Estamos a elaborar um singelo artigo sobre a perseguição movida pela Inquisição à família judia dos Brito Alão, que originou o encarceramento e condenação (por judaísmo e apostasia) de diversos membros da família que moravam na vila da Pederneira e na Quinta da Cavalariça, termo da vila de Alfeizerão. Este é um tema com diferentes leituras possíveis, que tentaremos abordar com algum critério e ponderação. No emmeio desse artigo em preparação, surgiram-nos outros documentos da Inquisição (quatro) em que o topónimo Alfeizerão era indicado, e são esses documentos que evocamos agora, superficialmente, neste texto. Qualquer um dos processos aludidos do chamado Santo Ofício, foi disponibilizado em formato digital pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo (como milhares de outros documentos da Inquisição, que abrangem processos, cartas, confissões, diligências e denúncias), num trabalho utilíssimo e gigantesco que sublinhamos e enaltecemos.
Os quatro documentos em foco são algo diferentes entre si, e ilustram bem o ofício dos inquisidores. De um quinto processo da Inquisição (de grande interesse), sobre o pirata alfeizerense Pedro Fernandes da Costa, já aqui publicamos a transcrição feita por Casimiro de Almeida. Assinale-se, a título de curiosidade, que também a vila da Pederneira teve o seu pirata: chamava-se Álvaro Dias - nascido na Pederneira, foi capturado pelos piratas, acabando por se tornar num deles; com o novel nome de Solimão luta como artilheiro pirata até ser feito prisioneiro. É levado aos inquisidores sob a acusação de arabismo, mas as coisas correm-lhe bem: cumpre algumas penitências e é reeducado na religião católica. No final do processo (folha 16), atesta-se que ele está bem instruído nos mistérios da Santa Fé, e que comungara depois de se confessar na Igreja de São Roque, em Lisboa, a 29 de Maio de 1631.
1- JOANA FERREIRA
O processo de Joana Ferreira, desenrola-se nos anos de 1584 e 1585. Ela é natural de Alfeizerão, nascida no seio de uma família de cristãos-novos: João do Couto, sapateiro, e Beatriz Vieira. Sabemos pelas inquirições do processo que este sapateiro alfeizerense é órfão de pai e que a mãe se chama Inês do Couto, e que a sua esposa, Beatriz Vieira, é filha de Lionardo [sic] Vieira e Ana Ferreira.
Joana Ferreira trabalha na Póvoa de Santa Iria, termo de Lisboa, como criada de um carpinteiro, Francisco Fernandes, cristão-velho. Presa aos vinte anos pela inquisição sob a acusação de «blasfémias contra o nome de Jesus», é condenada a integrar um auto-de-fé particular e à abjuração e penitência pública.
Francisco Fernandes, o carpinteiro de Santa Iria para quem Joana Ferreira trabalhava, é preso pouco depois (processo 4232 do Tribunal do Santo Ofício) com a acusação similar de blasfémias. Na prática, são dois processos separados sobre a mesma transgressão, já que a ré Joana Ferreira é confrontada também neste processo de Francisco Fernandes (pg.. 16), O carpinteiro dá corpo ao mesmo auto-de-fé que ela (realizado a 23 de Julho de 1585), e condenam-no a abjurar, a penitências públicas e a pagar as custas do processo. Os processos de ambos são conduzidos por Bartolomeu da Fonseca e pelo Inquisidor-mor do reino, D. Diogo de Sousa.
2- SILVÉRIO SALVADO DE MORAIS (diligência de habilitação de)
Documento datado de 1627, representa uma diligência de habilitação de Silvério Salvado de Morais para Familiar do Santo Ofício. Nesta data, o candidato, que é natural da Guarda, desempenha as funções de alcaide-mor de Alfeizerão e reside em Alcobaça. Silvério Salvado de Morais é cavaleiro da Ordem de Cristo, e tem como abono o facto de o sogro, Francisco da Silva, ser irmão do inquisidor de Lisboa, o bispo Pedro da Silva de Sampaio (que ocupou o cargo entre 1617 e 1632, antes de rumar ao Brasil).
Grande parte deste processo (uns vinte fólios) encontra-se gravemente deteriorado mas, do que subsiste, percebe-se que a inquirição levantada pelos inquisidores aos familiares de Silvério Salvado de Morais e da esposa, Micaela da Silva (um interrogatório cerrado com diversas perguntas padronizadas - enunciadas nos fls. 3 e 4), comprova a sua lympeza do sangue e geração, ou seja, que são christãos velhos legitimos, limpos e de limpo sangue, sem raça alguma de Judeus, Mouros, Cristãos Novos ou de outra secta. Por sua vez, a inquirição sobre a estatura moral de Silvério Salvado de Morais, procurava averiguar se ele era homem de boa vida e costumes, quietto, pacifiquo, capaz de segredo, pra delle se poderem fiar [em] negocios de segredo e importancia.
Extra-texto, lembramos que os Familiares do Santo Ofício representavam a base da estrutura hierárquica da instituição, formada por leigos que se vinculavam à Inquisição e "policiavam" as comunidades em que estavam inseridos,fazendo diligências, denúncias e prisões. No Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, publicado um pouco depois desta data, em 1640, encontram-se esmiuçados os requisitos e funções dos Familiares (no Título XXI). de onde transcrevemos este trecho:
Os Familiares do S, Officio, serão pessoas de bom procedimento, & de confiança, & capacidade conhecida: terão fazenda, de que possão viver abastadamente (...). Na vespora, & dia de Saõ Pedro Martyr, sendo possivel, se acharão na Inquisição do seu districto para acompanharem o Tribunal, & assistirão na Igreja, em que se celebrar a festa do Santo: no dia em que se fezer o Auto da Fé, se acharão ante manhaã na Inquisição, para hirem com os prezos na procissão; e sómente nestes dias, & quando forem prender alguma pessoa, ou a trouxerem preza para os carceres, levarão o habito de Familiar do Santo Officio, que haõ de ter.
Extra-texto, lembramos que os Familiares do Santo Ofício representavam a base da estrutura hierárquica da instituição, formada por leigos que se vinculavam à Inquisição e "policiavam" as comunidades em que estavam inseridos,fazendo diligências, denúncias e prisões. No Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, publicado um pouco depois desta data, em 1640, encontram-se esmiuçados os requisitos e funções dos Familiares (no Título XXI). de onde transcrevemos este trecho:
Por outro lado, o segredo ou a capacidade de guardar segredo, que várias vezes é inquirido nesta diligência de Salvado de Morais, era algo indispensável aos inquisidores e seus coadjutores, como se encontra estabelecido no Título 7 do mesmo Regimento de 1640: E por quanto o segredo he huma das cousas de mayor importancia ao santo Officio, mandamos, que todos o guardem com particular cuidado, não só nas materias, de que poderia resultar prejuizo se fossem discubertas, mas ainda naquellas que lhes parecerem de menos consideração, porque no Santo Officio não há cousa em que o segredo não seja necessario.
3 - MARIA RODRIGUES (processo de)
Neste processo, iniciado a 24 de Setembro de 1701, Maria Rodrigues, natural de Pombal e a viver em Setúbal, acusa de bigamia o marido, conhecido pelos nomes de Manuel do Couto ou Manuel Francisco, que era natural de Alfeizerão [Alfizerão], e que alegadamente, depois de viver com ela durante seis meses, se teria ausentado para se casar com Maria Gonçalves, moradora na mesma cidade de Setúbal. É ordenada a prisão de Manuel do Couto, com sequestro de bens (página 11), e ordenada a obtenção das duas certidões de casamento para se comprovar o delito. Depois de averiguada a acusação, Manuel do Couto é ilibado e solto, enquanto é presa Maria Rodrigues, por perjúrio, e condenada a um auto-de-fé, a pagar as custas do processo e a degredo por três anos para o couto de homiziados de Castro Marim.
(Manuel do Couto era filho de Domingos Pires, lavrador, e Lucrécia Álvares, residentes em Alfeizerão).
Nota: a bigamia, era um dos delitos que estava sob a alçada da Inquisição, como o comprova o já citado Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal.
Cristóvão Machado, meio cristão-novo, natural de Aljubarrota, e que vivia de sua fazenda na vila de Alfeizerão, é preso com a idade de 35 anos a 12 de Maio de 1683 sob a acusação de judaísmo. A sua prisão devera-se a revelações feitas pelo seu irmão Bento Brado da Silva, meio cristão-novo, que fora preso por culpas de judaismo nos cárceres secretos da inquisição de Évora a 12 de Maio de 1692, dos quais foi trazido para a Inquisição de Lisboa. Interrogado pelo inquisidor Estevão de Brito, declarara que, quatro anos antes, se achara com o seu irmão Cristóvão de Machado, casado com uma cristã-velha chamada Maria de Almada; e estando ambos sós, entre práticas de que já não se lembra, ouviu dizer a seu irmão que acreditava na Lei de Moisés para a salvação das suas almas e que em observância dela, guardava os Sábados de trabalho. Foi lida a confissão e Bento Brado da Silva assinou.
Interrogado Cristóvão Machado sobre os seus bens ou rendimentos no título Inventário, responde este:
Disse que não tinha bens alguns de raiz seus, e vivia do rendimento de huma _____ [?] de sua mulher, Maria de Almada com obrigação de duas missas cada anno a capella de São João Baptista de Alfeizerão, e algumas terras livres que não sabe indicar. E que de bens moveis tinha so os necessários para o seu uzo.Interrogado sobre o motivo da sua prisão, e diante do inquisidor Pedro de Ataíde de Castro, Cristóvão Machado, com um dia de prisão, faz e assina a sua longa confissão a 13 de Maio de 1683 (páginas 29-38), na qual denuncia a sua irmã, Maria Baptista, mulher de António da Cunha, natural da vila de Aljubarrota e moradora na vila da Pederneira, já que quinze anos antes, quando se vira a sós com a sua irmã, entre práticas de que já não se lembra, esta lhe confessara a sua fidelidade à Lei de Moisés e às práticas próprias dela. Confirma também a conversa havida com o seu irmão Bento Brado da Silva, não se lembrando muito bem como haviam falado da Lei de Moisés e da sua observância. Mais relata que, oito anos antes, na sua quinta junto a Aljubarrota, conversara com seu irmão Jerónimo Rodrigues, meio cristão-novo que vivia da sua fazenda, casado com Catarina de Almada, e por ocasião de falarem nas prisões do Santo Ofício com a sua irmã, Maria Baptista, eles declararam a mesma fé (a Lei de Moisés e a sua observância). Denuncia também, nos mesmos moldes, ao seu irmão Francisco da Silva, meio cristão-novo, com quem estivera cinco anos antes na quinta da Charneca, termo da cidade de Lisboa; e ao seu irmão Sebastião Nunez, meio cristão-novo, com quem conversara cerca de um ano atrás junto da igreja de Santa Ana dessa cidade (Lisboa); e ainda… que cinco anos antes, numa eira junto à vila de Alfeizerão, se achou com o seu irmão Rafael da Silva, que era alferes de ordenança, também natural de Aljubarrota e morador em Alfeizerão, e que este confessara ser observante e crente na Lei de Moisés; e ainda… que dez meses antes, em Lisboa, em casa de Benjamim Sebastião da Silva, e estando ambos a sós, este lhe declarou o mesmo. E as denúncias sucedem-se: Sebastião da Silva, natural de Alcobaça, um quarto de cristão-novo; o primo António da Silva, um quarto de cristão-novo; a tia materna Catarina da Silva, natural de Alcobaça, com quem ficam associados nas culpas de judaísmo, outros cinco familiares que se encontravam em sua casa (todos citados pelos nomes).
Cristóvão Machado é condenado a auto-de-fé, a abjurar das suas crenças judaicas, a usar o hábito penitencial, e a cumprir as penitências espirituais. A 23 de Agosto (página 65), sem dúvida, como prémio pela sua copiosa colaboração, os inquisidores dão por levantado o cárcere e tirado o hábito, e que pode ir para onde bem quizesse, contanto que não seja para fora do Reino sem licença desta Mesa, ficando apenas obrigado a algumas penitências espirituais; como confessar-se e comungar nas quatro datas principais do ano (Natal, Páscoa da Ressureição, Espírito Santo e Assunção de Nossa Senhora).
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Processo de Christovão Machado, meyo Christão novo que vivia
de sua fazenda,
natural de Algibarrota e morador na villa de Alfeizirão
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Para o teu estudo sobre a família Brito Alão na Inquisição, duas referências que te podem interessar:
ResponderEliminar- Alão, Manuel de Brito - Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Introdução, fixação de texto, notas, bibliografia e índices de Pedro Penteado. Lisboa: Colibri, Confraria de Nossa Senhora de Nazaré, 2001. N.º 1 da colecção "Estudos e fontes" (para o tema interessa-te a Introdução).
Cita:
- PENTEADO, Pedro - Nuno de Brito Alão ou a identidade perdida."Notícias da Nazaré". N.º 6 (Nov. 1990), p. 6.