domingo, 7 de junho de 2015

Linhas de parentesco - algumas questões sobre os cristãos-novos

Detalhe da gravura sobre D. Fuas Roupinho,
que figura nas duas obras de Manuel de Brito Alão

1 – Laços de família
          Ao seguir os processos do Santo Ofício sobre os membros da família Brito que viveram na quinta da Cavalariça, termo da vila de Alfeizerão, surgiram-nos diversas dúvidas e interrogações pertinentes. Perante estas, achamos que a forma mais prática de as abordar era elaborar um pequeno estudo genealógico (disponível em formato PDF) onde fosse nítida a posição dos familiares indicados nesses processos do Santo Ofício, e as suas relações intrínsecas. Foi mais um quebra-cabeças do que uma tarefa simples: havia à partida a vantagem dos Processos conterem um capítulo de genealogia, e de as confissões/denunciações apontarem a relação de parentesco com os visados, mas nessas fontes existem informações contraditórias, omissões e trocas, nomes iguais que foram adotados por gerações diferentes, e diferentes apelidos usados ou conhecidos por terceiros para falar da mesma pessoa. Este arrazoado genealógico a que chegamos (depois de confrontarmos as informações de diferentes Processos [1]), tentamos que estivesse isento de erros, ainda que seja imprudente garanti-lo em absoluto.

1.1. Os parentes de Coimbra
          Os processos de Nuno de Brito Alão e Nuno da Silva, começam com as denúncias contidas nas confissões de dois primos de Coimbra, Lourenço de Sá e Madalena de Sá, religiosa no mosteiro de Semide (mosteiro de Santa Maria de Semide, em Miranda do Corvo). A relação estabelece-se com António de Figueiredo e Sousa, marido de Isabel de Brito, tia de Nuno de Brito Alão.

          Uma das irmãs de António de Figueiredo, Antónia de Figueiredo, foi casada com um homem nobre da cidade de Coimbra, Cristóvão de Sá, de quem teve Catarina de Sá. Esta Catarina de Sá foi casada duas vezes. Da primeira união, com um cristão-novo chamado Francisco da Silva (julgado e condenado à revelia pela Inquisição por não se lhe conhecer o paradeiro), nasceram os nossos Lourenço e Madalena de Sá. Da segunda união, com um fidalgo, D. João de Ataíde, teve uma filha, Maria de Figueiredo, que foi religiosa professa no mosteiro de Semide, tal como Madalena de Sá.

          Lourenço de Sá, avogado e bacharel em Leis, morador em Montemor-o-Velho, teve diversos familiares presos pela Inquisição, entre eles, os filhos. Por seu turno, o Processo de Madalena de Sá não é um exemplo ímpar nos meandros da história da Inquisição, existindo diversos casos de freiras presas por judaísmo ou heresia nos conventos da região de Coimbra (o mosteiro de Semide, o mosteiro de Nossa Senhora de Campos em Montemor-o-Velho, ou o mosteiro de Santa Maria de Celas).

          Arlindo Correia estudou, entre outros, o caso de Leonor da Silva, presa por judaísmo com outras duas irmãs de sangue, também irmãs religiosas, no mosteiro de Semide. Os detalhes do Processo são dramáticos, entrada no convento contra a sua vontade [2], acusada por outras religiosas de zombar das coisas santas da religião, negou sempre as suas culpas e acabará por ser relaxada à justiça secular e morta num Auto de Fé na cidade de Coimbra a de 4 de Maio de 1625 (Correia, Arlindo - As 5 freiras mortas pela Inquisição. Site: Página sobre a Inquisição em Portugal. Endereço: http://arlindo-correia.com/020714.html. Acesso mais recente a 04/06/2015).



1.2. Helena Aires
          A mãe de Nuno de Brito Alão, Helena Aires Correia, cristã-nova oriunda de Lisboa, esteve também presa nos cárceres da Inquisição (Processo de Helena Aires – Direção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10614). Foi casada uma primeira vez com Duarte de Araújo, da família dos Lobos da Pederneira que viviam na cidade de Tomar (Pedro Fernandes Lobo, Jerónimo Lobo…); do qual enviuvou. Da filha desse primeiro casamento, Filipa de Jesus, ela diz (e quem melhor indicado para o dizer?) que era freira no mosteiro de Santa Iria de Tomar.

          Do seu casamento com Duarte de Brito Alão, nascerão dois filhos, Nuno de Brito e António. É curioso que nos testemunhos deste processo, Duarte de Brito Alão é indicado também como Duarte Lobo (fl.9/Img,17 [3]), ou seja, ainda manteve, pelo menos em alguns círculos, o apelido de via paterna que herdara de Pedro Fernandes Lobo, diminuído depois pelo receio de perseguições ou preconceitos antissemitas.

          Helena Aires esteve dois anos presa, foi ao Auto de Fé de 2 de Abril de 1634, sendo devolvida à liberdade alguns dias depois. Nuno de Brito Alão tinha treze anos à data da sua prisão.


1.3. Os Andrade e Gamboa

          Como tive oportunidade de tratar no processo de Nuno da Silva, o filho de Nuno de Brito menciona a família dos Andrade e Gamboa da quinta de S. Bento na Cela Velha, nomeadamente, o seu parente e amigo António de Andrade, filho de Francisco de Andrade e Isabel Gouveia, e cristão-novo por ambas as vias. Na confissão de João d’Eça [4] (Processo de João d’Essa: Direção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 2592), primo de Nuno da Silva, que fora soldado infante na Província do Alentejo, menciona-se o mesmo António de Andrade no fólio 34, falando de uma estadia na quinta da Cavalariça, junto ao lugar de Famelicão:
o ditto Nuno da Sylva acrescentou que a mesma crença da Ley de Moyses tinha Antonio Andrade de Gamboa, x. novo, solteiro, que vivia de sua fazenda, filho de Francisco d’Andrade, já defunto, e de Izabel da Veiga, christãos novos, e será de dezoito annos de idade, natural da villa da Pederneira, e morador no termo da Cela, em huma quinta que chamão Cela Velha, e que isto sabia por se haver declarado com elle, porem elle confitente, neste particular não tem certeza mais alguma, porquanto com o ditto Antonio de Andrade não fallava, antes erão inimigos.
       Felgueiras Gaio (Manuel José da Costa), no seu Nobiliário de Famílias de Portugal (12º volume, Costados III e IV) faz começar o morgadio da Cela Velha com António de Andrade Gamboa, o que corresponderá ao primeiro aforamento da quinta pela família. O pai do António Andrade de Gamboa, Francisco de Andrade de Araújo Gamboa, casado com Isabel da Veiga, é bisneto desse patriarca.

       Nuno da Silva diz que António de Andrade Gamboa é seu parente por via paterna. Não conseguimos fazer positivamente a ligação entre as duas famílias. A explicação mais simples é de que o Araújo do nome da família dos Andrade e Gamboa nos remeta para os Araújos e Lobos, cristãos-novos da Pederneira ou Tomar. Entre estes, contamos com Duarte de Araújo, o primeiro marido de Helena Aires Correia, ou Guiomar de Araújo que entra na árvore genealógica dos Andrade e Gamboa, e que era filha de Diogo Lobo.

          Por ironia, sensivelmente um século depois destes Processos, um membro da família Andrade e Gamboa candidata-se a Familiar do Santo Ofício, e é aceite. Trata-se de António de Andrade Gamboa [5], neto do António de Andrade e Gamboa referido por Nuno da Silva e João d'Eça. A Inquisição deve ter feito as indagações habituais sobre os seus parentes até aos avós maternos e paternos, e não deve ter encontrado sinais de ascendência judia, porque a carta de Familiar do Santo Ofício é-lhe concedida a 25 de Junho de 1743.

          Este António de Andrade e Gamboa (os nomes António e Francisco são reincidentes nesta família) fez desenvolver a quinta da Cela Velha e reconstruir r reedificar a capela de S. Bento. O seu túmulo encontra-se dentro da capela, e a inscrição tumular exibe a data de 1776.


2 - O padre Manuel de Brito Alão e o estigma do sangue

          No estudo introdutório (muito completo) que historiador Dr. Pedro Penteado escreveu sobre Manuel de Brito Alão numa reedição moderna da primeira obra do eclesiástico [6], encontramos bastantes informações sobre a sua vida e obra, que procuraremos, com a devida vénia, transmitir com parcimónia e em traços muito gerais.


          O padre Manuel de Brito Alão, era um dos filhos de Diogo Fernandes Lobo e Isabel de Brito. Muito jovem, iniciou com denodo os seus esforços para singrar na sociedade do seu tempo. Condicionado à vida eclesiástica pela sua condição de filho segundo, foi pajem do arcebispo de Braga, D. João Afonso de Meneses, que era fruto de uma relação da sua tia Maria de Brito com o fidalgo D. Fernando de Vasconcelos. Após a morte deste seu protetor, que o deixou um pouco desamparado, ruma à universidade de Coimbra, onde se forma como bacharel em Cânones em Junho de 1594. É nomeado, antes do ano de 1611, abade simples [7] de São João de Campos, no arcebispado de Braga, e por alvará régio de Junho de 1608, Filipe II atribui-lhe por um período de cinco anos o cargo de reitor e administrador da Casa de Nossa Senhora da Nazaré, renovado por mais cinco anos em 1612. 

         Durante a sua vigência como administrador da Casa de Nossa Senhora da Nazaré, desenham-se vários focos de atrito e linhas de ruptura, nomeadamente, entre o administrador e os mordomos da confraria, e entre a Casa de Nossa Senhora da Nazaré e a Vigararia (e Beneficiados) da Pederneira, que sempre ambicionou ser titular da administração e rendimentos do florescente santuário.

          Saído da administração da Casa, Manuel de Brito Alão pretende ser nomeado vigário da Pederneira, a sua terra natal, para cujo fito obtém o apoio do abade do mosteiro de Alcobaça, o Cardeal Infante D. Fernando de Áustria. A divulgação desse intuito fez abespinhar adversários e inimigos, com o então vigário da Pederneira a acusá-lo de judaísmo perante o Arcebispo de Lisboa. A acusação gorou os seus intentos, e a situação agrava-se quando a sua irmã Isabel de Brito é presa pela Inquisição. Citado como testemunha abonatória por Isabel de Brito, o ex-administrador vê-se enredado numa teia de boatos e suspeição que colocam um término definitivo em qualquer sonho de progredir na carreira eclesiástica. Isabel de Brito é condenada pela Inquisição em 1626, e o padre Manuel de Brito Alão, já por esse tempo e nos dez anos que se seguiram, dedica-se a desenvolver em moldes literários as anotações e registos que fora fazendo durante anos sobre a vida dos romeiros e peregrinos no Sítio e os milagres do santuário de Nossa Senhora da Nazaré [8]. Os dois livros que escreveu sobre o santuário, ou os dois livros que chegaram até nós (as fontes mencionam um terceiro e mesmo um quarto livro sobre o tema, que permanecem por encontrar ou descobrir) foram: Antiguidade da sagrada imagem de Nossa S. de Nazareth : grandezas de seu sitio, casa, & jurisdiçaõ real, sita junto à villa da Pederneira (impresso em Lisboa por Pedro Crasbeeck, no ano de 1628), que será reeditado em 1684; e Prodigiosas Historias e Miracvlosos svcessos acontecidos na Casa de nossa Senhora de Nazareth (impresso em Lisboa por Lourenço Craesbeeck, no ano de 1637).

          O padre Manuel de Brito Alão teria falecido pouco depois de 1650, em provecta idade. Para ele, um abade e sacerdote cristão atacado pelos seus inimigos em nome do sangue judeu que lhe corria nas veias, deve ter sido com particular satisfação que constatou a notoriedade obtida por esses livros e a forma como eles dinamizaram as peregrinações ao santuário mariano que administrou durante dez anos.  





[1] Entre outros, folheamos os Processos de João de Figueiredo, Isabel de Brito, Guiomar de Brito, Helena Aires, Francisca de Sousa, Francisco de Brito da Costa, João d’Eça e Mariana de Figueiredo.

[2] Cito uma das passagens do Processo que foi transcrita por Arlindo Correia, referente aos artigos de contraditas:
Diz que seu irmão Marçal Nunes é inimigo dela, porque não a deixou casar com Gil Homem da Costa e em vez disso a meteu a freira contra a vontade dela. São também suas inimigas Isabel Pinta e Filipa da Fonseca irmãs de Diogo Lopes da Rosa, freira do Convento de Semide. Até folgavam por o irmão da Ré, cónego Fernão Pinto da Silva ter sido morto pela Inquisição.  Diogo Lopes da Rosa é seu inimigo porque queria casar com ela e ela não o quis.

[3] Helena Ayres. Christãa nova, mulher do ditto Duarte de Araujo, que agora he segunda vez casada com Duarte Lobo

[4] Só pela curiosidade, ao longo da sua confissão, João d’Eça relata uma reunião judaizante com João de Figueiredo no casal de Mecarca (Macarca), próximo a Famalicão.

[5] Diligência de Habilitação de António de Andrade e GamboaDireção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, António, mç. 94, doc. 1746.

[6] Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazaré, Edições Colibri/Confraria de Nossa Senhora da Nazaré, Lisboa. Além do estudo introdutório, o Dr. Pedro Penteado também fixou o texto da reedição.
A bio-bibliografia de Manuel de Brito Alão tinha já sido abordada pelo mesmo autor na obra Peregrinos da Memória – O Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, 1600-1785, edição da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1998.

[7] Manuel de Brito Alão é aí presbítero do hábito de São Pedro, como refere, entre outros, Nuno de Brito Alão no seu Processo; expressão com que se designava o clero secular que era independente das ordens monásticas, e desempenhava as suas funções (por vezes, administrativas) dentro de uma dada diocese.

[8] Os dois livros, ou os dois tomos da mesma obra, são muito mais do que isso. Além de crónicas quase etnográficas sobre a vida no santuário, trazem-nos retratos vívidos de lugares e pessoas da região ou detalhes autobiográficos sobre o autor e a sua família. A forma como discorre a partir do relato de um milagre com comentários e lições exemplares, fazem transparecer o virtuosismo que lhe seriam próprios na pregação e na oratória.

No final do segundo tomo, Manuel de Brito Alão esclarece que não narrou milagres, porquanto estes teriam de ser aprovados como tal pelas autoridades eclesiásticas; mas maravilhas atribuídas à intercessão da Virgem.


2 comentários:

  1. Continuo a seguir, atento e fascinado, estes belíssimos textos.
    Obrigado José Lopes

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  2. Eu é que agradeço, pelo comentário e pela troca de ideias. Um abraço

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