sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O manuscrito de António José Sarmento

     Tito Benvenuto de Sousa Larcher, no seu Dicionário Biográfico, Corográfico e Histórico do Distrito de Leiria, páginas 224-228 (Leiria, 1907), transcreve um manuscrito sobre a História de Alfeizerão devido à pena de António José Sarmento.  Informação parcialmente errónea (supomos) porque, nos números 175 a 177 do jornal Voz da Nazaré (Dezembro de 1991/ Janeiro de 1992), o mesmo manuscrito foi transcrito do original pelo Dr. João Saavedra Machado, que informa que ele ostenta o título de «Memórias da Vila de Alfeizerão», e foi escrito em finais do século XIX por Caetano José Sarmento. Este manuscrito encontrar-se-ia à data, em 1991, na caixa 25-19 da secção de Administração Regional e Local do Arquivo Distrital de Leiria.

     Apesar das dúvidas sobre o nome próprio do autor, o manuscrito de Sarmento possui algum interesse inegável, pelo que o recuperamos aqui com todos os adornos e atavios que são próprios da historiografia desse tempo (as lendas e digressões, e o gosto pela História contada e recriada). Sobre algumas informações apontadas, desconhecemos por completo onde o autor as encontrou, mas isso também é, de certo modo, um apanágio deste tipo de estudos.


Memórias da Vila de Alfeizerão

     
Caminhando pelo eminente monte e ladeira que conduz à Vila de Alfeizerão em uma visita que fiz este ano à Illma. Srª. D. Maria de Soledade e Sá, viúva de um meu antigo e honrado Amigo de feliz memória [Aureliano Pedro de Sousa e Sá , a quem dedica o escrito], a bela perspetiva de um vasto campo - Baía de S. Martinho e mar - estimulavam o meu espírito para folhear em alguns papéis que ainda conservo copiados fielmente de muitos manuscritos da antiga glória desta vila que a mão do tempo avara tem feito denegrir.
     Os Fenícios e Troianos, povos do Arquipélago da Grécia e Ásia, foram os primeiros que passaram as Colunas de Hércules para o grande Oceano e que correram as nossas costas - já habitadas por uns povos a que chamavam Túrdulos - formando algumas colónias 1), isto sucedeu ainda antes da edificação de Cartago. edificada no ano de 144 depois da fundação do Templo de Jerusalém que tinha sido edificado no ano do mundo 3166-296 depois da tomada de Tróia - 114 anos antes da 1ª Olimpíada - 137 antes da fundação de Roma e 887 antes da vinda do Espírito.
     Passados tempos vieram os cartagineses que muito mais traficavam com as nossas costas, saídos da África de um império e Cidade, talvez rival em grandeza à Babilónia, até que esta grandeza foi eclipsada pelo império romano seu rival.
     Afinal, no ano do mundo 3826-618 da República Romana, 4 anos antes da atraiçoada Morte de Viriato segundo 2), sendo cônsules em Roma Publius Fucius Thilius e Sextus Atilius Serranus. 136 anos antes do Espírito, Decius Junius Brutus veio a Espanha com um exército consular, costeando a beira mar desde o cabo «finisterrae» (Vigo) até ao sítio onde chamam «Barquinhas», em cujo trânsito tomaram algumas cidades desapercebidase querendo passar este estreito por onde entrava o mar para a Baía 3), formada hoje do campinho, campo de Maiorga e Cós, os Eburobricianos e Montanheses lhes vieram disputar a passagem - não se querendo entregar sem experimentarem a sorte da guerra com tal resistência e força que repulsavam o general romano.
     Mas este general, confiado nas tropas - entusiasmadas com o voto que ele tinha feito a Neptuno de lhe edificar ali mesmo um Templo em sua honra se alcançasse a vitória - tornou a avançar e a conseguir, acabando de bater a gente inimiga no monte vizinho, onde hoje é o Casal da Mota.
     Afinal entra na Povoação dos Eburobricianos que fez município romano - e cumprindo o voto, edificando o Templo a Neptuno 4)- que foi governado pelos tribunos Romanos até à sua total expulsão de Espanha por Suintila em 623 e até esse tempo florescente pela comodidade do seu porto guardado por uma fortaleza que o mar banhava por todos os lados, pois que o Município era então fundado em frente, na falda do monte, onde hoje chamam Ramalheira.
     Então este formoso município começou a decair não obstante a sua bela posição e acabou de todo pela invasão Agarena, sucedida em 711 da era do Espírito, animosa invasão que despovoou o nosso solo português, com a fome, peste e guerra.
     Não obstante, pela fertilidade das terras circunvizinhas, os Agarenos, a primazia do seu porto para o tráfico e das ruínas do Município, edificaram um «Bazar» a que puseram o nome de Alfeizerão, na língua Agarena ou Arábica quer dizer «Mercado Rico».
     No despenho da serra da Pescaria, que os Mouros chamavam monte Leira 5)[Larcher escreve Ceira] para o porto e campo de S. Martinho, em uma sapata de rocha duríssima, superior ao mesmo Porto e campo, fundaram os primeiros habitadores a Vila de S. Martinho a que deu carta de foro para ser povoada o D. Abade de Alcobaça Frei Estêvão, no mês de Junho de 1257, confirmada no Foral de El-Rei D. Manuel, no 1º de Outubro de 1514.
     Alfeizerão, sendo já despovoada no princípio da monarquia portuguesa, o abade D. fr. João Martins lhe tinha já dado carta de foro para ser povoada por cem moradores a 21 de Outubro de 1242 [data errada em cem anos] e edificando-se então uma igreja dependente da de S. Martinho onde havia maior povoação; porém, na era de 1296 esta igreja foi desmembrada da de S. Martinho e demarcados os seus limites pelo bispo de Lisboa, D. João Soares. O primeiro pároco foi o frade João Vicente apresentado pelo D. Abade fr. Fernando de Quental em 13 de Julho de 1425 e foi ratificada por sentença proferida em 1434 com declaração de serem pessoais os dízimos das duas freguesias.
     A igreja se arruinou nos anos de 1500 e tantos [?!] e esteve muito tempo caída até que foi reedificada e feita pelo geral fr. Caetano de S. Paio em 1762. As casas de residência dos párocos deixou-as o chantre da Sé de Leiria, Rodrigo da Silveira do Souto.
     Esta vila com a de S. Martinho no tempo do nosso Portugal velho pagavam de siza anual 318$920 réis com onze arráteis de cera e 4$00 réis para o ajudante.
    Fez donativos para a Coroa nos socorros que deu para Elvas, Monção e Pernambuco. Tinha alvará para ter partido médico, expedido em 17 de Janeiro de 1696.
    O seu termo confinava para a parte do norte com a torre de Fraimonde, mouro rico e potentado, onde os nossos maiores conheceram ainda grandes vestígios da sua antiguidade. Seus muros e muralhas eram formadas de pedra preta que se não acha por estes sítios, e tinham onze palmos de largo nos seus alicerces, fortalecido com torreões em cubos.
    O castelo de Alfeizerão, pelas suas ruínas se conhece a sua antiga grandeza; - o mar batia junto a ele até ao século XVI, quando batia nas faldas das muralhas de Óbidos.
    Em 1443, Afonso de Faigon, natural de Baiona, carregou em Alfeizerão um navio de sal, deu satisfação de direitos ao donatário da mesma terra.
    Neste castelo e casas dele hospedou o D. abade de Alcobaça, Martinho II de nome, a El-Rei D. Dinis e à rainha Santa Isabel sua mulher com a sua corte a 9 de Junho de 1288. Nele se aquartelou muitas vezes El-Rei D. Fernando. Foi reedificado em 1460. Os abades de Alcobaça residiram muitas vezes nesta fortaleza, na qual estava, a 4 de Janeiro de 1430, D. Estevão de Aguiar. O comendatário D. Henrique o habitou também e no tempo dos abades comendatários D. José de Almeida, D. José de Ataíde e de D. Fernando de Áustria, se arruinou o edifício da casaria por falta de reparos e ainda a 27 de Junho de 1630 declarou o auto de posse ao novo alcaide-mor que estavam vigadas as casas e a grande com 18 vigas muito fortes capazes de duração.
     Tenho escassas notícias dos alcaides-mores deste castelo porque alguns papéis se desencaminharam em 1833. Só sei que a 12 de Dezembro de 1422 era João Afonso e em 1536 João Botelho, depois Silvério Salvado de Morais e Silvério da Silva da Fonseca apresentado por D. Fernando de Áustria em Madrid no 1º de Outubro de 1623, em atenção aos serviços do alcaide-mor seu pai, com procuração de D. Michaela da Silva, mãe e tutora do pupilo-alcaide-mor: tomou posse do castelo seu tio D. Pedro da Silva e S. Paio, depois bispo da Baía, e o governo do castelo foi entregue por uma provisão do cardeal infante e abade donatário a Francisco da Silva, avô do novo alcaide-mor. Depois, por sentença do juízo da Coroa, ultimamente confirmada por alvará de 3 de Agosto de 1657, é a nomeação dos D. abades donatários cuja nomeação até a nova ordem de coisas andava há mais de um século na família dos Freitas e Feijós de Guimarães, afinal era alcaide-mor António Teixeira Coelho Vieira de Queiroz, que tomou posse a 17 de Abril de 1825.
     El-rei D. Manuel, sendo comendatário seu filho D. Afonso, mandou fazer uma averiguação por homens engenheiros em 1501 nos vaus do rio da Tornada e Alfeizerão e deitando sondas acharam na sua embocadura conterem em si oitenta navios de alto bordo, uma vez que fosse necessário ali irem ancorar, e em 1650, fazendo-se a mesma averiguação, achavam poderem conter em si somente navios de pequeno porte e de ancoradouro perigoso.
     Teve esta vila de Alfeizerão muitos homens ilustres e literatos, dos quais se conserva a notícia de frei Dionísio do Couto, monge de Alcobaça, que compôs, além de muitas [outras] obras - «Casus abreviatus leges decretus».



Algumas notas ao acima dito:

     1) Das colónias das quais ainda existe o nome de Cós. Quase no fim de um vale, cercado de montes, fica a vila de Cós que D. Estevão Martins deu aos povos habitadores carta de foro e Povoação em 18 de Março de 1278 e que se tornou D. Frei Pedro Nunes seu sucessor no primeiro de Abril de 1289.
     Das ruínas desta Colónia se tinha servido El Rei D. Sancho 2º , chamado O Capelo, para edificar um convento ou recolhimento de Freiras no lugar da Póvoa que o Infante cardeal e rei mudou e fez Mosteiro da Ordem de S. Bernardo na mesma vila.
     Os Fenícios possuíram nos Arquipélagos em Ásia, a ilha de Cós, a mais fértil em terreno e da qual já Salomão tinha tirado muita riqueza principalmente em bons cavalos, os Fenícios atraídos da fertilidade do solo e clima, lhe puseram o nome da sua ilha, como se viu de uma lápide em língua grega, modernamente achada e traduzida pelo Arcebispo de Évora a sua inscrição.
     E esta ilha era a Pátria de Appeles, famoso pintor da Antiguidade, de Esculápio, chamado o Deus da Medicina, que primeiro ensinou a criação do Bicho da seda e arte de se servir e tirar proveito deles, o que passou para todo o Mundo. Pertence hoje aos Turcos.
     Os Romanos foram também [seus] senhores e trouxeram para Roma uma formosa estátua de Vénus [qu]e ali houve e outra de Esculápio (mundo 3743) - vidé "Annaes Lagiados", anos do mundo 3743 - Os cavaleiros de Rodes também foram senhores desta ilha.

     2) Esta tradição de que Viriato era oriundo de Eburobrício ou do seu distrito, que compreendia desde a Barquinha até à foz da Lagoa de Óbidos, a que chamavam Eburobricianos - dantes Túrdulos. Sendo no princípio aventureiro, depois caçador e finalmente guerreiro que tanto deu que fazer aos romanos por espaço de dez anos até que Quinto Servílio Cipião, governador da outra parte do rio Guadiana, o fez assassinar em 614 - e 14 anos antes do Espírito.

     Estes povos eram aliados de Viriato até à sua morte.

     3) Ainda no ano de 1314 e 1315 o mar fazia um lago que chegava à Torre de D. Framondo e Valado; e se faziam embarcações ao nordeste da parte do Monte de S. Bartolomeu (in Tombo de Álvares Martins, f.43).


     4) A cúpula, por modo de zimbório, ainda existe e é obra Dórica e de pedra que só conheço em Pero Pinheiro.

   Servia de Capela Mor a antiga freguesia de S. Gião e onde se conhece estava a estátua de Neptuno; o corpo da Igreja é o celeiro da Quinta onde está cravada a lápide com a inscrição que lhe gravou Decio Fucio.

     5) No alto do monte Leira ainda se conservam as ruínas da antiga Ermida de S. Martinho, onde vivia um Ermitão chamado Martinho, homem virtuoso e de muita oração, que fazia vida solitária e que morreu a 23 de Março de 1270.


   

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