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Gravura de 1886 da sala da Livraria (in: BARBOSA, Inácio de Vilhena, Monumentos de Portugal - Históricos, artísticos e arqueológicos, Castro Irmão Editores, Lisboa, 1886.) |
1 - A dispersão
Bernardo Vila Nova, num capítulo consagrado à Dispersão da Livraria do Mosteiro de Alcobaça (em Subsídios para a História de Alcobaça, Tipografia Alcobacense, Alcobaça, 1956), narra-nos algumas das desventuras por que passou a livraria do Mosteiro de Alcobaça até ao seu desaparecimento. Que, no tempo de Frei Manuel dos Santos (1672-1740), a livraria estava, nas palavras do cronista, «assaz truncada e meio roubada», que muitas obras foram roubadas por leitores laicos que entravam e saíam sem serem vistoriados, que seguiram para Espanha no tempo da dominação filipina e acabaram no Escorial, que frei Bernardo de Brito levou dali todas as obras que precisava para escrever os seus livros, sem nunca terem voltado a Alcobaça depois disso.
Com a terceira invasão francesa, o Mosteiro é incendiado, e muitos livros destruídos ou roubados; e mais roubos ocorrem em 1833, durante o levantamento popular desse ano: um grupo de liberais apodera-se da praça de Peniche, abandonada pelos miguelistas, e alguns desses soldados teriam vindo a Alcobaça e saqueado novamente o mosteiro e a sua biblioteca.
A partida dos monges em 26 de Julho de 1833 e o fim da Ordem cisterciense de Alcobaça (1834), dita o fim inexorável da livraria. Quando se tenta salvar o que resta da livraria, já muito se havia perdido. Bernardo Vila Nova transmite uma citação (aparentemente) espúria acerca desse tardio salvamento: «Os livros que escaparam ao roubo desinteligente, que não tinha outro fim senão rasgar e aproveitar as folhas em embrulhos de tenda, foram transportados em carros para o porto de S. Martinho, onde embarcaram para Lisboa. Os carros foram semeando de livros e manuscritos a estrada. Os rapazes apanhavam-nos, rasgavam-nos e faziam barcos e chapéus de papel com as preciosas folhas dos livros raros».
Existirá certamente algum exagero nesta descrição colorida da forma como os livros foram acondicionados e transportados para o porto de S. Martinho, como veremos em seguida.
2 - Vinte e sete caixotes com livros
O caminho dos livros de Alcobaça para Lisboa possui o episódio curioso da existência em Alfeizerão de vinte e sete caixotes com livros da livraria do mosteiro. O episódio, bem como um dos documentos que o narra, foi já tratado por Carlos Casimiro de Almeida na sua monografia Alfeizerão - Apontamentos para a sua História, pp. 174-175 (edição da Junta de Freguesia de Alfeizerão, 1995); e aqui trazemo-lo de volta, com alguns aditamentos.
No ano de 1835, e em resposta a acusações que lhe haviam sido movidas pelo padre João de Deus Antunes Pinto, o ex-corregedor de Alcobaça, Antonio Luiz de Seabra, faz publicar as suas Observações sobre um papel enviado à Camara dos Senhores Deputados a cerca da arrecadação dos bens do mosteiro daquella villa (Typographia de Eugenio Augusto, Lisboa).
Nesta sua defesa, o ex-corregedor conta que, à sua chegada a Alcobaça, a «livraria, que era o que havia mais importante, e que tinha sido consideravelmente desfalcada pelo destacamento francês, [e] guerrilhas que ali vieram de Peniche, e por algumas outras pessoas, estava ainda de portas arrombadas e abertas, e em completo abandono. Mandei logo verificar por um auto o seu estado, trancar as portas e pôr-lhe sentinelas». Além disso, alega, teria oficiado «ao Juiz de Fora de Óbidos e Caldas para fazer recolher os volumes que ali tinham vendido os franceses na sua passagem: pediu ao Governo que lhe recomendasse esta diligência, e o mesmo ordenasse para Peniche, para onde tinham sido levadas algumas carradas, e cargas de livros, e de outros efeitos do Mosteiro» (página 4).
Ao procurar refutar as acusações que lhe haviam sido dirigidas, informa-nos que «alguns soldados franceses venderam livros nas Caldas e em Alfeizerão, e que uma grande cópia deles foi levada para Peniche e lá apreendida» (p. 13): e mais adiante (p. 33), que a maior parte dos livros «foram daqui levados para Peniche (antes da minha chegada) e me consta que o Governador tem tratado de os recolher. Alguns há também nas Caldas, e que ali foram vendidos por soldados franceses, ou se acham em poder dos Voluntários comandados por um certo Vasa [Manuel Vasa, ou Vaza], que não pouco concorreram aqui para os estragos deploráveis feitos no Mosteiro. Devo contudo acrescentar que os monges levaram consigo, ou puseram em recado, em sítio que ainda se ignora, e mesmo não convirá por ora descobrir, os manuscritos da Biblioteca que faziam a sua principal riqueza, e a maior parte dos livros que eles chamavam proibidos, cujo gabinete está vazio». Noutra parte (documento nº3), reportando-se a uma conversa havida na Casa da Câmara da vila da Pederneira, diz que os livros que os frades levaram consigo de Alcobaça haviam sido confiados ao Prefeito da Beira Alta e que se encontrariam à data no convento de Maceira Dam, ou seja, no Mosteiro de Santa Maria em Maceira Dão, distrito de Viseu.
O documento nº4 das Observações, constitui o auto de abertura e relacionamento dos 27 caixotes que se encontravam em depósito em Alfeizerão em «casas pertencentes ao Mosteiro de Alcobaça», e que foram abertos por um carpinteiro de Alfeizerão, António Rocha, de seu nome, para ser feita a relação dos manuscritos que continham, e novamente fechados e pregados pelo mesmo. Como testemunhas, surgem-nos, além do próprio António Rocha, António Joaquim de Oliveira, de Alfeizerão, e o pároco da vila, frei José de S. Joaquim.
Num outro documento, Resposta do Visconde de Seabra aos seus Calumniadores (Imprensa da Universidade, Coimbra, 1871), obtemos alguns dados sobre a anarquia e o vazio de poder que coroaram a partida dos monges do mosteiro, com saques e levantamentos populares por todas as terras que antes estavam sob a sua alçada - fala-se aí da acção da «guerrilha do Vaza, de Santa Catarina», e do roubo de cereais na Quinta do Campo, do Valado dos Frades, e nas «feitorias da Maiorga, Famalicão e Selir de Mattos».
Sobre os 27 caixotes de livros, dois dos documentos abonatórios que acompanham o libelo esclarecem-nos que os livros haviam sido inicialmente recuperados no Valado dos Frades, e encaminhados para Alcobaça e Alfeizerão para, posteriormente, serem embarcados para Lisboa no porto de S. Martinho. Transcrevo, na íntegra, ambos os documentos, o da Câmara Municipal de Alfeizerão, e o da Câmara Municipal de São Martinho do Porto:
Documento - fl. 74
Antonio
Gregorio, Presidente da Camara Municipal d'esta Villa d'Alfeizirão e os mais
membros da mesma abaixo assignados, etc. Aos senhores que a presente virem
attestamos que o ex-Corregedor da Comarca de Alcobaça, Antonio Luiz de Seabra,
em quanto serviu o cargo pugnou pelos Direitos da Soberana Legitima e pelo
progresso e triumpho da Causa Constitucional, pois apenas tomou posse do seu
logar immediatamente proclamou aos povos de toda a comarca, fazendo ver os
beneficios que a nossa Augusta Soberana lhe concedia com seu governo; não se
poupando o mesmo ex-Corregedor a trabalho algum pessoal, a ponto de se reunir
ás fileiras como soldado no dia seis de janeiro, quando os rebeldes se dispunham
a entrar em Alcobaça, como é publico e constante nesta comarca, promovendo com
zelo e actividade o sequestro e arrecadação dos bens do abandonado mosteiro e
seu arrendamento, e do mesmo modo se houve com a arrecadação do dinheiro da
siza e decima para não serem extraviados: fornecendo as tropas estacionadas em
Alcobaça sem commetter o menor vexame aos povos, nem mesmo aos da comarca,
fazendo de prompto retirar da mesma Villa de Alcobaça para esta os preciosos
manuscriptos, denunciados no logar do vallado, e vindo elle Ministro
pessoalmente fazer aqui o seu relacionamento, promoveu a sua conducção para o
porto de San Martinho; mostrando nisto toda a actividade que merecia tal
diligencia; por isso os mesmos povos d'esta comarca ainda hoje respeitam a sua
memoria. E por ser verdade todo o referido fizemos passar a presente, em fé do
que assignamos. Alfeizirão, em Camara de dezoito de maio de mil oitocentos e
trinta e quatro. E eu Jorge Paulo de Oliveira, Tabellião do judicial e notas e
Secretario das Camaras e Villas de Alfeizirão e Sam Martinho, que o escrevi. - Antonio
Gregorio - Joaquim Bento de Sousa - Correia e Sá - Antonio Joaquim d’Oliveira.
Documento - fl. 80
José
Antonio do Couto, Presidente da Camara Municipal d'esta Villa de Sam-Martinho e
os mais membros abaixo assignados, etc. Aos senhores que a presente virem:
attestamos que o Ex-Corregedor da comarca d'Alcobaça, Antonio Luiz de Seabra,
em quanto serviu o dito cargo, fez os maiores esforços pelo completo triumpho
dos inauferiveis direitos da nossa Augusta Soberana e legitima Rainha e da
Causa Constitucional, porque apenas tomou posse de seu logar proclamou aos
povos da comarca, dirigindo em continente a todos os Concelhos proclamações em
as quaes Ihes demonstrava, com toda a evidencia, os exuberantes beneficios que
a mesma magnanima Soberana lhes concedia com seu governo; não se poupando o
referido Corregedor a trabalho algum, tanto que tentando os rebeldes no dia 6
de Janeiro de corrente anno entrar em Alcobaça, elle rapidamente se uniu ás
fileiras como soldado, para, por si e com seu exemplo coadjuvarem a aguerrida e
valente guarnição que a defendia, o que poderam conseguir a pezar de superior
força que os atacou; feitos estes notorios, e de que são testimunhas os povos
d'esta comarca; promoveu tambem com todo o zêlo e energia o sequestro e
arrecadação dos bens do abandonado mosteiro d'aquella Villa, e seu arrendamento,
e não menos zeloso e activo foi na arrecadacão do dinheiro da decima e siza para
obstar a que por qualquer modo fosse extraviado; fornecendo a tropa estacionada
em Alcobaça de prompto e com todo o necessario sem commetter o minimo vexame
aos povos; fazendo rapidamente retirar d'Alcobaça para a Villa d'Alfeizirão os
preciosos manuscriptos pertencentes ao dicto abandonado mosteiro, vindo logo
pessoalmente á dicta Villa d'Alfeizirão relacional-os, e concluido este
relacionamento os fez por em esta Villa em seguro deposito, para d'ella os remetter
para Lisboa; mostrando em taes diligencias aquelle ardente interesse que o seu
caracter o caracteriza; e por isso todos os povos d'esta comarca se recordam
com saudade d'um Ministro que tanto anhela pelo bem do Imperante e Patria.
Sam-Martinho, em Camara de 21 de Maio de 1834. Eu Jose Paulo d'Oliveira,
Tabellião do judicial e notas, Secretario da Camara,. que o escrevi. - José Antonio do Couto.- José dos Santos
Fradinho.- Antonio Ribeiro.
3 - A viagem dos livros
Do caminho confuso destes livros até à sua partida para Lisboa, nos dá conta Paulo J. S. Barata em Os Livros e o Liberalismo: da Livraria Conventual à Biblioteca Pública (edição da Biblioteca Nacional de Portugal, ano de 2003), obra que representa a publicação da sua tese de mestrado na Universidade Aberta.
Transcrevo, com a devida vénia, os dois parágrafos (páginas 28 e 29) que abordam o nosso tema, omitindo apenas as indicações das fontes arquivísticas, que poderão ser encontradas na obra original:
«A 29 de Novembro de 1833, ordena-se que a Biblioteca Pública [de Lisboa] receba 28 caixotes de impressos e manuscritos provenientes da livraria do Mosteiro de Alcobaça, que haviam sido embarcados no porto de Peniche, cuja chegada estaria iminente. Cerca de três meses volvidos, porém, os caixotes contendo os livros de Alcobaça permaneciam ainda no porto de S. Martinho, expedindo-se então, a 6 de Março de 1834, após estranhar-se demora, novas ordens ao corregedor da comarca de Alcobaça para o transporte dos referidos caixotes de Peniche para Lisboa. Após a articulação das diferentes entidades envolvidas no transporte, designadamente o Intendente da Marinha do Porto e o Ministério da Marinha, decide-se que o mesmo será assegurado pelo primeiro navio do estado que regresse do Porto para Lisboa, no caso, a rasca nº8 [embarcação de pesca], capitaneada pelo mestre João Pereira Dias.
«As atribulações e a demora do transporte fica por certo a dever-se à confusão gerada com um caixote supostamente em falta. Em finais de 1833, o corregedor interino de Alcobaça, António Luís de Seabra, refere ter acondicionado num caixote os volumes que se encontravam em dois e, em Março de 1834, o então corregedor de Alcobaça, Francisco Boto Pimentel de Mendonça, assevera serem 27 e não 28 os caixotes entregues ao depositário. Efectivamente é de apenas 27 o número de caixotes de livros embarcados [destaque nosso], não obstante, no início de 1835, dar entrada na Biblioteca Pública um caixote proveniente da livraria de Alcobaça».
Para finalizar, uma última informação a considerar: num artigo de Paulo J. S. Barata baseado nesta sua tese de mestrado (Roubos, Extravios e Descaminhos nas Livrarias Conventuais Portuguesas Após a Extinção das Ordens Religiosas: um Quadro Impressivo), colhemos o pormenor dos manuscritos e impressos enviados para Alfeizerão para serem arrolados, terem sido «achados pelo corregedor de Alcobaça em hum escondrijo na sachristia da igreja do Valle [Valado]».
José Eduardo Lopes
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