quarta-feira, 25 de março de 2015

O FERRO-VELHO - um conto de Fernando Perfeito de Magalhães

Detalhe de uma festa tauromáquica na Quinta do Fróis (imagem integral em anexo, no final do conto)


O FERRO-VELHO
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Alfeizerão

            O grande pátio retangular, fechado de dois lados pelos dois corpos em esquadria da vasta habitação do conhecido ganadero e cavaleiro tauromáquico Vitorino Fróis, do outro pelo muro costeiro do alpendre de uma enorme eira e pelo outro por forte paliçada, cheio de Sol e movimento, estava já repleto de espectadores que se agitavam ansiosos pelas janelas das casas e pelos palanques construídos para que as numerosas senhoras assistissem, sem perigo, a um dos espetáculos mais queridos da nossa sociedade e talvez dos mais interessantes e genuinamente nacional.
            Oferecia uma vacada, o estimado proprietário às numerosas famílias suas conhecidas que nesta quadra do ano veraneavam na vila das Caldas da Rainha e na praia de S. Martinho do Porto.
            O interesse era grande, pois o corajoso cavaleiro lidaria as suas vacas em hastes limpas e os peões de brega, amadores conhecidíssimos, as bandarilhariam também desemboladas.
            Toda aquela já excitada multidão saudou, à entrada na liça, o simpático cavaleiro que garbosamente montava um dos seus mais puros e soberbos cavalos de combate, percebendo-se que o belo animal se orgulhava de sentir sobre os seus nervosos flancos, o melhor calção dos cavaleiros portugueses.
            As palmas só cessaram quando se abriu a porta do curro, dando passagem à primeira vaca que, furiosa, atravessou de cabeça baixa, na ponta da unha, todo o comprimento do pátio, até entestar com a fronteira paliçada. Ali, virou-se e quedou, encostando os quartos traseiros às tábuas, escarvando a terra.
            O cavaleiro, sorrindo, apertou levemente os joelhos na sela e aproximou-se da cabeça da fera, citando-a com um ferro curto que erguia na mão; passou duas ou três vezes destemidamente pela frente da rês, que parecia não fazer caso do desafio. Pela última vez, o cavaleiro cingiu-se tanto às hastes da vaca que esta abaixou a cabeça e o nobre corcel, com todos os seus músculos retesados nervosamente, deu uma soberba upa que parecia ser um aviso ao arrojo do dono. Era evidente que a vaca estava na querença. Então, um dos Lumiares lançou-lhe destramente o capote aos olhos para a tirar daquele sítio. A rês fez menção de correr ao vulto, mas quando o viu coberto pela capa, estacou.
            Aquela fera era astuciosa...ou não fosse ela feminina!
            O Lumiares insistiu, mas a vaca só procurava o vulto, não arrancava ao capote.
            Entretanto, entrou no pátio um jovem retardatário que se dirigia alegremente ao palanque para nele tomar lugar como espectador; mas uma voz solta de uma das janelas bradou-lhe irrefletidamente: «Ó Ferro-velho, faz lá uma pega!».
            O nosso Ferro-velho era um rapazito alegríssimo dos seus quinze anos, aparentando já uma sadia robustez, muito querido entre a seleta colónia balnear de S. Martinho do Porto, primorosamente atencioso para as senhoras de idade, cavalheiríssimo para as damas, e valente.
            A sua educação, moldada nos austeros princípios das qualidades morais do brio e do pundonor, tinha-lhe granjeado a estima sincera de muitos e a inveja de alguns.
            O seu sobrenome de Ferro-velho, tinha-o adquirido por ter um dia atrevidamente posto fim a uma interminável discussão entre sisudos engenheiros sobre horários e atrasos de comboios, alcunhando-os de ferros-velhos, maliciosamente. Toda a gente o tratava desde então por aquele sobrenome.
            O jovem, ao ouvir a piada de Sol que lhe era dirigida, parou a meio do pátio e olhou sorrindo para o palanque e janelas repletas de senhoras, encantado daquele vistoso e garrido espetáculo, e logo várias vozes repetiram: «Faz lá uma pega, ó Ferro-velho!...». Aquilo foi um rastilho; senhoras, homens, rapazes, eivados da inconsciência egoísta das multidões, rindo, batendo palmas, delirando, bramavam: «Ferro-velho…Ferro-velho…uma pega…uma pega…».
            O rapaz empalideceu, pois nunca tinha visto de perto qualquer rês brava, era ignorante da arte tauromáquica, e desconhecia em absoluto como se poderia executar aquilo que lhe exigiam.       Percorreu com o olhar aquela implacável multidão ensandecida e leu talvez no rosto dalguns, a ironia.
            Então, o seu pundonor beliscou-o.
            A vaca continuava na querença, encostada às tábuas, apesar dos esforços dos destemidos Lumiares. Toda aquela sociedade vociferava, animalizada e sedenta de cenas sinistras e violentas que lhe sacudissem os nervos flácidos da sua vida folgada.
            De súbito, viu-se o Ferro-velho correr, resoluto, direito à vaca. Os Lumiares ainda tentaram impedir aquela loucura, mas o brioso rapaz não lhes deu tempo e a vaca arrancou por fim para o vulto descoberto. Como por encanto, um silêncio brusco esmagou aquela mó de gente, muitas espectadoras viraram os rostos, alguns peitos arfaram opressos e tudo se imobilizou sinistramente.
            Só o Vitorino Fróis, sobre o seu nobre ginete, sorria. Só ele tinha visto que o rapaz caíra milagrosamente bem entre as hastes agudas da fera.
            Efetivamente, o tronco do Ferro-velho cobria por completo o testo da vaca, ambos envoltos em densa nuvem de pó. O animal dava derrotes sobre derrotes, mas aquele dorso parecia estar-lhe colado à cabeça como a ostra ao penedo.
            Os irmãos Lumiares foram os primeiros a quebrar aquela petrificação; um deles rabejou com pulso de ferro a rês, enquanto o outro lhe caía valentemente à cernelha e, mais uns maiorais e dois ou três campinos, aferrando-se aos ilhais, conseguiram domar enfim, por completo, aquela manhosa fera.
            O Chico berrava aos ouvidos do Ferro-velho que se soltasse da cabeça da vaca, mas ele não o ouvia, não se mexia, tinha os olhos fechados; todo ele estava retesado numa crispação. Por fim, os dois irmãos, a muito custo, desligaram-lhe as mãos enclavinhadas na barbela e desenvencilharam-no das armas da rês, dando-lhe ainda algumas palmadas rijas nas costas.
            Endireitou-se enfim o valente dez réis de gente e olhou vagamente em roda.
            Aquela turba então, vendo-o ileso, virou-se do avesso e agora aplaudia delirante numa ovação estrondosa e frenética, desejosa de abafar com clamores a implacável voz da consciência que a condenava da brutalidade inconcebível do seu feroz egoísmo; arrependida talvez, mas um pouco tarde.
            Levaram o involuntário forcado à sala de jantar, obrigando-o a beber alguns cálices de velho vinho do Porto, que o reanimavam daquele violento abalo, fazendo-o enfim assomar às faces o seu simpático e franco sorriso. Alguém, entre aquele numeroso grupo que o rodeava, movido pelo entusiasmo, espontaneamente exclamou: «Bravo, Ferro-velho! Fizeste uma pega rijíssima!».
            Ao que aquele generoso moço, sem a mais leve censura, respondeu galhofeiramente, dirigindo-se àqueles que poderiam ter sido os seus algozes: «Aquilo, rapazes…não era uma vaca!...Era o Facho (1) que desabava sobre mim…fechei os olhos e não me lembro de mais nada…tenho sono!».
            O nosso Ferro-velho, estendido numa cama, adormeceu num sono pesado e seguido de treze horas.
           


(1) O Facho é o monte de maior altitude da costa de Portugal, sito próximo a S. Martinho do Porto.
 [nota original do livro]



Fernando Perfeito de Magalhães e Menezes de Vilas-Boas
OS DEZ-RÉIS DE GENTE de S. Martinho do Porto - Contos Verídicos,
 Companhia Portuguesa Editora, Lda., Porto, 1923




ANEXO 1: 
Legendas: 1 - Um aspecto do pic-nic no pinhal / 2 . Citando um touro para bandarilhas /
3 - As chocas na praça / 4 - Outro aspecto do pic-nic no pinhal

ANEXO 2 : 
Legendas: 1 – Sorte de muleta / 2 – O sr. Ruy da Câmara fazendo uma sorte de morte / 
3 – O fim da corrida / (clichés de Benoliel)




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