sexta-feira, 17 de abril de 2015

INQUISIÇÃO - algumas notas relativas aos processos por judaísmo


          Cristão-novo é o termo comum para designar os judeus portugueses. No reinado do rei Venturoso, os judeus são obrigados a converterem-se à religião católica ou a saírem do país caso persistissem na sua crença. Com Dom João III, o estabelecimento da Inquisição em Portugal irá criar os meios institucionais para a repressão da heresia ou heterodoxia.

          Todo o cristão-novo era suspeito, e a todo o tempo, de ser um cripto-judeu ou um cristão judaizante, de prosseguir com as suas crenças e práticas mosaicas a coberto dos ritos e cerimónias da Santa Madre Igreja. No que toca ao judaísmo, o preconceito social e a ação da Inquisição possui, inegavelmente, um fundo de discriminação racial. Nos processos por judaísmo, existe um capítulo designado por Genealogia (1), onde se listam os ancestrais do réu até aos avós paternos e maternos, para esclarecer quem, entre eles, é cristão-velho e cristão-novo, e a sua quota-parte de sangue judeu; se é 1/2 cristão-novo, 1/4 de cristão-novo, 1/8 de cristão-novo, ou apenas parte de cristão novo se a sua origem judia for indeterminada, ou estiver esbatida pelo acumular de gerações e uniões. O cristão-novo, e a expressão consta dos processos, possuía nas veias sangue infecto de judeus.

          Para a Inquisição, bastava uma denúncia de outro cristão-novo, ou as suspeitas levantadas por um elemento da comunidade em que vivia, para alguém ser preso por judaísmo, quer fosse ou não, efetivamente, um cripto-judeu. Apelar para um justo julgamento ou uma apuramento imparcial da verdade dos factos era um via condenada ao fracasso desde o início, pelo que confessar o seu próprio judaísmo, e denunciar outros (a começar pela família) pelo mesmo crime era a forma mais rápida de abreviar o processo e de poder contar com a misericórdia e a benevolência dos inquisidores, que se traduzia no teor e na gravidade das penas. Famílias inteiras eram presas por este meio nos cárceres da inquisição, e a confissão de cada um dos seus membros avolumava as culpas e as acusações (descritas sob a epígrafe Outra culpa contra este reo) que pendiam sobre os seus familiares que se encontravam na mesma situação. Na sua ânsia de granjear a benevolência dos inquisidores, as denúncias visavam amigos e relações fora do círculo familiar, e a acção da inquisição progredia de forma tentacular com novas prisões e processos. Os documentos que envolvem a família dos Brito Alão são um bom exemplo disto.

          Os acusados que eram presos pela Inquisição eram encaminhados, consoante a região de proveniência, para uma das três sedes do Santo Ofício que existiam em Portugal: Lisboa (os Estaos, no Rossio), Coimbra ou Évora. O funcionamento dessas prisões e tribunais encontrava-se detalhadamente descrito nos Regimentos da Inquisição (houve quatro Reginentos sucessivos: 1552, 1613, 1640 e 1774 - os de 1613 e 1640 são muito semelhantes e foram publicados sob a égide de D. Pedro de Castilho e D. Francisco de Castro, respetivamente ), contemplando todos os aspetos e situações possíveis, desde as fases por que passavam os processos, de que forma se empregava os tormentos (nome suave para a tortura), os títulos e os cargos da estrutura, ou como se deveria proceder quando alguém se matava no cárcere ou nele enlouquecia. A Mesa de audiência dos réus é descrita de tal forma (Regimento de 1640, Título II) que quase a conseguimos visualizar:
Em cada Inquisição , deverá existir uma Casa para a Mesa do Despacho, que estará em lugar tão resguardado que fora dele não se possa ouvir coisa alguma, estarão nessa casa as cadeiras rasas e de que forem necessárias, e um banco para o preso se sentar; e estará armada no Inverno com panos de ras e com guadamecis no Verão (2).
Sobre um estrado de altura de quatro dedos haverá uma mesa coberta com seu pano de damasco carmesim, e por cima couro negro, e será capaz de ter ao menos cinco cadeiras de cada parte, e nesta mesa haverá três gavetas com chaves diferentes, em que cada um dos Inquisidores possa recolher os seus papéis, mas não meterão nela os seus cadernos, porque estes se hão-de recolher sempre ao Secreto.
Nesta Mesa estará um Missal para dar juramento, uma tábua com a oração do Espírito Santo, os Regimentos do santo Ofício, e Fisco, o Colectório das Bulas Apostólicas, e privilégios da Inquisição, tinteiros de prata bastantes para os Ministros que na mesa assistem, e uma campainha, e na parede que fica defronte do lugar em que os presos se costumam assentar, estará uma imagem de Cristo Senhor Nosso, de vulto, ornada com a decência que convém.

          A confissão ou declaração de culpa que lemos nos processos por judaísmo, não é uma declaração espontânea, pessoal, como a confissão que uma pessoa possa fazer de um delito que cometeu no passado. Essa confissão, como a delação de outros, que se serve dos mesmos termos, parece ser a repetição mais ou menos parcelar de uma minuta usada pelos escrivãos e notários do Santo Ofício, e que é composta, em regra, pelos seguintes elementos:
A crença na Lei de Moisés que era boa e verdadeira para a salvação das suas Almas, por cuja observância guardavam os Sábados de trabalho, vestindo neles camisa lavada, ou nova se a tinham [«em folha, e quando não as tinhão em folha, as vestião lavadas»], ou os melhores vestidos; começando na Sexta-feira à tarde, em que havia de concertar, ou mandar concertar, os candeeiros [ou «alimpar os candeeiros»], pondo-lhes azeite limpo, torcidas novas; cortava as unhas no mesmo dia, e no Domingo virava a camisa às avessas por desprezo do dia; passeando de noite em casa olhava para a sombra e lhe fazia reverência entendendo que nela se representava Moisés; quando lhe passava pela porta algum defunto [cortejo fúnebre] lançava fora a água que tivesse nos cântaros para beber e botasse farinha nas couceiras das portas; zombava dos cristãos velhos e lhes cuspia na sombra; fazia o jejum do dia grande que vem no mês de Setembro [Yom Kipur, ou Dia do Perdão], estando em todo o dia sem comer nem beber, senão à noite, e então ceava peixe e comia cousas que não fossem de carne; que não ouviam missa, senão por cumprimento do mundo; dissesse a oração do Padre Nosso sem Ámen Jesus no fim ao Deus grande; não comesse carne de porco, lebre, coelho nem peixe de pele [ou «sem escamas nem gordura»] e na panela das carnes mandava lançar gordura; que dormindo com cristãos velhos na cama lhes virasse as costas; comunicando estas coisas com pessoas de sua nação, apartadas da fé, com as quais se declarava por Judeu.

          Estas "culpas" de judaísmo fundem crenças hebraicas com preconceitos nascidos da aversão e ódio que lhes tinham muitos cristãos-velhos. No processo de Cristóvão Machado, é usada repetidamente uma versão abreviada desta confissão/denúncia. A forma mais extensa da confissão surge muitas vezes na sentença que encerra o processo.

          Uma acusação de judaísmo implicava a prisão da pessoa incriminada nos cárceres secretos da Inquisição. O documento de 1640, Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, denota algum critério no acondicionamento dos presos nos cárceres, nomeadamente, o cuidado de juntarem apenas mulheres na mesma cela; ou a preocupação de isolarem o encarcerado, ou seja, um preso não poderia estar na mesma cela ou corredor que outro membro da sua família, ou de uma pessoa residente na mesma terra ou acusada do mesmo delito. Mas estando ali presos durante anos a fio (há casos de encarceramentos que duraram catorze anos), era natural que conseguissem comunicar uns com os outros de alguma forma, e derivará daí a acusação recíproca que se regista entre pessoas da mesma família: estando o familiar já nos cárceres: a acusação não o prejudicaria, e contribuía para o abreviar do processo.

          A prisão de alguém por judaísmo pressupunha a sua imediata culpabilidade, pelo que, quase sempre, essas pessoas eram presas com sequestro de bens - perdiam todos as suas propriedades e valores, que eram confiscados por um Juiz do fisco da câmara.
          João Lúcio de Azevedo (História dos Cristãos-Novos Portugueses, Clássica Editora, Lisboa, 1989) publicou um excerto (que transcrevemos) das queixas dos cristãos-novos à Sé Apostólica (Aggravos dos Cristãos Novos), onde se relata esse confisco de bens, que antecede à situação de fome e privação reservada à família daqueles que eram levados para os cárceres da inquisição.

Em quanto dois familiares do Santo Ofício trazem publicamente o reo prezo plas ruas e lugares frequentados, e ordinariamente seguidos como em um triunfo, de grande multidão de gente, vai outro familiar avizar ao Juiz do fisco, ou outro ministro de justiça em falta do dito Juiz, para que vá a fazer inventario e confiscação dos bens da casa do preso, outros dois ou tres familiares ficão nella dispostos de maneira que se segue. Hum está á porta da rua e outro em cima em huma camara adonde guarda toda a família junta à vista, para que não possa entrar nem sair pessoa alguma, nem menos algum filho do prezo possa vestir outro vestido melhor daquelle que traz vestido, ou esconder alguma couza de valor, como ouro, prata, ou joias, ou couzas semelhantes. Chegado o Juiz do fisco faz tirar das orelhas, do pescoço, das mãos e das algibeiras da Mãi, da mulher, dos filhos, assim machos como fêmeas, do seu prezo, collares, aneis, joias, dinheiro que acaso tivessem em si, e neste estado se lanção todos fora de casa, nem menos permittem que os miseraveis se componhão com os vestidos com que erão costumados a sair à rua, nem lhe permitte que levem consigo alguma couza, lençoes ou outra roupa necessaria para o seu uso, nem lhes dá alguma sorte de dinheiro para viver, nem dos mantimentos que estão em caza pera se sustentarem. Depois, fazendo-se senhor da caza [o Juiz do fisco] e tomadas todas as chaves, começa com os seus ministros a fazer o inventario, que dura às vezes sinco ou seis mezes, e em todo aquelle tempo tem a porta da rua com travessas.

          Ironicamente, apesar de os acusados permanecerem nos cárceres até ao desfecho do processo, e de lhes serem confiscados os bens, não é raro encontrar-se, entre as penas que lhe eram imputadas, a sua obrigação de cobrirem as custas do processo.

          Outras penas comuns, sem mencionar a pena de morte (que não sucedeu nos casos que estudamos), era a participação nos Autos de Fé, onde confessavam publicamente as suas faltas, a transferência para os cárceres do concelho onde continuariam a cumprir pena por um tempo estipulado, o degredo ou as galés.

          A abjuração em forma que surge entre as penas, é um documento impresso que fica inserido no processo (imagem infra), completado com os dados do réu (ou ré) e por ele assinado, onde ele jura continuar a seguir a fé católica, e a revelar as heresias de que tiver conhecimento - o que poderia ser útil aos inquisidores em caso de reincidência.


Um exemplo de uma Abjuração em forma
          Um dos documentos que encerra o processo, com um nome algo sinistro, é o Termo de Segredo, outra folha impressa no qual o réu se compromete a guardar segredo sobre o que viu e ouviu dentro da prisão:
(...) sendo presente lhe foy dado juramento dos Santos Evangelhos, em que poz a mão, & sob cargo delle lhe foy mandado, que tenha muito segredo em tudo o que vio,& ouvio nestes carceres, & cõ ella se passou acerca de seu processo, & nem por palavra, nem escrito o descubra, nem por outra qualquer via que seja, sob pena de ser gravemente castigada, o que tudo ella prometteo cumprir.


O SAMBENITO

          O sambenito é o nome para o manto penitencial a cujo uso eram condenados os réus da Inquisição e que era formado por um escapulário que ostentava à frente e atrás uma cruz de Santo André, ou seja, uma cruz em forma de X. A cor do manto e da cruz, podiam variar, e esse manto podia por vezes ter outros motivos adicionais, como as chamas no sambenito daqueles que iriam ser queimados no auto-de-fé. Aos reconciliados, diz-nos o Regimento do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal, de 1613 (Capítulo 47), «mandarão prover de sambenitos de pano amarelo [cor da bolsa de Judas], com faixas de pano vermelho postos em aspa, para que os tragam assim como os levaram ao Auto-de-fé, e em suas sentenças de reconciliação se contêm».

          O sambenito parece ser anterior ao estabelecimento da inquisição, e representaria um traje envergado por aqueles que pretendiam expiar os seus pecados, e que era, para esse efeito, bendito por um religioso; de «saco bendito», segundo alguns autores, proviria o termo sambenito, depois aproximado ao de São Bento, reverenciado como triunfador sobre o Satã e o pecado.

          A cruz de Santo André possui uma simbologia mais obscura. Este discípulo de Cristo, prestes a ser martirizado, teria modestamente pedido para ser crucificado numa cruz em diagonal por não se sentir digno de morrer da mesma forma que Jesus. A sua cruz nas vestes de um penitente seria um sinal de dor e sofrimento, marcadamente diferente da cruz latina de Jesus, porque o penitente desviara-se, perdera-se, do caminho de salvação reservado a todos os cristãos, e apenas a penitência ou o sacrifício o poderia trazer de volta ao grémio dos abençoados pelo Altíssimo. E os condenados usarem nas vestes uma cruz diferente da cruz de Jesus evitava qualquer associação consciente ou subconsciente com o suplício e morte do Salvador.

          O manto penitencial perpétuo era o castigo reservado pela Inquisição aos cristãos-novos judaizantes, o estigma ignominioso que lhes era imposto para lhes recordar, e a todos os que o rodeavam, que haviam desprezado ou insultado a oportunidade de salvação que lhes havia sido dada com a conversão ao catolicismo.

          E o cumprimento dessa penitência do manto perpétuo era regulado atentamente pela estrutura inquisitorial. Os penitenciados que fossem achados sem o seu hábito perpétuo, seriam repreendidos na Mesa da Inquisição, e os Inquisidores dariam ordens para que houvesse Familiares ou pessoas que os vigiassem. E se fosse apanhado fora do lugar em que habitava sem o hábito ou com ele dissimulado por outras roupas, perderia «os vestidos, ou a cousa com que trouxer coberto o dito hábito». E as justiças seculares, achando os ditos penitenciados sem as ditas penitências deviam prendê-los e entregá-los aos inquisidores (Capítulo 61 do Regimento de 1613).


(gravura de Goya)

NOTAS:

(1) A inquirição sobre a genealogia era minuciosa e exaustiva, como se depreende das instruções do Regimento de 1613 (Título IV, 12): 
Na primeira sessão será perguntado pela sua genealogia, em forma, declarando donde é natural, como se chama, a idade e ofício que tem, e os nomes de seu pai, mãe e avós paternos e maternos, assim vivos vomo defunctos, e dos transversaes que se lembrar, e donde eram naturaes e moradores, e o officios que tiveram, e com quem foram casados, e se são vivos ou defunctos eos filhos que os ascendentes e transversaes deixaram, e quantas vezes foi casado, e os filhos que teve, ou tem, e de que idade são. E assim declarará de que nação é. e se elle, ou os ditos seus parentes, tem alguma raça de mouro ou judeu - e se lhe perguntará pelo decurso da sua vida, onde se ha criado e com que pessoas, se sabe ler ou escrever, e se aprendeu alguma sciencia,e se andou fora deste Reino, e em que partes esteve, e as pessoas com quem conversou e tratou, e se foi reconciliado, preso, ou penitenciado pelo Santo Officio, ou é neto de relaxado, e se sabe as orações de Christão, com as mais perguntas costumadas.

(2) O banco ou cadeira rasa era para os presos comuns. Os outros, e eram muitas as excepções, tinham direito a cadeira de espaldas, tal como pormenoriza o Regimento de 1613:
Dignidades, cónegos de Sés ou igrejas colegiadas, Provisores, Vigarios e Desembargadores dos Prelados e Relações Eclesiasticas, Priores de Convento ou Collegio, ou Abbades, ou Relligiosos, ou Priores ou Abbades de Igrejas Paroquiais, Fidalgos, Desembargadores, Corregedores, Juízes, Ouvidores, Vereadores ou Cidadãos das Cidade, ou os do governo de Villas notáveis, Doutores ou Licenciados por Universidade, e Bachareis formados pelas Universidades aprovadas, ou os que tem privilegio de Desembargadores, aos Secretarios d’El-Rei, Escrivão da Fazenda da Camara, assim d’El-Rei, como das Cidades ou Villas notaveis, ou pessoas nobres, e por tal conhecidas.

domingo, 5 de abril de 2015

O "Santo Ofício" e a vila de Alfeizerão


          Estamos a elaborar um singelo artigo sobre a perseguição movida pela Inquisição à família judia dos Brito Alão, que originou o encarceramento e condenação (por judaísmo e apostasia) de diversos membros da família que moravam na vila da Pederneira e na Quinta da Cavalariça, termo da vila de Alfeizerão. Este é um tema com diferentes leituras possíveis, que tentaremos abordar com algum critério e ponderação. No emmeio desse artigo em preparação, surgiram-nos outros documentos da Inquisição (quatro) em que o topónimo Alfeizerão era indicado, e são esses documentos que evocamos agora, superficialmente, neste texto. Qualquer um dos processos aludidos do chamado Santo Ofício, foi disponibilizado em formato digital pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo (como milhares de outros documentos da Inquisição, que abrangem processos, cartas, confissões, diligências e denúncias), num trabalho utilíssimo e gigantesco que sublinhamos e enaltecemos.

          Os quatro documentos em foco são algo diferentes entre si, e ilustram bem o ofício dos inquisidores. De um quinto processo da Inquisição (de grande interesse), sobre o pirata alfeizerense Pedro Fernandes da Costa, já aqui publicamos a transcrição feita por Casimiro de Almeida. Assinale-se, a título de curiosidade, que também a vila da Pederneira teve o seu pirata: chamava-se Álvaro Dias - nascido na Pederneira, foi capturado pelos piratas, acabando por se tornar num deles; com o novel nome de Solimão luta como artilheiro pirata até ser feito prisioneiro. É levado aos inquisidores sob a acusação de arabismo, mas as coisas correm-lhe bem: cumpre algumas penitências e é reeducado na religião católica. No final do processo (folha 16), atesta-se que ele está bem instruído nos mistérios da Santa Fé, e que comungara depois de se confessar na Igreja de São Roque, em Lisboa, a 29 de Maio de 1631.

1- JOANA FERREIRA  

          O processo de Joana Ferreira, desenrola-se nos anos de 1584 e 1585. Ela é natural de Alfeizerão, nascida no seio de uma família de cristãos-novos: João do Couto, sapateiro, e Beatriz Vieira. Sabemos pelas inquirições do processo que este sapateiro alfeizerense é órfão de pai e que a mãe se chama Inês do Couto, e que a sua esposa, Beatriz Vieira, é filha de Lionardo [sic] Vieira e Ana Ferreira.
          Joana Ferreira trabalha na Póvoa de Santa Iria, termo de Lisboa, como criada de um carpinteiro, Francisco Fernandes, cristão-velho. Presa aos vinte anos pela inquisição sob a acusação de «blasfémias contra o nome de Jesus», é condenada a integrar um auto-de-fé particular e à abjuração e penitência pública. 
          Francisco Fernandes, o carpinteiro de Santa Iria para quem Joana Ferreira trabalhava, é preso pouco depois (processo 4232 do Tribunal do Santo Ofício) com a acusação similar de blasfémias. Na prática, são dois processos separados sobre a mesma transgressão, já que a ré Joana Ferreira é confrontada também neste processo de Francisco Fernandes (pg.. 16), O carpinteiro dá corpo ao mesmo auto-de-fé que ela (realizado a 23 de Julho de 1585), e condenam-no a abjurar, a penitências públicas e a pagar as custas do processo. Os processos de ambos são conduzidos por Bartolomeu da Fonseca e pelo Inquisidor-mor do reino, D. Diogo de Sousa.


2- SILVÉRIO SALVADO DE MORAIS (diligência de habilitação de)

          Documento datado de 1627, representa uma diligência de habilitação de Silvério Salvado de Morais para Familiar do Santo Ofício. Nesta data, o candidato, que é natural da Guarda, desempenha as funções de alcaide-mor de Alfeizerão e reside em Alcobaça. Silvério Salvado de Morais é cavaleiro da Ordem de Cristo, e tem como abono o facto de o sogro, Francisco da Silva, ser irmão do inquisidor de Lisboa, o bispo Pedro da Silva de Sampaio (que ocupou o cargo entre 1617 e 1632, antes de rumar ao Brasil). 
          Grande parte deste processo (uns vinte fólios) encontra-se gravemente deteriorado mas, do que subsiste, percebe-se que a inquirição levantada pelos inquisidores aos familiares de Silvério Salvado de Morais e da esposa, Micaela da Silva (um interrogatório cerrado com diversas perguntas padronizadas - enunciadas nos fls. 3 e 4), comprova a sua lympeza do sangue e geração, ou seja, que são christãos velhos legitimos, limpos e de limpo sangue, sem raça alguma de Judeus, Mouros, Cristãos Novos ou de outra secta. Por sua vez, a inquirição sobre a estatura moral de Silvério Salvado de Morais, procurava averiguar se ele era homem de boa vida e costumes, quietto, pacifiquo, capaz de segredo, pra delle se poderem fiar [em] negocios de segredo e importancia.
       
           Extra-texto, lembramos que os Familiares do Santo Ofício representavam a base da estrutura hierárquica da instituição, formada por leigos que se vinculavam à Inquisição e "policiavam" as comunidades em que estavam inseridos,fazendo diligências, denúncias e prisões. No Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, publicado um pouco depois desta data, em 1640, encontram-se esmiuçados os requisitos e funções dos Familiares (no Título XXI). de onde transcrevemos este trecho:
          Os Familiares do S, Officio, serão pessoas de bom procedimento, & de confiança, & capacidade conhecida: terão fazenda, de que possão viver abastadamente (...). Na vespora, & dia de Saõ Pedro Martyr, sendo possivel, se acharão na Inquisição do seu districto para acompanharem o Tribunal, & assistirão na Igreja, em que se celebrar a festa do Santo: no dia em que se fezer o Auto da Fé, se acharão ante manhaã na Inquisição, para hirem com os prezos na procissão; e sómente nestes dias, & quando forem prender alguma pessoa, ou a trouxerem preza para os carceres, levarão o habito de Familiar do Santo Officio, que haõ de ter.
           Por outro lado, o segredo ou a capacidade de guardar segredo, que várias vezes é inquirido nesta diligência de Salvado de Morais, era algo indispensável aos inquisidores e seus coadjutores, como se encontra estabelecido no Título 7 do mesmo Regimento de 1640: E por quanto o segredo he huma das cousas de mayor importancia ao santo Officio, mandamos, que todos o guardem com particular cuidado, não só nas materias, de que poderia resultar prejuizo se fossem discubertas, mas ainda naquellas que lhes parecerem de menos consideração, porque no Santo Officio não há cousa em que o segredo não seja necessario.

3 - MARIA RODRIGUES (processo de)

          Neste processo, iniciado a 24 de Setembro de 1701, Maria Rodrigues, natural de Pombal e a viver em Setúbal, acusa de bigamia o marido, conhecido pelos nomes de Manuel do Couto ou Manuel Francisco, que era natural de Alfeizerão [Alfizerão], e que alegadamente, depois de viver com ela durante seis meses, se teria ausentado para se casar com Maria Gonçalves, moradora na mesma cidade de Setúbal. É ordenada a prisão de Manuel do Couto, com sequestro de bens (página 11), e ordenada a obtenção das duas certidões de casamento para se comprovar o delito. Depois de averiguada a acusação, Manuel do Couto é ilibado e solto, enquanto é presa Maria Rodrigues, por perjúrio, e condenada a um auto-de-fé, a pagar as custas do processo e a degredo por três anos para o couto de homiziados de Castro Marim.

          (Manuel do Couto era filho de Domingos Pires, lavrador, e Lucrécia Álvares, residentes em Alfeizerão).

          Nota: a bigamia, era um dos delitos que estava sob a alçada da Inquisição, como o comprova o já citado Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal.

Processo de Maria Rodrigues, cazada com Manoel Francisco trabalhador 
natural da villa de Pombal, Bispado de Coimbra, moradora na de Setubal [Setuual), 
Arcebispado de Lisboa, preza nos carceres da Inquisição da mesma Cidade
4 - CRISTÓVÃO MACHADO (processo de)

         Cristóvão Machado, meio cristão-novo, natural de Aljubarrota, e que vivia de sua fazenda na vila de Alfeizerão, é preso com a idade de 35 anos a 12 de Maio de 1683 sob a acusação de judaísmo. A sua prisão devera-se a revelações feitas pelo seu irmão Bento Brado da Silva, meio cristão-novo, que fora preso por culpas de judaismo nos cárceres secretos da inquisição de Évora a 12 de Maio de 1692, dos quais foi trazido para a Inquisição de Lisboa. Interrogado pelo inquisidor Estevão de Brito, declarara que, quatro anos antes, se achara com o seu irmão Cristóvão de Machado, casado com uma cristã-velha chamada Maria de Almada; e estando ambos sós, entre práticas de que já não se lembra, ouviu dizer a seu irmão que acreditava na Lei de Moisés para a salvação das suas almas e que em observância dela, guardava os Sábados de trabalho. Foi lida a confissão e Bento Brado da Silva assinou.

          Interrogado Cristóvão Machado sobre os seus bens ou rendimentos no título Inventário, responde este:
Disse que não tinha bens alguns de raiz seus, e vivia do rendimento de huma _____ [?] de sua mulher, Maria de Almada com obrigação de duas missas cada anno a capella de São João Baptista de Alfeizerão, e algumas terras livres que não sabe indicar. E que de bens moveis tinha so os necessários para o seu uzo.
          Interrogado sobre o motivo da sua prisão, e diante do inquisidor Pedro de Ataíde de Castro, Cristóvão Machado, com um dia de prisão, faz e assina a sua longa confissão a 13 de Maio de 1683 (páginas 29-38), na qual denuncia a sua irmã, Maria Baptista, mulher de António da Cunha, natural da vila de Aljubarrota e moradora na vila da Pederneira, já que quinze anos antes, quando se vira a sós com a sua irmã, entre práticas de que já não se lembra, esta lhe confessara a sua fidelidade à Lei de Moisés e às práticas próprias dela. Confirma também a conversa havida com o seu irmão Bento Brado da Silva, não se lembrando muito bem como haviam falado da Lei de Moisés e da sua observância. Mais relata que, oito anos antes, na sua quinta junto a Aljubarrota, conversara com seu irmão Jerónimo Rodrigues, meio cristão-novo que vivia da sua fazenda, casado com Catarina de Almada, e por ocasião de falarem nas prisões do Santo Ofício com a sua irmã, Maria Baptista, eles declararam a mesma fé (a Lei de Moisés e a sua observância). Denuncia também, nos mesmos moldes, ao seu irmão Francisco da Silva, meio cristão-novo, com quem estivera cinco anos antes na quinta da Charneca, termo da cidade de Lisboa; e ao seu irmão Sebastião Nunez, meio cristão-novo, com quem conversara cerca de um ano atrás junto da igreja de Santa Ana dessa cidade (Lisboa); e ainda… que cinco anos antes, numa eira junto à vila de Alfeizerão, se achou com o seu irmão Rafael da Silva, que era alferes de ordenança, também natural de Aljubarrota e morador em Alfeizerão, e que este confessara ser observante e crente na Lei de Moisés; e ainda… que dez meses antes, em Lisboa, em casa de Benjamim Sebastião da Silva, e estando ambos a sós, este lhe declarou o mesmo. E as denúncias sucedem-se: Sebastião da Silva, natural de Alcobaça, um quarto de cristão-novo; o primo António da Silva, um quarto de cristão-novo; a tia materna Catarina da Silva, natural de Alcobaça, com quem ficam associados nas culpas de judaísmo, outros cinco familiares que se encontravam em sua casa (todos citados pelos nomes).

          Cristóvão Machado é condenado a auto-de-fé, a abjurar das suas crenças judaicas, a usar o hábito penitencial, e a cumprir as penitências espirituais. A 23 de Agosto (página 65), sem dúvida, como prémio pela sua copiosa colaboração, os inquisidores dão por levantado o cárcere e tirado o hábito, e que pode ir para onde bem quizesse, contanto que não seja para fora do Reino sem licença desta Mesa, ficando apenas obrigado a algumas penitências espirituais; como confessar-se e comungar nas quatro datas principais do ano (Natal, Páscoa da Ressureição, Espírito Santo e Assunção de Nossa Senhora).

Processo de Christovão Machado, meyo Christão novo que vivia de sua fazenda, 
natural de Algibarrota e morador na villa de Alfeizirão

terça-feira, 31 de março de 2015

A Quinta e a Torre de D. Framondo, termo de Alfeizerão

Planta da torre de D. Framondo
(retirada da separata que lhe dedicou Borges Garcia - vid. nota 7)


        A Quinta da Cavalariça, termo da vila de Alfeizerão, surge-nos primeiramente nos documentos com o nome de granja do Framondo ou Framundo, do nome de um baluarte que ainda hoje existe nos seus antigos terrenos (coordenadas: 39°32'44.6"N 9°04'06.6"W). Presentemente, essa torre encontra-se em propriedade privada, em terrenos da unidade fabril que aí labora, o que deve ser levado em conta pelos curiosos e interessados.
         Esta quinta, documentalmente, é tão antiga como as mais antigas referências escritas a Alfeizerão. O primeiro documento conhecido que nomeia Alfeizerão (alfeysarã) é uma doação feita em 1287 por D. Dinis à sua esposa dos direitos de entrada de mercadorias no porto de Salir (1), enquanto a granja de Framundo aparece-nos já num documento de 1 de Junho de 1283 (CR. Alc. maço 25, nº 24), segundo Pedro Gomes Barbosa (2); e ambas as granjas (Framundo e Alfeizerão), segundo o mesmo autor, estão mencionadas entre outras granjas do mosteiro de Alcobaça numa carta do ano de 1227 ao papa Honório III (embora existam algumas dúvidas sobre a autenticidade dessa carta). Mas a primeira referência expressa a um castelo nesse lugar (ainda que o nome Framondo não apareça) está indicada, segundo Pedro Barbosa (op. cit.), nas confrontações da Cela Nova na carta de povoação do mosteiro de Alcobaça, datada de 26 de Maio de 1286: castelo do porto (portum castelli). Em finais desse século, no ano de 1296, quando Afonso Pais (procurador do Bispo de Lisboa, D. João Martins de Soalhães), demarca as paróquias dos coutos de Alcobaça, inclui na paróquia de S. Martinho do Porto os lugares de Alfeizerão, do Bacelo (nome de outra quinta) e D. Framondo, o que evidencia a existência aqui de uma comunidade secular de colonos que necessitava da assistência de um pastor, de um pároco.
         Com efeito, nos primeiros tempos da Ordem cisterciense de Alcobaça, os monges obedeciam aos preceitos da Regra e garantiam o seu sustento pelas suas próprias mãos (propriis manibus et sumptibus). Gradualmente, porém, como descreve Joaquim Vieira Natividade, «nas terras que circundam as Quintas, desbravadas pelas mãos dos próprios monges, plantam estes, vinhas, pomares e olivais, com vista às necessidades dos futuros colonos; constroem ferrarias, de onde sairão as ferramentas agrárias; edificam lagares e moinhos, e executam pequenos trabalhos de drenagem nos terrenos pantanosos. Nalguns casos, o Mosteiro entrega aos povoadores toda a Granja, noutros só parte dela, noutros ainda, apenas os terrenos circunvizinhos, que divide em courelas, e cede a cada morador a sua courela com a condição de aí habitar e construir a sua casa» (3). Geograficamente, a torre e a Quinta envolvente situavam-se nas margens da lagoa da Pederneira. Manuel Vieira Natividade (4) cita um documento do Tombo de Álvares Martins (1519) no qual se encontra escrito que: «Ainda no ano de 1315 o mar fazia um lago que chegava à Torre de D. Framondo, hoje Macarca e Valado, e se faziam embarcações ao nordeste do lago, da parte do monte S. Bartolomeu». Na mesma obra, ao descrever a antiga silhueta da lagoa da Pederneira, Manuel Vieira Natividade dá-nos algumas indicações que julgamos importantes; ele afirma que ela «acompanhava toda a serra da Vestiaria e, estreitando em frente do Valado, amplamente se estenderia pelo sopé das cadeias de Bárrio, Cela Velha, Quinta do Castelo, Mata da Torre. Um pequeno istmo obrigá-lo-ia a encurvar-se por Famalicão, S. Gião, até à estreita barra…». E isto é pertinente pelo seguinte - na primeira carta de povoação a Alfeizerão, outorgada pelo mosteiro em 1332, o mosteiro concede aos povoadores de Alfeizerão e seus sucessores, as herdades de Alfeizerão, da Mota e da torre de Framondo (Fremõdo) e mais adiante, menciona-se a Várzea Redonda, que julgo não ser outra coisa do que esta margem de perfil encurvado da lagoa que Natividade evoca. E prossegue o texto do foral de Alfeizerão: Depois disso, como parte com o caminho da Cavalariça, que fica para nós, e com a vinha da Torre, a qual fica por termo de Alfeizerão.
        As delimitações do foral de 1332 repetem-se na segunda carta de povoação, datada de 1442. Economicamente, no entanto, a quinta da Cavalariça não terá tido uma importância tão preponderante na região como a quinta da Macarca, da qual Iria Gonçalves (5) encontrou abundantes referências documentais para os séculos XIV e XV. Em todo o caso, no princípio do século XVII, a sua decadência era já evidente. Manuel de Brito Alão (6), depois de descrever a quinta da Cela, diz que estoutro campo, que está mais junto a nós, que chamão o Campo da Cavalariça, que tem aqueles edifícios cahidos, era das melhores propriedades que havia por todas estas partes, ao presente está muito damnificado por haver sobre elle litigio há muitos annos.
         Na Memória Paroquial de 1758, aqui transcrita na publicação anterior, pomos já um pé no tema da torre de D. Framondo: a sumptuosa Quinta dos Religiosos de Alcobaça, é dita ser espaçosa, com quatro celeiros no seu interior, e várias casas de albergaria, ornada de abundantes janelas - Entre esta Quinta, e Campo medea um antyquissimo Castelo a que vulgo intitula ser de Mouros; mas como tão antigo, se acha totalmente demolido e arroinado, em forma que já se não avista, mais que as suas bazes, e fundamentos, e destes se infere ter sido magnifico, e as pedras do seu material são quasi todas de cor preta. Alguns anos depois, Frei Manuel de Figueiredo adianta um pouco mais: A Quinta do Castelo, que é do Mosteiro donatário e consta de capela dedicada à Senhora do Bom Sucesso, imagem muito perfeita e milagrosa, com casas que mandou fazer o Abade Geral Fr. Gabriel da Glória em 1702, como diz a data aberta entre as escadas do frontispício, pomares de espinho, caroço, vinha, campos, olival e pinhais. Esta quinta tomou o nome da Torre de Fremondo e o lugar vizinho, da Torre que estava no circuito da mesma quinta, ao nordeste das suas casas, num elevado outeiro. E dela conhecemos maiores vestígios do que agora existem. Ainda se conservam as suas arruinadas muralhas, formadas de pedra preta e cal com 12 palmos de grossura, fortalecidos com torreões ou cubos; ela foi a baliza com que o abade donatário demarcou o distrito da carta de foro e povoamento da vila de Alfeizerão. Conjeturamos que esta torre foi fabricada quando o mar cobria os campos que lhe ficam ao norte, e exposta às embarcações inimigas para segurança das nacionais: porque para ser fortaleza terrestre ficava mais forte no monte do cabeço, o qual, com maior elevação, lhe faz frente da parte do sul.
         O raciocínio de Frei Manuel de Figueiredo é evidente para quem conheça um pouco o terreno. A sul do monte onde se encontra a torre de D. Framondo, o Cabeço da Guarita (Guarita – torre, vigia), ergue-se um monte ainda mais elevado, hoje conhecido pelo nome de Cabeço da Espera, de igual formação vulcânica. Esse seria o lugar ideal para uma fortaleza, se a dita torre fronteira não estivesse dedicada a velar pelas águas da lagoa e pelos barcos que por ela singravam. Não obstante essa constatação, as ruínas da Torre (as torres redondas e muros, a cisterna) ou a sua parte melhor conservada, estão posicionadas na parte sul desse cômoro, e não a norte, na direção da antiga lagoa. Há uns anos largos, inquiri a algumas pessoas de Famalicão (entre elas, a minha avó, Maria Madalena Justino, uma saudosa anciã de olhos azuis que era um tesouro de sabedoria e memórias) sobre o nome do Cabeço da Espera, e só me souberam dizer que era nesse cabeço que ficavam de atalaia os caçadores em Famalicão, o que não adianta muito ao conhecimento geral.

Os dois Cabeços vistos da A8
O da direita é o Cabeço da Guarita, com a torre "mourisca"

        A torre de D. Framondo, no entanto, merece mais algumas linhas. Manuel Vieira Natividade (op. cit.) diz que a Torre de D. Framondo deve o seu nome a ter pertencido a um «mouro rico e potentado»; ao que contrapunha Eduíno Borges Garcia em 1966 (7), que Framondo parece um antropónimo visigodo (8). Numa outra publicação (9), Borges Garcia contraria um pouco essa ideia, sugerindo uma origem árabe para esta fortificação: «Na primeira metade do século IX, os piratas normandos começam a afligir as costas da Península, o que promove um recuo das populações para o interior e para os estuários acastelados. Essas incursões, que se repetiram até ao século XI, eram de curta duração, mas muito temidas. Quem sabe se a Torre de D. Framondo não estará relacionada com esse período?».
        O que sobrevive da torre de D. Framondo (tirando o que está oculto pelos sedimentos e pela vegetação, à espera de mais escavações) são muros e torres de cubelo redondo, que apresentam algumas semelhanças com as torres e muros do castelo de Alfeizerão. Era uma ideia comum em arqueologia, considerar-se que as fortalezas de torres redondas eram de construção cristã, enquanto as fortalezas com torres de planta quadrangular se deveriam atribuir aos mouros; mas essa é uma ideia-feita que já se encontra ultrapassada (10). A torre de D. Framondo e o castelo de Alfeizerão podem muito bem ter origem e feitura islâmica.
        Numa entrevista feita por Pedro Penteado a Pedro Gomes Barbosa (jornal O Alcoa, de Alcobaça, de 26 de Setembro de 1985), este arqueólogo e historiador informa que mostrara a planta da torre de D. Framondo a Michel Terrasse, historiador e especialista em arquitetura islâmica, e que este opinara que se estava perante a planta de um ribate muçulmano, «uma fortaleza de cavaleiros-guerreiros, ligados à Guerra Santa».
        Torre de D. Framondo e castelo de Alfeizerão, duas fortalezas de defesa e refúgio em duas lagoas distintas.


Notas:

(1) Documento publicado por João Martins da Silva Marques no primeiro tomo de Os Descobrimentos Portugueses, edição do Instituto para a Alta Cultura, Lisboa, 1949.

(2) Barbosa, Pedro Gomes - Povoamento e Estrutura Agrícola na Estremadura Central – Séc. XII a 1325, Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, 1992.

(3) As Granjas do Mosteiro de Alcobaça, in Obras Várias, volume II, de J. Vieira Natividade, Tipografia Alcobacense, Alcobaça, s/d.

(4) Mosteiro e Coutos de Alcobaça, Tipografia Alcobacense, 1960.

(5) O Património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV, Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, 1989.

(6) Antiguidade da sagrada imagem de Nossa S. de Nazareth : grandezas de seu sitio, casa, & jurisdiçaõ real, sita junto à villa da Pederneira, impresso na Oficina de Joam Galram, Lisboa, 1684.

(7) As Torres e os Fachos na lagoa da Pederneira – A Torre de D. Framondo, separata do Arquivo de Beja, Beja, 1964.

(8) A etimologia suporta esta suspeita de Borges Garcia. Fremõdo, Framondo, Framundo, são algumas das grafias do nome da torre e do lugar nos documentos, e José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, volume II, Editorial Confluência, Lisboa), a propósito dos topónimos Freamunde e Fremundi, afirma serem estes o genitivo do antropónimo germânico Fredemundus, que era composto por frithus («paz») e munths («proteção»).
     Fredemundo e Fremundo eram antropónimos correntes entre visigodos e suevos.
     A torre de Framondo, como a conhecemos, pode ser de origem árabe mas ter sido construída sobre fundações anteriores, visigóticas ou romanas.

(9) As Torres e os Fachos na lagoa da Pederneira – O Castelo da Póvoa de Cós, separata do Arquivo de Beja, Beja, 1970.

(10) vd. a dissertação de Fernando Branco Correia: Fortificações de iniciativa omíada no Gharb al-Andalus nos séculos IX e X - hipóteses em torno da chegada dos Majus (entre Tejo e Mondego).


sexta-feira, 27 de março de 2015

As Memórias Paroquiais de 1758 de Famalicão da Nazaré


     Famalicão da Nazaré, foi termo das vilas de Alfeizerão e da Pederneira, dividida por isso em Famalicão de Baixo e Famalicão de Cima com a "fronteira" administrativa delineada pela estrada que ligava as duas vilas. Mas no entanto, e um pouco em contradição, era sede de uma paróquia comum (Nossa Senhora da Vitória) que englobava os moradores dos dois lados da estrada.

     As Memórias Paroquiais de 1758 de Famalicão da Pederneira (ïhiperligação), podem ser encontradas no Dicionário Geográfico de Portugal, tomo 15, nº 15, páginas 73 a 80. Publicamos aqui as Memórias de Famalicão, intercalando os fólios originais com a sua transcrição, deixando para outras "visitas" ao texto algumas considerações sobre temas aí tratados, como sejam a torre de D. Framondo ou a Quinta da Cavalariça.
   


Inscrição da Freguezia de Famelicão 

          Fica este lugar, e Freguezia de Famelicão na Estremadura e Patriarcado de Lisboa comarca da cidade de Leiria. Pertence o dito lugar a dous termos; ao da Villa de Alfeizerão, e ao da Villa da Pederneira. Da estrada p[ar]a baixo que medea o dito Lugar e Freguezia, he termo da Villa de Alfeizerão, a que chamão Famelicão de baixo, e da dita estrada p[ar]a cima he do termo da Villa da Pederneira; mas hum e outro termo freguez e sogeito á Parochial de N. Senhora da Vitória deste lugar; Advertindo porém que esta Igreja foi antigamente anexa a duas Freguezias; a saber: Os Fregueses do termo de Famelicão de baixo erão sogeitos á Parochial da Villa de Alfeizerão, e os do termo de Famelicão de cima, á da Villa da Pederneira; Atendendo outrossim os Antigos á Larga e extença distancia que medea deste Lugar a huã, e outra Villa por cuja razão não podião inteiramente e sem excessivo trabalho exercer as Parochiais funções na administração dos Sacramentos; pozerão com efeito neste Lugar hum cura, e unidos os dous termos, ficarão sendo Freguezes desta Parochial de Nossa Senhora da Vitória, ficando separado hum e outro termo de Paroquianos das ditas Villas; por cuja separação ficou a fábrica desta Igreja obrigada a contribuir anualmente dous arrateis de cera a cada huã destas Igrejas. Passados alguns anos determinouse fazerem-se os Parochos desta Igreja Vigários colados, e comigo que actualmente o sou; tem avido da sua ereção a esta p[ar]a oito vigários. 
 Desta



          Desta Freguezia he Donatário o Dom Abbade Geral do Mosteiro de Alcobaça que actualmente he o Reverendíssimo P.e Fr. Manuel de Barboza.

          Tem esta Freguezia duzentos, e dezassete vizinhos. Tem seiscentos, e trinta, e seis pessoas mayores, e cento e quinze menores.

          Está assituada a dita Freguezia em um valle todo areozo por cuja razão se faz pouco apprazivel e menos frutuosa por lhe ficar encostada a Serra da pescaria de que adiante farei menção, e outro Monte da Freguezia da Cela; e por conseguensia se não descobrem Povoaçoens.

          A Igreja Paroquial está assituada no meyo deste lugar. Não tem lugares de que se faça menção; ainda que por despersa compreenda vários Casaes, e aos principaes e mayores; lhe chamão de per si, Rapozos; Macarca; Rebollo; Mata da Torre, Cazaes de Baixo e Serra.

          O Orago desta Igreja he de Nossa Senhora da Vitória. Tem trez Altares; a saber: O Altar Mor com o Sacramento, o do Divino Espírito Santo, e das Almas. Também tem seis Irmandades, a saber: a



          A do Santíssimo Sacramento, do Divino Espírito Santo, de Nossa Senhora do Rozario, do Martyr S. Sebastião, de Santo António, e das benditas Almas do Purgatorio. 

          O Parocho de que já fiz menção, he Vigário Collado, pello Ex.mo Senhor Cardial Patriarca, mas com aprezentação in solidum do Reverendíssimo Dom Abbade Geral de Alcobaça, como Senhor Donatário. O rendimento da dita Igreja consta de hum moyo de trigo, de huã pipa de vinho e doze mil reis, que tudo dá o dito Mosteiro de Alcobaça, e o mais que dá pé de Altar, regulando huns annos por outros, terá o rendimento de cento e dez até cento e quinze mil reis, preço mais, ou menos. 

          Tem a dita Igreja huã cappella anexa do titulo de Santo António nos cazaes dos Rapozos, a causa da sua erecção foy pella commodidade que aos seos moradores faz, ouvindo nella Missa; nos dias de preceito; p[ar]a o que pagão annualmente a hum Cappellão, indo este lá dizerlha; a fim de se escuzarem os mais dos seos moradores de virem á sua Parochial, porque alem de ter sua longitude; se faz seu caminho pouco vadiável; principalmente no tempo de inverno; E a



          E a dita Cappella foy mandada benzer p[ar]a nela se Celebrar a primeira Missa pello Emminentissimo Senhor Cardeal Luís de Souza, Arcebispo de Lisboa, como consta da sua provizão, passada em dez de Junho de 1701

          Os frutos da terra que seos moradores recolhem em mayor abundância, são trigo, milho, e feijão. Também a dita terra produz suficientemente cevadas, centeyos, tremossos, favas, ervilhas e outros legumes desta qualidade; como também vinhos. Tem poucos arvoredos, e por consequensia poucas frutas; e só he abundante de figos; porque se vê revestida, de altas, e frondozas figueiras. 

          Junto a este Lugar está huã sumptuosa Quinta dos Religiosos de Alcobaça, a que chamão a Quinta da Cavalhariça [Cavalariça], he espaçosa, tem quatro celeiros no seu interior, varias cazas de abeguaria, ornada de abundantes janellas, e das que fronteão o Norte, se discobre hum dilatado Campo dos ditos Religiosos, que em abundancia fertiliza muito milho, e feijão; junto a este se avista também hum celebrado Campo chamado O Dornas; o qual se acha inculto pella exonoração e regresso das suas agoas que por muito copiosa são e está sendo uma famosa Lagoa em que se veereão varios curiozos,
va



          vadiando-a em barquinhos e caçando nella muitas Adens e outras aves de arribação, que em abundancia ali vão pastar. 

          Entre esta Quinta, e Campo medea um antyquissimo Castelo a que vulgo intitula ser de Mouros; mas como tão antigo, se acha totalmente demolido e arroinado, em forma que já se não avista, mais que as suas bazes, e fundamentos, e destes se infere ter sido magnifico, e as pedras do seu material são quasi todas de cor preta. 

          He este dito Lugar Couto do Mosteiro da Villa de Alcobaça, do qual a dita villa he cabeça e o Mosteiro Senhorio. 

          Dista este Lugar da Cidade de Lisboa Capital do Patriarchado dezoito léguas. 

          Acha-se no interior das fazendas da Quinta chamada das Donas no arrabalde deste Lugar, huãm nativa agoa stagnada, a qual sabe bastantemente tepida; Não consta de suas virtudes, talvez por não



          ser espirimentada, e esta retrocedeu na occasião do impetuoso terramoto do anno de 1755. Mas passados poucos dias tornou o seu ser em que existe. Também me parece ser justo trazer á Memoria que este dita dita agoa por sua esquipatica qualidade não costuma degerir, nem cozer qualquer casta de legumes; Mas antes a esperiencia tem mostrado, que por mais que os ditos legumes fervão na dita agoa p[ar]a haverem de se cozerem a lume então se vê que indurecem mais; isto he o contrario do que ordinariamente sucede metendo na dita agoa carne, peixe, ervas e outras quaisquer qualidades; por que estas coze perfeitamente como outra qualquer agoa. 

          A Serra desta fregezia de que posso fazer menção, é a chamada Serra da pescaria, esta como pequena, terá de seu comprimento, e extenção legoa e meia, principia nas pontes da barca, caminho que vay p[ar]a a Villa da Pederneira, e tem seu fim no forte da Villa de S. Martinho, e por consequensia se vê que fica ao lado do Mar Oceano. 

         A sua largura como mais pequena compreende larga meia légua, a dita largura, principia deste Lugar de Famelicão, e conclue nas Margens do dito Mar.
Tem



          Tem a dita Serra em si vários cazaes, e a Longo della, nas Margens do Mar, tem o Exmo. Marquez de Abrantes, huã Quinta, que produz em abundância trigo, milho, cevada, e outros legumes, etc

          Junto ás Cazas da dita Quinta está fundada uma Irmida consagrada em louvor de S. Gião, e como esta totalmente se acha demolida e arroinada por sua immemoravel antiguidade, mandou um Dr. Vizitador em Capítulos de visita se tresladasse o dito Santo p[ar]a a Igreja Parochial desta Freguezia, por achar indecente a existencia do dito Santo em Lugar tão improprio, com tão pouca veneração e culto. E por isso se acha agora nesta dita Igreja no Altar do Divino Espírito Santo, a onde o povo o venera, e louva com devoção. 

          Nas costas desta Irmida se acha huã pedra comprida bem lavrada, como cousa dezestimada jaz entre huns silvados e tem um mal figurado letreiro, cuja significação se pode ver na Monarchia Luzitanea; primeira parte Livro 3, fl. 319. E neste próprio Lugar estão mais duas pedras compridas metidas no chão, como marcos, que se diz serem
Se



          Sepulturas de Mouros, cujas letras ainda se divizão claras. 

          Apartado desta Quinta da Irmida de S. Gião cousa de dous tiros de besta contra o Norte, havia antigamente huã fortaleza não muito sumptuosa, e esta por sua antiguidade se acha dissipada; e totalmente demolida. O fim e ministério da dita torre, dizem seria p[ar]a que esta tivesse lume de noite para que as barcas, e navios de pescaria atinassen o porto por onde havião de entrar quando viessem de noite para que aquella costa, que já no tempo de agora não admite em si embarcações por não poderem entrar pella foz do rio, q[eu] se acha impedido com muitos baxos de area, que o continuo movimento do mar faz em toda aquella praya; e supposto que a torre está de todo desfeita e a pedraria della levada em barcos p[ara] lastros de navios, ainda ali se vê huã pedra com outro letreiro esculpido. 

           A mayor parte da dita Serra he cultivada pelos seus moradores, a qual produz suficientemente trigo, milho, feijão, cevada, ervilhas, favas, e como se vê he aspera e falta de agoas, mas produz outros frutos de mimo. 

           A qualidade de seu temperamento he fria, aspera e dezabrida pelo excessivo impulso que ali faz [o vento] do Norte, por cuja razão se não podem conservar vinhas, e arvores de fruto. 

          A cassa que a dita Serra em si cria, são coelhos, lebres, e também algumas perdizes, e os gados que nella se crião, são cabras, ovelhas, e boes. 

          Isto he o de que posso dar conta nesta m[inh]a Freg[uesia] deduzido de huã exacta dilig[ência] que fiz, nesta inquerição a qual he verdadeira, e não faço menção dos mays interrogatórios, por delles não ter que dizer neste Fregª.  Famelicão 2 de Jullo de 1758 


 O Vig[ario] M[anu]el de Moraes



quarta-feira, 25 de março de 2015

O FERRO-VELHO - um conto de Fernando Perfeito de Magalhães

Detalhe de uma festa tauromáquica na Quinta do Fróis (imagem integral em anexo, no final do conto)


O FERRO-VELHO
________

Alfeizerão

            O grande pátio retangular, fechado de dois lados pelos dois corpos em esquadria da vasta habitação do conhecido ganadero e cavaleiro tauromáquico Vitorino Fróis, do outro pelo muro costeiro do alpendre de uma enorme eira e pelo outro por forte paliçada, cheio de Sol e movimento, estava já repleto de espectadores que se agitavam ansiosos pelas janelas das casas e pelos palanques construídos para que as numerosas senhoras assistissem, sem perigo, a um dos espetáculos mais queridos da nossa sociedade e talvez dos mais interessantes e genuinamente nacional.
            Oferecia uma vacada, o estimado proprietário às numerosas famílias suas conhecidas que nesta quadra do ano veraneavam na vila das Caldas da Rainha e na praia de S. Martinho do Porto.
            O interesse era grande, pois o corajoso cavaleiro lidaria as suas vacas em hastes limpas e os peões de brega, amadores conhecidíssimos, as bandarilhariam também desemboladas.
            Toda aquela já excitada multidão saudou, à entrada na liça, o simpático cavaleiro que garbosamente montava um dos seus mais puros e soberbos cavalos de combate, percebendo-se que o belo animal se orgulhava de sentir sobre os seus nervosos flancos, o melhor calção dos cavaleiros portugueses.
            As palmas só cessaram quando se abriu a porta do curro, dando passagem à primeira vaca que, furiosa, atravessou de cabeça baixa, na ponta da unha, todo o comprimento do pátio, até entestar com a fronteira paliçada. Ali, virou-se e quedou, encostando os quartos traseiros às tábuas, escarvando a terra.
            O cavaleiro, sorrindo, apertou levemente os joelhos na sela e aproximou-se da cabeça da fera, citando-a com um ferro curto que erguia na mão; passou duas ou três vezes destemidamente pela frente da rês, que parecia não fazer caso do desafio. Pela última vez, o cavaleiro cingiu-se tanto às hastes da vaca que esta abaixou a cabeça e o nobre corcel, com todos os seus músculos retesados nervosamente, deu uma soberba upa que parecia ser um aviso ao arrojo do dono. Era evidente que a vaca estava na querença. Então, um dos Lumiares lançou-lhe destramente o capote aos olhos para a tirar daquele sítio. A rês fez menção de correr ao vulto, mas quando o viu coberto pela capa, estacou.
            Aquela fera era astuciosa...ou não fosse ela feminina!
            O Lumiares insistiu, mas a vaca só procurava o vulto, não arrancava ao capote.
            Entretanto, entrou no pátio um jovem retardatário que se dirigia alegremente ao palanque para nele tomar lugar como espectador; mas uma voz solta de uma das janelas bradou-lhe irrefletidamente: «Ó Ferro-velho, faz lá uma pega!».
            O nosso Ferro-velho era um rapazito alegríssimo dos seus quinze anos, aparentando já uma sadia robustez, muito querido entre a seleta colónia balnear de S. Martinho do Porto, primorosamente atencioso para as senhoras de idade, cavalheiríssimo para as damas, e valente.
            A sua educação, moldada nos austeros princípios das qualidades morais do brio e do pundonor, tinha-lhe granjeado a estima sincera de muitos e a inveja de alguns.
            O seu sobrenome de Ferro-velho, tinha-o adquirido por ter um dia atrevidamente posto fim a uma interminável discussão entre sisudos engenheiros sobre horários e atrasos de comboios, alcunhando-os de ferros-velhos, maliciosamente. Toda a gente o tratava desde então por aquele sobrenome.
            O jovem, ao ouvir a piada de Sol que lhe era dirigida, parou a meio do pátio e olhou sorrindo para o palanque e janelas repletas de senhoras, encantado daquele vistoso e garrido espetáculo, e logo várias vozes repetiram: «Faz lá uma pega, ó Ferro-velho!...». Aquilo foi um rastilho; senhoras, homens, rapazes, eivados da inconsciência egoísta das multidões, rindo, batendo palmas, delirando, bramavam: «Ferro-velho…Ferro-velho…uma pega…uma pega…».
            O rapaz empalideceu, pois nunca tinha visto de perto qualquer rês brava, era ignorante da arte tauromáquica, e desconhecia em absoluto como se poderia executar aquilo que lhe exigiam.       Percorreu com o olhar aquela implacável multidão ensandecida e leu talvez no rosto dalguns, a ironia.
            Então, o seu pundonor beliscou-o.
            A vaca continuava na querença, encostada às tábuas, apesar dos esforços dos destemidos Lumiares. Toda aquela sociedade vociferava, animalizada e sedenta de cenas sinistras e violentas que lhe sacudissem os nervos flácidos da sua vida folgada.
            De súbito, viu-se o Ferro-velho correr, resoluto, direito à vaca. Os Lumiares ainda tentaram impedir aquela loucura, mas o brioso rapaz não lhes deu tempo e a vaca arrancou por fim para o vulto descoberto. Como por encanto, um silêncio brusco esmagou aquela mó de gente, muitas espectadoras viraram os rostos, alguns peitos arfaram opressos e tudo se imobilizou sinistramente.
            Só o Vitorino Fróis, sobre o seu nobre ginete, sorria. Só ele tinha visto que o rapaz caíra milagrosamente bem entre as hastes agudas da fera.
            Efetivamente, o tronco do Ferro-velho cobria por completo o testo da vaca, ambos envoltos em densa nuvem de pó. O animal dava derrotes sobre derrotes, mas aquele dorso parecia estar-lhe colado à cabeça como a ostra ao penedo.
            Os irmãos Lumiares foram os primeiros a quebrar aquela petrificação; um deles rabejou com pulso de ferro a rês, enquanto o outro lhe caía valentemente à cernelha e, mais uns maiorais e dois ou três campinos, aferrando-se aos ilhais, conseguiram domar enfim, por completo, aquela manhosa fera.
            O Chico berrava aos ouvidos do Ferro-velho que se soltasse da cabeça da vaca, mas ele não o ouvia, não se mexia, tinha os olhos fechados; todo ele estava retesado numa crispação. Por fim, os dois irmãos, a muito custo, desligaram-lhe as mãos enclavinhadas na barbela e desenvencilharam-no das armas da rês, dando-lhe ainda algumas palmadas rijas nas costas.
            Endireitou-se enfim o valente dez réis de gente e olhou vagamente em roda.
            Aquela turba então, vendo-o ileso, virou-se do avesso e agora aplaudia delirante numa ovação estrondosa e frenética, desejosa de abafar com clamores a implacável voz da consciência que a condenava da brutalidade inconcebível do seu feroz egoísmo; arrependida talvez, mas um pouco tarde.
            Levaram o involuntário forcado à sala de jantar, obrigando-o a beber alguns cálices de velho vinho do Porto, que o reanimavam daquele violento abalo, fazendo-o enfim assomar às faces o seu simpático e franco sorriso. Alguém, entre aquele numeroso grupo que o rodeava, movido pelo entusiasmo, espontaneamente exclamou: «Bravo, Ferro-velho! Fizeste uma pega rijíssima!».
            Ao que aquele generoso moço, sem a mais leve censura, respondeu galhofeiramente, dirigindo-se àqueles que poderiam ter sido os seus algozes: «Aquilo, rapazes…não era uma vaca!...Era o Facho (1) que desabava sobre mim…fechei os olhos e não me lembro de mais nada…tenho sono!».
            O nosso Ferro-velho, estendido numa cama, adormeceu num sono pesado e seguido de treze horas.
           


(1) O Facho é o monte de maior altitude da costa de Portugal, sito próximo a S. Martinho do Porto.
 [nota original do livro]



Fernando Perfeito de Magalhães e Menezes de Vilas-Boas
OS DEZ-RÉIS DE GENTE de S. Martinho do Porto - Contos Verídicos,
 Companhia Portuguesa Editora, Lda., Porto, 1923




ANEXO 1: 
Legendas: 1 - Um aspecto do pic-nic no pinhal / 2 . Citando um touro para bandarilhas /
3 - As chocas na praça / 4 - Outro aspecto do pic-nic no pinhal

ANEXO 2 : 
Legendas: 1 – Sorte de muleta / 2 – O sr. Ruy da Câmara fazendo uma sorte de morte / 
3 – O fim da corrida / (clichés de Benoliel)




segunda-feira, 23 de março de 2015

O MOLEQUE - um conto de Fernando Perfeito de Magalhães


O MOLEQUE
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            Lá ia ele, alegremente assobiando e conduzindo o seu carro de mão, pejado de dois barris da aguada para os calafates do estaleiro. Todos os dias, por três vezes, cumpria aquela tarefa desde a fonte pública (1) até ao extremo do longo cais deste utilíssimo, mas desprezado, porto de mar.
            Às vezes, parava a descansar, e a sua silhueta esguia e nervosa quedava imóvel entre os banzos do carro, contemplando o mar, lançando-lhe um olhar entre vago e receoso, triste talvez, por não lhe compreender os insondáveis mistérios. Depois volvia de novo os olhos para o carro; a sua face de gavroche (2), com a tez tostada do Sol e dos ventos, abria-se num sorriso alegre, como se visse nele o companheiro fiel e amigo da sua dura vida, e lá ía, cais fora, de pés descalços, assobiando talvez à sua pobreza.
            Os calafates e carpinteiros navais estimavam-no, pois era presto em lhes chegar as ferramentas e a estopa. Rápido como um coelho, saltando alegremente por entre aquele dédalo de obstáculos, de prumos, barrotes, escoras, cachorros e cavernames, servia a todos e era sobretudo muito cuidadoso naquele serviço de água, para que a tivessem sempre fresca.
            Entrava o mês de Setembro; alguns caíques de Olhão atracados ao cais, com os porões repletos já dos preciosos pomos de Alcobaça, destinados à indústria da fruta seca da província do Algarve, impregnavam a atmosfera do perfume intenso e sadio da maçã. Era já tarde, o cais achava-se agora deserto pois há muito que tinha terminado a lufa-lufa da carregação e o mar bastante agitado lambia de quando em vez, com o dorso das suas vagas orladas de espuma, as negras pedras da muralha.
            O Moleque impulsionava naquela tarde, pela derradeira vez, o seu carro de mão na direção do estaleiro. De súbito, vibram no espaço uns brados; algumas mulheres de braços estendidos, dando gritos aflitivos, clamavam por socorro, correndo desordenadamente para a borda do cais e, no desespero da angústia, erguiam as mãos convulsas, implorando à Providência e olhando desvairadas um remoinho que a alvura de um vestido fazia na água.
            O  Moleque acelerou o andamento ao carro, os barris chocavam-se e saltavam desordenados pelos sobressaltos que lhes imprimiam as rotações da roda de ferro, tropeçando ruidosamente nas juntas desniveladas das lajes de granito e, ao chegar junto das desvairadas mulheres, largou-o; olhou o remoinho e empalideceu. Por um segundo, o seu olhar pousou sinistramente sobre a superfície do mar, duas rugas profundas vincavam-lhe a fronte e, irrefletidamente, fez o movimento de se lançar à água. Porém, o intuito de conservação deteve-o: não sabia nadar!
            Mas eis que dá de rosto num argolão de ferro que servia de amarra aos caíques atracados e, rápido, enovelou-se como um chimpanzé naquela argola. Desprendendo um dos seus esguios braços, estendeu-o para o remoinho e numa crispação intensa do seu temperamento nervoso, filou o que emergia ainda da água.
            Era o artelho de uma criança!
            Nada mais pôde fazer naquela crítica posição. As mulheres redobraram o seu alarido desesperado e inútil, mas um vulto rude e esforçado de um algarvio arredou bruscamente o mulherio, e vociferou ameaçadoramente ao pobre Moleque: «Eh, malandro! Não o largues, hein!?». E estendendo-se ao longo do cais, começou a içar aquele esguio [sic] (3) como se fosse um cabo. Em breve depositou os dois fardos nas lajes da muralha. O pequeno náufrago bolsava em abundância água salgada, e então as mulheres tentaram erguê-lo para o levarem; porém, a mão do Moleque crispada como uma tenaz no artelho da criança não o permitia. Foi preciso que o homem do mar fizesse novamente uso dos seus possantes músculos para o obrigar a abrir os dedos.
           Uma mulher pôde enfim levantar nos braços o pequeno desmaiado e correu, seguida de todas as outras, em direção a uma habitação luxuosa, enquanto o nosso Moleque para ali ficava estendido, sacudindo o corpo com os soluços de um choro convulso.
            O algarvio olhou-o - baixou-se e ergueu-o como a uma pena e cingiu-o com força ao possante arcaboiço, e dos seus olhos desprendeu-se uma grossa lágrima, que tropeçando nas rugas fundas da sua face, caiu por fim sobre os cabelos da criança.
            A crise tinha passado!
            O Moleque estava de pé, encarou o homem e sorriu; olhou o mar e o seu semblante velou-se de uma expressão sombria e sinistra, estendeu para o elemento o seu débil e nervoso punho e dos seus lábios soltou-se uma imprecação: «Maldito!».
           Depois deu com os olhos no carro, no seu carro, e todo ele se transformou. A sua fisionomia irradiava uma felicidade imensa, correu para ele, agarrou-o pelos banzos que pareciam dois braços amigos que o esperavam para o cingir também e, sopesando-o, partiu a trote pelo cais fora.
           O homem ficou ali, imóvel, a olhá-lo.
           A noite apenumbrava já com o seu manto os mastros e vergas do caíque, mas aquela silhueta franzina que se afastava destacava-se ao longe, rodeada de uma auréola de luz; levava consigo o augusto prémio de Deus, a humilde lágrima do rude lobo do mar brilhava-lhe entre os cabelos como a estrela da manhã e, por entre o marulhar do mar, ouvia-se o silvo alegre daquela feliz consciência, assobiando estoicamente à sua pobreza.

Dezembro, 1921.


Fernando Perfeito de Magalhães e Menezes de Vilas-Boas 
OS DEZ-RÉIS DE GENTE de S. Martinho do Porto - Contos Verídicos
publicado pela Companhia Portuguesa Editora, Lda., Porto, 1923

      (1) Fonte que era, sem dúvida, a seiscentista Fonte da Praia, que se mantém discretamente num escaninho do Largo Engenheiro José Frederico Ulrich.

      (2)   Gavroche: personagem inolvidável d’Os Miseráveis de Víctor Hugo. Era filho do casal Thénardier mas, enjeitado pelos pais, o rapaz acaba por viver nas ruas, sobrevivendo como podia; é caracterizado pelo romancista como possuindo um coração generoso e um temperamento vivo e alegre.
      (3) Sugere-se a ideia de volume esguio, um só "corpo" com as duas crianças enganchadas pela mão do Moleque. No segundo parágrafo, o autor qualificara já de esguia a silhueta do Moleque.

terça-feira, 17 de março de 2015

TOURO TRESMALHADO - um conto de Francisco Perfeito de Magalhães

Postal com 2 clichés(Bezerros para uma ferra e Touros no campo). Edição F.A. Martins, Lisboa, 1903
(Proveniência da imagem: BMCR - Biblioteca Municipal de Caldas da Rainha)



TOURO TRESMALHADO









fórmula algébrica que deu a Newton o epitáfio para o seu túmulo em Westminster – o célebre binómio – naquele ano da graça de 1891, deram-me a mim uma bicicleta!...Pois com tão valioso brinde, meu pai galardoava a distinção no exame matemático que, aí pela canícula lisboeta de entre Julho e Agosto, coroara de triunfos o trabalho escolar deste seu filho.
            E, logo depois, para retemperar a saúde da família, partíamos todos em caravana veraneante para a pitoresca praia de São Martinho do Porto. Resolvi inaugurar a máquina luxuosa num passeio por aquela estrada que liga São Martinho às Caldas da Rainha, crochetando em duas rectas angulares que apoiam o vértice na aldeia de Alfeizerão; rectas quilométricas de britado macadame (1), planas, unidas, bem cuidadas; uma pista enfim, quase sempre deserta.
            Parti assistido por todo o conselho de família. A minha boa mãe, inquieta, recomendava: «Olha, filho! Toma cuidado com os touros do Vitorino!»… A prudentíssima senhora bem sabia que é pelas lezírias que marginam essa estrada que o conhecido ganadero Vitorino Fróis faz pastar as suas manadas de gado bravio. Ah, as mães!...
            Mas o meu pai sossegou-a: «As valas que separam os campos do caminho, andam sempre cheias de água… De resto, o nosso Francisco já sabe o que faz; está um homenzinho!» - rematou ele, paternalmente desvanecido.
            E todos aplaudiram a desenvolta perícia com que este homem de dezasseis anos montava a bicicleta nova, buzinante e largada na apoteose da minha mocidade, que uma camisola vermelha vestia como uma flâmula triunfadora…
            Deixando a vila, logo me tomou pelas costas um vento do mar largo, tão alegre e buliçoso que fazia rodar a maquineta sem esforço muscular da minha parte e eu, deliciado, feliz, imaginoso, emprestava ao meu próprio espírito a ilusão de que, novo Parsifal, também corria, invencível, para um Montsalvat de sonho, em demanda do cálice místico do Santo-Graal!...
            Nas horas de estalar, é que eu ia, como se costuma dizer (2).
            A menos de um quilómetro de Alfeizerão, avistei um grande vulto escuro, meio escondido por detrás dos troncos das árvores que orlavam a via; dir-se-ia que estava de emboscada!... Era um touro! Um isolado, uma dessas rezes já velhas, que os machos novos vencem e afugentam das manadas das vacas em cio… Esses touros tresmalhados, enraivados pela derrota, são sempre perigosíssimos!
            Não havia dúvida – estava metido em maus lençóis!
            Voltar para trás, com aquele vento tão forte pelo peito, era fazer com que o bicho, em dois saltos, me alcançasse. A salvação seria passar vertiginosamente pela frente do perigo… E não era eu Parsifal, o invencível, o eleito de Deus?... Adiante, pois!...
            Pedalei com fúria, mas o touro, dando conta do vulto estranho, silencioso, brilhante de metais niquelados, variegado de cores berrantes, que avançava sobe ele, perfilou-se no meio do caminho e, num trotezinho dançante, adiantou-se a receber-me… Tive apenas tempo de desmontar, saltando para trás das rodas, que lá continuaram a correr, sozinhas, até às hastes da fera, que logo as enganchou, dando com a bicicleta num alto galho de plátano, onde ficou, lamentosamente, ainda a rodar, pendurada pelo guiador!... Foi o que a salvou a ela, e o que me ia perdendo a mim!...
            O cornúpeto, não vendo cair aquele inimigo que havia volteado para as alturas, avançou no mesmo trotezinho dançarinado para o ciclista que, mal refeito ainda do susto do mau encontro e do abalo do salto rude, não hesitou contudo em lançar-se de cabeça na vala mais próxima, pondo-se em duas braçadas fora do alcance do seu cornudo perseguidor…
            Mas o bicho seguiu-me e o combate, de terrestre, passou a ser batalha naval!... Eu nadava; ele galeava aos saltos quando topava apoio no fundo lodoso do canal, e assim ganhava distância… A vala começou de estreitar para dar passagem a uma ponte que a atravessava; tomei terra e logo o maldito fez outro tanto.
            Felizmente, tive tempo de passar para a outra margem pelo estreito ponteio (3)…
            O touro, teimoso, quis seguir-me, mas a prancha não fora ali posta para a sua corpulência; vergou, e o diabo furioso, escorregando, deu consigo na água, de onde ficou a olhar para mim, que, ofegante, me sentara a meio da ponte salvadora, a insultá-lo com os piores nomes do meu repertório de estudante. Por fim, chamei-lhe homem – o doesto que mais adequado encontrei para classificar aquela falsa-fé no ataque, e este encarniçamento na cilada… E assim ficamos toda a santíssima tarde em patético idílio!
            Pela charneca profunda, nem vivalma; pela imensa estrada, ninguém!
            Caída a noite, ele mugiu de impaciência, talvez de frio, pelo prolongado banho. Afastou-se, para voltar uma outra vez a espreitar a sua vítima… Escarvou, tornou a mugir longamente e, por fim, desapareceu no escuro da lezíria…
            Era já bem tarde quando eu, encharcado Parsifal, entrei em casa, onde toda a gente, alarmada com tanta demora, se impacientava em sobressaltos…
            No dia seguinte, a máquina brilhante, depois de retirada do seu nicho aéreo, dava entrada numa enfermaria de bicicletas, e o ciclista guardava-se no leito, a consertar de uma fortíssima bronquite.
            O Santo Graal ficara, mais uma vez, por conquistar! Mas a moral ganhara com esta finalidade: as mães têm sempre razão, mesmo quando aconselham os Parsifais magníficos, seus filhos, a terem a prudência do resto dos mortais.


 Francisco Perfeito de Magalhães e Menezes de Villas-Boas,
Quarenta Contos – Narrativas Breves
Typographia Fonseca, Porto, 1924



            (1) Este conto, como os dois que se seguirão, foram objecto de algum trabalho de edição, mínimo e parco. Atualizamos algumas palavras na grafia ou acentuação, e pouco mais. Conservamos, por norma, as palavras de que o narrador se serviu, mesmo que elas tenham caido entretanto em desuso (permanecem, contudo, nos dicionários, com a dignidade das suas antigas roupagens). Proceder de outra forma, iria empobrecer e vulgarizar o texto literário original.
            (2) Horas de estalar, é uma expressão que traduz pressa, rapidez, como era o caso da bicicleta do Francisco. Num sentido coerente, chegar nas horas de estalar significa chegar às pressas, à ultima da hora.
           (3) Um ponteio é uma ponte estreita para peões; o nome originou-se de ponteiro, peão condutor de gado.