terça-feira, 17 de março de 2015

TOURO TRESMALHADO - um conto de Francisco Perfeito de Magalhães

Postal com 2 clichés(Bezerros para uma ferra e Touros no campo). Edição F.A. Martins, Lisboa, 1903
(Proveniência da imagem: BMCR - Biblioteca Municipal de Caldas da Rainha)



TOURO TRESMALHADO









fórmula algébrica que deu a Newton o epitáfio para o seu túmulo em Westminster – o célebre binómio – naquele ano da graça de 1891, deram-me a mim uma bicicleta!...Pois com tão valioso brinde, meu pai galardoava a distinção no exame matemático que, aí pela canícula lisboeta de entre Julho e Agosto, coroara de triunfos o trabalho escolar deste seu filho.
            E, logo depois, para retemperar a saúde da família, partíamos todos em caravana veraneante para a pitoresca praia de São Martinho do Porto. Resolvi inaugurar a máquina luxuosa num passeio por aquela estrada que liga São Martinho às Caldas da Rainha, crochetando em duas rectas angulares que apoiam o vértice na aldeia de Alfeizerão; rectas quilométricas de britado macadame (1), planas, unidas, bem cuidadas; uma pista enfim, quase sempre deserta.
            Parti assistido por todo o conselho de família. A minha boa mãe, inquieta, recomendava: «Olha, filho! Toma cuidado com os touros do Vitorino!»… A prudentíssima senhora bem sabia que é pelas lezírias que marginam essa estrada que o conhecido ganadero Vitorino Fróis faz pastar as suas manadas de gado bravio. Ah, as mães!...
            Mas o meu pai sossegou-a: «As valas que separam os campos do caminho, andam sempre cheias de água… De resto, o nosso Francisco já sabe o que faz; está um homenzinho!» - rematou ele, paternalmente desvanecido.
            E todos aplaudiram a desenvolta perícia com que este homem de dezasseis anos montava a bicicleta nova, buzinante e largada na apoteose da minha mocidade, que uma camisola vermelha vestia como uma flâmula triunfadora…
            Deixando a vila, logo me tomou pelas costas um vento do mar largo, tão alegre e buliçoso que fazia rodar a maquineta sem esforço muscular da minha parte e eu, deliciado, feliz, imaginoso, emprestava ao meu próprio espírito a ilusão de que, novo Parsifal, também corria, invencível, para um Montsalvat de sonho, em demanda do cálice místico do Santo-Graal!...
            Nas horas de estalar, é que eu ia, como se costuma dizer (2).
            A menos de um quilómetro de Alfeizerão, avistei um grande vulto escuro, meio escondido por detrás dos troncos das árvores que orlavam a via; dir-se-ia que estava de emboscada!... Era um touro! Um isolado, uma dessas rezes já velhas, que os machos novos vencem e afugentam das manadas das vacas em cio… Esses touros tresmalhados, enraivados pela derrota, são sempre perigosíssimos!
            Não havia dúvida – estava metido em maus lençóis!
            Voltar para trás, com aquele vento tão forte pelo peito, era fazer com que o bicho, em dois saltos, me alcançasse. A salvação seria passar vertiginosamente pela frente do perigo… E não era eu Parsifal, o invencível, o eleito de Deus?... Adiante, pois!...
            Pedalei com fúria, mas o touro, dando conta do vulto estranho, silencioso, brilhante de metais niquelados, variegado de cores berrantes, que avançava sobe ele, perfilou-se no meio do caminho e, num trotezinho dançante, adiantou-se a receber-me… Tive apenas tempo de desmontar, saltando para trás das rodas, que lá continuaram a correr, sozinhas, até às hastes da fera, que logo as enganchou, dando com a bicicleta num alto galho de plátano, onde ficou, lamentosamente, ainda a rodar, pendurada pelo guiador!... Foi o que a salvou a ela, e o que me ia perdendo a mim!...
            O cornúpeto, não vendo cair aquele inimigo que havia volteado para as alturas, avançou no mesmo trotezinho dançarinado para o ciclista que, mal refeito ainda do susto do mau encontro e do abalo do salto rude, não hesitou contudo em lançar-se de cabeça na vala mais próxima, pondo-se em duas braçadas fora do alcance do seu cornudo perseguidor…
            Mas o bicho seguiu-me e o combate, de terrestre, passou a ser batalha naval!... Eu nadava; ele galeava aos saltos quando topava apoio no fundo lodoso do canal, e assim ganhava distância… A vala começou de estreitar para dar passagem a uma ponte que a atravessava; tomei terra e logo o maldito fez outro tanto.
            Felizmente, tive tempo de passar para a outra margem pelo estreito ponteio (3)…
            O touro, teimoso, quis seguir-me, mas a prancha não fora ali posta para a sua corpulência; vergou, e o diabo furioso, escorregando, deu consigo na água, de onde ficou a olhar para mim, que, ofegante, me sentara a meio da ponte salvadora, a insultá-lo com os piores nomes do meu repertório de estudante. Por fim, chamei-lhe homem – o doesto que mais adequado encontrei para classificar aquela falsa-fé no ataque, e este encarniçamento na cilada… E assim ficamos toda a santíssima tarde em patético idílio!
            Pela charneca profunda, nem vivalma; pela imensa estrada, ninguém!
            Caída a noite, ele mugiu de impaciência, talvez de frio, pelo prolongado banho. Afastou-se, para voltar uma outra vez a espreitar a sua vítima… Escarvou, tornou a mugir longamente e, por fim, desapareceu no escuro da lezíria…
            Era já bem tarde quando eu, encharcado Parsifal, entrei em casa, onde toda a gente, alarmada com tanta demora, se impacientava em sobressaltos…
            No dia seguinte, a máquina brilhante, depois de retirada do seu nicho aéreo, dava entrada numa enfermaria de bicicletas, e o ciclista guardava-se no leito, a consertar de uma fortíssima bronquite.
            O Santo Graal ficara, mais uma vez, por conquistar! Mas a moral ganhara com esta finalidade: as mães têm sempre razão, mesmo quando aconselham os Parsifais magníficos, seus filhos, a terem a prudência do resto dos mortais.


 Francisco Perfeito de Magalhães e Menezes de Villas-Boas,
Quarenta Contos – Narrativas Breves
Typographia Fonseca, Porto, 1924



            (1) Este conto, como os dois que se seguirão, foram objecto de algum trabalho de edição, mínimo e parco. Atualizamos algumas palavras na grafia ou acentuação, e pouco mais. Conservamos, por norma, as palavras de que o narrador se serviu, mesmo que elas tenham caido entretanto em desuso (permanecem, contudo, nos dicionários, com a dignidade das suas antigas roupagens). Proceder de outra forma, iria empobrecer e vulgarizar o texto literário original.
            (2) Horas de estalar, é uma expressão que traduz pressa, rapidez, como era o caso da bicicleta do Francisco. Num sentido coerente, chegar nas horas de estalar significa chegar às pressas, à ultima da hora.
           (3) Um ponteio é uma ponte estreita para peões; o nome originou-se de ponteiro, peão condutor de gado.

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