Muitos
géneros de peçonha há, mas quanto a mim, a mais refinada
de todas é a que se faz
do ódio, porque mata a alma ao seu
dono, e juntamente o seu corpo; doença tão natural deste Reino
como aborrecida em todos os demais, onde dos nadas dos seus naturais
fazem muito, e nós do muito dos nossos fazemos nada: a eles basta
terem um remendo de pano bom para fazerem a capa toda;
e se cobrem com ele, e por mais fino que seja o nosso,
se tiver algum pequeno retalho que o não pareça. por esse
se regulam, e o dissipam todo
se tiver algum pequeno retalho que o não pareça. por esse
se regulam, e o dissipam todo
(Manuel de Brito Alão, Prodigiosas histórias e
miraculosos sucessos acontecidos na casa de
Nossa Senhora da Nazareth, página 116, Lisboa, 1637))
miraculosos sucessos acontecidos na casa de
Nossa Senhora da Nazareth, página 116, Lisboa, 1637))
O PROCESSO DE NUNO DA SILVA (Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 9079)
Com a data de 21 de Junho de 1671, é emitido contra Nuno da
Silva o mandado de prisão com sequestro de bens (fólio 3/Img.5) [1]
e quatro dias depois, Nuno da Silva é entregue nos Estaus (Auto de Entrega,
fl.4/Img./), a Agostinho Nunes, alcaide dos cárceres secretos da Santa
Inquisição de Lisboa, por Antonio Pereira, Familiar do Santo Ofício da vila da
Pederneira, presumivelmente, o mesmo que aí conduzirá a sua irmã Catarina dois
anos mais tarde.
As culpas de judaísmo contra Nuno da Silva (fl.6/Img.11)
correm paralelas às do pai, Nuno de Brito Alão. A primeira acusação parte de
Dona Madalena de Sá, religiosa professa no Mosteiro de Semide, termo da cidade
de Coimbra. Madalena é filha de Francisco da Silva, prebendeiro, e de Dona
Catarina de Sá, natural de Coimbra. A confissão original da religiosa, feita ainda
no mosteiro, é repetida nos cárceres da Inquisição de Coimbra. Afirmou que
estivera com Nuno de Brito Alão numa grade do mosteiro (a grade do parlatório)
onde declararam ambos que viviam segundo a Lei de Moisés; e Nuno de Brito
ter-lhe-ia confidenciado que se comunicava na mesma crença com o filho Nuno, e
com um primo deles, António de Figueiredo. A prisão deste em 23 de Janeiro de
1667, e a sua confissão, reforçaria o processo. António de Figueiredo era
natural do lugar do Taveiro, e morador no da Lamarosa, freguesia da vila de
Tentúgal, e era primo de Nuno de Brito Alão por via paterna, essa via pela qual
detinha no sangue mais de meio quarto de
christão novo. Na sua confissão rememora uma reunião havida seis anos antes
na Pederneira com Nuno de Brito e o seu filho Nuno da Silva, cavaleiro do
hábito de Cristo; em que todos haviam declarado as suas crenças judaicas.
Outras culpas se somariam a estas ao longo do período de
encarceramento de Nuno da Silva. A já mencionada Isabel de Brito, tia segunda de Nuno da Silva, e que
possui um oitavo de cristã-nova; que confessou de mãos atadas (fl.10/Img.19).
João D’Eça, primo do réu e filho de Francisco de Brito, que evocou uma reunião
tida com Nuno da Silva na sua casa na quinta da Cavalariça. Mais as culpas
transmitidas pela confissão de Nuno de Brito Alão, seu pai, a 4 de Setembro de
1673, de Dona Mariana de Figueiredo, irmã de Isabel de Brito; e das três irmãs
do réu, Catarina, Joana e Mariana.
Com as culpas apuradas até à data, procede-se ao Termo de Inventário no dia 24 de Julho
de 1671 (fl.32/Img.63), nos Estaus e casa
primeira das audiências da Santa Inquisição. Perante os inquisidores, Nuno
da Silva presta juramento, depondo a mão sobre os Santos Evangelhos, e
apresenta o seu nome, que tinha quarto de cristão-novo e era cavaleiro do
hábito de Cristo; diz quem são os pais, que era natural da vila da Pederneira e
morador na dita quinta (da Cavalariça) e que tinha vinte e seis anos de idade.
Perguntado se quer confessar as suas culpas, Nuno da Silva disse que não tinha culpas que confessar
porque era e fora sempre bom, fiel, e catholico christão. Perguntado sobre
os seus bens, responde, que era filho
familiar e que não tinha bens alguns, nem de raiz, nem moveis, e se alimentava
com o que lhe davão seus pays. O réu assinará o termo de inventário como
Nunno da Sylva e Souza, nome que será abreviado para Nuno da Silva nos muitos
documentos que lhe serão dados para assinar.
Na sessão de Genealogia
(fl.34/Img,67), tida no mesmo dia, e perguntado novamente se cuidara em suas
culpas e as queria confessar, Nuno da Silva disse
que sim, cuidara, e que não tinha culpas que confessar pertencentes a este
tribunal. Pelo que se procedeu às perguntas ordinárias de genealogia:
Disse que elle (como ditto tem) se chama Nuno da Sylva, quarto de x. novo, solteiro de vinte e seis annos de idade, natural da villa da Pederneira[2] e morador na quinta da Cavallariça, termo da Villa de Alfazeirão. Que seus pays se chamão Nuno de Britto Alão, meyo x. novo que vive de sua fazenda, natural da ditta Villa da Pederneira, e Dona Maria da Sylva, x. velha, natural da Villa de Alcobaça.Que seus Avós são já todos defuntos; e os paternos se chamarão Duarte de Brittox. velho, homem nobre, não lhe sabe a qualidade, e Helena Ayres Correa, x. nova, não sabe donde erão naturaes.E os maternos se chamarão Ruy de Souza da Sylva, x. velho. que vivia de sua fazenda, natural do lugar de Picamilho, termo de Porto de Mós, e Dona Catherina de Sousa, x. velha natural de Alcobaça.Por parte de seu pay teve hum tio já defunto, que se chamou Antonio de Britto que falleceo de dez annos.Tem mais huma tia, meya Irmãa do ditto seu pay, filha da ditta sua avó Helena Ayres, e de seu primeiro marido, Duarte de Araújo, não lhe sabe a qualidade, e haja, digo he, religiosa professa no Convento de São João de Estremoz, e se chamava Maria da Assumpção. Por parte de sua May tem huma tia já defunta que se chamava Dona Barbara de Souza, que foi religiosa professa no convento de Cós.Elle Declarante teve dous Irmaõs e seis Irmãas, a saber, Henrique que falleceo de cinco annos, Antonio que falleceo de peito, duas de nome de Helena que fallecerão de pouca idade, Dona Catherina da Sylva, Dona Bernarda da Sylva, Dona Joanna da Sylva e Dona Marianna da Sylva, e esta que he a mais moça será de doze annos de idade, e todas as quatro são solteiras.Elle Declarante he solteiro (como ditto tem) e não tem filhos alguns.He Christão baptizado, e o foi na Igreja de S. André da Villa de Cellas pelo padre Manoel Henriques, e foi seu padrinho Antonio de Britto Freyre.Não é crismado.
Examinada a sua instrução cristã, falha ao recitar os
mandamentos da Santa Madre Igreja. Declara que sabe ler e escrever e tem
princípios de Latim, e que nunca saiu do reino, e nele esteve nas cidades de
Lisboa e Coimbra, e nas vilas da Pederneira, Alcobaça e Estremoz. Não foi preso
nem penitenciado pelo Santo Ofício, e de seus parentes o foram a sua avó Helena
Aires e, de presente, estava o seu pai, Nuno de Brito Alão.
É novamente admoestado no final da sessão para que confesse
as suas culpas, ao que responde da forma costumada que não tinha culpas para
confessar.
A 28 de Julho de 1671 (fl.36v./Img.71), Nuno da Silva
comparece perante os inquisidores para uma sessão In Genere, onde lhe são feitas perguntas de ordem geral. Começam
pela pergunta reincidente se tinha culpas para confessar, com a resposta
habitual de Nuno da Silva, a que se seguem as (muitas) perguntas padronizadas
sobre as suas atitudes contra a igreja católica ou em observância de ritos e costumes
judaicos, a que Nuno da Silva responde sempre em negação. A sessão é coroada
com uma admoestação mais elaborada com uma nova pergunta sobre as suas culpas.
Como a resposta não fosse diferente, é mandado de volta para os cárceres.
Decorrido perto de um ano (os inquisidores não se apressam,
é o tempo de reclusão e as suas experiências no cárcere que desgastam e vergam
os réus), a 22 de Junho de 1672, desenrola-se a sessão In Specie (fl.39v./Img.77), onde Nuno da Silva é confrontado com
perguntas específicas sobre as acusações que lhe foram feitas. As perguntas são
“específicas” mas completamente vagas e sem detalhes, como já aludimos quando
escrevemos sobre o processo de Nuno de Brito Alão. Não há datas, e não há nomes
nem lugares: Perguntado em que lugar se
achou do ultimo perdão geral a esta parte, e em que companhia de pessoas de sua
nação, onde entre praticas se declararão, elle Reo, e as pessoas da ditta
companhia, que crião e vivião na ley de Moysés. As perguntas sucedem-se,
cada uma vinculada a uma situação ou evento narrado pelas denúncias de outros
réus. E a todas, Nuno da Silva responde sempre de forma negativa (Disse que não passou tal). Os
inquisidores advertem-no que aquela será a última admoestação antes de ser
pronunciado contra ele o libelo de justiça, e incitam-no a confessar as suas
culpas, mas Nuno da Silva mantém a mesma posição.
É redigido o libelo de justiça, que em sucessivos artigos se
propõe provar a culpabilidade do réu, demonstrar que ele é um herege apóstata
da Santa Fé Católica, negativo, impenitente e pertinaz, e que será declarado
como tal, incorrendo na sentença de excomunhão maior, confisco dos seus bens
para o Fisco e Camara Real, e as mais penas em Direito estabelecidas, além da sua
relaxação à justiça secular.
Chamado Nuno da Silva a pronunciar-se sobre o documento que
lhe é lido, e perguntado se é verdade o que consta do dito libelo e em cada um
dos seus artigos, Nuno da Silva responde, de uma forma não isenta de coragem,
que concorda ser verdadeiro que é cristão batizado e que já mais de uma vez fora
admoestado naquela Mesa, e o mais
contestava por negação.
Perguntado se tem defesa a apresentar e se quer estar com um
Procurador para esse efeito, Nuno da Silva responde afirmativamente, e é-lhe
sugerido como Procurador o licenciado Francisco Soares Nogueira; que Nuno da
Silva aceita, e o licenciado presta juramento nessa função no dia 17 de Agosto
de 1672.
A Defeza é apresentada
(a partir do fl.49/Img.97), expondo que provará que o réu foi criado e
doutrinado na Lei de Jesus Cristo, e que cumpria os preceitos da Igreja Romana.
E nomeia diversas pessoas para o provar - o padre António de Sousa Coelho,
Reitor da Casa de Nossa Senhora da Nazaré, António Pereira da Costa, Comissário
das Madeiras d’El Rei na vila da Pederneira; e várias pessoas que moravam ou
viviam de sua fazenda em quintas da região, como a quinta da Chiqueda ou a
quinta de Nossa Senhora da Ajuda, junto a Alcobaça. Estas testemunhas são
ouvidas em diligência por um sacerdote cristão-velho juramentado, o Padre
Mestre Frei Francisco de São Tomás, regente dos autos no convento da Batalha. A
publicação desses depoimentos implica uma nova admoestação ao réu, o mesmo
acontecendo com a publicação de novas provas de justiça surgidas entretanto contra
ele, que Nuno da Silva nega como falsas. Os inquisidores perguntam-lhe se tem
contraditas a apresentar, e se quer estar com o seu Procurador para o fazer, e
Nuno da Silva diz que sim.
Os artigos das contraditas são apresentados (fl.62/Img.123),
com Nuno da Silva tentando a um tempo acertar em quem o acusou, e apresentar aos
inquisidores motivos plausíveis para essa pessoa o odiar a ponto de cometer
perjúrio com mão sobre os Santos Evangelhos. Apresenta contraditas contra
António de Figueiredo e os seus filhos (João, Luís e Mariana), Isabel de Brito
e o seu sobrinho António Gomes Lobo, Lourenço de Sá e Cristóvão de Abreu. As
testemunhas apresentadas pelo réu são ouvidas em cada um dos artigos das
contraditas, e também são ouvidos alguns dos visados, como é o caso de António
de Figueiredo, que a Inquisição de Coimbra interpela sobre Nuno da Silva na
forma vaga e nebulosa que é apanágio dos inquisidores. Da mesma proveniência, a
Inquisição de Coimbra, chega ao processo uma averiguação feita no convento de
Semide sobre o caráter e a idoneidade moral da religiosa Dona Madalena de Sá,
cujas declarações haviam, na raiz dos processos, implicado em práticas de
judaísmo Nuno da Silva e o pai.
A 11 de Setembro de 1673, Nuno da Silva requer à Mesa mais
uma reunião com o seu Procurador, Francisco Soares Nogueira. Nesta, elaboram
mais artigos de contraditas que o Procurador entrega aos inquisidores nesse
mesmo dia (fl.74v./Img.207). Os visados, com as histórias apensas de quezílias
e inimizades criadas com o réu, são António Correia de Almeida, António de
Paiva (?), Pedro Armando Coelho, e D. Isabel Loba.
Surgem mais provas de justiça contra Nuno da Silva, em cuja
leitura e publicação, Nuno da Silva é admoestado a confessar as suas culpas e,
perguntado sobre o que tinha a dizer sobre as provas, respondeu que tudo era falso.
A 6 de Outubro, os inquisidores convocam Nuno da Silva e
dizem-lhe que, em virtude dos novos artigos de contraditas apresentados pelo
seu Procurador, ele teria de nomear novas testemunhas para se poder estudar
esses artigos. As testemunhas são apontadas em seguida: José (Joseph) Caldeira,
escrivão e morador em Montemor-o-Velho; o padre Manuel Nunes, de Famalicão,
termo da Pederneira; e Luísa Monteira, criada da casa (quinta da Cavalariça). Em
outros naipes de testemunhas apareciam o padre António de Sousa; Filipa de
Sousa, padre Manuel Rebelo, padre Pedro Luís, uma Maria da Costa da Pederneira;
Tomé de Simas, alferes dos Auxiliares e morador em Vila Franca; uma família da
Pederneira composta por Manuel Dias, estalajadeiro, a mulher e um seu cunhado
que era almocreve; além de uma mulher viúva chamada Filipa Rodrigues.
Contrapondo a este esgatanhar de Nuno da Silva pela
credibilidade e por um fim favorável do processo, aparecem novas provas de
justiça, que são lidas e publicadas, com Nuno da Silva a sofrer mais uma
admoestação em forma por não querer admitir a verdade e confessar as suas
culpas. Nessa admoestação, Nuno da Silva diz que não tem nada para confessar,
mas que deseja apresentar mais contraditas à Mesa pelo que pretendia reunir-se novamente
com o seu Procurador para esse efeito, mas o que surge em seguida são (ainda)
mais provas de justiça contra si. Declaradas estas como falsas pelo réu, lê-se no
final desta última publicação de provas uma humilde solicitação do Procurador
Francisco Soares Nogueira (fl.117/Img.233) que prefigura o que depois se
seguirá. Concedendo que o réu Nuno da Silva, ainda que recordando na memória
todos os atos de sua vida não se acha compreendido em nenhuma das culpas
referidas na acusação e, por isso, se acha impossibilitado de procurar remédio
na confissão (das culpas); o Procurador, fiado na sua inocência, mas mais ainda
na circunspeção[3] dos
Inquisidores, implora a ajuda do tribunal e afiança que espera dele uma
sentença benigna para o réu, pelo crime
da heresia que não cometeo.
Depois destas alegações finais, o processo, os autos, são
declarados conclusos a 13 de Novembro de 1673, e é lavrada a sentença
(fl.120/Img.239) em que Nuno da Silva é condenado (convicto) pelo crime de
heresia e apostasia e se determina que seja entregue à justiça secular, com
confisco de bens, avisado que fica de incorrer na sentença de excomunhão maior [4].
Aos 27 dias desse mês, Nuno da Silva é notificado da
sentença (Auto de Notificação: fl.121/Img.241), participando-se que o seu
processo fora visto em Mesa por pessoas
doutas, de sã consiençia, e tementes a Deos, e que ele fora julgado e
condenado no crime de heresia e apostasia – Pelo
que a admoestação com muita claridade da parte de Christo Senhor Nosso abrisse
os olhos da Alma, e pondoos em Sua Salvação, dezencarregasse sua consiençia
confessando inteiramente suas culpas. E por dizer, que assim o queria fazer foi
mandado recolher a seu Carcere, para depois ser ouvido.
Já condenado, Nuno da Silva irá desenrolar nesse mesmo dia a
sua confissão para tentar minorar a gravidade das penas que reservam para si. A
confissão/denúncia forma um pequeno rosário de reuniões de cristãos judaizantes
em que participara Nuno da Silva, nas quais eles haviam declarado a sua crença
judaica e as cerimónias que cumpriam em sua observância.
Doze anos antes, na Pederneira, em casa da sua tia segunda
Isabel de Brito, com a participação da irmã dela, Dona Mariana de Figueiredo, as
duas irmãs lhe ministraram o ensino da Lei de Moisés, e despois [Nuno da Silva]
continuou na ditta crença, fazendo por guarda della as dittas cerimonias todas
as vezes que lhe foi possivel, thé esta manhã que allumiado de Deos nosso
Senhor se resolveo a confessar suas culpas, e de as haver commettido está muito
arrependido, pede perdão, e que com elle se uze de misericordia.
Onze anos e oito meses atrás, também na casa de Isabel de
Brito, achou-se lá com ela, e Isabel Loba, cristã nova nascida na vila da Cela,
sobrinha de Isabel de Brito e filha de António Gomes Lobo, com o próprio
António Gomes Lobo e António de Figueiredo, primo do réu.
Dez anos antes, na Lamarosa, termo de Coimbra, achou-se lá
em casa de António de Figueiredo e na presença deste e dos seus três filhos,
João, Luís e Francisco de Figueiredo; Custódio de Abreu, meio-irmão do
anfitrião; o primo deste, Manuel Pereira, e Lourenço de Sá, ouvidor da Casa de
Aveiro.
Oito anos antes, na quinta da Cavalariça, encontrou-se aí
com João de Figueiredo, e com dois homens de Montemor-o-Velho que, não
conseguindo indicar pelo nome, que não tem presente, menciona os seus cargos e descreve
os seus traços físicos com uma minúcia policial – além de lembrar os nomes de
terceiros mencionados por estes nas suas conversas.
Sete anos antes, na Pederneira,
na casa de seu pai, estivera com este e com as três irmãs mais velhas,
Catarina, Bernarda e Joana da Silva.
Na declaração seguinte, Nuno da
Silva menciona os Andrades da Quinta de S. Bento, na Cela Velha. A família dos
Andrades ou Andrade e Gamboa, possui uma respeitável árvore genealógica recenseada
[5],
mas este processo do Santo Ofício é o primeiro documento que encontramos que
expõe claramente as raízes judaicas desta família, que possuía uma presença antiga
na vila da Pederneira, e estreitos laços com outras famílias de cristãos-novos
da mesma vila, como os Britos e os Lobos:
Disse mais que haverá seis annos e meyo na Quinta da Sella Velha, termo da Villa da Sella, meya legoa da mesma villa, e huma da de Pederneira, em caza de Antonio de Andrade, x. novo por ambas as vias, não sabe em quanta parte, solteiro, de vinte e oito annos, filho de Francisco de Andrade, que vivia de sua fazenda, parente delle confitente não sabe em que grao, e de Izabel da Veiga, se achou com elle, e com a ditta Izabel da Veiga, a qual he agora cazada segunda vez com Antonio Coelho, x. novo por via do Pay, não sabe se em todo, ou em parte, e com o mesmo Antonio Coelho, e com duas filhas destes, solteiras, a saber, Catherina da Veiga, de vinte annos, e Ana [?] de dezenove pouco mais ou menos, porque lhe não sabe a idade ao certo, e com Jeronima Luis, irmã da ditta Izabel da Veiga, viuva de Manoel da Costa, x. velho, que vivia de sua fazenda, e com Brittes da Nazareth filha destes, solteira, de vinte e quatro, ou vinte e cinco annos de idade, e com Manoel d’Almada, irmão do ditto Antonio Coelho, que vivia de sua fazenda, viuvo de huma x. velha cujo nome lhe não lembra, todos naturaes da Pederneira, excepto Antonio Coelho, e Manoel de Almada, que são naturaes de Alfeizarão, aonde he morador o mesmo Manoel d’Almada, e ditto Antonio Coelho, sua molher e filhas na cidade de Leiria, aonde he meirinho da Correição, e o ditto Antonio de Andrade vivia na ditta sua quinta, e Jeronima Luis, a sua filha, na ditta villa da Pederneira, e estando todos nove na ditta quinta, aonde se ajuntarão a ouvir missa [certamente na capela de S. Bento, que ainda aí existe] por ser dia santo, e todos jantarão nella,e despois de terem comido, entre outras praticas se derão conta e declararão, elle confitente, e os dittos Antonio de Andrade, Izabel da Veiga, Antonio Coelho, Catherina da Veiga, Marianna, Jeronima Luis, Brittes da Nazareth e Manoel d’Almada, que crião e vivião na Ley de Moyses para Salvação de suas Almas, e por guarda dellas fazião as dittas ceremonias. Com as dittas pessoas não passou mais, excepto, com Antonio de Andrade, com o qual tem despois semelhante declaração na quinta da Cavallariça de seu Pay, não lhe lembra quanto tempo ha.
Outras confissões e outras
pessoas mais. Na Pederneira, em casa de Francisco de Brito, com este e os
filhos João D’Eça, Maria Josefa e Inês Baioa; com a meia-irmã do primeiro, Dona
Guiomar de Brito, Isabel de Brito, Isabel Loba e Mariana de Figueiredo. Também
na Pederneira, no escritório de Agostinho Coelho, escrivão, se achou com ele e
outros cristãos-novos – António Correia, Marcos Tavares, e Francisco de
Almeida, homem do mar.
Nuno da Silva é ouvido na sessão
de Crença (fl.130v./Img.260) sobre
as suas crenças e devoções e a apostasia da religião católica, e declara o que
dissera na confissão, que as irmãs Isabel de Brito e Mariana de Figueiredo o
haviam levado para a religião de Moisés, e que persistira nesse erro até à
manhã da confissão, em que se apartara
della por ser Deus servido de o allumiar.
A 28 de Novembro, é submetido a
uma nova sessão In Specie, em que o
interrogam sobre as acusações que existem contra si no processo. Às perguntas
feitas, já não contesta como falsas, mas que não he lembrado de tal. Termina a sessão com mais confissão,
falando de uma reunião sobre a Lei de Moisés tida na quinta das Cavalariças com
as quatro irmãs.
No mesmo dia é lavrada a Sentença final, na qual lhe atribuem
cárcere e hábito penitencial perpétuo sem remissão, abjuração dos erros no Auto
Público de Fé, e degredo por cinco anos para o estado do Brasil (fl140/Img279);
sentença repetida de forma mais extensa e completa um pouco mais à frente (fólios
142 a 144),
Nuno da Silva vai ao Auto de Fé
que decorreu no Terreiro do Paço no Domingo, dia 10 de Dezembro de 1673 (no
mesmo dia que as irmãs).
O Termo de Ida e Penitencias,
fixa as suas penas e conclui o processo (fl.148./Img.295). Publicado a 8 de
Janeiro de 1674, discrimina as penitências espirituais a que fica obrigado, e o
que se conthem na Carta que lhe será
dada, e vá cumprir os cinco annos para o Brazil em que foi condenado, ele
assistirá na Igreja que for sua freguesia todos os Domingos e dias Santos, á
missa da terra, e pregação quando a houver, com seu habito penitencial que
sempre trará sobre suas vestiduras. O que tudo elle comprometteo cumprir sob o
cargo do juramento dos Santos Evangelhos.
[1] Mandado
de prisão (ficheiro PDF).
[2] Contrariando
o que declara o próprio Nuno da Silva, e o que sobre ele testemunham outros
familiares, a irmã mais nova, Mariana, afirma que ele nascera na vila da Cela,
o que faz algum sentido se atendermos que é na mesma vila que ele é batizado.
[3]
Circunspeção é uma palavra rica de sentido que soemos usar numa aceção muito limitada
- o de falar ou agir com ponderação e reservas. A palavra remete-nos para o
círculo, ser circunspeto é examinar algo atentamente, de todos os ângulos
possíveis, como se descrevêssemos um círculo em volta.
[5] Memórias da Vila da Cela, de Iva Delgado
e Frederico Delgado, edição da Camara Municipal de Alcobaça e Junta de
Freguesia da Cela, ano de 1986. Esta obra transcreve, entre outros, o
manuscrito de 1828: Memórias sobre a
villa da Cela, de António Carlos de Andrade.
Os autores são a filha e o neto de Maria Iva de
Andrade Delgado (ou Maria Iva Theriaga Leitão Tavares de Andrade), recentemente
desaparecida, da descendência dos Andrades e viúva de Humberto Delgado, o
General Sem Medo
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Ruínas do Palácio dos Estaus da Santa Inquisição, após o incêndio de 1836 |
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