sábado, 23 de maio de 2015

As "culpas" do sangue: as filhas de Nuno de Brito Alão

1 – FRONTISPÍCIO 

          Os processos das filhas de Nuno de Brito Alão possuem muitas características comuns que nos levam a considerá-los em conjunto. As três são presas em datas próximas e são reconciliadas no mesmo Auto de Fé, realizado no Terreiro do Paço a 10 de Dezembro de 1673. Documentos como a Sentença ou o Termo de Ida e penitencias, apenas divergem no nome da ré e numa ou outra palavra menos dócil à cópia. O que diferencia os processos é o modo como cada uma delas recebeu o ensino da Lei de Moisés, e como justificaram o abandono da religião católica ao serem interrogadas sobre isso na sessão de Crença – as suas estratégias de sobrevivência, no fundo.
          O processo do irmão, Nuno da Silva, é distinto destes (e será tratado subsequentemente), por ter negado durante três anos as suas culpas de judaísmo e só ter chegado à confissão depois de ser sumariamente condenado pela inquisição, o que foi levado em conta pelos inquisidores na hora de lhe atribuírem uma sentença.
          As três irmãs (nome estelar) são Catarina da Silva (ou Catarina da Silva e Sousa), a mais velha, Joana da Silva, e Mariana da Silva (ou Mariana de Jesus ou Mariana de Brito) – em todas elas, é o apelido da mãe, uma cristã-velha nascida em Alcobaça, que prevalece.
          No processo de Nuno da Silva, na sessão de Genealogia, ele evoca a história da sua família, intimamente próxima ao infortúnio e à dor:
Ele declarante teve dous Irmaos e seis Irmãas, a saber, Henrique, que falleceo de cinco annos, Antonio que falleceo de peito, duas de nome de Helena que fallecerão de pouca idade, Dona Catherina da Sylva, Dona Bernarda da Sylva, Dona Joanna da Sylva, e Dona Marianna da Sylva, e esta que he a mais moça será de doze annos de idade, e todas as quatro são solteiras.
          Bernarda da Silva faleceu também em Maio de 1673, com dezanove anos – falleceo solteira, referirão laconicamente as irmãs nos seus depoimentos. O seu nome aparece ao lado do nome de Catarina da Silva quando o promotor inventaria as culpas para pedir aos inquisidores um mandado de prisão contra elas e, curiosamente, isto ocorre numa data em que Bernarda da Silva já tinha morrido. Isto terá sucedido porque o Santo Ofício ainda não possuía a informação documentada sobre o seu óbito, ou porque, por bizarro que pareça, não era insólito e podia acontecer a Inquisição acusar e condenar por heresia pessoas já falecidas, o que neste caso, talvez não tenha chegado a acontecer (e estamos a ironizar) por Bernarda da Silva não possuir bens próprios (fazendas) para serem sequestrados [1].
          Para não nos alongarmos no apontamento sobre cada um dos processos, colocamos em anexo (formato PDF), indicado nas notas de rodapé, três documentos ilustrativos, a saber, a Sentença de Catarina da Silva (original e transcrição), a Abjuração em Forma da mesma (o documento impresso que se lia no Auto de Fé) e o Termo de Ida e penitencias (original e transcrição) da irmã caçula, Mariana.

2 – CATARINA DA SILVA


Processo de Dona Catherina da Sylva, e Souza
parte de x. nova, solteira, filha de Nuno de Britto Alão
natural da villa da Pederneira, e moradora na Quinta
da Cavallariça, termo da Villa de Alfeizerão
 (Processo de Catarina da Silva, Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 769).

           O mandado de prisão contra Catarina da Silva e Bernarda da Silva é emitido a 8 de Agosto de 1673 (fólio15/Img29), e Catarina da Silva chega aos Estaus a 28 de Agosto de 1673, conduzida por um Familiar do Santo Ofício da vila da Pederneira, António Pereira da Costa. Como chegassem tarde da noite, e a porta do pátio estivesse já fechada, Catarina foi confiada a Manuel Martins, taberneiro da Inquisição e alcaide do cárcere da penitência que, no dia seguinte, a entregou ao alcaide dos cárceres da Inquisição, Agostinho Nunes (fl.6/Img11).
          A denúncia inicial que a incrimina e a Bernarda da Silva, foi proferida por Isabel de Brito, prima direita do seu pai (a sua mãe homónima, era irmã de Duarte de Brito, avô paterno das jovens). Isabel de Brito, depois de quatro anos em que negou as suas culpas de judaísmo, iniciou a sua confissão de mãos atadas [2], dizendo das duas irmãs, que havia estado com elas na sua casa da Pederneira, juntamente com Francisco de Sousa, filho do seu sobrinho António de Figueiredo, e que estando os quatro reunidos, haviam declarado que criam e viviam na Lei de Moisés. A outra culpa contra Catarina da Silva e as três irmãs, nasce das declarações de Inês Maria, filha de Francisco de Brito da Costa: quatro anos antes, na casa do pai na Pederneira, achou-se com elas, e todas declararam a sua crença na religião de Moisés, e nas cerimónias realizadas em sua observância.
          No dia seguinte, 29 de Agosto, Catarina faz saber à Mesa dos inquisidores que desejava confessar as culpas de judaísmo que tinha cometido. É recebida em audiência, estando aí presentes Pedro Mexia de Magalhães, do Conselho Geral do Santo Ofício, e o inquisidor Bento de Beja de Noronha. Catarina prestou juramento, e disse chamar-se Dona Catherina da Sylva, solteira de vinte e oito annos de idade, natural da villa da Pederneira e moradora na quinta da Cavallariça, termo da villa de Alfeizarão. Por ser menor, foi chamado à Mesa o alcaide dos cárceres, Agostinho Nunes, e perguntado se aceitava ser curador da dita ré menor para a ajudar e aconselhar, ao que este aceitou a curadoria da jovem.
          Inicia-se então, formalmente, a confissão (fl.18/Img35). Catarina declarou que doze ou treze anos antes, na Pederneira, na casa do seu pai, Nuno de Brito, se achou ali com ele, com o seu próprio irmão, Nuno da Silva, com Dona Mariana de Figueiredo e com a irmã desta, Isabel de Brito; e estando todos os cinco, «lhe disse o ditto seu pay Nuno de Britto que cresse e vivesse na Ley de Moyses, porque era sã e boa e verdadeira para a salvação da alma, e não a de Christo Senhor Nosso, e por sua observancia, vestisse camisa lavada à sexta feira, e no mesmo dia jejuasse na forma ordinaria comendo ao jantar, e noite, e deixasse de comer carne de porco, lebre, coelho epeixe de pelle, porque elle ditto seu Pay assim o fazia, e cria e vivia na ditta Ley, com o ditto intento, e os dittos seu Irmão Nuno da Sylva, e parentas Dona Marianna de Figueiredo, e Dona Izabel de Britto aprovarão o ditto ensino, e disserão a ella confitente que fisesse o que lhe dizia o ditto seu Pay, declarando que também crião e vivião na ditta Ley de Moyses com o ditto intento de salvarem suas almas, e por sua guarda fazião as dittas cerimonias; e persuadida ella confitente do ditto ensino, parecendolhe que o ditto seu pay plo ser [por sê-lo] a encaminhava bem, e lhe dizia o que mais lhe convinha, se apartou logo alli da Fè de Christo Senhor Nosso, e se passou à Ley de Moyses, crendo e esperando salvarse nella,e assim o declarou ao ditto seu Pay, e mais pessoas (…)».
          Confessou mais Catarina, narrando que estivera na Pederneira, em casa de Francisco de Brito, na companhia deste, e dos seus três filhos (João D’Eça, Josefa D’Eça e Inês Baioa) e estando todos os cinco, acordaram que partilhavam a mesma crença e práticas.
          A 2 de Setembro, em nova audiência (fl.21v./Img42), Catarina prossegue com as mais culpas de judaísmo de que é lembrada, narrando que dez anos e um mês antes, na Pederneira, na casa de António Gomes, marido de Francisca de Figueiredo, cristã-nova, se achou aí com Isabel Loba, filha deles, e um primo desta, António de Figueiredo, que vivia na Lamarosa, Coimbra, mas viera em romaria à Nossa Senhora da Nazaré com os seus dois filhos, João e Luís, e ficaram alojados na casa de Isabel Loba – e estando todos os cinco reunidos, Catarina ouviu deles que também seguiam a mesma religião proscrita.
          Na sessão de Genealogia de 11 de Setembro de 1673 (fl. 24/Img 47), Catarina diz que os pais são moradores na quinta da Cavalariça, termo de Alfeizerão, e indica os parentes de que se recorda das duas vias, a relação entre eles e se são ou não cristãos-novos. Declara que sabe ler e escrever e que é cristã batizada, e foi batizada na igreja matriz da Pederneira pelo padre Vicente Nunes, tendo como padrinho Manuel Gomes Pereira.
          Lembra, em jeito de confissão, que passara a crer na Lei de Moisés em casa do seu pai, Nuno de Brito, e que nesse ensino e comunicação de seu pai se achava tambem prezente sua irmãa Dona Bernarda da Sylva que falleceo em Mayo passado. Mas adianta que continuara na ditta crença [Lei de Moisés] fazendo as dittas cerimonias athe o dia antecedente a sua confissão em que se apartara della.
          Na sessão de Crença (fl.27v./Img53), de 22 de Setembro, reafirma o mesmo por outras palavras: Disse que a ditta crença lhe durou the confessar suas culpas nesta Meza, e então se apartou della por ser Deos servido de a allumiar.
          Catarina da Silva apresentará ainda mais confissões: a 25 de Setembro (fl.30/Img59) lembra a crença proferida na religião mosaica por seu pai, irmão e irmãs na quinta da Cavalariça, seis ou sete anos antes; e, já no epílogo do processo, uma reunião semelhante havida na casa de Francisco de Brito, na Pederneira, na qual esteve com Dona Guiomar de Brito, meia-irmã dele, e Joana da Silva.
          Na Sentença (fl.37/Img73) [3], é declarado que Catarina da Silva é recebida ao grémio da Santa Madre Igreja, sob condição de abjurar os seus heréticos erros no Auto de Fé, de se instruir nos mistérios da fé e cumprir as penas espirituais estipuladas, com cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores. No processo consta a sua Abjuração em Forma [4], que a acompanha ao Auto de Fé; e na publicação da sentença, descreve-se esse Auto Público de Fé:
Publicada foi a sentença assima e atras escritta á Ree Dona Catherina da Sylva contheuda nestes autos no Auto publico da Feé, que se celebrou no terreiro do Paço desta Cidade Domingo dez do mez de Dezembro de mil seis centos settenta e tres annos, em prezença de suas Altezas, dos Senhores do Conselho geral, os Senhores Inquisidores, Deputados e mais Ministros do Santo Officio, o Nuncio Apostolico, alguns Bispos, muitos Religiosos, o Cabido, e muitas outras pessoas da Nobreza, e povo. Do que fiz este termo por mandado dos dittos Senhores Inquisidores. Manoel Martins Cerqueira o escrevi.
          No Termo de Ida e penitências (fl.42/Img.83), transparece a condescendência dos inquisidores para com esta jovem que confessou com presteza, mostrou-se arrependida e implorou misericórdia, decidindo eles que ela podia ir em paz para onde quisesse, desde que não saísse do reino sem licença da Mesa, e cumprisse o que prometera na sua abjuração em forma e na Carta que lhe fora entregue (as irmãs beneficiarão da mesma atitude e penas).

3 - JOANA DA SILVA
Processo de Dona Joanna da Sylva, 4º parte
de x. nova, solteira, filha de Nuno de Britto Alão
que foi Capitão da Ordenança, natural da Villa da
Pederneira, e moradora na Quinta da Cavallariça
termo da Villa de Alfazeirão
          (Processo de Joana da Silva, Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10732).

          Em resposta ao mandado de prisão decretado pela Inquisição a 8 de Agosto, e do qual também constava a sua irmã Mariana, Joana da Silva é conduzida aos Estaus e entregue nas portas dos cárceres a 8 de Novembro de 1673 (fl.6/Img.11).
          A primeira Culpa indiciada no processo partiu do processo da sua parenta Inês Maria, de dezoito anos, filha de Francisco de Brito da Costa, que a incrimina como um dos participantes na reunião de cristãos judaizantes em casa de Francisco de Brito, onde também estiveram presentes as irmãs Catarina, Bernarda e Mariana da Silva. A segunda Culpa procede do processo da sua irmã mais velha, Catarina, e reporta-se à reunião familiar tida na quinta da Cavalariça, onde a família morava, e onde Nuno de Brito desenvolveu o ensino da Lei de Moisés. A terceira Culpa é aduzida por Mariana da Silva, que narra uma conversa tida entre as duas irmãs na quinta da Cavalariça, onde ambas confessaram que crião e vivião na Ley de Moyses.
          Na sessão do Termo de Inventário (fl.17/Img.33), realizada a dez de Novembro, à pergunta se possuía bens de raiz ou móveis, Joana declara que não possuía bens alguns porque era filha familiar e se sustentava com o que lhe davão seus Pays, em cujo poder estava (o mesmo declararam os irmãos).
          No mesmo dia e fazendo saber que queria confessar as suas culpas, e por ser menor, é chamado também o alcaide dos cárceres, Agostinho Nunes, que é convidado a exercer, e aceita, a curadoria da jovem (Termo de Curador, fl. 19/Img37).
          Na Confissão, havida diante do inquisidor Bento de Beja de Noronha, revela que a sua iniciação nas práticas de judaísmo se devera à sua prima Isabel de Brito [5]. Parecendolhe que a ditta Dona Izabel por ser sua parenta e amiga a encaminhava bem, e lhe disse o que mais lhe convinha se apartasse logo alli da Fé de Christo Senhor Nosso de que tinha bastante noticia e instrucção, e se passasse à crença da Ley de Moyses e assim o declarou à ditta Dona Izabel, dizendolhe que na ditta Ley de Moysés ficava crendo com o ditto intento, e por sua observancia faria as dittas ceremonias, como com effeito fez até agora, que alumiada pelo Spirito Santo concluio que hia errada, e se resolveo a confessar suas culpas e a deixallas, e de as haver commettido está muito arrependida [e] pede perdão, e que com ella se uze de misericordia.
          A misericórdia era uma moeda de troca e, para a merecer, Joana (como Catarina e Mariana), talvez instruída em casa da sua mãe antes da prisão, denuncia outros parentes, quase todos incriminados anteriormente pela Inquisição. Diz que, em casa de Dona Isabel de Brito na Pederneira se achara com ela e com a irmã dela, Mariana de Figueiredo, numa reunião de cristãos judaizantes; e que em casa dos seus pais, na Pederneira, se achou numa reunião semelhante com Nuno de Brito Alão, e os seus próprios irmãos, Nuno da Silva, Catarina, Bernarda e Mariana. Numa outra reunião, havida em casa do parente Francisco de Brito, implica este e os seus filhos – João D’Eça, Inês Josefa e Josefa Maria – nas mesmas crenças e cerimónias. Dois meses depois destas confissões, a 3 de Janeiro de 1674, Joana fará uma nova denúncia: a de Dona Guiomar de Brito, filha de António de Brito que se encontrava então acompanhada pela sua própria irmã Catarina.
          Na sessão de Genealogia (fl.23v./Img.46), Joana da Silva pormenoriza que os seus avós maternos se chamarão Ruy da Sylva e Souza, que fazia viagens á India, e Dona Catherina de Sousa, xx. Velhos [cristãos velhos], naturais e moradores da dita villa de Alcobaça, e que da parte da sua mãe teve uma tia, já defunta, Bárbara da Silva, que fora religiosa professa no mosteiro cisterciense de Cós. Sobre si mesma, declara que fora batizada na vila da Pederneira e que o seu padrinho de batismo se chamava Manuel Gomes, não era crismada, não sabia ler nem escrever, e não sahio fora deste Reyno, nem da ditta villa da Pederneira e quinta da Cavalariça.
          O processo de Joana da Silva é considerado concluso a 17 de Novembro de 1673. A Mesa dos Inquisidores promulga a sua sentença, e Joana da Silva integra o Auto de Fé de 10 de Dezembro de 1673. A 10 de Janeiro de 1674, é publicado o seu Termo de Ida e penitencias (fl. 37/Img.73) onde é levantada a pena de cárcere, e se estipula as penas e obrigações espirituais que teria de cumprir depois de libertada.

4 – MARIANA DA SILVA
Processo de Dona Marianna da Sylva, que
tem hum quarto de Christaã nova, solteira,
filha de Nuno de Britto Alão, que vivia
de sua fazenda, natural da villa da Pe
derneira, moradora na quinta da Caval-
lariça, termo da de Alfeizarão, preza
nos carceres da Inquisição desta cidade de
Lisboa
          (Processo de Mariana de Jesus, ou Mariana da Silva e Sousa, Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 72)

          Mariana da Silva, é entregue nos Estaus de Lisboa no mesmo dia da sua irmã Joana. Elas são presas com sequestro de bens, em obediência a um mandado (fl.19/Img. 37) que, ordenando a sua prisão por haver culpas bastantes, ressalva que se mandou que se esperasse mais provas (as subtilezas do Santo Ofício).
          As suas culpas de judaísmo possuem as mesmas fontes: Inês Maria, filha de Francisco de Brito da Costa (fl.9/Img.17), e a sua irmã Catarina da Silva; às quais se juntará depois o depoimento de Joana da Silva.
          A Mesa pedirá os assentos de batismo das três irmãs, que são adicionados ao processo de Mariana da Silva (fl.22/Img.43):
Treslado dos açentos do L.º dos bautizados desta villa da Pederneira dos anos de 630. té o prezente.    
Aos dous de fevereyro de 647. bautizei Caterina f.ª de Nuno de Brito, e de Dona M.ª s.m. foram Manoel Gomes Pereira e Maria do Souto.O Vigairo V.te Nunes [Vicente Nunes][Na margem está anotado 26, i.e., a idade, 26 anos] 
Aos 24. dias de junho de 1633. annos Baptizei a Joanna fª de Nuno de brito e de sua molher Dona Maria, forão padrinhos o capitão Manuel Gomes Prª [Pereira] e dona Mariana, e pera que conste fis este acento dia mês era ut sup [ut supra: como acima]. O pe. Fr.o Carv. Da Sylva [Francisco Carvalho da Silva][na margem, a idade: 20 an.] 
Aos 7 de Junho de 1655. Baptizei a Mariana, f.ª de Nuno de brito alam e de sua molher D. Maria, forão padrinhos Inácio Ferreira, m.or [morador] em Tomar e soror Mª dasunção, freira professa no mosteiro de S. João destremos [Estremoz]; E assentei neste livro por hum escrito que mandou em que pedia fizesse esta lembrãça e pª que conste fos este açento dia mês era ut sup. O pe. Fr.co Carvª da Sylva.
[na margem: 18 annos]
          A 10 de Novembro de 1673, no mesmo dia de Joana, e depois de outorgada a curadoria de Agostinho Nunes, alcaide dos cárceres, a menor Mariana da Silva inicia a sua confissão (fl.27/Img.53), que prossegue no dia 11:
Disse que haverá tres ou quatro annos na quinta da Cavalariça, legoa e meya da villa de Alfeizerão, e huma da Pederneira, em caza de seus Pays, se achou com Branca, a Bruxa de alcunha, não sabe se era x. nova, agora defunta, dizia ser das partes da ditta villa de Alfeizerão, acostumava vir muitas vezes pedir esmolla á ditta caza, e estando ambas sós, conversando, lhe ensinou a ditta Branca que vivesse na Ley de Moysés, que era boa para a salvação da Alma, que seria rica e teria muita ventura, e por sua guarda rezasse hum terço de Padre Nossos sem lhe declarar a quem os havia de offerecer, e jejuasse hum dia á Raynha Esther, estando em todo elle sem comer, nem beber senão á noite, porque ella assim o fazia, cria e vivia na ditta Lei com o ditto intento, e persuadida ella confitente do ditto ensino por ser rapariga, e lhe parecer que seria bom o que a ditta molher lhe ensinou, ficou dalli por diante crendo e vivendo na ditta Ley, esperando Salvarse nella e ser rica, e ter ventura, como ella lhe disse, declarou á ditta Branca que faria o que ella lhe dizia, como fez, e a ditta crença lhe durou athe Domingo passado, e então a deixou por entender que não devia ser boa, por occazião de ver que tinhão prezo a seu Pay e a outras pessoas, e ainda que vivendo na ditta ley o tempo que tem declarado, nunca se apartou da Fee de Christo Senhor Nosso antes a praticava sempre em seu coração, encomendandosse a Jesus Christo, e aos Santos, e fazendo as mais obras de Christã, entendendo que não era pecado crer na ditta Ley de Moysés, e só despois que vio prender a seu Pay começou a duvidar, despois no tempo em que tem ditto acabou de conhecer que não era boa e da culpa se há que acommetteo, está muito arrependida, pede perdão e que se uze com ella de misericordia. Com a ditta molher não [se] passou mais.
          Confessadas as suas culpas de judaísmo, indica as pessoas com quem partilhava essas crenças e práticas. Josefa e Inês, filhas de Francisco de Brito, escrivão, com quem se achou em reunião três anos antes nas casas que os seus pais tinham na vila da Pederneira, quando Mariana aí se encontrava com a sua mãe por ocasião de uma romaria à Nossa Senhora (Nazaré). Um ano antes, se achara com a sua irmã Catarina, e haviam falado na sua crença na Lei de Moisés quando se encontravam na quinta da Cavalariça, na casa de seus pais. Três anos e meio antes, nas Caldas, achou-se com o seu pai Nuno de Brito, em cazas em que estavão pouzados, e deram-se conta e declararam que criam e viviam na Lei de Moisés. A quinta da Cavalariça, morada da jovem, foi o cenário esperado para conversas sobre crenças e ritos judaicos tidas com Nuno da Silva (irmão della confitente, natural da villa da Sella e morador na dita Quinta), Joana da Silva, Francisco de Brito e o seu filho João D’Eça; e Bernarda da Silva.
          Na Genealogia (fl.35/Img.69), Mariana diz que se chamava Mariana de Jesus ou Silva, e que tinha de quinze para dezasseis anos (dado que contradiz a informação do padre Francisco Carvalho da Silva), e que fora batizada na Igreja matriz da Pederneira pelo padre João Lopes Velho, tendo o alcaide Inácio Ferreira como padrinho de batismo. Diz também que sabe ler e escrever, e que nunca saíra do reino, e nele estivera nas Caldas oito meses, na vila da Pederneira e na quinta da Cavalariça.
          Na sessão de Crença (fl.38v./Img.76), afirma que a crença na lei de Moisés lhe durou the [até] cinco dias antes de sua Confissão (como tem ditto) e então a deixou por ser Deos servido de a alumiar por meyo de sua prizão.
          A Sentença e o Termo de Ida e Penitencias [6] de Mariana da Silva, são idênticas às das irmãs mais velhas, ficando Mariana livre do cárcere, podendo ir para onde quisesse, desde que não se ausentasse do reino sem licença da Inquisição.
          O desfecho destes processos sugere-nos a imagem de uma família parcialmente reconstituída depois da perseguição que a devastou. A casa de Maria da Silva, a mãe, na Pederneira, as jovens filhas de regresso do sombrio cárcere, e Nuno de Brito Alão (um homem doente e em suma miséria) devolvido ao seu lar e à sua família por particular benevolência do Santo Ofício. Apenas Nuno da Silva terá um destino diverso, imposto pela pena de degredo.







[1] Regimento da Inquisição do ano de 1613, Título XXVII:
Achando os Inquisidores informações bastantes de testemunhas, por onde pareça que algumas pessoas podem ser convencidas de heresia, e se achar serem falecidas, por informação bastante, e serem christãos baptizados (a qual informação de testemunhas se tirará a requerimento do Promotor) os Inquisidores mandarão ao dito Promotor, que os accuse, a fim de serem declarados por herejes, e apóstatas, e que seus corpos e ossos sejam desenterrados, e lançados das Igrejas, e cemiterios ecclesiasticos, e condemnada sua memoria e fama, declarando suas fazendas a quem devem pertencer, segundo a Bulla da Santa Inquisição.

[2] Não é uma expressão figurada, mas parte de um estratagema de terror psicológico dos inquisidores: notificaram Isabel de Brito que estava condenada («convencida») por crime de heresia e iria ser relaxada à justiça secular e compareceria no Auto de Fé do Domingo seguinte, 21 de Junho de 1671, para ouvir a sua sentença. E logo ali lhe ataram as mãos. Com as mãos atadas e sendo ouvida em confissão por um padre da Companhia de Jesus, Isabel de Brito convenceu-se que iria ser queimada no Auto de Fé e confessa as suas culpas (Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10092, fólio 109). No final da confissão, escreve o notário: e sendolhe lida esta sua confissão, e por ela ouvida, e entendida, disse estava escritta na verdade. E por a Ree estar de mãos atadas, de seu consentimento assinei  eu Notario por ella com o ditto senhor Inquisidor. Filipe Barbosa o escrevi.
Isabel de Brito foi sentenciada a cinco anos de degredo no estado do Brasil, tendo que envergar um hábito penitencial perpétuo com insígnias de fogo. Estas, acrescidas à costumada cruz amarela do sambenito, expunham a resistência da condenada em confessar as suas culpas.

[3] Sentença, na íntegra, com a respetiva transcrição: SENTENÇA (ficheiro PDF).

[5] A severidade demonstrada pela Inquisição para com Isabel de Brito e Nuno de Brito Alão, tinha muito a ver com o facto de terem sido acusados de ensinarem e difundirem a herética religião mosaica, e serem causadores da apostasia em fiéis católicos.

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