TRANSCRIÇÃO
(por Carlos Casimiro de Almeida):
(por Carlos Casimiro de Almeida):
Ao primeiro dia do mês de julho do ano de mil seis centos quarenta e oito, em Lisboa, nos estaos (1) e casa do despacho da santa inquisição, estando aí em audiência da manhã, os senhores inquisidores mandaram vir ali ante si a um homem que da sala mandou pedir audiência, e sendo presente disse chamar-se Pedro Fernandes, natural disse ser da vila de Alfeizirão, coutos de Alcobaça, de idade de trinta e seis anos, hi per dizer que tinha de que se acusar nesta mesa. Lhe foi dado juramento dos santos evangelhos, em que pôs a mão, sob cargo do qual lhe foi mandado dizer verdade e guardar segredo, o que tudo protestava cumprir.E disse que sendo menino de sete para outo anos e vivendo com sua mãe na vila de Peniche, o levou em sua companhia, pera a pescaria de Arguim [!!], Gomes da Costa, vizinho, da dita vila de Peniche, na sua caravela. E vindo iunto à Rocha de Sintra os tomaram os mouros de Argel e os levaram. E ele, declarante, foi vendido a um turco que se chamava Bezarã, o qual dali a poucos meses [o] persuadiu, a ele, declarante, que se conhecesse turco. O que ele, declarante, fez. E lhe ensinaram que dissesse as palavras com que se costuma renegar. Que são (leyla'alá maometh so lá) que querem dizer que deus é grande, e Mafamede está iunto dele. E logo lhe puseram nome Solimão e o cortaram e lhe deram trajes de turco, e ficou cuidando, por não ter ainda entendimento, que ser turco era bom para a salvação, e serviu ao dito mouro cousa de catorze anos, o qual, morrendo, o deixou forro. E então se fez soldado e andou a corso com os turcos contra cristãos, e também era soldado na terra, e haverá um ano pouco mais ou menos que ele se casou em Argel com uma turca chamada Jasmina. E haverá dois meses e meio que ele, declarante, se embarcou em Argel por capitão de um navio em companhia de mais quatro navios de que era cabo um renegado natural da Ilha da Madeira que se chama Jafet, morador em Argel. E chegando à costa de Portugal junto à Pederneira em arrais um navio holandês carregado de trigo que vinha de Biscaia e o levaram para lá ficar. E então o dito cabo Jafet mandou a ele, declarante, que se metesse no dito navio holandês e levasse aquele trigo a Argel, dando-lhe para sua guarda cinquenta mouros e turcos, e do dito navio tiraram os holandeses e os repartiram pelos cinco navios, e também do mesmo navio holandês que tinha vinte peças de artilharia tiraram treze, menos sete para levar em sua guarda, e, apartando-se ele declarante dos ditos navios de mouros para fazer sua viagem para Argel na madrugada seguinte, se achou entre quatro navios de holandeses que lhe tiraram [aquelas?] peças de artilharia, e fugindo ele declarante para terra, quis [antel?] surgir na Ericeira, que não a poder de holandeses, e por ser ele declarante muito apertado encalhou a nau no rochedo. Os que sabiam nadar saíram a terra, que foram dezoito pessoas e a guarda se afogaram vinte e cinco que ficaram no navio por não saberem nadar, e tiraram os holandeses em suas lanchas e ouviu dizer que os vieram vender a Cascais. E tanto que ele declarante e seus companheiros chegaram a terra logo foram ali vistos pelos portugueses e levados à frente deles à Ericeira e outros para algum lugar ali perto a que não sabe o nome, e ele declarante ficou ali em serviço do conde, e seus mouros mais, e ali esteve ele declarante alguns dias sem dizer que era cristão. E o não declarou por temer que o queimassem e haverá cousa de quarenta dias que saíram em terra e vindo ali haverá quatro ou cinco dias um homem de Peniche que tinha sido cativo em Argel e veio resgatado haverá ano e meio, conheceu a ele declarante e lhe disse que já que se via em Portugal e era cristão, que o declarasse e que não houvesse medo que lhe não haviam de fazer mal algum e com isto foi ele declarante à condessa da Ericeira (2) e lhe declarou que era cristão e que o queria ser e que lhe desse remédio. E logo ela o mandou com um criado seu remeter ao senhor bispo a esta inquisição, onde chegaram ontem à tarde. E que isto é o que passou na verdade. E ele quer de coração e boa vontade ser cristão e viver e morrer em nossa santa fé católica e aprender as orações e tudo o mais que for necessário para sua salvação; e que está muito pesaroso de ter gastado tantos anos fora do serviço de deus, mas que não entendia mais.Ele declara que quando o cativaram sabia o Pai Nosso e Ave Maria e Salve Rainha, mas que tudo lá lhe esqueceu por ser de tão pouca idade e em terra de mouros fazia algumas vezes as ceremónias que eles faziam, indo às mesquitas e jejuar, e mais inclinado era a amizade dos cristãos com os quais gastava alguma cousa que tinha.Perguntado como se chamava seu pai e sua mãe e de onde eram naturais e de que viviam, respondeu que seu pai se chamava Pero Francisco Fernandes e era lavrador já defunto, e sua mãe Francisca da Costa, naturais da dita vila de Alfeizirão, e depois de sua mãe viúva veio viver a Peniche, e tinha ele declarante uma irmã, de nome Maria, de menor idade, que ele declarante ouviu dizer a um homem de Peniche que ambas eram cá mortas.E que ele declarante é cristão batizado e o foi na igreja da vila de Alfeizirão, mas não sabe quem o batizou nem quem foram seus padrinhos, nem foi crismado nem sabe que cousa é.Foi-lhe dito que dê muitas graças a deus nosso senhor pelo trazer a terra de cristãos e pela [?] ocasião de salvar sua alma – afinal o objetivo da vida. Para tal têm em conta a pouca idade dele à data da captura por piratas muçulmanos, absolvem-no de culpas e reenviam-no à Ericeira para continuar ao serviço de D. Fernando de Meneses (3) e ser instruído na fé católica. O que vem a acontecer e será autenticado por notário:António Veloso […], presbítero notário público apostólico [?] e pároco da Stª Igreja da vila da Eiriceira, certifico e faço fé que por comissão dos senhores inquisidores da santa inquisição da cidade de Lixboa, inemei [?] a Pedro da Costa natural de Alfeizirão, varinho [varino, vendedor de peixe]de Peniche, as orações que os fieis cristãos são obrigados saber, e o instrui nos mistérios de nossa santa fee católica, e o confessei e o absolvi da excomunhão em que podia ter incurrido nas partes da Turquia, em que viveu de menino, negando nossa fé católica, que hoje professa como cristão, o que tudo fiz na forma que me foi ordenada pelos [?] senhores inquisidores, e por o dito Pedro da Costa me pedir esta e minha letra, e signei [autentiquei] de meus signaes, Público e Raro (4), na Ericeira em vinte de septembro de mil e seiscentos quarenta e oito anos.
(1) O Palácio ou
Paço dos Estaus, era o Palácio da Inquisição em Lisboa, situado no Rossio.
Mandado construir pelo infante regente D. Pedro como um palácio para hóspedes
ilustres, foi, na primeira metade do século XVI, adaptado a sede do Santo Ofício
em Lisboa. Um incêndio reduziu-o a cinzas em 1834, e foi reconstruído para abrigar
o teatro D. Maria II, inaugurado como tal em 1846.
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Auto-de-Fé no Rossio, saindo dos Estaus (gravura inserta no 6ª tomo dos Annales D'Espagne et de Portugal, de Juan Alvarez de Colmenar, publicado em Amsterdão no ano de 1741)) |
(2) D. Leonor Filipa de Noronha
(3) D. Fernando de Menezes (1614-1699), 2º conde da Ericeira.
(4) Este sinal, que designa por raro (o da esquerda), seria
talvez equivalente ao moderno selo branco. Nele se veem as iniciais AVF do nome
do notário. Não parece fácil desenvolver a abreviatura do último: à inicial
parece seguir-se r – e termina em a. Poderá ser Ferreira, pouco importa.
(3) D. Fernando de Menezes (1614-1699), 2º conde da Ericeira.
Na personagem, o nosso pirata, note-se a troca do apelido paterno pelo materno (Costa).
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