mosteiro, que se arquiva hoje na Torre do Tombo, encontramos um documento que nos veio elucidar a questão, pondo em luz a personagem. É a carta de emprazamento da propriedade da Alvorninha a mestre João, alemão, carpinteiro de marcenaria e morador no mesmo convento. A escritura tem a data de 20 de Dezembro de 1533. Cremos que não poderá haver dúvida sobre a identidade de um e de outro. A quinta da Alvorninha devia ser uma rendosa propriedade a ajuizar pelo foro imposto de dois porcos, oito galinhas e seis capões, afora o quarto e o dízimo de todos os frutos. O foro porém deixaria de ser pago em vida do mestre João, atendendo aos serviços que ele prestara ao convento.
A carta do infante é muito interessante, porque se refere também a obras que então se andavam fazendo no castelo de Alcobaça e a outras nos moinhos de Alfeizerão. Aqui damos os dois [só copiamos o primeiro deles] documentos:


«Pero da Videira, nos ho cardeal iffante &c., vos enuiamos muito saudar; vimos ha carta que nos escreuestes e debuxo do dormitorio e cellas que queremos mãdar fazer na sobrecrasta desse mosteiro, e quãto ao preço de quatro mil rs por cada cella em que has torna mestre Joã nos parece honesto fazendose como deue e obra limpa com seus leitos e escriptorios e has cellas em sua perfeiçã, como dizeis, e a elle arrematae ha obra por esse preço com has mais cõdições que vos parecer pera segurãça da obra e se fazer como cumpre. E porem queríamos que se começasse logo e vos assi ho ordenae. «It. Quãto aa repartição das cellas nos parece bem que se façã nos dous lanços da sobrecrasta que mãdaes no debuxo com has claridades e na maneira que dizeis somente que no canto õde se ajunta hos dous lãços das cellas se nã faça camara nem repartimento algum, mas que fique em vão com huma jenella ou duas esquinadas pera mais claridade do cãto: huma ou duas, segundo las virdes que se pode fazer, e assi ho mãdae fazer. «E porque tendo este dormitorio nouo serventia pera o velho polla porta que jaz nelle estas ficarã ãbos deuassos nos pareceo milhor que se faça huma porta pequena neste dormitorio nouo pera o velho acrecetãdo se mais huma cella assi e da maneira que vae agora no debuxo. Vos o vede bem com mestre João e ordenae que se faça assi como dizemos. Porem se ouuer algum incõueniente ou impedimento por se abrir esta porta que dizemos de hum dormitorio pera o outro nollo escreuereis primeiro que se abra. E praticalloheis com ho prior e lhe dareis cõta de tudo, porque a nos parece assi bem por que desta maneira fica estes dous dormitorios, .s. nouo e velho ãbos místicos com huua soo serventia e mais guardados e honestos. E como dizemos dae logo ha obra a mestre Joã e fazei que ha comece logo e vaa por ella em diãte. «It. Nos escreuei se hee jaa acabada ha obra desse castello dalcobaça de todo ou ho que lhe falta por acabar e por que se nã acaba. E fazei que se acabe e nam ãde tanto tempo em mãos de officiaes sem lhe darem cabo. E assi tãbem fazei prosseguir nos moinhos dalfeizirã que folgaríamos que se acabassem este verão, pois se nã fizerã no outro passado em que ouuerã dacabar; e de tudo nos escreuei largamente. Scripta em Euora a iiij de junho – ho secretario ha fez – de 1537. – O Cardeal Iffe.». 
(Torre do Tombo – Corpo Chronologico, parte 1ª, maço 58, doc. 102.)
«O Sacrifício de Noé», quadro do pintor italiano Jacopo da Ponte, Il Bassano (1510-1592)
(atente-se, uma vez mais, nos exemplos atemporais das ferramentas de marcenaria: serra, plaina, garlopa machado, verruma, enxó)

In:
VITERBO, Sousa (coordenação de), Diccionario Historico e Documental dos Architectos, Engenheiros e Construtores Portugueses, ou a Serviço de Portugal, volume II, páginas 30-31, Imprensa Nacional, Lisboa, 1904,


sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O manuscrito de António José Sarmento

     Tito Benvenuto de Sousa Larcher, no seu Dicionário Biográfico, Corográfico e Histórico do Distrito de Leiria, páginas 224-228 (Leiria, 1907), transcreve um manuscrito sobre a História de Alfeizerão devido à pena de António José Sarmento.  Informação parcialmente errónea (supomos) porque, nos números 175 a 177 do jornal Voz da Nazaré (Dezembro de 1991/ Janeiro de 1992), o mesmo manuscrito foi transcrito do original pelo Dr. João Saavedra Machado, que informa que ele ostenta o título de «Memórias da Vila de Alfeizerão», e foi escrito em finais do século XIX por Caetano José Sarmento. Este manuscrito encontrar-se-ia à data, em 1991, na caixa 25-19 da secção de Administração Regional e Local do Arquivo Distrital de Leiria.

     Apesar das dúvidas sobre o nome próprio do autor, o manuscrito de Sarmento possui algum interesse inegável, pelo que o recuperamos aqui com todos os adornos e atavios que são próprios da historiografia desse tempo (as lendas e digressões, e o gosto pela História contada e recriada). Sobre algumas informações apontadas, desconhecemos por completo onde o autor as encontrou, mas isso também é, de certo modo, um apanágio deste tipo de estudos.


Memórias da Vila de Alfeizerão

     
Caminhando pelo eminente monte e ladeira que conduz à Vila de Alfeizerão em uma visita que fiz este ano à Illma. Srª. D. Maria de Soledade e Sá, viúva de um meu antigo e honrado Amigo de feliz memória [Aureliano Pedro de Sousa e Sá , a quem dedica o escrito], a bela perspetiva de um vasto campo - Baía de S. Martinho e mar - estimulavam o meu espírito para folhear em alguns papéis que ainda conservo copiados fielmente de muitos manuscritos da antiga glória desta vila que a mão do tempo avara tem feito denegrir.
     Os Fenícios e Troianos, povos do Arquipélago da Grécia e Ásia, foram os primeiros que passaram as Colunas de Hércules para o grande Oceano e que correram as nossas costas - já habitadas por uns povos a que chamavam Túrdulos - formando algumas colónias 1), isto sucedeu ainda antes da edificação de Cartago. edificada no ano de 144 depois da fundação do Templo de Jerusalém que tinha sido edificado no ano do mundo 3166-296 depois da tomada de Tróia - 114 anos antes da 1ª Olimpíada - 137 antes da fundação de Roma e 887 antes da vinda do Espírito.
     Passados tempos vieram os cartagineses que muito mais traficavam com as nossas costas, saídos da África de um império e Cidade, talvez rival em grandeza à Babilónia, até que esta grandeza foi eclipsada pelo império romano seu rival.
     Afinal, no ano do mundo 3826-618 da República Romana, 4 anos antes da atraiçoada Morte de Viriato segundo 2), sendo cônsules em Roma Publius Fucius Thilius e Sextus Atilius Serranus. 136 anos antes do Espírito, Decius Junius Brutus veio a Espanha com um exército consular, costeando a beira mar desde o cabo «finisterrae» (Vigo) até ao sítio onde chamam «Barquinhas», em cujo trânsito tomaram algumas cidades desapercebidase querendo passar este estreito por onde entrava o mar para a Baía 3), formada hoje do campinho, campo de Maiorga e Cós, os Eburobricianos e Montanheses lhes vieram disputar a passagem - não se querendo entregar sem experimentarem a sorte da guerra com tal resistência e força que repulsavam o general romano.
     Mas este general, confiado nas tropas - entusiasmadas com o voto que ele tinha feito a Neptuno de lhe edificar ali mesmo um Templo em sua honra se alcançasse a vitória - tornou a avançar e a conseguir, acabando de bater a gente inimiga no monte vizinho, onde hoje é o Casal da Mota.
     Afinal entra na Povoação dos Eburobricianos que fez município romano - e cumprindo o voto, edificando o Templo a Neptuno 4)- que foi governado pelos tribunos Romanos até à sua total expulsão de Espanha por Suintila em 623 e até esse tempo florescente pela comodidade do seu porto guardado por uma fortaleza que o mar banhava por todos os lados, pois que o Município era então fundado em frente, na falda do monte, onde hoje chamam Ramalheira.
     Então este formoso município começou a decair não obstante a sua bela posição e acabou de todo pela invasão Agarena, sucedida em 711 da era do Espírito, animosa invasão que despovoou o nosso solo português, com a fome, peste e guerra.
     Não obstante, pela fertilidade das terras circunvizinhas, os Agarenos, a primazia do seu porto para o tráfico e das ruínas do Município, edificaram um «Bazar» a que puseram o nome de Alfeizerão, na língua Agarena ou Arábica quer dizer «Mercado Rico».
     No despenho da serra da Pescaria, que os Mouros chamavam monte Leira 5)[Larcher escreve Ceira] para o porto e campo de S. Martinho, em uma sapata de rocha duríssima, superior ao mesmo Porto e campo, fundaram os primeiros habitadores a Vila de S. Martinho a que deu carta de foro para ser povoada o D. Abade de Alcobaça Frei Estêvão, no mês de Junho de 1257, confirmada no Foral de El-Rei D. Manuel, no 1º de Outubro de 1514.
     Alfeizerão, sendo já despovoada no princípio da monarquia portuguesa, o abade D. fr. João Martins lhe tinha já dado carta de foro para ser povoada por cem moradores a 21 de Outubro de 1242 [data errada em cem anos] e edificando-se então uma igreja dependente da de S. Martinho onde havia maior povoação; porém, na era de 1296 esta igreja foi desmembrada da de S. Martinho e demarcados os seus limites pelo bispo de Lisboa, D. João Soares. O primeiro pároco foi o frade João Vicente apresentado pelo D. Abade fr. Fernando de Quental em 13 de Julho de 1425 e foi ratificada por sentença proferida em 1434 com declaração de serem pessoais os dízimos das duas freguesias.
     A igreja se arruinou nos anos de 1500 e tantos [?!] e esteve muito tempo caída até que foi reedificada e feita pelo geral fr. Caetano de S. Paio em 1762. As casas de residência dos párocos deixou-as o chantre da Sé de Leiria, Rodrigo da Silveira do Souto.
     Esta vila com a de S. Martinho no tempo do nosso Portugal velho pagavam de siza anual 318$920 réis com onze arráteis de cera e 4$00 réis para o ajudante.
    Fez donativos para a Coroa nos socorros que deu para Elvas, Monção e Pernambuco. Tinha alvará para ter partido médico, expedido em 17 de Janeiro de 1696.
    O seu termo confinava para a parte do norte com a torre de Fraimonde, mouro rico e potentado, onde os nossos maiores conheceram ainda grandes vestígios da sua antiguidade. Seus muros e muralhas eram formadas de pedra preta que se não acha por estes sítios, e tinham onze palmos de largo nos seus alicerces, fortalecido com torreões em cubos.
    O castelo de Alfeizerão, pelas suas ruínas se conhece a sua antiga grandeza; - o mar batia junto a ele até ao século XVI, quando batia nas faldas das muralhas de Óbidos.
    Em 1443, Afonso de Faigon, natural de Baiona, carregou em Alfeizerão um navio de sal, deu satisfação de direitos ao donatário da mesma terra.
    Neste castelo e casas dele hospedou o D. abade de Alcobaça, Martinho II de nome, a El-Rei D. Dinis e à rainha Santa Isabel sua mulher com a sua corte a 9 de Junho de 1288. Nele se aquartelou muitas vezes El-Rei D. Fernando. Foi reedificado em 1460. Os abades de Alcobaça residiram muitas vezes nesta fortaleza, na qual estava, a 4 de Janeiro de 1430, D. Estevão de Aguiar. O comendatário D. Henrique o habitou também e no tempo dos abades comendatários D. José de Almeida, D. José de Ataíde e de D. Fernando de Áustria, se arruinou o edifício da casaria por falta de reparos e ainda a 27 de Junho de 1630 declarou o auto de posse ao novo alcaide-mor que estavam vigadas as casas e a grande com 18 vigas muito fortes capazes de duração.
     Tenho escassas notícias dos alcaides-mores deste castelo porque alguns papéis se desencaminharam em 1833. Só sei que a 12 de Dezembro de 1422 era João Afonso e em 1536 João Botelho, depois Silvério Salvado de Morais e Silvério da Silva da Fonseca apresentado por D. Fernando de Áustria em Madrid no 1º de Outubro de 1623, em atenção aos serviços do alcaide-mor seu pai, com procuração de D. Michaela da Silva, mãe e tutora do pupilo-alcaide-mor: tomou posse do castelo seu tio D. Pedro da Silva e S. Paio, depois bispo da Baía, e o governo do castelo foi entregue por uma provisão do cardeal infante e abade donatário a Francisco da Silva, avô do novo alcaide-mor. Depois, por sentença do juízo da Coroa, ultimamente confirmada por alvará de 3 de Agosto de 1657, é a nomeação dos D. abades donatários cuja nomeação até a nova ordem de coisas andava há mais de um século na família dos Freitas e Feijós de Guimarães, afinal era alcaide-mor António Teixeira Coelho Vieira de Queiroz, que tomou posse a 17 de Abril de 1825.
     El-rei D. Manuel, sendo comendatário seu filho D. Afonso, mandou fazer uma averiguação por homens engenheiros em 1501 nos vaus do rio da Tornada e Alfeizerão e deitando sondas acharam na sua embocadura conterem em si oitenta navios de alto bordo, uma vez que fosse necessário ali irem ancorar, e em 1650, fazendo-se a mesma averiguação, achavam poderem conter em si somente navios de pequeno porte e de ancoradouro perigoso.
     Teve esta vila de Alfeizerão muitos homens ilustres e literatos, dos quais se conserva a notícia de frei Dionísio do Couto, monge de Alcobaça, que compôs, além de muitas [outras] obras - «Casus abreviatus leges decretus».



Algumas notas ao acima dito:

     1) Das colónias das quais ainda existe o nome de Cós. Quase no fim de um vale, cercado de montes, fica a vila de Cós que D. Estevão Martins deu aos povos habitadores carta de foro e Povoação em 18 de Março de 1278 e que se tornou D. Frei Pedro Nunes seu sucessor no primeiro de Abril de 1289.
     Das ruínas desta Colónia se tinha servido El Rei D. Sancho 2º , chamado O Capelo, para edificar um convento ou recolhimento de Freiras no lugar da Póvoa que o Infante cardeal e rei mudou e fez Mosteiro da Ordem de S. Bernardo na mesma vila.
     Os Fenícios possuíram nos Arquipélagos em Ásia, a ilha de Cós, a mais fértil em terreno e da qual já Salomão tinha tirado muita riqueza principalmente em bons cavalos, os Fenícios atraídos da fertilidade do solo e clima, lhe puseram o nome da sua ilha, como se viu de uma lápide em língua grega, modernamente achada e traduzida pelo Arcebispo de Évora a sua inscrição.
     E esta ilha era a Pátria de Appeles, famoso pintor da Antiguidade, de Esculápio, chamado o Deus da Medicina, que primeiro ensinou a criação do Bicho da seda e arte de se servir e tirar proveito deles, o que passou para todo o Mundo. Pertence hoje aos Turcos.
     Os Romanos foram também [seus] senhores e trouxeram para Roma uma formosa estátua de Vénus [qu]e ali houve e outra de Esculápio (mundo 3743) - vidé "Annaes Lagiados", anos do mundo 3743 - Os cavaleiros de Rodes também foram senhores desta ilha.

     2) Esta tradição de que Viriato era oriundo de Eburobrício ou do seu distrito, que compreendia desde a Barquinha até à foz da Lagoa de Óbidos, a que chamavam Eburobricianos - dantes Túrdulos. Sendo no princípio aventureiro, depois caçador e finalmente guerreiro que tanto deu que fazer aos romanos por espaço de dez anos até que Quinto Servílio Cipião, governador da outra parte do rio Guadiana, o fez assassinar em 614 - e 14 anos antes do Espírito.

     Estes povos eram aliados de Viriato até à sua morte.

     3) Ainda no ano de 1314 e 1315 o mar fazia um lago que chegava à Torre de D. Framondo e Valado; e se faziam embarcações ao nordeste da parte do Monte de S. Bartolomeu (in Tombo de Álvares Martins, f.43).


     4) A cúpula, por modo de zimbório, ainda existe e é obra Dórica e de pedra que só conheço em Pero Pinheiro.

   Servia de Capela Mor a antiga freguesia de S. Gião e onde se conhece estava a estátua de Neptuno; o corpo da Igreja é o celeiro da Quinta onde está cravada a lápide com a inscrição que lhe gravou Decio Fucio.

     5) No alto do monte Leira ainda se conservam as ruínas da antiga Ermida de S. Martinho, onde vivia um Ermitão chamado Martinho, homem virtuoso e de muita oração, que fazia vida solitária e que morreu a 23 de Março de 1270.


   

domingo, 8 de fevereiro de 2015

PEDRO FERNANDES, UM PIRATA ALFEIZERENSE DO SÉCULO XVII - por Carlos Casimiro de Almeida




TRANSCRIÇÃO
(por Carlos Casimiro de Almeida):

     
Ao primeiro dia do mês de julho do ano de mil seis centos quarenta e oito, em Lisboa, nos estaos (1) e casa do despacho da santa inquisição, estando aí em audiência da manhã, os senhores inquisidores mandaram vir ali ante si a um homem que da sala mandou pedir audiência, e sendo presente disse chamar-se Pedro Fernandes, natural disse ser da vila de Alfeizirão, coutos de Alcobaça, de idade de trinta e seis anos, hi per dizer que tinha de que se acusar nesta mesa. Lhe foi dado juramento dos santos evangelhos, em que pôs a mão, sob cargo do qual lhe foi mandado dizer verdade e guardar segredo, o que tudo protestava cumprir.
     E disse que sendo menino de sete para outo anos e vivendo com sua mãe na vila de Peniche, o levou em sua companhia, pera a pescaria de Arguim [!!], Gomes da Costa, vizinho, da dita vila de Peniche, na sua caravela. E vindo iunto à Rocha de Sintra os tomaram os mouros de Argel e os levaram. E ele, declarante, foi vendido a um turco que se chamava Bezarã, o qual dali a poucos meses [o] persuadiu, a ele, declarante, que se conhecesse turco. O que ele, declarante, fez. E lhe ensinaram que dissesse as palavras com que se costuma renegar. Que são (leyla'alá maometh so lá) que querem dizer que deus é grande, e Mafamede está iunto dele. E logo lhe puseram nome Solimão e o cortaram e lhe deram trajes de turco, e ficou cuidando, por não ter ainda entendimento, que ser turco era bom para a salvação, e serviu ao dito mouro cousa de catorze anos, o qual, morrendo, o deixou forro. E então se fez soldado e andou a corso com os turcos contra cristãos, e também era soldado na terra, e haverá um ano pouco mais ou menos que ele se casou em Argel com uma turca chamada Jasmina. E haverá dois meses e meio que ele, declarante, se embarcou em Argel por capitão de um navio em companhia de mais quatro navios de que era cabo um renegado natural da Ilha da Madeira que se chama Jafet, morador em Argel. E chegando à costa de Portugal junto à Pederneira em arrais um navio holandês carregado de trigo que vinha de Biscaia e o levaram para lá ficar. E então o dito cabo Jafet mandou a ele, declarante, que se metesse no dito navio holandês e levasse aquele trigo a Argel, dando-lhe para sua guarda cinquenta mouros e turcos, e do dito navio tiraram os holandeses e os repartiram pelos cinco navios, e também do mesmo navio holandês que tinha vinte peças de artilharia tiraram treze, menos sete para levar em sua guarda, e, apartando-se ele declarante dos ditos navios de mouros para fazer sua viagem para Argel na madrugada seguinte, se achou entre quatro navios de holandeses que lhe tiraram [aquelas?] peças de artilharia, e fugindo ele declarante para terra, quis [antel?] surgir na Ericeira, que não a poder de holandeses, e por ser ele declarante muito apertado encalhou a nau no rochedo. Os que sabiam nadar saíram a terra, que foram dezoito pessoas e a guarda se afogaram vinte e cinco que ficaram no navio por não saberem nadar, e tiraram os holandeses em suas lanchas e ouviu dizer que os vieram vender a Cascais. E tanto que ele declarante e seus companheiros chegaram a terra logo foram ali vistos pelos portugueses e levados à frente deles à Ericeira e outros para algum lugar ali perto a que não sabe o nome, e ele declarante ficou ali em serviço do conde, e seus mouros mais, e ali esteve ele declarante alguns dias sem dizer que era cristão. E o não declarou por temer que o queimassem e haverá cousa de quarenta dias que saíram em terra e vindo ali haverá quatro ou cinco dias um homem de Peniche que tinha sido cativo em Argel e veio resgatado haverá ano e meio, conheceu a ele declarante e lhe disse que já que se via em Portugal e era cristão, que o declarasse e que não houvesse medo que lhe não haviam de fazer mal algum e com isto foi ele declarante à condessa da Ericeira (2) e lhe declarou que era cristão e que o queria ser e que lhe desse remédio. E logo ela o mandou com um criado seu remeter ao senhor bispo a esta inquisição, onde chegaram ontem à tarde. E que isto é o que passou na verdade. E ele quer de coração e boa vontade ser cristão e viver e morrer em nossa santa fé católica e aprender as orações e tudo o mais que for necessário para sua salvação; e que está muito pesaroso de ter gastado tantos anos fora do serviço de deus, mas que não entendia mais.
     Ele declara que quando o cativaram sabia o Pai Nosso e Ave Maria e Salve Rainha, mas que tudo lá lhe esqueceu por ser de tão pouca idade e em terra de mouros fazia algumas vezes as ceremónias que eles faziam, indo às mesquitas e jejuar, e mais inclinado era a amizade dos cristãos com os quais gastava alguma cousa que tinha.
     Perguntado como se chamava seu pai e sua mãe e de onde eram naturais e de que viviam, respondeu que seu pai se chamava Pero Francisco Fernandes e era lavrador já defunto, e sua mãe Francisca da Costa, naturais da dita vila de Alfeizirão, e depois de sua mãe viúva veio viver a Peniche, e tinha ele declarante uma irmã, de nome Maria, de menor idade, que ele declarante ouviu dizer a um homem de Peniche que ambas eram cá mortas.
     E que ele declarante é cristão batizado e o foi na igreja da vila de Alfeizirão, mas não sabe quem o batizou nem quem foram seus padrinhos, nem foi crismado nem sabe que cousa é.
     Foi-lhe dito que dê muitas graças a deus nosso senhor pelo trazer a terra de cristãos e pela [?] ocasião de salvar sua alma – afinal o objetivo da vida. Para tal têm em conta a pouca idade dele à data da captura por piratas muçulmanos, absolvem-no de culpas e reenviam-no à Ericeira para continuar ao serviço de D. Fernando de Meneses (3) e ser instruído na fé católica. O que vem a acontecer e será autenticado por notário:

     António Veloso […], presbítero notário público apostólico [?] e pároco da Stª Igreja da vila da Eiriceira, certifico e faço fé que por comissão dos senhores inquisidores da santa inquisição da cidade de Lixboa, inemei [?] a Pedro da Costa natural de Alfeizirão, varinho [varino, vendedor de peixe]de Peniche, as orações que os fieis cristãos são obrigados saber, e o instrui nos mistérios de nossa santa fee católica, e o confessei e o absolvi da excomunhão em que podia ter incurrido nas partes da Turquia, em que viveu de menino, negando nossa fé católica, que hoje professa como cristão, o que tudo fiz na forma que me foi ordenada pelos [?] senhores inquisidores, e por o dito Pedro da Costa me pedir esta e minha letra, e signei [autentiquei] de meus signaesPúblico e Raro (4), na Ericeira em vinte de septembro de mil e seiscentos quarenta e oito anos.






(1) O Palácio ou Paço dos Estaus, era o Palácio da Inquisição em Lisboa, situado no Rossio. Mandado construir pelo infante regente D. Pedro como um palácio para hóspedes ilustres, foi, na primeira metade do século XVI, adaptado a sede do Santo Ofício em Lisboa. Um incêndio reduziu-o a cinzas em 1834, e foi reconstruído para abrigar o teatro D. Maria II, inaugurado como tal em 1846.

Auto-de-Fé no Rossio, saindo dos Estaus (gravura inserta no 6ª tomo dos
Annales D'Espagne et de Portugal,
de Juan Alvarez de Colmenar, publicado em Amsterdão no ano de 1741))
(2) D. Leonor Filipa de Noronha


(3) D. Fernando de Menezes (1614-1699), 2º conde da Ericeira.

(4) Este sinal, que designa por raro (o da esquerda), seria talvez equivalente ao moderno selo branco. Nele se veem as iniciais AVF do nome do notário. Não parece fácil desenvolver a abreviatura do último: à inicial parece seguir-se r – e termina em a. Poderá ser Ferreira, pouco importa.
Na personagem, o nosso pirata, note-se a troca do apelido paterno pelo materno (Costa).