terça-feira, 31 de março de 2015

A Quinta e a Torre de D. Framondo, termo de Alfeizerão

Planta da torre de D. Framondo
(retirada da separata que lhe dedicou Borges Garcia - vid. nota 7)


        A Quinta da Cavalariça, termo da vila de Alfeizerão, surge-nos primeiramente nos documentos com o nome de granja do Framondo ou Framundo, do nome de um baluarte que ainda hoje existe nos seus antigos terrenos (coordenadas: 39°32'44.6"N 9°04'06.6"W). Presentemente, essa torre encontra-se em propriedade privada, em terrenos da unidade fabril que aí labora, o que deve ser levado em conta pelos curiosos e interessados.
         Esta quinta, documentalmente, é tão antiga como as mais antigas referências escritas a Alfeizerão. O primeiro documento conhecido que nomeia Alfeizerão (alfeysarã) é uma doação feita em 1287 por D. Dinis à sua esposa dos direitos de entrada de mercadorias no porto de Salir (1), enquanto a granja de Framundo aparece-nos já num documento de 1 de Junho de 1283 (CR. Alc. maço 25, nº 24), segundo Pedro Gomes Barbosa (2); e ambas as granjas (Framundo e Alfeizerão), segundo o mesmo autor, estão mencionadas entre outras granjas do mosteiro de Alcobaça numa carta do ano de 1227 ao papa Honório III (embora existam algumas dúvidas sobre a autenticidade dessa carta). Mas a primeira referência expressa a um castelo nesse lugar (ainda que o nome Framondo não apareça) está indicada, segundo Pedro Barbosa (op. cit.), nas confrontações da Cela Nova na carta de povoação do mosteiro de Alcobaça, datada de 26 de Maio de 1286: castelo do porto (portum castelli). Em finais desse século, no ano de 1296, quando Afonso Pais (procurador do Bispo de Lisboa, D. João Martins de Soalhães), demarca as paróquias dos coutos de Alcobaça, inclui na paróquia de S. Martinho do Porto os lugares de Alfeizerão, do Bacelo (nome de outra quinta) e D. Framondo, o que evidencia a existência aqui de uma comunidade secular de colonos que necessitava da assistência de um pastor, de um pároco.
         Com efeito, nos primeiros tempos da Ordem cisterciense de Alcobaça, os monges obedeciam aos preceitos da Regra e garantiam o seu sustento pelas suas próprias mãos (propriis manibus et sumptibus). Gradualmente, porém, como descreve Joaquim Vieira Natividade, «nas terras que circundam as Quintas, desbravadas pelas mãos dos próprios monges, plantam estes, vinhas, pomares e olivais, com vista às necessidades dos futuros colonos; constroem ferrarias, de onde sairão as ferramentas agrárias; edificam lagares e moinhos, e executam pequenos trabalhos de drenagem nos terrenos pantanosos. Nalguns casos, o Mosteiro entrega aos povoadores toda a Granja, noutros só parte dela, noutros ainda, apenas os terrenos circunvizinhos, que divide em courelas, e cede a cada morador a sua courela com a condição de aí habitar e construir a sua casa» (3). Geograficamente, a torre e a Quinta envolvente situavam-se nas margens da lagoa da Pederneira. Manuel Vieira Natividade (4) cita um documento do Tombo de Álvares Martins (1519) no qual se encontra escrito que: «Ainda no ano de 1315 o mar fazia um lago que chegava à Torre de D. Framondo, hoje Macarca e Valado, e se faziam embarcações ao nordeste do lago, da parte do monte S. Bartolomeu». Na mesma obra, ao descrever a antiga silhueta da lagoa da Pederneira, Manuel Vieira Natividade dá-nos algumas indicações que julgamos importantes; ele afirma que ela «acompanhava toda a serra da Vestiaria e, estreitando em frente do Valado, amplamente se estenderia pelo sopé das cadeias de Bárrio, Cela Velha, Quinta do Castelo, Mata da Torre. Um pequeno istmo obrigá-lo-ia a encurvar-se por Famalicão, S. Gião, até à estreita barra…». E isto é pertinente pelo seguinte - na primeira carta de povoação a Alfeizerão, outorgada pelo mosteiro em 1332, o mosteiro concede aos povoadores de Alfeizerão e seus sucessores, as herdades de Alfeizerão, da Mota e da torre de Framondo (Fremõdo) e mais adiante, menciona-se a Várzea Redonda, que julgo não ser outra coisa do que esta margem de perfil encurvado da lagoa que Natividade evoca. E prossegue o texto do foral de Alfeizerão: Depois disso, como parte com o caminho da Cavalariça, que fica para nós, e com a vinha da Torre, a qual fica por termo de Alfeizerão.
        As delimitações do foral de 1332 repetem-se na segunda carta de povoação, datada de 1442. Economicamente, no entanto, a quinta da Cavalariça não terá tido uma importância tão preponderante na região como a quinta da Macarca, da qual Iria Gonçalves (5) encontrou abundantes referências documentais para os séculos XIV e XV. Em todo o caso, no princípio do século XVII, a sua decadência era já evidente. Manuel de Brito Alão (6), depois de descrever a quinta da Cela, diz que estoutro campo, que está mais junto a nós, que chamão o Campo da Cavalariça, que tem aqueles edifícios cahidos, era das melhores propriedades que havia por todas estas partes, ao presente está muito damnificado por haver sobre elle litigio há muitos annos.
         Na Memória Paroquial de 1758, aqui transcrita na publicação anterior, pomos já um pé no tema da torre de D. Framondo: a sumptuosa Quinta dos Religiosos de Alcobaça, é dita ser espaçosa, com quatro celeiros no seu interior, e várias casas de albergaria, ornada de abundantes janelas - Entre esta Quinta, e Campo medea um antyquissimo Castelo a que vulgo intitula ser de Mouros; mas como tão antigo, se acha totalmente demolido e arroinado, em forma que já se não avista, mais que as suas bazes, e fundamentos, e destes se infere ter sido magnifico, e as pedras do seu material são quasi todas de cor preta. Alguns anos depois, Frei Manuel de Figueiredo adianta um pouco mais: A Quinta do Castelo, que é do Mosteiro donatário e consta de capela dedicada à Senhora do Bom Sucesso, imagem muito perfeita e milagrosa, com casas que mandou fazer o Abade Geral Fr. Gabriel da Glória em 1702, como diz a data aberta entre as escadas do frontispício, pomares de espinho, caroço, vinha, campos, olival e pinhais. Esta quinta tomou o nome da Torre de Fremondo e o lugar vizinho, da Torre que estava no circuito da mesma quinta, ao nordeste das suas casas, num elevado outeiro. E dela conhecemos maiores vestígios do que agora existem. Ainda se conservam as suas arruinadas muralhas, formadas de pedra preta e cal com 12 palmos de grossura, fortalecidos com torreões ou cubos; ela foi a baliza com que o abade donatário demarcou o distrito da carta de foro e povoamento da vila de Alfeizerão. Conjeturamos que esta torre foi fabricada quando o mar cobria os campos que lhe ficam ao norte, e exposta às embarcações inimigas para segurança das nacionais: porque para ser fortaleza terrestre ficava mais forte no monte do cabeço, o qual, com maior elevação, lhe faz frente da parte do sul.
         O raciocínio de Frei Manuel de Figueiredo é evidente para quem conheça um pouco o terreno. A sul do monte onde se encontra a torre de D. Framondo, o Cabeço da Guarita (Guarita – torre, vigia), ergue-se um monte ainda mais elevado, hoje conhecido pelo nome de Cabeço da Espera, de igual formação vulcânica. Esse seria o lugar ideal para uma fortaleza, se a dita torre fronteira não estivesse dedicada a velar pelas águas da lagoa e pelos barcos que por ela singravam. Não obstante essa constatação, as ruínas da Torre (as torres redondas e muros, a cisterna) ou a sua parte melhor conservada, estão posicionadas na parte sul desse cômoro, e não a norte, na direção da antiga lagoa. Há uns anos largos, inquiri a algumas pessoas de Famalicão (entre elas, a minha avó, Maria Madalena Justino, uma saudosa anciã de olhos azuis que era um tesouro de sabedoria e memórias) sobre o nome do Cabeço da Espera, e só me souberam dizer que era nesse cabeço que ficavam de atalaia os caçadores em Famalicão, o que não adianta muito ao conhecimento geral.

Os dois Cabeços vistos da A8
O da direita é o Cabeço da Guarita, com a torre "mourisca"

        A torre de D. Framondo, no entanto, merece mais algumas linhas. Manuel Vieira Natividade (op. cit.) diz que a Torre de D. Framondo deve o seu nome a ter pertencido a um «mouro rico e potentado»; ao que contrapunha Eduíno Borges Garcia em 1966 (7), que Framondo parece um antropónimo visigodo (8). Numa outra publicação (9), Borges Garcia contraria um pouco essa ideia, sugerindo uma origem árabe para esta fortificação: «Na primeira metade do século IX, os piratas normandos começam a afligir as costas da Península, o que promove um recuo das populações para o interior e para os estuários acastelados. Essas incursões, que se repetiram até ao século XI, eram de curta duração, mas muito temidas. Quem sabe se a Torre de D. Framondo não estará relacionada com esse período?».
        O que sobrevive da torre de D. Framondo (tirando o que está oculto pelos sedimentos e pela vegetação, à espera de mais escavações) são muros e torres de cubelo redondo, que apresentam algumas semelhanças com as torres e muros do castelo de Alfeizerão. Era uma ideia comum em arqueologia, considerar-se que as fortalezas de torres redondas eram de construção cristã, enquanto as fortalezas com torres de planta quadrangular se deveriam atribuir aos mouros; mas essa é uma ideia-feita que já se encontra ultrapassada (10). A torre de D. Framondo e o castelo de Alfeizerão podem muito bem ter origem e feitura islâmica.
        Numa entrevista feita por Pedro Penteado a Pedro Gomes Barbosa (jornal O Alcoa, de Alcobaça, de 26 de Setembro de 1985), este arqueólogo e historiador informa que mostrara a planta da torre de D. Framondo a Michel Terrasse, historiador e especialista em arquitetura islâmica, e que este opinara que se estava perante a planta de um ribate muçulmano, «uma fortaleza de cavaleiros-guerreiros, ligados à Guerra Santa».
        Torre de D. Framondo e castelo de Alfeizerão, duas fortalezas de defesa e refúgio em duas lagoas distintas.


Notas:

(1) Documento publicado por João Martins da Silva Marques no primeiro tomo de Os Descobrimentos Portugueses, edição do Instituto para a Alta Cultura, Lisboa, 1949.

(2) Barbosa, Pedro Gomes - Povoamento e Estrutura Agrícola na Estremadura Central – Séc. XII a 1325, Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, 1992.

(3) As Granjas do Mosteiro de Alcobaça, in Obras Várias, volume II, de J. Vieira Natividade, Tipografia Alcobacense, Alcobaça, s/d.

(4) Mosteiro e Coutos de Alcobaça, Tipografia Alcobacense, 1960.

(5) O Património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV, Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, 1989.

(6) Antiguidade da sagrada imagem de Nossa S. de Nazareth : grandezas de seu sitio, casa, & jurisdiçaõ real, sita junto à villa da Pederneira, impresso na Oficina de Joam Galram, Lisboa, 1684.

(7) As Torres e os Fachos na lagoa da Pederneira – A Torre de D. Framondo, separata do Arquivo de Beja, Beja, 1964.

(8) A etimologia suporta esta suspeita de Borges Garcia. Fremõdo, Framondo, Framundo, são algumas das grafias do nome da torre e do lugar nos documentos, e José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, volume II, Editorial Confluência, Lisboa), a propósito dos topónimos Freamunde e Fremundi, afirma serem estes o genitivo do antropónimo germânico Fredemundus, que era composto por frithus («paz») e munths («proteção»).
     Fredemundo e Fremundo eram antropónimos correntes entre visigodos e suevos.
     A torre de Framondo, como a conhecemos, pode ser de origem árabe mas ter sido construída sobre fundações anteriores, visigóticas ou romanas.

(9) As Torres e os Fachos na lagoa da Pederneira – O Castelo da Póvoa de Cós, separata do Arquivo de Beja, Beja, 1970.

(10) vd. a dissertação de Fernando Branco Correia: Fortificações de iniciativa omíada no Gharb al-Andalus nos séculos IX e X - hipóteses em torno da chegada dos Majus (entre Tejo e Mondego).


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