quarta-feira, 4 de março de 2015

Entrevista a Vitorino Fróis, por Luís Teixeira (jornal Gazeta das Caldas, de 20/12/1925)





VICTORINO FROES
Fala-nos do seu Tempo e da sua Arte
Por Luiz Teixeira (1)

     Toiradas de verdad, gente de sangue azul, audaciosa, aventureira e fidalga a lidar toiros de afamados ferros com valentia e nobreza. Praças repletas, tempo em que os camarotes do Campo Pequeno eram canteiros povoados de sorrisos das mais lindas mulheres de Lisboa, olhos belos vivendo a emoção da faena e em que a primeira sorte era sempre oferecida a Sua Majestade…
     Triunfos, apoteoses de palmas calorosas, e nuvens de lenços brancos acenando como bando de gaivotas sobre o mar imenso da multidão ululante de entusiasmo. Boémia literária e fidalga do século que passou…
     Fala um pouco de tudo isto o nome de Victorino Froes.
     Mestre dos maiores toureiros do nosso Pais, ele é o monte Himalaia, o nome-cartaz da tauromaquia nacional.
     Não há quem melhor que ele saiba da arte de tourear. Da Espanha das toiradas-festa nacional, onde o toureiro é culto e é paixão, mandou Cañero, o cordovês que é hoje a assinatura do seu país traçada com a ponta de uma farpa, um cavalo para que Victorino Froes o ensinasse à maneira de tantos que ele tem ensinado, e que são sempre uma garantia de êxito para o cavaleiro que os possui.
     Conhecendo bem cavalos e cavaleiros, ele foi um grande colaborador da vitória de Tanganho no Circuito Hípico de Portugal. Em todos os pontos de controlo lá havia para o caldense glorioso – seu discípulo muito querido – uma carta sua com indicações, a lembrar cuidados, a incutir coragem…
     Victorino Froes, nascido em 1862, na Quinta Velha de Alfeizerão, é um dos maiores amigos das Caldas.
     Num destes dias invernosos, com lama a atapetar as ruas, e com promessas de chuva no cinzento-chumbo do céu, fui visitá-lo e colher pormenores da sua vida que eu pudesse transformar num álbum, e oferecer aos leitores da Gazeta, rico pelo recheio de recordações, pobre e modesto pela encadernação humilde em que os meus recursos limitados e prosa descolorida da minha forma descritiva as poderiam envolver.
     É uma velhice risonha, Victorino Froes. O seu espírito tem a mocidade dalgum rapaz da minha geração. Na sala em que me recebe tudo respira alegria. A sua casa banhada de vermelho é uma gargalhada de cor…
     - Impressões da minha vida? Olhe que eu não tenho nada que contar. Ainda há tempos aqui esteve um jornalista de Lisboa, a quem eu nada disse.
     Insistimos.
     - A Gazeta é o jornal do povo caldense, do povo que tem por si uma grande admiração e estima.
     - Pois sentemo-nos e vejamos se alguma coisa de interesse para os seus leitores, eu lhe posso dizer.
     Ficamos, vis-à-vis, separados por uma pequena mesa, perto da janela.
     Victorino Froes faz do fumo do seu charuto a moldura das suas frases, caixilho de névoa azul para evocações dum passado distante.
     - As grandes recordações da vida de um toureiro são os trambolhões sob as patas dos toiros
     - Onde toureou pela primeira vez?
     - Na Golegã, na praça particular do Sr. Carlos Relvas… tinha eu então 14 anos. Acompanhava-me o meu professor, Conde de Castelo Melhor.
     A cinza de charuto vai-se amontoando no cinzeiro modesto.
     Toda a gente tem na sua vida um cofrezinho de marfim onde guarda as suas recordações do tempo que passou. Não são fotografias nem documentos, são apenas lembranças…lantejoulas a brilhar na distância do tempo…
     Sinto que o grande cavaleiro dá a volta à chave do seu cofre e prodigamente vai espalhando na intimidade daquele cantinho perto da janela as suas melhores confidências.
     - Depois tomei parte em todas as corridas promovidas pelo rei D. Carlos, e cuja receita era oferecida a S. M. a Rainha para manter a Creche de que era protetora.
     Foram essas as melhores corridas da minha vida. Há quantos anos isso vai.
     - O Sr. Victorino conviveu muito com o Rei?
     - Sim, senhor. Vê esta fotografia? Foi tirada em Vila Viçosa depois do almoço, em dia de caçada.
     Contemplei, por momentos, aquela relíquia do passado do grande cavaleiro, e, de todo o grupo, não me foi difícil reconhecer duas pessoas. Uma, de mazantini caído para a nuca, era o Rei que a carabina do Buiça matou e, perto dele, o Victorino Froes de há quarenta anos. Vai-me apresentando o resto do grupo: …aquele o Albuquerque, este o Pinto Coelho, médico do Paço, e espalhados o Conde de Pindela, o general Queiroz, o Guerreiro…Quantos que a morte levou
     O seu sorriso deixou por momentos de iluminar a nossa conversa. Lê-se saudade nos seus olhos e adivinha-se no fumo do charuto que se eleva pelo ar, todo um mundo de sonhos, imagens do passado que morreu…
     - O Rei e a Corte vinham muitas vezes às Caldas?
     - Muitas. A propósito não quero deixar de lhe contar um episódio que um dia, há muitos anos já, me aconteceu: Eu estava comendo em Alfeizerão um modestíssimo almoço de chouriço com ovos que a criada da Quinta Velha me havia arranjado à pressa, pois cuidava que eu nesse dia não almoçava lá, quando um criado esbaforido me veio avisar: El-Rei! – Pois El-Rei que venha. E depois da criadagem ter tomado conta do cavalo, eu não quiz deixar de oferecer do meu pobre almoço a Sua Majestade, embora fosse mais um «lunch» próprio para um criado do que uma refeição para um Rei.
     «Pois supõe-me um criado, se quiseres, mas hei-de ajudar-te a comer o chouriço com ovos…».
     «E tirando o seu grande chapéu claro, sentou-se e comeu.
     «Era assim D. Carlos… Tornava-se necessário não esquecer que ele era o Rei, porque a liberdade e intimidade com que nos tratava fazia-nos esquecer a distância que devíamos guardar.
     - O Sr. Victorino passou longas temporadas em Lisboa?
     - Bons tempos. Eram então meus companheiros de boémia o Alexandre Vila Real, o Mascarenhas, o Paraty, Conde de Caparica, Alfredo Tinoco e outros. Não nos interessava a Política. Nunca sabíamos quem era o Presidente do Conselho. Interessava-nos somente onde melhor e com mais alegria poderíamos passar a noite. Nesse tempo também o Grandela e o Ferreira do Amaral eram nossos companheiros…ainda eram monárquicos…
     Enquanto íamos falando assim os seus olhos em êxtase parecem seguir algum pensamento intimo. Acende um novo charuto, e durante momentos permanece calado. Eu envolvo-me mais na capa do meu silêncio para melhor ouvir os seus gestos…
     - Saudades? Se não há de ter saudades quem como eu teve épocas de grande felicidade na vida…
     - Nunca toureou em Espanha?
     - Não. Toureei uma vez em França. O D. Ruy estava em Bayonne e convidou-me a tomar parte numa corrida promovida por ele. Escreveu-me, também, pedindo-me que lhe mandasse ferros, prospetos, etc. Eu, como ele não pedisse bolas para a embolação, mandei-lhe o que me pedia e perguntei-lhe se se havia esquecido disso. Respondeu-me que lá se toureava á espanhola, e perguntava-me se eu tinha relutância em tourear daquela fôrma. Mandei dizer então ao bom D. Ruy que em lugar da lide ser em hastes limpas, podia anunciar, se quisesse, que os toiros que me coubessem trariam punhais de morte nas hastes.
     - É talvez d’aí que vem a lenda do Sr. Victorino ter toureado em Espanha toiros nessas condições.
     - Talvez.
     - D. Ruy da Camara foi seu discípulo?
     - Ele, o Núncio, o D. João de Mascarenhas e muitos outros.
     - Quer dizer-nos qual é atualmente o melhor cavaleiro tauromáquico português?
     - Conheço-os a todos e sou amigo de todos. Não posso, por isso responder-lhe.
     - Cañero?
     - É um bom cavaleiro…espanhol, mas não se pode comparar com os nossos. Ele não sabe tourear: caimpina…Os nossos campinos doutros tempos, que sabiam muito bem do seu ofício, faziam tanto como ele faz. Toureio há apenas o toureio português. Nobreza, valentia e, sobretudo, arte a lidar o toiro. Cañero não é um cavaleiro tauromáquico, é um sportsman que campina toiros.
     - Como se explica então o seu formidável sucesso?
     - Olhe, os nossos podiam fazer incomparavelmente mais, se como ele trouxessem a acompanhá-los toda uma «equipe» de jornalistas, fotógrafos e até desenhador. Ele deve ganhar por ano uns mil contos mas metade é só para essa gente que lhe faz o nome. Fique certo: Cañero não faz a mínima sombra aos cavaleiros portugueses.
     - As toiradas de Espanha?
     - Uma brutalidade. Uma verdadeira selvageria. É improprio de povo civilizado o espetáculo bárbaro dos cavalos mortos, de tripas ao sol, em dolorosa agonia.
     - Viu tourear o Gallito?
     - Muitas vezes. Tinha pela sua arte uma verdadeira admiração. Era inexcedível de perfeição e audácia. Quando me vieram dizer que ele tinha morrido, estava eu em Badajoz para o ver tourear, e perguntei se ele havia sucumbido com alguma congestão, ou outra qualquer doença, pois me repugnava acreditar que ele tivesse morrido nas hastes de um toiro.
     A expressão do meu entrevistado ilumina-se de entusiasmo.
     - Tomou parte em muitas corridas nas Caldas?
     - Em todas que eram organizadas em benefício da Associação dos Bombeiros. Os meus colegas em Lisboa riam-se de eu vir às Caldas tourear vacas, mas eu ficava sempre satisfeito por me tornar útil a tão simpática coletividade…Afinal…
     - Ingratidão?
     - Nada. É melhor não falarmos nisso.
     Só depois me quis recordar de alguma homenagem que a Associação dos Bombeiros Voluntários lhe tenha prestado, mas de nenhuma me lembrei. Que me conste, nem no Quadro de Honra que existe na sua sede, está o nome desse homem que tem empregado sempre o seu melhor esforço e boa vontade para que mais brilho e prestígio tenha o nome desta terra, que não é a dele, mas que ele distingue com a sua grande afeição (2).
     A entrevista tinha acabado. Eu agora já não era o jornalista curioso interrogando. Era apenas alguém que escutava com interesse as confidências com que o grande cavaleiro me quis premiar e que não passaram daquele cantinho, perto da janela, em volta da mesa pequena e íntima.


Luiz Teixeira

[GAZÊTA DAS CALDAS, Ano I, nº 11, de 20 de Dezembro de 1925]





            (1) Luís Teixeira (ou Luiz), que realiza esta entrevista a Vitorino Fróis, merece uma apresentação condigna. Nascido nas Caldas em 1904, inicia a sua carreira jornalística no jornal A Época, e transita depois para os jornais O Século e Diário de Notícias. Cultivou a crónica, o ensaio e a ficção literária, estreando-se na literatura com um livro de contos e crónicas – Feira de Amostras (Empreza Nacional de Publicidade, 1931). Entre as suas muitas obras, destaca-se a Pequena Crónica da Índia (Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1954), a Vida de Antero de Quental (Livraria Clássica Editora) e sobretudo, e atendendo à época em que foi escrito, o seu esboço biográfico de Salazar: Perfil de Salazar: Elementos para a história da sua vida e da sua época (Edição de autor, Lisboa, 1936). No ano de 1940, quando se realizam as comemorações do Duplo Centenário (1140 - fundação da nacionalidade / 1640 - Restauração), é um texto de Luís Teixeira (adequadamente patriótico e inflamado) que prefacia as reportagens sobre esse evento a nível nacional no Boletim da Junta da Província da Estremadura.


(2) - No Quadro de Honra do moderno quartel dos Bombeiros Voluntários das Caldas da Rainha, continua a não figurar o nome do Vitorino Fróis.

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