A história recente de São Martinho do
Porto, a sua prosperidade, é indissociável das suas condições idílicas como
estância de veraneio (não falemos do clima inconstante, porque até as terras
têm direito aos seus caprichos), e da beleza da enseada e a variedade de
ambientes e cenários que lhe estão associados - a praia curvilínea e feminil,
as dunas ciclópicas de areia de Salir, os morros alcantilados, e as agrestes arribas
marinhas procuradas por pacientes pescadores e caminhantes contemplativos. Ao
longo do século dezanove e alvores do século seguinte, São Martinho consagra-se
como a praia de eleição das famílias aristocráticas ou de posses e local de
descanso do agrado da casa de Bragança. As ocupações e divertimentos
desfrutados por esses banhistas ociosos são evocados com nostalgia por João
António de Oliveira e Sousa, o Marquês
de Rio Maior, nas crónicas que escreveu no
jornal O Alcoa. A caldeirada à fragateiro em porções pantagruélicas que era
cozinhada na própria praia e que juntava à sua volta uma pequena multidão de
comensais; as caminhadas salutares pelos montes em redor; ou as toirinhas de beneficência organizadas pela colónia balnear, onde
os donzéis lidavam um toiro simulado: uma canastra «que simbolizava o
cornúpeto», envergada por um dos rapazes da terra.
Esse ambiente de lazer
e festa, animou os anos de juventude dos dois irmãos que trazemos a estas
páginas: Francisco Perfeito de Magalhães e Menezes de Villas-Boas, o
primogénito, que herdou o título de conde de Alvellos, e um dos seus quatro
irmãos, Fernando Perfeito de Magalhães e Menezes de Villas-Boas. Ambos com
percursos biográficos e literários singulares, e que possuem a particularidade
de terem escrito versos e contos onde reencontramos a nossa região, e através
dos quais se percebe desveladamente o amor que lhe tinham. Estes contos
foram-nos amavelmente facultados pelo bisneto de Francisco Perfeito de
Magalhães, Luís Mascarenhas Gaivão, que mantém uma página (o Pretérito
Perfeito) consagrada à história e realizações da família Perfeito de
Magalhães, e aos temas a ela imbricados: a casa da Corredoura, as Águas de
Cambres, o título de Conde de Alvellos, etc. Essa página é um ótimo repositório
de dados sobre a família e foi-nos muito útil no processo de pesquisa. Numa
página monográfica como essa, o conteúdo nunca se esgota e é atualizado por
aditamentos e reformulações; pelo que, solicitávamos a quem possuísse dados
sobre a família ou as suas obras, que tivesse a gentileza de os comunicar ao
endereço eletrónico da página, omaganifico@gmail.com (estou a pensar
particularmente nas pessoas que se dedicam ao estudo da história e da cultura
da vila de São Martinho do Porto, local de férias, mas também de trabalho, dos
dois irmãos).
Francisco Perfeito de Magalhães e Menezes de Villas-Boas (1875-1960),
herdeiro do título de Conde de Alvellos, conhecerá na sua juventude o ócio
ameno das margens da enseada de S. Martinho do Porto, que deixará a sua branda
marca nalguns poemas que escreveu. Esteve em Moçambique, onde trabalhou na
administração aduaneira da província ultramarina, e regressa à metrópole em
1904. A implantação da República empurra-o para o exílio no Brasil. Durante os
anos de 1911 e 1912, participa nas incursões monárquicas no norte do país, cujo
insucesso o conduz a um novo período de exílio político que o levará sucessivamente
a Madrid, à Galiza, a Londres, e de novo à Galiza (o desterro será um dos motes
amargos da sua escrita). No Verão de 1915, termina o seu exílio político, e
regressa finalmente ao país, onde, em 1918, se torna senhor da Casa da
Corredoura após o falecimento do pai, o engenheiro Francisco Perfeito de
Magalhães e Menezes. Defensor apaixonado da causa monárquica, pugnará
incansavelmente por ela até ao fim dos seus dias no seu labor político e
literário.
Como autor, deixou-nos uma extensa obra repartida por poemas, contos,
novelas e ensaios. O conto que aqui traremos, Touro Tresmalhado, integra o livro Quarenta Contos – Narrativas Breves (edição da Typographia Fonseca, Porto, 1924); e entre
os seus poemas, como aqueles que constituem os seus Cantares – Versos de Moço (Typ. dos Caminhos de Ferro do Estado, 1905), existe
um muito especial, que aqui recordamos porque está gravado no painel de
azulejos da frontaria da emblemática capela de Santo António, em São Martinho
do Porto:
SANTO ANTÓNIO
Do nicho d'esta capella,
Que está em cima do monte,
P'ra proteger todo o mar,
O santo fica a rezar,
Se vê sumir-se uma vela,
Na linha azul do horizonte!
E reza, reza - coitado,
Porque, em terra ha mais d'uma,
Mais d'uma noiva, que o santo,
Não quer que tenha por manto,
Por alvo veo de noivado,
Uma murtalha de d'espuma....
Francisco P. de Magalhães e Menezes
São Martinho, 1896
Fernando Perfeito de
Magalhães e Menezes de Vilas-Boas (1880-1958), nascido em Marco de Canavezes, e
filho do segundo Conde de Alvelos, Francisco Perfeito de Magalhães e Menezes,
divide os anos da sua juventude entre a casa dos seus pais em Cambres, Lamego
(a Casa da Corredoura) e estadias no Porto, em Lisboa e São Martinho do Porto.
Tira o curso de arquitetura, concluído em 1899, e desenvolve o seu trabalho, em
grande parte, ao serviço da CP, na qual é nomeado em 1923 Arquiteto de
Via e Obras, categoria técnica que desempenhou durante um quarto de século.
Fernando Perfeito de Magalhães desenhou centenas de projetos, alguns na vila de
São Martinho, e dedicou-se com afinco a um grande projeto de conjunto para esta
vila que não passou (infelizmente) do papel, porque constituía um oportunidade
dourada para esta vila crescer de uma forma ordenada e equilibrada na orla da
enseada. O projeto contava com o eventual investimento de financeiros
destacados como John George e José de Azevedo Castelo Branco, e preconizava uma
série de edifícios e estruturas a erguer ao longo da marginal que incluíam um
moderno estabelecimento balnear onde seriam aproveitadas as águas medicinais de
Salir do Porto. Este projeto, delineado no ano de 1920, intitulava-se Plano
Geral do Desenvolvimento Industrial e de Turismo de S. Martinho do Porto e
propunha a criação de diferentes equipamentos turísticos como dois hotéis, um
clube náutico, um Casino que incluiria também um conjunto de lojas (ao que hoje
chamamos centro comercial), um parque, um bairro de moradias, uma praça de
touros, um clube desportivo (o Stadium) com campos de ténis e campo
de jogos, e um hangar para hidroaviões (1).
Os temas a que se
dedicou Fernando Perfeito de Magalhães são diversificados. O Marquês de Rio
Maior apresenta assim este seu amigo: «artista, da planta dos pés à ponta dos
cabelos, entusiasta cultor das tradições portuguesas, grande amigo de São
Martinho do Porto, onde residiu muitos anos e mereceu, pela sua perícia na arte
da pesca, o título de Mestre-Pescador, e conhecedor, como poucos, da linda
região» (São Martinho do Porto, artigo no jornal O Alcoa, de Alcobaça,
nº35, de 22 de Agosto de 1946). No mesmo artigo, o Marquês de Rio Maior refere
um conjunto de 241 fotografias de castelos tiradas pelo arquiteto, e exibidas
em 1936 numa exposição na Sociedade de Propaganda de Portugal. O mesmo
arquiteto e artista interessou-se (documentando) pelos moinhos portugueses,
pela arquitetura tradicional, pelos relógios de sol e, e isto devemos destacar,
pelos pelourinhos de Portugal, dos quais realizou 223 aguarelas diferentes,
reunidas e publicadas apenas em 1991 (Pelourinhos Portugueses, com texto
de Vasco da Costa Salema, pelas Edições Inapa, Lisboa).
A sua atividade literária está disseminada por jornais e revistas, e deu forma a alguns livros. Um deles, um livro de contos, ficcionaliza, pelo que o título sugere, pessoas e peripécias autênticas que conheceu em São Martinho do Porto. OS DEZ-RÉIS DE GENTE de S. Martinho do Porto - Contos Verídicos, foi publicado no Porto em 1923 pela Companhia Portuguesa Editora, Lda., e conta com ilustrações de Emmerico Hartwich Nunes. Cada conto representa a(s) aventura(s) de uma criança ou adolescente (os dez-réis de gente), narradas com um realismo cercano e tangível. De entre eles, escolhemos dois para os publicar aqui: O Moleque, e O Ferro-Velho, este, passado na Quinta do Fróis.
(1) A fonte imediata para o que escrevemos sobre o projeto é um artigo de Susana LOBO (A Colonização da Linha de Costa: da Marginal ao Resort), mas servimo-nos também de outras textos eletrónicos, sendo que quase todos aludem a uma tese, que não consultamos, de Eduardo Cardoso Mascarenhas de Lemos: MASCARENHAS DE LEMOS, Eduardo Cardoso “Desenvolvimento de conceitos Urbanísticos : Contexto Nacional e Internacional - O Actor, O Arquitecto e os Outros”, in, Modelos urbanos e a formação da cidade balnear. Portugal e a Europa, tese de doutoramento em Arquitectura, especialidade de Planeamento Urbano, Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Wroclaw, Polónia, 200&.
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Imagem do Plano... desenhado por Fernando Perfeito de Magalhães |
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