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VICTORINO
FROES
Fala-nos
do seu Tempo e da sua Arte
Por Luiz Teixeira (1)
Toiradas
de verdad, gente de sangue azul,
audaciosa, aventureira e fidalga a lidar toiros de afamados ferros com
valentia e nobreza. Praças repletas, tempo em que os camarotes do Campo Pequeno
eram canteiros povoados de sorrisos das mais lindas mulheres de Lisboa, olhos belos
vivendo a emoção da faena e em que a
primeira sorte era sempre oferecida a Sua Majestade…
Triunfos,
apoteoses de palmas calorosas, e nuvens de lenços brancos acenando como bando
de gaivotas sobre o mar imenso da multidão ululante de entusiasmo. Boémia
literária e fidalga do século que passou…
Fala um
pouco de tudo isto o nome de Victorino Froes.
Mestre
dos maiores toureiros do nosso Pais, ele é o monte Himalaia, o nome-cartaz da
tauromaquia nacional.
Não há
quem melhor que ele saiba da arte de tourear. Da Espanha das toiradas-festa
nacional, onde o toureiro é culto e é paixão, mandou Cañero, o cordovês que é
hoje a assinatura do seu país traçada com a ponta de uma farpa, um cavalo para
que Victorino Froes o ensinasse à maneira de tantos que ele tem ensinado, e que
são sempre uma garantia de êxito para o cavaleiro que os possui.
Conhecendo
bem cavalos e cavaleiros, ele foi um grande colaborador da vitória de Tanganho
no Circuito Hípico de Portugal. Em todos os pontos de controlo lá havia para o
caldense glorioso – seu discípulo muito querido – uma carta sua com indicações,
a lembrar cuidados, a incutir coragem…
Victorino
Froes, nascido em 1862, na Quinta Velha de Alfeizerão, é um dos maiores amigos
das Caldas.
Num
destes dias invernosos, com lama a atapetar as ruas, e com promessas de chuva
no cinzento-chumbo do céu, fui visitá-lo e colher pormenores da sua vida que eu
pudesse transformar num álbum, e oferecer aos leitores da Gazeta, rico pelo
recheio de recordações, pobre e modesto pela encadernação humilde em que os
meus recursos limitados e prosa descolorida da minha forma descritiva as
poderiam envolver.
É uma
velhice risonha, Victorino Froes. O seu espírito tem a mocidade dalgum rapaz da
minha geração. Na sala em que me recebe tudo respira alegria. A sua casa
banhada de vermelho é uma gargalhada de cor…
- Impressões da minha vida? Olhe que eu não
tenho nada que contar. Ainda há tempos aqui esteve um jornalista de Lisboa, a
quem eu nada disse.
Insistimos.
- A
Gazeta é o jornal do povo caldense, do povo que tem por si uma grande admiração
e estima.
- Pois sentemo-nos e vejamos se alguma coisa
de interesse para os seus leitores, eu lhe posso dizer.
Ficamos,
vis-à-vis, separados por uma pequena mesa, perto da janela.
Victorino
Froes faz do fumo do seu charuto a moldura das suas frases, caixilho de névoa
azul para evocações dum passado distante.
- As grandes recordações da vida de um
toureiro são os trambolhões sob as patas dos toiros…
- Onde
toureou pela primeira vez?
- Na Golegã, na praça particular do Sr. Carlos
Relvas… tinha eu então 14 anos. Acompanhava-me o meu professor, Conde de
Castelo Melhor.
A cinza
de charuto vai-se amontoando no cinzeiro modesto.
Toda a
gente tem na sua vida um cofrezinho de marfim onde guarda as suas recordações
do tempo que passou. Não são fotografias nem documentos, são apenas lembranças…lantejoulas
a brilhar na distância do tempo…
Sinto
que o grande cavaleiro dá a volta à chave do seu cofre e prodigamente vai
espalhando na intimidade daquele cantinho perto da janela as suas melhores
confidências.
- Depois tomei parte em todas as corridas
promovidas pelo rei D. Carlos, e cuja receita era oferecida a S. M. a Rainha
para manter a Creche de que era protetora.
Foram essas as melhores corridas da minha
vida. Há quantos anos isso vai.
- O Sr.
Victorino conviveu muito com o Rei?
- Sim, senhor. Vê esta fotografia? Foi tirada
em Vila Viçosa depois do almoço, em dia de caçada.
Contemplei,
por momentos, aquela relíquia do passado do grande cavaleiro, e, de todo o
grupo, não me foi difícil reconhecer duas pessoas. Uma, de mazantini caído para a nuca, era o Rei que a carabina do Buiça
matou e, perto dele, o Victorino Froes de há quarenta anos. Vai-me apresentando
o resto do grupo: …aquele o Albuquerque,
este o Pinto Coelho, médico do Paço, e espalhados o Conde de Pindela, o general
Queiroz, o Guerreiro…Quantos que a morte levou…
O seu
sorriso deixou por momentos de iluminar a nossa conversa. Lê-se saudade nos
seus olhos e adivinha-se no fumo do charuto que se eleva pelo ar, todo um mundo
de sonhos, imagens do passado que morreu…
- O Rei
e a Corte vinham muitas vezes às Caldas?
- Muitas. A propósito não quero deixar de lhe
contar um episódio que um dia, há muitos anos já, me aconteceu: Eu estava
comendo em Alfeizerão um modestíssimo almoço de chouriço com ovos que a criada
da Quinta Velha me havia arranjado à pressa, pois cuidava que eu nesse dia não
almoçava lá, quando um criado esbaforido me veio avisar: El-Rei! – Pois El-Rei
que venha. E depois da criadagem ter tomado conta do cavalo, eu não quiz deixar
de oferecer do meu pobre almoço a Sua Majestade, embora fosse mais um «lunch»
próprio para um criado do que uma refeição para um Rei.
«Pois supõe-me um criado, se
quiseres, mas hei-de ajudar-te a comer o chouriço com ovos…».
«E tirando o seu grande chapéu
claro, sentou-se e comeu.
«Era assim D. Carlos… Tornava-se
necessário não esquecer que ele era o Rei, porque a liberdade e intimidade com
que nos tratava fazia-nos esquecer a distância que devíamos guardar.
- O Sr.
Victorino passou longas temporadas em Lisboa?
- Bons tempos. Eram então meus companheiros de
boémia o Alexandre Vila Real, o Mascarenhas, o Paraty, Conde de Caparica,
Alfredo Tinoco e outros. Não nos interessava a Política. Nunca sabíamos quem
era o Presidente do Conselho. Interessava-nos somente onde melhor e com mais
alegria poderíamos passar a noite. Nesse tempo também o Grandela e o Ferreira
do Amaral eram nossos companheiros…ainda eram monárquicos…
Enquanto
íamos falando assim os seus olhos em êxtase parecem seguir algum pensamento
intimo. Acende um novo charuto, e durante momentos permanece calado. Eu
envolvo-me mais na capa do meu silêncio para melhor ouvir os seus gestos…
- Saudades? Se não há de ter saudades quem
como eu teve épocas de grande felicidade na vida…
- Nunca
toureou em Espanha?
- Não. Toureei uma vez em França. O D. Ruy
estava em Bayonne e convidou-me a tomar parte numa corrida promovida por ele.
Escreveu-me, também, pedindo-me que lhe mandasse ferros, prospetos, etc. Eu,
como ele não pedisse bolas para a embolação, mandei-lhe o que me pedia e
perguntei-lhe se se havia esquecido disso. Respondeu-me que lá se toureava á
espanhola, e perguntava-me se eu tinha relutância em tourear daquela fôrma. Mandei
dizer então ao bom D. Ruy que em lugar da lide ser em hastes limpas, podia
anunciar, se quisesse, que os toiros que me coubessem trariam punhais de morte
nas hastes.
- É
talvez d’aí que vem a lenda do Sr. Victorino ter toureado em Espanha toiros
nessas condições.
- Talvez.
- D.
Ruy da Camara foi seu discípulo?
- Ele, o Núncio, o D. João de Mascarenhas e
muitos outros.
- Quer
dizer-nos qual é atualmente o melhor cavaleiro tauromáquico português?
- Conheço-os a todos e sou amigo de todos. Não
posso, por isso responder-lhe.
-
Cañero?
- É um bom cavaleiro…espanhol, mas não se pode
comparar com os nossos. Ele não sabe tourear: caimpina…Os nossos campinos
doutros tempos, que sabiam muito bem do seu ofício, faziam tanto como ele faz.
Toureio há apenas o toureio português. Nobreza, valentia e, sobretudo, arte a
lidar o toiro. Cañero não é um cavaleiro tauromáquico, é um sportsman que
campina toiros.
- Como
se explica então o seu formidável sucesso?
- Olhe, os nossos podiam fazer
incomparavelmente mais, se como ele trouxessem a acompanhá-los toda uma
«equipe» de jornalistas, fotógrafos e até desenhador. Ele deve ganhar por ano
uns mil contos mas metade é só para essa gente que lhe faz o nome. Fique certo:
Cañero não faz a mínima sombra aos cavaleiros portugueses.
- As
toiradas de Espanha?
- Uma brutalidade. Uma verdadeira selvageria.
É improprio de povo civilizado o espetáculo bárbaro dos cavalos mortos, de
tripas ao sol, em dolorosa agonia.
- Viu
tourear o Gallito?
- Muitas vezes. Tinha pela sua arte uma verdadeira
admiração. Era inexcedível de perfeição e audácia. Quando me vieram dizer que
ele tinha morrido, estava eu em Badajoz para o ver tourear, e perguntei se ele
havia sucumbido com alguma congestão, ou outra qualquer doença, pois me
repugnava acreditar que ele tivesse morrido nas hastes de um toiro.
A
expressão do meu entrevistado ilumina-se de entusiasmo.
- Tomou
parte em muitas corridas nas Caldas?
- Em todas que eram organizadas em benefício
da Associação dos Bombeiros. Os meus colegas em Lisboa riam-se de eu vir às
Caldas tourear vacas, mas eu ficava sempre satisfeito por me tornar útil a tão
simpática coletividade…Afinal…
-
Ingratidão?
- Nada. É melhor não falarmos nisso.
Só
depois me quis recordar de alguma homenagem que a Associação dos Bombeiros
Voluntários lhe tenha prestado, mas de nenhuma me lembrei. Que me conste, nem
no Quadro de Honra que existe na sua sede, está o nome desse homem que tem
empregado sempre o seu melhor esforço e boa vontade para que mais brilho e
prestígio tenha o nome desta terra, que não é a dele, mas que ele distingue com
a sua grande afeição (2).
A
entrevista tinha acabado. Eu agora já não era o jornalista curioso
interrogando. Era apenas alguém que escutava com interesse as confidências com
que o grande cavaleiro me quis premiar e que não passaram daquele cantinho,
perto da janela, em volta da mesa pequena e íntima.
Luiz Teixeira
[GAZÊTA DAS CALDAS, Ano I, nº 11, de 20 de Dezembro de 1925]
(1) - Luís Teixeira (ou Luiz), que realiza esta entrevista a Vitorino Fróis, merece uma apresentação condigna. Nascido nas Caldas em 1904, inicia a sua carreira jornalística no jornal A Época, e transita depois para os jornais O Século e Diário de Notícias. Cultivou a crónica, o ensaio e a ficção literária, estreando-se na literatura com um livro de contos e crónicas – Feira de Amostras (Empreza Nacional de Publicidade, 1931). Entre as suas muitas obras, destaca-se a Pequena Crónica da Índia (Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1954), a Vida de Antero de Quental (Livraria Clássica Editora) e sobretudo, e atendendo à época em que foi escrito, o seu esboço biográfico de Salazar: Perfil de Salazar: Elementos para a história da sua vida e da sua época (Edição de autor, Lisboa, 1936). No ano de 1940, quando se realizam as comemorações do Duplo Centenário (1140 - fundação da nacionalidade / 1640 - Restauração), é um texto de Luís Teixeira (adequadamente patriótico e inflamado) que prefacia as reportagens sobre esse evento a nível nacional no Boletim da Junta da Província da Estremadura.
(2) - No Quadro de Honra do moderno quartel dos Bombeiros Voluntários das Caldas da Rainha, continua a não figurar o nome do Vitorino Fróis.
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