quarta-feira, 13 de maio de 2015

O tormento de um homem: o processo de Nuno de Brito Alão

(citação recolhida numa obra crítica de Manuel Borges Carneiro:
Appendice sobre as operações da Santa Inquisição portugueza, 
ou Parte II. do discurso sobre a magia e mais superstiçoes desmascaradas, Lisboa, 1820)


NOTA PRELIMINAR

          A família de Nuno de Brito Alão, os Brito ou Brito Alão, constituiu uma família de cristãos-novos da vila da Pederneira, com laços de sangue com outras famílias de origem judaica da mesma vila, como é o caso dos Lobos ou dos Andrades. Não insistiremos por ora neste ponto, porque ele será aflorado na secção Genealogia deste processo e porque a ele voltaremos num outro artigo. Podemos, no entanto, adiantar que Nuno de Brito Alão é sobrinho de Manuel de Brito Alão (este foi, inclusive, seu padrinho de crisma), que foi administrador da Real Casa de Nossa Senhora da Nazaré, e aclamado autor do livro que sublimou as peregrinações ao santuário mariano da Nazaré: Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazareth, de 1628.

          A família de Nuno de Brito Alão sofreu uma verdadeira perseguição por parte da Inquisição durante perto de um século com um primeiro ciclo de processos que levou, por exemplo, ao encarceramento de Isabel de Brito, irmã do dito Manuel de Brito Alão por volta de 1620 e, que recrudescerá quarenta anos mais tarde com uma nova onda de prisões e denúncias que teve o seu início na região de Coimbra, com primos de Nuno de Brito Alão, e que acabará por conduzir este e os filhos aos Estaus, os temíveis cárceres da Inquisição de Lisboa. Apenas Maria da Silva e Sousa, a esposa de Nuno de Brito Alão, escapou à prisão, por ser cristã velha e por não ter sido implicada em práticas de judaísmo pelos intervenientes nos processos.

          Ser cristão-novo, ter sangue judeu, significava nesses tempos, possuir uma espada de Dâmocles permanentemente suspensa sobre a cabeça. A qualquer momento (às vezes por denúncias vagas movidas por invejas, inimizade ou cobiças de terceiros), esse sangue convertia-se num estigma, e os incriminados podiam perder tudo - mal-grado o papel que desempenhassem na sua comunidade ou a sua participação (fosse ou não por cumprimento do mundo) nos ritos da Santa Madre Igreja: Nuno de Brito Alão era membro de diversas confrarias religiosas da Pederneira e Nazaré; o filho, Nuno da Silva, era cavaleiro da Ordem de Cristo, e mesmo o improvável Manuel de Brito Alão não se salvou de ser alvo de suspeição e (inconsequentes) rumores maliciosos de práticas judaicas.

          Sempre que se fala desta família, sobretudo a propósito do célebre Manuel de Brito Alão, é comum mencionar-se a antiguidade de ambos os nomes de família; os Britos, e os Alões ou Alloens (como no Nobiliário de Famílias de Portugal, a obra de referência de Felgueiras Gaio). Mas preferia referir uma informação veiculada por Meyer Kayserling na sua História dos Judeus em Portugal (editora Perspetiva, São Paulo, Brasil, 2009), que nos diz que o apelido Brito era um apelido comum e popular entre os judeus sefarditas porque a raiz da palavra, B-R-T significava aliança, pacto - e a circuncisão ou aliança da circuncisão, por exemplo, símbolo do pacto sagrado entre Deus e o povo escolhido, denominava-se Brit milá (ברית מילה, em hebraico). Devido à prisão de familiares de Nuno de Brito Alão, ambos os apelidos, Brito e Alão, encontravam-se comprometidos e sob suspeita aos olhos da comunidade, motivo que explica a razão pela qual os filhos de Nuno de Brito Alão e Maria da Silva (para iludir futuras acusações e perseguições) foram batizados com o apelido cristão-velho de Maria da Silva. O que não adiantou muito, devido ao curso dos acontecimentos.

          O processo de Nuno de Brito Alão (Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 9078) encontra-se digitalizado pela Torre do Tombo, e quando aludirmos a uma página específica desse processo, associaremos ao fólio do processo original, o número da página digitalizada com as letras Img (de imagem).


O PROCESSO DE NUNO DE BRITO ALÃO




1 - A prisão e as culpas

          A 16 de Junho de 1670, a Inquisição decreta a prisão de Nuno de Brito Alão por culpas de judaísmo, prisão com sequestro de bens, ou seja, confisco de tudo o que possuía de seu. Nascido e criado na vila da Pederneira, Nuno de Brito Alão fora capitão de ordenança e, na data em que se inicia o seu processo, vivia de sua fazenda na Quinta da Cavalariça, termo de Alfeizerão. É um Familiar do Santo Ofício da cidade de Leiria, Inácio Ribeiro, quem o conduz das Caldas da Rainha, onde ele se encontrava em tratamento, para o Tribunal da Santa Inquisição de Lisboa, entregando-o ao alcaide dos cárceres dos Estaus, Agostinho Nunes de seu nome (Auto de Entrega).

          A denúncia original derivava da confissão de judaísmo de dois cristãos-novos. primos de Nuno de Brito Alão: Lourenço de Sá, bacharel em Leis e morador em Montemor-o-Velho (preso a 30 de Dezembro de 1665), e a confissão da sua irmã, Dona Madalena de Sá (prisão a 5 de Março de 1666), que era religiosa professa no mosteiro de Semide, em Coimbra. A prisão destes dois irmãos deve ter resultado da confissão ou confissões de outros alegados cripto-judeus, mas este documento não nos elucida quem terá sido. O pai de Lourenço de Sá, Francisco da Silva, fora antes disso acusado e condenado por judaísmo pela Inquisição mas, como não o tivessem conseguido prender ou capturar, foi queimado em efígie num auto-de-fé na cidade de Coimbra. Estes dois irmãos confessam as suas culpas de judaísmo (crença na Lei de Moisés e cerimónias judaicas...), associando a essas culpas Nuno de Brito Alão, o seu filho Nuno da Silva e um primo do primeiro, António de Figueiredo de Sousa, que é preso pouco depois em Coimbra, a 23 de Janeiro de 1667.

          As culpas contra Nuno de Brito Alão iriam acumular-se a partir daqui com as denúncias de outros implicados, presos também nas Inquisições de Lisboa ou Coimbra: António de Figueiredo, D. Isabel Loba, Cristóvão de Sá (filho de Lourenço de Sá), D. Isabel de Brito, João d'Eça e Maria de Brito, primos de Nuno de Brito Alão. Numa segunda fase do processo, três anos decorridos sobre a sua entrada nos Estaus, a culpa de Nuno de Brito Alão seria agravada pelas confissões das três filhas: Mariana da Silva e Sousa, Catarina da Silva, e Joana da Silva.

2 - Inventário e Genealogia

          A 9 de Julho de 1670, Nuno de Brito Alão, natural da Pederneira e morador na quinta da Cavalariça. a uma légua e termo da vila de Alfeizerão, é chamado à Mesa dos inquisidores, para uma audiência presidida pelo inquisidor João de Castilho. Prestou juramento sobre os Santos Evangelhos, em que pôs mão, disse o nome e a idade (53 anos) e foi-lhe perguntado se cuidou em suas culpas e as quer confessar nesta Meza, para descargo de sua consciençia, salvação de sua Alma e bom despacho de sua cauza?! Nuno de Brito respondeu que não tinha culpas que confessar. Perante a sua resposta, iniciou-se a indagação sobre os seus bens, ou inventário (fólio 40, Img 78):
Perguntado se tem alguns bens, assim de raiz como moveis, ouro, prata ou dinheiro, dividas ativas ou passivas, acções ou pertenções. 
Disse que tinha hum juro no Almoxarifado das Cizas da Cidade de Leiria de cento, trinta e nove mil, e trezentos e sessenta reis, essas estão a dever os dous quartéis que se acabarão de vencer por São João proximo passado [sic - termo contratual].
Que nos Coutos de Alcobaça termo de Alfeizerão tinha huma quinta que se chama da Cavallariça, que consta de cazas, terras de pão e vinha, e tudo paga de foro ao convento de Alcobaça doze tostões cada anno, elle está a dever do dito foro o anno que acabou pelo natal proximo passado, e este que vai correndo. Outrosy à mulher de António Fernandes Baião, moradora em Evora, coutos de Alcobaça, tinha epotecado metade da ditta quinta por mil cruzados lhe havia dado a [à] razão de juro de seis e quatro por cento, e a bem do principal lhe está a dever os redittos de quatro anos, como constará das quitações que bacharem. E a dita metade da quinta tinha obrigado a António de Britto Freire, morador em Cós, por outros mil cruzados que lhe havia dado a Razão de juro de seis e quatro por cento, e lhe está a dever o anno que acabou em Janeiro próximo passado, e desta divida se lhe há de rebater as decimas que o ditto home lhe não descontou do juro de todos os annos que lhe pagou.  
Item mais, na villa de Pederneira, na rua da Praça tinha humas cazas em que de prezente mora o Padre António de Sousa, Reitor de Nossa Senhora da Nazareth, ao qual as emprestou, sem por isso lhe levar aluger.  
Que de moveis tinha hum prato e jarro de prata e duas ou tres gargantilhas de ouro, huma cadea tambem de ouro, hum quiavo, huma salva e huma palangana, tudo de prata, e todas estas peças estarão em caza de João Bautista, Prior de São Martinho e Vigário em Alfeizerão, nos coutos de Alcobaça, a quem os tinha dado em penhor de cem mil reis que lhe tinha dado a razão de juro e as peças que erão constavão mais ao certo da escritura que fezerão e ditto juro, se achará nas nottas de Antonio Correa, escrivão em Alfeizerão – e que dos mais [bens] moveis não pode dar particular razão, por serem poucos, e de pouco valor, e só os necessários de seu uso. 
          À conta dos seus bens, Nuno de Brito Alão possui diversas dívidas pendentes - como a dívida a um mercador de Lisboa contraída na feira de quinze de Agosto na vila das Caldas, a dois moradores da Pederneira (um deles que chegara há dois anos de Angola), vinte e seis e vinte e dois mil réis; ao vigário da igreja de Famalicão, junto à sua Quinta, o dinheiro com atraso de dois anos pelas missas que mandava dizer todas as segundas-feiras; outra ainda, não declarada pelo réu mas anotada na margem da folha, de trinta alqueires de trigo que devia ao padre Manuel de Santa Maria, almoxarife das Caldas.

          No dia seguinte, aos dez dias do mês de Julho de 1670, Nuno de Brito Alão é de novo chamado à Mesa dos Estaus, a Caza primeira das audiências da Santa Inquisição. Os inquisidores voltam a perguntar-lhe se não tem culpas a confessar e, perante a mesma negativa, fazem as perguntas ordinárias de genealogia (fólio 43, Img 85), que transcrevo na íntegra, realçando a negrito algumas passagens. Note-se que Nuno de Brito Alão, como era método nos processos do Santo Ofício, declara, não apenas os parentes que conhece e a sua quota parte de sangue judeu, mas também aqueles que foram ou estão a ser julgados pelo Santo Ofício, e as suas próprias "habilitações" no seio da igreja católica.


Disse que elle se chama Nuno de Britto Alão, meyo Christão novo, por ambas as vias, que vive de sua fazenda, natural e morador na Villa da Pederneira, de cincoenta e tres annos de idade. 
Eque he filho de Duarte de Britto Allão, meyo X. novo [cristão-novo], que vivia de sua fazenda, natural de Pederneira, e de Helena Ayres Correa, meya X. nova, natural desta cidade, ambos defuntos. 
Não sabe como se chamavão seus Avós paternos nem maternos. 
Por via paterna teve alguns tios, e só sabe o nome a tres, a saber, Manoel de Britto Alão, clerigo do habito de São pedro e Abbade de São João de Campos, junto á Galiza, Christovão de Britto, que falleceo solteiro, e serviu nas armadas deste Reyno no posto de capitão, Lourenço de Britto, que foi cazado com Donna Brittes Soarez, X. velha, de quem teve Manoel, e outro mais a quem não sabe o nome, e ambos morrerão na India, solteiros, Frei Lourenço, não lhe sabe o sobrenome, que falleceu sendo Religioso do Carmo no Maranhão. 
Por via mãi, digo, pela mesma via paterna, teve mais duas tias já defuntas, que se chamarão Guiomar de Britto e Dona Izabel de Britto. 
A ditta sua tia Guiomar de Britto foi casada na Pederneira com Martim Luís, X. Velho, escrivão da Camara da mesma Villa, de quem teve o Padre Pedro de Britto, Beneficiado na Igreja Matriz da Pederneira, Francisco de Brito, que vivia de sua fazenda, cazado com Luíza de Souza, X. Velha, António de Britto, cazado com Inez Bayoa, X. vellha, e todos são defuntos. A ditta sua tia Dona Isabel de Brito foi casada na cidade de Coimbra com António de Figueiredo, X. velho, de quem teve João de Figueiredo, já defunto, que foi cazado não sabe com quem, Dona Antónia de Brito, também defunta, que foi casada com o dito seu primo Antonio de Brito, de quem foi segunda mulher, de quem teve Martim Luis, já defunto, que foi cazado em Angola não sabe com quem, António de Figueiredo, que ainda vive em Angola, onde he cazado não sabe com quem. Teve mais a dita sua tia Dona Izabel de Brito, Dona Francisca de Souza, que foi casada em Alcobaça com Antonio Gomes Lobo, X. Novo, que vivia de sua fazenda, Dona Isabel de Brito, viúva de Adrião Ferreira, X. velho, que vivia de sua fazenda, Dona Mariana de Brito, viúva de Francisco de Abreu, X. Velho, capitão da ordenança. 
Por via materna teve huma tia já defunta, não sabe como se chamou, nem com quem foi cazada, e teve dous filhos, tambem defuntos, hum deles se chamou Jeronimo Correia, e outro Fernão de Ayres, ambos foram casados não sabe com quem. 
Elle, declarante, teve hum irmão, que faleceu há nove annos e se chamou Antonio. 
He casado com Dona Maria da Sylva, X. Velha, da qual tem Nuno da Silva, de vinte e dous anos de idade, Catarina da Silva, de dezoito, Bernarda de dezassete, Joanna de quatorze, Mariana de dez, todos solteiros, outros mais que falecerão de pouca idade.
He christão bautizado, e o foi na igreja Parochial da Villa da Pederneira, pelo Vigario que então era fulano Carvalho, e forão seus padrinhos Martim Luis da Costa e Dona Brittes Soarez.
 
He crismado, e o foi na ditta Igreja, não sabe por que Bispo, e foi seu padrinho o Abbade Manuel de Britto, seu tio. 
Tanto que chegou aos annos de discrição. Hia ás Igrejas e fazia as maes obras de christão, e logo foi mandado persignar e benzer, e disse as orações do Padre Nosso, Ave Maria, creo em Deos Padre, Salve rainha, os Mandamentos da Lei de Deos e os da Santa Madre Igreja. 
Sabe ler e escrever, não estudou sciencia alguma, nem tem ordens. 
Não saiu fora deste Reino, e nelle esteve na Pederneira, em quase todos os lugares dos coutos de Alcobaça, e algumas vezes nesta cidade [Lisboa]. 
Não foi preso nem penitenciado pelo Santo Ofício, e de seus parentes o forão sua Mãe e suas primas Dona Antonia de Brito e Dona Francisca de Souza, Dona Mariana de Figueiredo, e de presente esta ainda presa sua prima Dona Isabel de Brito. 
Perguntado se sabe ou suspeita a cauza porque foi prezo?
Disse que entende que seria (?) prezo por testemunhos falsos de seus inimigos.
Foi-lhe dito que elle foi preso por culpas que commetteo, cujo conhecimento pertence ao santo Offício, e lhe fazem a saber que esta meza se não manda prender pessoa alguma sem preceder bastante informação, e que esta houve para elle declarante ser prezo. Pelo que o admoestão da parte de Christo Senhor Nosso, trate de dezencarregar sua consciençia, e confessar inteiramente a verdade das suas culpas, não impondo sobre sy nem sobre outtrem testemunho falso porque isso he o que lhe convem para descargo de sua consciencia, salvação de sua Alma, e mereçer a misericordia que a Santa Madre Igreja manda conceder aos bons e verdadeiros confitentes. E por dizer que não tinha culpas que confessar nesta Meza, foi outra vez admoestado em forma e mandado a seu carcere. E assinou com o ditto Senhor Inquisidor. Filipe Barboza o escrevi [assinaturas de João de Castilho e Nunno de Britto Allão].

3 - O marasmo do processo e as (três) confissões. O regresso a casa.

          A 9 de Outubro de 1670, Nuno de Brito é de novo chamado à Mesa (fólio 46 v./ Img 92), e perante o inquisidor Fernão Correia de Lacerda, é de novo perguntado pelas suas culpas de forma pormenorizada, e o réu nega tudo e é admoestado pelos inquisidores. O mesmo se passa a 20 e a 27 de Outubro. Por conseguinte, é-lhe lido o libelo que resume as culpas de que é acusado, mas neste libelo, como em todo o processo, o réu nunca chega a saber quem o acusa ou a data a que os supostos factos se reportam; e tudo é descrito de forma genérica: Que o Reo se achou em outro certo lugar do dito tempo a esta parte com certa companhia [comp.ª] da sua nação, e onde se deram conta e declararam...

          Perguntado pelo que tem a dizer do teor do libelo, Nuno de Brito declara que, do que ali ouviu, confirmava que era cristão batizado e que já fora admoestado na mesa, mas contesta tudo o mais pela negativa. Perguntado se tem defesa sua a vir (a apresentar) e se quer estar com um procurador para a formar, Nuno de Brito responde afirmativamente. Os inquisidores dizem-lhe então que, para esse efeito, costumava ali trabalhar o licenciado Francisco Soares Nogueira, e se o réu o queria para seu procurador. Nuno de Brito aceita.

          O licenciado Francisco Soares Nogueira presta juramento como procurador do réu e inicia a sua defesa. Nela, argumenta-se que o réu segue os preceitos da igreja, ouve missa e comunga e assiste a todas as obras de caridade que pode; e como demonstração, lembra-se que o reo he irmão da Mizericordia da villa da Pederneira aonde foi Provedor tres annos continuos, e he Irmão de S. Antonio e S. João, confrarias pobres, nas quais fazia grandes despezas, e da Confraria de N. Sª do Rozario e de N. Sª da Nazaret, e de todas as mais que hão na mesma villa, assistindo nellas com grande piedade, e gastando muita fazenda em seu serviço. Também se apontam testemunhas abonatórias: O padre Reitor de Nossa Senhora da Nazaret, Antonio de Souza Coelho, morador na villa da Pederneira; o padre Pedro Fernandes Cascão; o Padre Pedro Luís, coadjutor; o lecenceado Manoel Nunes, clerigo e pregador; Manoel Tomaz Pereyra, cavaleiro do Habito de Aviz; o filho deste Antonio Pereyra da Costa, cavaleiro do habito de Cristo; Izabel Teixeira, mulher de Manuel Luís, trabalhador; Catherina de Almeyda, que nunca casou, e todos são moradores na ditta Villa da Pederneira.

          A 8 de Agosto e a 9 de Setembro de 1671, os inquisidores chamam de novo o réu à mesa e pressionam-no com novas admoestações.

          Finalmente, o procurador apresenta as contraditas da defesa, e as testemunhas que poderiam ser ouvidas a seu respeito. As contraditas representam a impugnação das testemunhas de acusação do réu mas, nestes processos e neste simulacro de justiça, o réu e o seu procurador desconhecem por completo quem são os acusadores e, por isso, o réu limita-se a esgrimir no escuro: apresenta nomes que pensa poderem tê-lo acusado, e aventa hipóteses que expliquem os motivos porque esses supostos acusadores teriam mentido aos inquisidores a seu respeito. Por exemplo, e aí Nuno de Brito acerta, entre as contraditas, é apresentado o nome de António de Figueiredo, com o qual o réu se desentendeu por causa de um cavalo que o primo lhe pedira emprestado para ir da Pederneira a Coimbra, sem nunca o ter devolvido; e logo avança com o nome do filho deste, João de Figueiredo, que avisara Nuno de Brito que o pai, António de Figueiredo, o denunciara à Inquisição mas que, por sua vez, lhe queria mal porque Nuno de Brito nunca lhe agradeceu ou recompensou pelo aviso, tendo alegadamente ido de forma furtiva à quinta da Cavalariça para lhe causar dano.

          É um processo verdadeiramente kafkiano, que resultava muito proveitoso e eficaz para a Inquisição, porque, tal como nas confissões, enredava em acusações e suspeitas outras pessoas que muitas vezes não tinham nada a ver com o que fora apurado ou averiguado.

          O processo arrasta-se. Nuno de Brito é admoestado repetidamente, mas continua a lutar pela sua causa. A 13 de Junho de 1673, o seu procurador apresenta mais contraditas, com novas testemunhas; e a 30 de Agosto, perante o inquisidor Bento de Beja de Noronha, Nuno de Brito Alão reafirma que não tinha culpas algumas que confessar porque era e fora sempre bom, fiel e católico cristão.

          No entanto, menos de uma semana depois, a 4 de Setembro, Nuno de Brito Alão faz saber aos inquisidores que deseja confessar as suas culpas (fólio 141/Img 281). A causa dessa renúncia é compreensível. Nuno de Brito Alão é um homem doente no cárcere, envolvido num processo sem solução aparente em que a única verdade válida é aquela que os inquisidores entenderem como tal.

          Recebido em audiência, Nuno de Brito Alão é admoestado que pois tomara tão bom conselho como era o de querer confessar voluntariamente nesta Meza suas culpas, lhe convinha muito traselas todas à memoria, e dizer inteiramente a verdade dellas, e todas as pessoas com quem as comunicou, ou estas sejão vivas ou mortas, presas, soltas, reconciliadas, ausentes deste Reyno ou nelle residentes. Nuno de Brito confessa as suas culpas de judaísmo e implica outros participantes nesses ritos judaicos tidos em casas da Pederneira ou na sua própria quinta - todos eles seus parentes e alguns já presos pela Inquisição: António Gomes Lobo, a sua mulher Francisca de Sousa, e a filha de ambos, Isabel Loba, Lourenço de Sá e Dona Madalena de Sá, António de Figueiredo e os seus filhos; Francisco de Brito, Luísa d'Eça e João d'Eça, os primos António de Brito, Isabel de Brito e Dona Mariana de Figueiredo; e o seu próprio filho, Nuno da Silva ("hóspede" dos Estaus desde 1671). A confissão-denúncia segue o modelo habitual: declararam que para salvar sua alma, deixasse a Fé de Christo Senhor Nosso, e cresse, e vivese na Ley de Moises, e que nas Orações que rezasse não dicesse Jesus no fim, guardasse os sabados de trabalho vestindo camisa lavada, ou nova se a tivesse, mandasse alimpar os candieiros e porlhe torcidas novas e azeite limpo, e que quando lhe passasse algum defunto pela porta lançasse fora a agoa que tinha nos cantaros para beber, cuspisse nas sombras dos Christão Velhos, que se confessasse e comungasse por cumprimento do mundo, e que não comesse Lebre, coelho nem peixe de pelle.

          A confissão não traz o desfecho imediato do processo, porque os inquisidores não se encontram satisfeitos com o que ele revelara até então. Admoestam-no novamente e intimidam-no, afirmando que haviam aparecido mais provas de justiça contra si, que fazem publicar. Por outro lado, não neste processo, mas no do seu filho, Nuno da Silva, é indicado que Nuno de Brito Alão terá tido tormento (1), ou seja, que fora submetido a tortura.

          A 17 de Novembro de 1673, diante do inquisidor Pedro Mexia de Magalhães, Nuno de Brito confessa o que mais lembrava de suas culpas, e denuncia também Guiomar de Brito ou de Figueiredo, Antónia de Sousa, e Maria Josefa; e António Coelho, natural de Alfeizerão e morador em Leiria onde era meirinho da correição da cidade.

         Os inquisidores ainda não se mostram satisfeitos e, no dia seguinte, dia 18, em nova audiência, Nuno de Brito Alão associa aos ritos judaicos as suas filhas: Catarina da Silva, Bernarda da Silva, Mariana da Silva (ou Mariana de Jesus) e Joana da Silva (Bernarda da Silva havia já falecido, Catarina encontrava-se já nos Estaus; e Mariana e Joana da Silva tinham sido presas no dia 8 desse mês).

          É pronunciado o libelo contra Nuno de Brito Alão; e a 2 de Janeiro de 1674 (fólio 184/Img 367), publica-se o Termo de Ida e Penitência, que fixa as suas penas:
Termo de ida e penitencias
Aos dous dias do mez de Janeiro de mil seicentos e setenta e quatro annos, em Lisboa, nos Estaos, caza do despacho da santa Inquisição, estando ahi em audiência de manhã os senhores inquisidores, mandarão vir perante sy a Nuno de Britto Alão, reo contheudo nestes Autos, por constar estava instruido, confessado e sendo presente lhe foi ditto, que elle não torne a commetter as culpas porque foi prezo, e processado nesta Inquisição, nem outras semelhantes, porque será castigado com todo o rigor do Direito, e que trate de com sua vida e exemplo, dar mostras de fiel catholico christão, communicando com pessoas de quem possa aprender da catholica doutrina e apartandosse dos que o podem perverter; e que neste primeiro anno se confortará nas quatro festas principaes della, a saber, Paschoa da Resurreição, do Espirito Santo, Assumpção de nossa Senhora e Natal, de que mandará certidão a esta Meza, sem cuja licença não comungará, e que no mesmo anno rezará em cada semana, hum Rozario á Virgem Nossa Senhora, e em cada sexta feira cinco Padre Nossos, cinco AveMarias em honra das cinco chagas de Christo, e que cumpra o que prometteo em sua abjuração, e o que se conthem na carta que lhe será dada, e que lhe assinão por carcere a villa da Pederneira, onde continuará na Igreja que foy sua freguesia, todos os Domingos e Dias santos á Missa ___ e pregação quando a houver com seu habito penitencial, que sempre trará sobre suas vestiduras, o que tudo elle prometeo cumprir sob o cargo do juramento dos Santos Evangelhos que lhe foi dado. De que fiz este termo por mandado dos ditos senhores Inquisidores. Filippe Barboza o escrevi.
          Nuno de Brito Alão integra o auto-de-fé de 10 de Dezembro de 1673 (que se realizou no Terreiro do Paço, em Lisboa), onde faz a abjuração pública e ouve a sentença de joelhos como os restantes condenados. Depois do auto-de-fé, transita dos cárceres dos Estaus para os da vila da Pederneira, como havia sido determinado pela sentença.
          Já com ele preso na Pederneira, a esposa, Maria da Silva, faz uma petição à inquisição nestes termos:

                                                                                             Illmos. Inors.[Ilustríssimos Inquisidores]
Diz Dona Maria da Sylva, mulher nobre, christam velha, e mulher de Nuno de Britto Alam, que sahio reconcilido neste Auto proximo paçado em 10 de Dezembro de 1673; que ella persuadida dos pios conselhos d. alguns Religiozos, a respeito de tornar a recolher em sua caza ao ditto Nuno de Britto Alam seo marido, suppostas as enfermidades, que padece, eser hum homem aleijado, e estar em suma mizeria, padeçendo muitas [m.tas]enfermidades nesta sorte [?]; se rezolve por força dos dittos conselhos, e tam religiozos, e obra de charidade, que nisto julga fazer, a reçeber em sua caza ao ditto seo marido; e pª. o poder fazer com algum credito.
          A decisão dos inquisidores é positiva: Illma, Sª. queira mandar tirar o habito penitencial ao ditto seo marido Nuno de Britto Allam, poiz só tirandoselhe o reçebera em sua caza, e não d.’outra maneira: atentando que he huma mulher christam velha e nobre.

          Abaixo da mensagem, surge a rubrica E. P. Mg. – o Mg. alusivo talvez a Pedro Mexia de Magalhães ou ao inquisidor Manuel de Magalhães de Meneses, que também assina alguns documentos do processo. Mais abaixo a anotação Assine esta petiçºao e torne com seu sinal Reconhecido por Tabelião pub.co Lxª 4. de maio de 674.

          Depois de cumpridas as formalidades, e na data de 30 de Maio de 1674 (fólio 189), Nuno de Brito Alão é chamado pelos inquisidores, e informado por estes do seu parecer favorável à petição da esposa para o acolher em sua casa, ordenando que se lhe tirasse o hábito penitencial; comprometendo-se então Nuno de Brito a cumprir as penitencias espirituais e a não sair do reino sem a licença da Mesa. As partes assinam este documento final.

          Nesta fase, deverá ter sido escrita a anotação que se lê na folha de rosto do processo: 

Informados que se lhe tire o habito á petição de sua m.er.

4 - A doença de Nuno de Brito Alão

          Os problemas de saúde de Nuno de Brito Alão são mencionados em diferentes documentos do processo, e parecia serem frequentes as suas estadias nas Caldas para tratamento. Além da alusão no auto de entrega; Mariana de Jesus da Silva, no seu depoimento, diz que o pai lhe falou da Lei de Moisés quando se encontravam na vila das Caldas em casas em que estavam pousados. Nas contraditas, também é dito que João de Figueiredo, querendo prevenir Nuno de Brito Alão que a Inquisição podia estar no seu encalço, procurou-o e foi às Caldas, onde o Reo se estava curando.

          Mais elucidativa, parece ser a petição de Maria da Silva, que fala de enfermidades que o marido padece e ser este um homem aleijado.

          De toda a forma, quem seguir este processo não pode deixar de notar que a assinatura de Nuno de Brito Alão diverge muito de uns documentos para outros. Nas duas primeiras assinaturas, mantém o apelido Allão, mas depois prescinde dele, e a própria assinatura deforma-se e estiola-se num lamento caligráfico.

          Seguindo essa impressão, perguntei a uma grafóloga profissional, Margarida Neto Macedo (2), se aceitaria analisar essas assinaturas de Nuno de Brito Alão e emitir um parecer. Margarida Macedo, amavelmente e com vivo interesse, aceitou o repto (e aqui endereço-lhe os meus agradecimentos por isso), frisando, no entanto, os condicionantes dessa análise: o de não ter outros textos escritos pelo punho de Nuno de Brito Alão, e o de estudar a partir de páginas fotografadas e não do próprio original em papel. Inteirei-a de alguns pormenores gerais do processo (ela preferiu não ter muita informação à partida, para ser mais independente na sua análise da letra), e transmiti-lhe duas páginas aleatórias do processo para ela se inteirar da forma como se escrevia na época e um ficheiro com dez amostras da assinatura do réu, dispostas por ordem cronológica: as duas primeiras assinaturas do réu no processo, e as restantes oito recolhidas ao longo do processo até à sua conclusão. Uma análise mais profunda poderia eventualmente ter sido realizada tendo como objeto todas as assinaturas de Nuno de Brito Alão no seu processo (que andará perto das trinta), mas aqui a lacuna e a falha são da minha inteira responsabilidade. A análise de Margarida Neto Macedo aos elementos que lhe foram transmitidos, e que transcrevo na íntegra, foi a seguinte:
A escrita de Nuno de Brito Alão revela uma mente activa, com boa capacidade de análise e discriminação e uma forte necessidade de captar o essencial. Motivado por um sentido prático e realizador, era pessoa diligente e escrupulosa que gostava de finalizar um trabalho bem feito. Contudo, mantinha a supremacia da lógica sobre o senso comum e concebia a vida a partir da sua concepção ideal, inspirando-se em princípios e valores.Tinha um instinto protector para com os demais, sendo pessoa emocionalmente contida. Na sequência temporal das dez assinaturas analisadas, as duas primeiras indicam um abalo emocional que pode corresponder a um estado de sobressalto e de choque que se repercute no equilíbrio psico-somático, havendo um agravamento na segunda, ou mesmo espasmos com fadiga muscular anormal. A partir da terceira assinatura até à nona, assiste-se a um crescendo de dificuldades motoras que indicam uma lesão na medula espinal. Na última assinatura encontra-se uma ligeira recuperação do estado motor, mas surge um estado mental de reservas e cautelas obsessivas.

Notas:
(1) No processo de Nuno da Silva pode ler-se, e cito: «em os quatro de Setembro de 1673 [Nuno de Brito Alão] começou a confessar Suas culpas e disse deste Reo o seguinte; e por não satisfazer, foi segunda vez acuzado, e lhe foi feita publicação de mais provas de justiça a que não veyo com Contradittas. Tem assento de tormento, e neste estado está seu Processo» (Processo de Nuno da Silva, fólios 21v.-22, Img 46-47).
O assento de tormento (Regimento... de 1613, XLVII) especificava qual o tormento que os deputados e inquisidores haviam decidido que o réu sofresse: «o género de tormento que se ha de dar, e se hade ser esperto, ou não, e quantos tractos hade haver».

(2) Margarida Neto Macedo, licenciada em Filosofia e ex-docente do ensino secundário, dedica-se desde 1989 ao estudo e aplicação da Grafologia, sendo palestrante e prestando serviços a empresas e aconselhamento pessoal. O seu trabalho articula-se em torno do blogue Letra Aberta e da sua página no Facebook.

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