Lá ia ele, alegremente assobiando e conduzindo o seu carro de mão, pejado de dois barris da aguada para os calafates do estaleiro. Todos os dias, por três vezes, cumpria aquela tarefa desde a fonte pública (1) até ao extremo do longo cais deste utilíssimo, mas desprezado, porto de mar.
Às vezes, parava a descansar, e a sua silhueta esguia e nervosa quedava imóvel entre os banzos do carro, contemplando o mar, lançando-lhe um olhar entre vago e receoso, triste talvez, por não lhe compreender os insondáveis mistérios. Depois volvia de novo os olhos para o carro; a sua face de gavroche (2), com a tez tostada do Sol e dos ventos, abria-se num sorriso alegre, como se visse nele o companheiro fiel e amigo da sua dura vida, e lá ía, cais fora, de pés descalços, assobiando talvez à sua pobreza.
Os calafates e carpinteiros navais estimavam-no, pois era presto em lhes chegar as ferramentas e a estopa. Rápido como um coelho, saltando alegremente por entre aquele dédalo de obstáculos, de prumos, barrotes, escoras, cachorros e cavernames, servia a todos e era sobretudo muito cuidadoso naquele serviço de água, para que a tivessem sempre fresca.
Entrava o mês de Setembro; alguns caíques de Olhão atracados ao cais, com os porões repletos já dos preciosos pomos de Alcobaça, destinados à indústria da fruta seca da província do Algarve, impregnavam a atmosfera do perfume intenso e sadio da maçã. Era já tarde, o cais achava-se agora deserto pois há muito que tinha terminado a lufa-lufa da carregação e o mar bastante agitado lambia de quando em vez, com o dorso das suas vagas orladas de espuma, as negras pedras da muralha.
O Moleque impulsionava naquela tarde, pela derradeira vez, o seu carro de mão na direção do estaleiro. De súbito, vibram no espaço uns brados; algumas mulheres de braços estendidos, dando gritos aflitivos, clamavam por socorro, correndo desordenadamente para a borda do cais e, no desespero da angústia, erguiam as mãos convulsas, implorando à Providência e olhando desvairadas um remoinho que a alvura de um vestido fazia na água.
O Moleque acelerou o andamento ao carro, os barris chocavam-se e saltavam desordenados pelos sobressaltos que lhes imprimiam as rotações da roda de ferro, tropeçando ruidosamente nas juntas desniveladas das lajes de granito e, ao chegar junto das desvairadas mulheres, largou-o; olhou o remoinho e empalideceu. Por um segundo, o seu olhar pousou sinistramente sobre a superfície do mar, duas rugas profundas vincavam-lhe a fronte e, irrefletidamente, fez o movimento de se lançar à água. Porém, o intuito de conservação deteve-o: não sabia nadar!
Mas eis que dá de rosto num argolão de ferro que servia de amarra aos caíques atracados e, rápido, enovelou-se como um chimpanzé naquela argola. Desprendendo um dos seus esguios braços, estendeu-o para o remoinho e numa crispação intensa do seu temperamento nervoso, filou o que emergia ainda da água.
Era o artelho de uma criança!
Nada mais pôde fazer naquela crítica posição. As mulheres redobraram o seu alarido desesperado e inútil, mas um vulto rude e esforçado de um algarvio arredou bruscamente o mulherio, e vociferou ameaçadoramente ao pobre Moleque: «Eh, malandro! Não o largues, hein!?». E estendendo-se ao longo do cais, começou a içar aquele esguio [sic] (3) como se fosse um cabo. Em breve depositou os dois fardos nas lajes da muralha. O pequeno náufrago bolsava em abundância água salgada, e então as mulheres tentaram erguê-lo para o levarem; porém, a mão do Moleque crispada como uma tenaz no artelho da criança não o permitia. Foi preciso que o homem do mar fizesse novamente uso dos seus possantes músculos para o obrigar a abrir os dedos.
Uma mulher pôde enfim levantar nos braços o pequeno desmaiado e correu, seguida de todas as outras, em direção a uma habitação luxuosa, enquanto o nosso Moleque para ali ficava estendido, sacudindo o corpo com os soluços de um choro convulso.
O algarvio olhou-o - baixou-se e ergueu-o como a uma pena e cingiu-o com força ao possante arcaboiço, e dos seus olhos desprendeu-se uma grossa lágrima, que tropeçando nas rugas fundas da sua face, caiu por fim sobre os cabelos da criança.
A crise tinha passado!
O Moleque estava de pé, encarou o homem e sorriu; olhou o mar e o seu semblante velou-se de uma expressão sombria e sinistra, estendeu para o elemento o seu débil e nervoso punho e dos seus lábios soltou-se uma imprecação: «Maldito!».
Depois deu com os olhos no carro, no seu carro, e todo ele se transformou. A sua fisionomia irradiava uma felicidade imensa, correu para ele, agarrou-o pelos banzos que pareciam dois braços amigos que o esperavam para o cingir também e, sopesando-o, partiu a trote pelo cais fora.
O homem ficou ali, imóvel, a olhá-lo.
A noite apenumbrava já com o seu manto os mastros e vergas do caíque, mas aquela silhueta franzina que se afastava destacava-se ao longe, rodeada de uma auréola de luz; levava consigo o augusto prémio de Deus, a humilde lágrima do rude lobo do mar brilhava-lhe entre os cabelos como a estrela da manhã e, por entre o marulhar do mar, ouvia-se o silvo alegre daquela feliz consciência, assobiando estoicamente à sua pobreza.
Dezembro, 1921.
Fernando Perfeito de Magalhães e Menezes de Vilas-Boas
OS DEZ-RÉIS DE GENTE de S. Martinho do Porto - Contos Verídicos,
publicado pela Companhia Portuguesa Editora, Lda., Porto, 1923
(1) Fonte que era, sem dúvida, a seiscentista Fonte da Praia, que se mantém discretamente num escaninho do Largo Engenheiro José Frederico Ulrich.
(2) Gavroche: personagem inolvidável d’Os Miseráveis de Víctor Hugo. Era filho do casal Thénardier mas, enjeitado pelos pais, o rapaz acaba por viver nas ruas, sobrevivendo como podia; é caracterizado pelo romancista como possuindo um coração generoso e um temperamento vivo e alegre.
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(3) Sugere-se a ideia de volume esguio, um só "corpo" com as duas crianças enganchadas pela mão do Moleque. No segundo parágrafo, o autor qualificara já de esguia a silhueta do Moleque.
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