sexta-feira, 17 de abril de 2015

INQUISIÇÃO - algumas notas relativas aos processos por judaísmo


          Cristão-novo é o termo comum para designar os judeus portugueses. No reinado do rei Venturoso, os judeus são obrigados a converterem-se à religião católica ou a saírem do país caso persistissem na sua crença. Com Dom João III, o estabelecimento da Inquisição em Portugal irá criar os meios institucionais para a repressão da heresia ou heterodoxia.

          Todo o cristão-novo era suspeito, e a todo o tempo, de ser um cripto-judeu ou um cristão judaizante, de prosseguir com as suas crenças e práticas mosaicas a coberto dos ritos e cerimónias da Santa Madre Igreja. No que toca ao judaísmo, o preconceito social e a ação da Inquisição possui, inegavelmente, um fundo de discriminação racial. Nos processos por judaísmo, existe um capítulo designado por Genealogia (1), onde se listam os ancestrais do réu até aos avós paternos e maternos, para esclarecer quem, entre eles, é cristão-velho e cristão-novo, e a sua quota-parte de sangue judeu; se é 1/2 cristão-novo, 1/4 de cristão-novo, 1/8 de cristão-novo, ou apenas parte de cristão novo se a sua origem judia for indeterminada, ou estiver esbatida pelo acumular de gerações e uniões. O cristão-novo, e a expressão consta dos processos, possuía nas veias sangue infecto de judeus.

          Para a Inquisição, bastava uma denúncia de outro cristão-novo, ou as suspeitas levantadas por um elemento da comunidade em que vivia, para alguém ser preso por judaísmo, quer fosse ou não, efetivamente, um cripto-judeu. Apelar para um justo julgamento ou uma apuramento imparcial da verdade dos factos era um via condenada ao fracasso desde o início, pelo que confessar o seu próprio judaísmo, e denunciar outros (a começar pela família) pelo mesmo crime era a forma mais rápida de abreviar o processo e de poder contar com a misericórdia e a benevolência dos inquisidores, que se traduzia no teor e na gravidade das penas. Famílias inteiras eram presas por este meio nos cárceres da inquisição, e a confissão de cada um dos seus membros avolumava as culpas e as acusações (descritas sob a epígrafe Outra culpa contra este reo) que pendiam sobre os seus familiares que se encontravam na mesma situação. Na sua ânsia de granjear a benevolência dos inquisidores, as denúncias visavam amigos e relações fora do círculo familiar, e a acção da inquisição progredia de forma tentacular com novas prisões e processos. Os documentos que envolvem a família dos Brito Alão são um bom exemplo disto.

          Os acusados que eram presos pela Inquisição eram encaminhados, consoante a região de proveniência, para uma das três sedes do Santo Ofício que existiam em Portugal: Lisboa (os Estaos, no Rossio), Coimbra ou Évora. O funcionamento dessas prisões e tribunais encontrava-se detalhadamente descrito nos Regimentos da Inquisição (houve quatro Reginentos sucessivos: 1552, 1613, 1640 e 1774 - os de 1613 e 1640 são muito semelhantes e foram publicados sob a égide de D. Pedro de Castilho e D. Francisco de Castro, respetivamente ), contemplando todos os aspetos e situações possíveis, desde as fases por que passavam os processos, de que forma se empregava os tormentos (nome suave para a tortura), os títulos e os cargos da estrutura, ou como se deveria proceder quando alguém se matava no cárcere ou nele enlouquecia. A Mesa de audiência dos réus é descrita de tal forma (Regimento de 1640, Título II) que quase a conseguimos visualizar:
Em cada Inquisição , deverá existir uma Casa para a Mesa do Despacho, que estará em lugar tão resguardado que fora dele não se possa ouvir coisa alguma, estarão nessa casa as cadeiras rasas e de que forem necessárias, e um banco para o preso se sentar; e estará armada no Inverno com panos de ras e com guadamecis no Verão (2).
Sobre um estrado de altura de quatro dedos haverá uma mesa coberta com seu pano de damasco carmesim, e por cima couro negro, e será capaz de ter ao menos cinco cadeiras de cada parte, e nesta mesa haverá três gavetas com chaves diferentes, em que cada um dos Inquisidores possa recolher os seus papéis, mas não meterão nela os seus cadernos, porque estes se hão-de recolher sempre ao Secreto.
Nesta Mesa estará um Missal para dar juramento, uma tábua com a oração do Espírito Santo, os Regimentos do santo Ofício, e Fisco, o Colectório das Bulas Apostólicas, e privilégios da Inquisição, tinteiros de prata bastantes para os Ministros que na mesa assistem, e uma campainha, e na parede que fica defronte do lugar em que os presos se costumam assentar, estará uma imagem de Cristo Senhor Nosso, de vulto, ornada com a decência que convém.

          A confissão ou declaração de culpa que lemos nos processos por judaísmo, não é uma declaração espontânea, pessoal, como a confissão que uma pessoa possa fazer de um delito que cometeu no passado. Essa confissão, como a delação de outros, que se serve dos mesmos termos, parece ser a repetição mais ou menos parcelar de uma minuta usada pelos escrivãos e notários do Santo Ofício, e que é composta, em regra, pelos seguintes elementos:
A crença na Lei de Moisés que era boa e verdadeira para a salvação das suas Almas, por cuja observância guardavam os Sábados de trabalho, vestindo neles camisa lavada, ou nova se a tinham [«em folha, e quando não as tinhão em folha, as vestião lavadas»], ou os melhores vestidos; começando na Sexta-feira à tarde, em que havia de concertar, ou mandar concertar, os candeeiros [ou «alimpar os candeeiros»], pondo-lhes azeite limpo, torcidas novas; cortava as unhas no mesmo dia, e no Domingo virava a camisa às avessas por desprezo do dia; passeando de noite em casa olhava para a sombra e lhe fazia reverência entendendo que nela se representava Moisés; quando lhe passava pela porta algum defunto [cortejo fúnebre] lançava fora a água que tivesse nos cântaros para beber e botasse farinha nas couceiras das portas; zombava dos cristãos velhos e lhes cuspia na sombra; fazia o jejum do dia grande que vem no mês de Setembro [Yom Kipur, ou Dia do Perdão], estando em todo o dia sem comer nem beber, senão à noite, e então ceava peixe e comia cousas que não fossem de carne; que não ouviam missa, senão por cumprimento do mundo; dissesse a oração do Padre Nosso sem Ámen Jesus no fim ao Deus grande; não comesse carne de porco, lebre, coelho nem peixe de pele [ou «sem escamas nem gordura»] e na panela das carnes mandava lançar gordura; que dormindo com cristãos velhos na cama lhes virasse as costas; comunicando estas coisas com pessoas de sua nação, apartadas da fé, com as quais se declarava por Judeu.

          Estas "culpas" de judaísmo fundem crenças hebraicas com preconceitos nascidos da aversão e ódio que lhes tinham muitos cristãos-velhos. No processo de Cristóvão Machado, é usada repetidamente uma versão abreviada desta confissão/denúncia. A forma mais extensa da confissão surge muitas vezes na sentença que encerra o processo.

          Uma acusação de judaísmo implicava a prisão da pessoa incriminada nos cárceres secretos da Inquisição. O documento de 1640, Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, denota algum critério no acondicionamento dos presos nos cárceres, nomeadamente, o cuidado de juntarem apenas mulheres na mesma cela; ou a preocupação de isolarem o encarcerado, ou seja, um preso não poderia estar na mesma cela ou corredor que outro membro da sua família, ou de uma pessoa residente na mesma terra ou acusada do mesmo delito. Mas estando ali presos durante anos a fio (há casos de encarceramentos que duraram catorze anos), era natural que conseguissem comunicar uns com os outros de alguma forma, e derivará daí a acusação recíproca que se regista entre pessoas da mesma família: estando o familiar já nos cárceres: a acusação não o prejudicaria, e contribuía para o abreviar do processo.

          A prisão de alguém por judaísmo pressupunha a sua imediata culpabilidade, pelo que, quase sempre, essas pessoas eram presas com sequestro de bens - perdiam todos as suas propriedades e valores, que eram confiscados por um Juiz do fisco da câmara.
          João Lúcio de Azevedo (História dos Cristãos-Novos Portugueses, Clássica Editora, Lisboa, 1989) publicou um excerto (que transcrevemos) das queixas dos cristãos-novos à Sé Apostólica (Aggravos dos Cristãos Novos), onde se relata esse confisco de bens, que antecede à situação de fome e privação reservada à família daqueles que eram levados para os cárceres da inquisição.

Em quanto dois familiares do Santo Ofício trazem publicamente o reo prezo plas ruas e lugares frequentados, e ordinariamente seguidos como em um triunfo, de grande multidão de gente, vai outro familiar avizar ao Juiz do fisco, ou outro ministro de justiça em falta do dito Juiz, para que vá a fazer inventario e confiscação dos bens da casa do preso, outros dois ou tres familiares ficão nella dispostos de maneira que se segue. Hum está á porta da rua e outro em cima em huma camara adonde guarda toda a família junta à vista, para que não possa entrar nem sair pessoa alguma, nem menos algum filho do prezo possa vestir outro vestido melhor daquelle que traz vestido, ou esconder alguma couza de valor, como ouro, prata, ou joias, ou couzas semelhantes. Chegado o Juiz do fisco faz tirar das orelhas, do pescoço, das mãos e das algibeiras da Mãi, da mulher, dos filhos, assim machos como fêmeas, do seu prezo, collares, aneis, joias, dinheiro que acaso tivessem em si, e neste estado se lanção todos fora de casa, nem menos permittem que os miseraveis se componhão com os vestidos com que erão costumados a sair à rua, nem lhe permitte que levem consigo alguma couza, lençoes ou outra roupa necessaria para o seu uso, nem lhes dá alguma sorte de dinheiro para viver, nem dos mantimentos que estão em caza pera se sustentarem. Depois, fazendo-se senhor da caza [o Juiz do fisco] e tomadas todas as chaves, começa com os seus ministros a fazer o inventario, que dura às vezes sinco ou seis mezes, e em todo aquelle tempo tem a porta da rua com travessas.

          Ironicamente, apesar de os acusados permanecerem nos cárceres até ao desfecho do processo, e de lhes serem confiscados os bens, não é raro encontrar-se, entre as penas que lhe eram imputadas, a sua obrigação de cobrirem as custas do processo.

          Outras penas comuns, sem mencionar a pena de morte (que não sucedeu nos casos que estudamos), era a participação nos Autos de Fé, onde confessavam publicamente as suas faltas, a transferência para os cárceres do concelho onde continuariam a cumprir pena por um tempo estipulado, o degredo ou as galés.

          A abjuração em forma que surge entre as penas, é um documento impresso que fica inserido no processo (imagem infra), completado com os dados do réu (ou ré) e por ele assinado, onde ele jura continuar a seguir a fé católica, e a revelar as heresias de que tiver conhecimento - o que poderia ser útil aos inquisidores em caso de reincidência.


Um exemplo de uma Abjuração em forma
          Um dos documentos que encerra o processo, com um nome algo sinistro, é o Termo de Segredo, outra folha impressa no qual o réu se compromete a guardar segredo sobre o que viu e ouviu dentro da prisão:
(...) sendo presente lhe foy dado juramento dos Santos Evangelhos, em que poz a mão, & sob cargo delle lhe foy mandado, que tenha muito segredo em tudo o que vio,& ouvio nestes carceres, & cõ ella se passou acerca de seu processo, & nem por palavra, nem escrito o descubra, nem por outra qualquer via que seja, sob pena de ser gravemente castigada, o que tudo ella prometteo cumprir.


O SAMBENITO

          O sambenito é o nome para o manto penitencial a cujo uso eram condenados os réus da Inquisição e que era formado por um escapulário que ostentava à frente e atrás uma cruz de Santo André, ou seja, uma cruz em forma de X. A cor do manto e da cruz, podiam variar, e esse manto podia por vezes ter outros motivos adicionais, como as chamas no sambenito daqueles que iriam ser queimados no auto-de-fé. Aos reconciliados, diz-nos o Regimento do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal, de 1613 (Capítulo 47), «mandarão prover de sambenitos de pano amarelo [cor da bolsa de Judas], com faixas de pano vermelho postos em aspa, para que os tragam assim como os levaram ao Auto-de-fé, e em suas sentenças de reconciliação se contêm».

          O sambenito parece ser anterior ao estabelecimento da inquisição, e representaria um traje envergado por aqueles que pretendiam expiar os seus pecados, e que era, para esse efeito, bendito por um religioso; de «saco bendito», segundo alguns autores, proviria o termo sambenito, depois aproximado ao de São Bento, reverenciado como triunfador sobre o Satã e o pecado.

          A cruz de Santo André possui uma simbologia mais obscura. Este discípulo de Cristo, prestes a ser martirizado, teria modestamente pedido para ser crucificado numa cruz em diagonal por não se sentir digno de morrer da mesma forma que Jesus. A sua cruz nas vestes de um penitente seria um sinal de dor e sofrimento, marcadamente diferente da cruz latina de Jesus, porque o penitente desviara-se, perdera-se, do caminho de salvação reservado a todos os cristãos, e apenas a penitência ou o sacrifício o poderia trazer de volta ao grémio dos abençoados pelo Altíssimo. E os condenados usarem nas vestes uma cruz diferente da cruz de Jesus evitava qualquer associação consciente ou subconsciente com o suplício e morte do Salvador.

          O manto penitencial perpétuo era o castigo reservado pela Inquisição aos cristãos-novos judaizantes, o estigma ignominioso que lhes era imposto para lhes recordar, e a todos os que o rodeavam, que haviam desprezado ou insultado a oportunidade de salvação que lhes havia sido dada com a conversão ao catolicismo.

          E o cumprimento dessa penitência do manto perpétuo era regulado atentamente pela estrutura inquisitorial. Os penitenciados que fossem achados sem o seu hábito perpétuo, seriam repreendidos na Mesa da Inquisição, e os Inquisidores dariam ordens para que houvesse Familiares ou pessoas que os vigiassem. E se fosse apanhado fora do lugar em que habitava sem o hábito ou com ele dissimulado por outras roupas, perderia «os vestidos, ou a cousa com que trouxer coberto o dito hábito». E as justiças seculares, achando os ditos penitenciados sem as ditas penitências deviam prendê-los e entregá-los aos inquisidores (Capítulo 61 do Regimento de 1613).


(gravura de Goya)

NOTAS:

(1) A inquirição sobre a genealogia era minuciosa e exaustiva, como se depreende das instruções do Regimento de 1613 (Título IV, 12): 
Na primeira sessão será perguntado pela sua genealogia, em forma, declarando donde é natural, como se chama, a idade e ofício que tem, e os nomes de seu pai, mãe e avós paternos e maternos, assim vivos vomo defunctos, e dos transversaes que se lembrar, e donde eram naturaes e moradores, e o officios que tiveram, e com quem foram casados, e se são vivos ou defunctos eos filhos que os ascendentes e transversaes deixaram, e quantas vezes foi casado, e os filhos que teve, ou tem, e de que idade são. E assim declarará de que nação é. e se elle, ou os ditos seus parentes, tem alguma raça de mouro ou judeu - e se lhe perguntará pelo decurso da sua vida, onde se ha criado e com que pessoas, se sabe ler ou escrever, e se aprendeu alguma sciencia,e se andou fora deste Reino, e em que partes esteve, e as pessoas com quem conversou e tratou, e se foi reconciliado, preso, ou penitenciado pelo Santo Officio, ou é neto de relaxado, e se sabe as orações de Christão, com as mais perguntas costumadas.

(2) O banco ou cadeira rasa era para os presos comuns. Os outros, e eram muitas as excepções, tinham direito a cadeira de espaldas, tal como pormenoriza o Regimento de 1613:
Dignidades, cónegos de Sés ou igrejas colegiadas, Provisores, Vigarios e Desembargadores dos Prelados e Relações Eclesiasticas, Priores de Convento ou Collegio, ou Abbades, ou Relligiosos, ou Priores ou Abbades de Igrejas Paroquiais, Fidalgos, Desembargadores, Corregedores, Juízes, Ouvidores, Vereadores ou Cidadãos das Cidade, ou os do governo de Villas notáveis, Doutores ou Licenciados por Universidade, e Bachareis formados pelas Universidades aprovadas, ou os que tem privilegio de Desembargadores, aos Secretarios d’El-Rei, Escrivão da Fazenda da Camara, assim d’El-Rei, como das Cidades ou Villas notaveis, ou pessoas nobres, e por tal conhecidas.

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