sexta-feira, 27 de março de 2015

As Memórias Paroquiais de 1758 de Famalicão da Nazaré


     Famalicão da Nazaré, foi termo das vilas de Alfeizerão e da Pederneira, dividida por isso em Famalicão de Baixo e Famalicão de Cima com a "fronteira" administrativa delineada pela estrada que ligava as duas vilas. Mas no entanto, e um pouco em contradição, era sede de uma paróquia comum (Nossa Senhora da Vitória) que englobava os moradores dos dois lados da estrada.

     As Memórias Paroquiais de 1758 de Famalicão da Pederneira (ïhiperligação), podem ser encontradas no Dicionário Geográfico de Portugal, tomo 15, nº 15, páginas 73 a 80. Publicamos aqui as Memórias de Famalicão, intercalando os fólios originais com a sua transcrição, deixando para outras "visitas" ao texto algumas considerações sobre temas aí tratados, como sejam a torre de D. Framondo ou a Quinta da Cavalariça.
   


Inscrição da Freguezia de Famelicão 

          Fica este lugar, e Freguezia de Famelicão na Estremadura e Patriarcado de Lisboa comarca da cidade de Leiria. Pertence o dito lugar a dous termos; ao da Villa de Alfeizerão, e ao da Villa da Pederneira. Da estrada p[ar]a baixo que medea o dito Lugar e Freguezia, he termo da Villa de Alfeizerão, a que chamão Famelicão de baixo, e da dita estrada p[ar]a cima he do termo da Villa da Pederneira; mas hum e outro termo freguez e sogeito á Parochial de N. Senhora da Vitória deste lugar; Advertindo porém que esta Igreja foi antigamente anexa a duas Freguezias; a saber: Os Fregueses do termo de Famelicão de baixo erão sogeitos á Parochial da Villa de Alfeizerão, e os do termo de Famelicão de cima, á da Villa da Pederneira; Atendendo outrossim os Antigos á Larga e extença distancia que medea deste Lugar a huã, e outra Villa por cuja razão não podião inteiramente e sem excessivo trabalho exercer as Parochiais funções na administração dos Sacramentos; pozerão com efeito neste Lugar hum cura, e unidos os dous termos, ficarão sendo Freguezes desta Parochial de Nossa Senhora da Vitória, ficando separado hum e outro termo de Paroquianos das ditas Villas; por cuja separação ficou a fábrica desta Igreja obrigada a contribuir anualmente dous arrateis de cera a cada huã destas Igrejas. Passados alguns anos determinouse fazerem-se os Parochos desta Igreja Vigários colados, e comigo que actualmente o sou; tem avido da sua ereção a esta p[ar]a oito vigários. 
 Desta



          Desta Freguezia he Donatário o Dom Abbade Geral do Mosteiro de Alcobaça que actualmente he o Reverendíssimo P.e Fr. Manuel de Barboza.

          Tem esta Freguezia duzentos, e dezassete vizinhos. Tem seiscentos, e trinta, e seis pessoas mayores, e cento e quinze menores.

          Está assituada a dita Freguezia em um valle todo areozo por cuja razão se faz pouco apprazivel e menos frutuosa por lhe ficar encostada a Serra da pescaria de que adiante farei menção, e outro Monte da Freguezia da Cela; e por conseguensia se não descobrem Povoaçoens.

          A Igreja Paroquial está assituada no meyo deste lugar. Não tem lugares de que se faça menção; ainda que por despersa compreenda vários Casaes, e aos principaes e mayores; lhe chamão de per si, Rapozos; Macarca; Rebollo; Mata da Torre, Cazaes de Baixo e Serra.

          O Orago desta Igreja he de Nossa Senhora da Vitória. Tem trez Altares; a saber: O Altar Mor com o Sacramento, o do Divino Espírito Santo, e das Almas. Também tem seis Irmandades, a saber: a



          A do Santíssimo Sacramento, do Divino Espírito Santo, de Nossa Senhora do Rozario, do Martyr S. Sebastião, de Santo António, e das benditas Almas do Purgatorio. 

          O Parocho de que já fiz menção, he Vigário Collado, pello Ex.mo Senhor Cardial Patriarca, mas com aprezentação in solidum do Reverendíssimo Dom Abbade Geral de Alcobaça, como Senhor Donatário. O rendimento da dita Igreja consta de hum moyo de trigo, de huã pipa de vinho e doze mil reis, que tudo dá o dito Mosteiro de Alcobaça, e o mais que dá pé de Altar, regulando huns annos por outros, terá o rendimento de cento e dez até cento e quinze mil reis, preço mais, ou menos. 

          Tem a dita Igreja huã cappella anexa do titulo de Santo António nos cazaes dos Rapozos, a causa da sua erecção foy pella commodidade que aos seos moradores faz, ouvindo nella Missa; nos dias de preceito; p[ar]a o que pagão annualmente a hum Cappellão, indo este lá dizerlha; a fim de se escuzarem os mais dos seos moradores de virem á sua Parochial, porque alem de ter sua longitude; se faz seu caminho pouco vadiável; principalmente no tempo de inverno; E a



          E a dita Cappella foy mandada benzer p[ar]a nela se Celebrar a primeira Missa pello Emminentissimo Senhor Cardeal Luís de Souza, Arcebispo de Lisboa, como consta da sua provizão, passada em dez de Junho de 1701

          Os frutos da terra que seos moradores recolhem em mayor abundância, são trigo, milho, e feijão. Também a dita terra produz suficientemente cevadas, centeyos, tremossos, favas, ervilhas e outros legumes desta qualidade; como também vinhos. Tem poucos arvoredos, e por consequensia poucas frutas; e só he abundante de figos; porque se vê revestida, de altas, e frondozas figueiras. 

          Junto a este Lugar está huã sumptuosa Quinta dos Religiosos de Alcobaça, a que chamão a Quinta da Cavalhariça [Cavalariça], he espaçosa, tem quatro celeiros no seu interior, varias cazas de abeguaria, ornada de abundantes janellas, e das que fronteão o Norte, se discobre hum dilatado Campo dos ditos Religiosos, que em abundancia fertiliza muito milho, e feijão; junto a este se avista também hum celebrado Campo chamado O Dornas; o qual se acha inculto pella exonoração e regresso das suas agoas que por muito copiosa são e está sendo uma famosa Lagoa em que se veereão varios curiozos,
va



          vadiando-a em barquinhos e caçando nella muitas Adens e outras aves de arribação, que em abundancia ali vão pastar. 

          Entre esta Quinta, e Campo medea um antyquissimo Castelo a que vulgo intitula ser de Mouros; mas como tão antigo, se acha totalmente demolido e arroinado, em forma que já se não avista, mais que as suas bazes, e fundamentos, e destes se infere ter sido magnifico, e as pedras do seu material são quasi todas de cor preta. 

          He este dito Lugar Couto do Mosteiro da Villa de Alcobaça, do qual a dita villa he cabeça e o Mosteiro Senhorio. 

          Dista este Lugar da Cidade de Lisboa Capital do Patriarchado dezoito léguas. 

          Acha-se no interior das fazendas da Quinta chamada das Donas no arrabalde deste Lugar, huãm nativa agoa stagnada, a qual sabe bastantemente tepida; Não consta de suas virtudes, talvez por não



          ser espirimentada, e esta retrocedeu na occasião do impetuoso terramoto do anno de 1755. Mas passados poucos dias tornou o seu ser em que existe. Também me parece ser justo trazer á Memoria que este dita dita agoa por sua esquipatica qualidade não costuma degerir, nem cozer qualquer casta de legumes; Mas antes a esperiencia tem mostrado, que por mais que os ditos legumes fervão na dita agoa p[ar]a haverem de se cozerem a lume então se vê que indurecem mais; isto he o contrario do que ordinariamente sucede metendo na dita agoa carne, peixe, ervas e outras quaisquer qualidades; por que estas coze perfeitamente como outra qualquer agoa. 

          A Serra desta fregezia de que posso fazer menção, é a chamada Serra da pescaria, esta como pequena, terá de seu comprimento, e extenção legoa e meia, principia nas pontes da barca, caminho que vay p[ar]a a Villa da Pederneira, e tem seu fim no forte da Villa de S. Martinho, e por consequensia se vê que fica ao lado do Mar Oceano. 

         A sua largura como mais pequena compreende larga meia légua, a dita largura, principia deste Lugar de Famelicão, e conclue nas Margens do dito Mar.
Tem



          Tem a dita Serra em si vários cazaes, e a Longo della, nas Margens do Mar, tem o Exmo. Marquez de Abrantes, huã Quinta, que produz em abundância trigo, milho, cevada, e outros legumes, etc

          Junto ás Cazas da dita Quinta está fundada uma Irmida consagrada em louvor de S. Gião, e como esta totalmente se acha demolida e arroinada por sua immemoravel antiguidade, mandou um Dr. Vizitador em Capítulos de visita se tresladasse o dito Santo p[ar]a a Igreja Parochial desta Freguezia, por achar indecente a existencia do dito Santo em Lugar tão improprio, com tão pouca veneração e culto. E por isso se acha agora nesta dita Igreja no Altar do Divino Espírito Santo, a onde o povo o venera, e louva com devoção. 

          Nas costas desta Irmida se acha huã pedra comprida bem lavrada, como cousa dezestimada jaz entre huns silvados e tem um mal figurado letreiro, cuja significação se pode ver na Monarchia Luzitanea; primeira parte Livro 3, fl. 319. E neste próprio Lugar estão mais duas pedras compridas metidas no chão, como marcos, que se diz serem
Se



          Sepulturas de Mouros, cujas letras ainda se divizão claras. 

          Apartado desta Quinta da Irmida de S. Gião cousa de dous tiros de besta contra o Norte, havia antigamente huã fortaleza não muito sumptuosa, e esta por sua antiguidade se acha dissipada; e totalmente demolida. O fim e ministério da dita torre, dizem seria p[ar]a que esta tivesse lume de noite para que as barcas, e navios de pescaria atinassen o porto por onde havião de entrar quando viessem de noite para que aquella costa, que já no tempo de agora não admite em si embarcações por não poderem entrar pella foz do rio, q[eu] se acha impedido com muitos baxos de area, que o continuo movimento do mar faz em toda aquella praya; e supposto que a torre está de todo desfeita e a pedraria della levada em barcos p[ara] lastros de navios, ainda ali se vê huã pedra com outro letreiro esculpido. 

           A mayor parte da dita Serra he cultivada pelos seus moradores, a qual produz suficientemente trigo, milho, feijão, cevada, ervilhas, favas, e como se vê he aspera e falta de agoas, mas produz outros frutos de mimo. 

           A qualidade de seu temperamento he fria, aspera e dezabrida pelo excessivo impulso que ali faz [o vento] do Norte, por cuja razão se não podem conservar vinhas, e arvores de fruto. 

          A cassa que a dita Serra em si cria, são coelhos, lebres, e também algumas perdizes, e os gados que nella se crião, são cabras, ovelhas, e boes. 

          Isto he o de que posso dar conta nesta m[inh]a Freg[uesia] deduzido de huã exacta dilig[ência] que fiz, nesta inquerição a qual he verdadeira, e não faço menção dos mays interrogatórios, por delles não ter que dizer neste Fregª.  Famelicão 2 de Jullo de 1758 


 O Vig[ario] M[anu]el de Moraes



quarta-feira, 25 de março de 2015

O FERRO-VELHO - um conto de Fernando Perfeito de Magalhães

Detalhe de uma festa tauromáquica na Quinta do Fróis (imagem integral em anexo, no final do conto)


O FERRO-VELHO
________

Alfeizerão

            O grande pátio retangular, fechado de dois lados pelos dois corpos em esquadria da vasta habitação do conhecido ganadero e cavaleiro tauromáquico Vitorino Fróis, do outro pelo muro costeiro do alpendre de uma enorme eira e pelo outro por forte paliçada, cheio de Sol e movimento, estava já repleto de espectadores que se agitavam ansiosos pelas janelas das casas e pelos palanques construídos para que as numerosas senhoras assistissem, sem perigo, a um dos espetáculos mais queridos da nossa sociedade e talvez dos mais interessantes e genuinamente nacional.
            Oferecia uma vacada, o estimado proprietário às numerosas famílias suas conhecidas que nesta quadra do ano veraneavam na vila das Caldas da Rainha e na praia de S. Martinho do Porto.
            O interesse era grande, pois o corajoso cavaleiro lidaria as suas vacas em hastes limpas e os peões de brega, amadores conhecidíssimos, as bandarilhariam também desemboladas.
            Toda aquela já excitada multidão saudou, à entrada na liça, o simpático cavaleiro que garbosamente montava um dos seus mais puros e soberbos cavalos de combate, percebendo-se que o belo animal se orgulhava de sentir sobre os seus nervosos flancos, o melhor calção dos cavaleiros portugueses.
            As palmas só cessaram quando se abriu a porta do curro, dando passagem à primeira vaca que, furiosa, atravessou de cabeça baixa, na ponta da unha, todo o comprimento do pátio, até entestar com a fronteira paliçada. Ali, virou-se e quedou, encostando os quartos traseiros às tábuas, escarvando a terra.
            O cavaleiro, sorrindo, apertou levemente os joelhos na sela e aproximou-se da cabeça da fera, citando-a com um ferro curto que erguia na mão; passou duas ou três vezes destemidamente pela frente da rês, que parecia não fazer caso do desafio. Pela última vez, o cavaleiro cingiu-se tanto às hastes da vaca que esta abaixou a cabeça e o nobre corcel, com todos os seus músculos retesados nervosamente, deu uma soberba upa que parecia ser um aviso ao arrojo do dono. Era evidente que a vaca estava na querença. Então, um dos Lumiares lançou-lhe destramente o capote aos olhos para a tirar daquele sítio. A rês fez menção de correr ao vulto, mas quando o viu coberto pela capa, estacou.
            Aquela fera era astuciosa...ou não fosse ela feminina!
            O Lumiares insistiu, mas a vaca só procurava o vulto, não arrancava ao capote.
            Entretanto, entrou no pátio um jovem retardatário que se dirigia alegremente ao palanque para nele tomar lugar como espectador; mas uma voz solta de uma das janelas bradou-lhe irrefletidamente: «Ó Ferro-velho, faz lá uma pega!».
            O nosso Ferro-velho era um rapazito alegríssimo dos seus quinze anos, aparentando já uma sadia robustez, muito querido entre a seleta colónia balnear de S. Martinho do Porto, primorosamente atencioso para as senhoras de idade, cavalheiríssimo para as damas, e valente.
            A sua educação, moldada nos austeros princípios das qualidades morais do brio e do pundonor, tinha-lhe granjeado a estima sincera de muitos e a inveja de alguns.
            O seu sobrenome de Ferro-velho, tinha-o adquirido por ter um dia atrevidamente posto fim a uma interminável discussão entre sisudos engenheiros sobre horários e atrasos de comboios, alcunhando-os de ferros-velhos, maliciosamente. Toda a gente o tratava desde então por aquele sobrenome.
            O jovem, ao ouvir a piada de Sol que lhe era dirigida, parou a meio do pátio e olhou sorrindo para o palanque e janelas repletas de senhoras, encantado daquele vistoso e garrido espetáculo, e logo várias vozes repetiram: «Faz lá uma pega, ó Ferro-velho!...». Aquilo foi um rastilho; senhoras, homens, rapazes, eivados da inconsciência egoísta das multidões, rindo, batendo palmas, delirando, bramavam: «Ferro-velho…Ferro-velho…uma pega…uma pega…».
            O rapaz empalideceu, pois nunca tinha visto de perto qualquer rês brava, era ignorante da arte tauromáquica, e desconhecia em absoluto como se poderia executar aquilo que lhe exigiam.       Percorreu com o olhar aquela implacável multidão ensandecida e leu talvez no rosto dalguns, a ironia.
            Então, o seu pundonor beliscou-o.
            A vaca continuava na querença, encostada às tábuas, apesar dos esforços dos destemidos Lumiares. Toda aquela sociedade vociferava, animalizada e sedenta de cenas sinistras e violentas que lhe sacudissem os nervos flácidos da sua vida folgada.
            De súbito, viu-se o Ferro-velho correr, resoluto, direito à vaca. Os Lumiares ainda tentaram impedir aquela loucura, mas o brioso rapaz não lhes deu tempo e a vaca arrancou por fim para o vulto descoberto. Como por encanto, um silêncio brusco esmagou aquela mó de gente, muitas espectadoras viraram os rostos, alguns peitos arfaram opressos e tudo se imobilizou sinistramente.
            Só o Vitorino Fróis, sobre o seu nobre ginete, sorria. Só ele tinha visto que o rapaz caíra milagrosamente bem entre as hastes agudas da fera.
            Efetivamente, o tronco do Ferro-velho cobria por completo o testo da vaca, ambos envoltos em densa nuvem de pó. O animal dava derrotes sobre derrotes, mas aquele dorso parecia estar-lhe colado à cabeça como a ostra ao penedo.
            Os irmãos Lumiares foram os primeiros a quebrar aquela petrificação; um deles rabejou com pulso de ferro a rês, enquanto o outro lhe caía valentemente à cernelha e, mais uns maiorais e dois ou três campinos, aferrando-se aos ilhais, conseguiram domar enfim, por completo, aquela manhosa fera.
            O Chico berrava aos ouvidos do Ferro-velho que se soltasse da cabeça da vaca, mas ele não o ouvia, não se mexia, tinha os olhos fechados; todo ele estava retesado numa crispação. Por fim, os dois irmãos, a muito custo, desligaram-lhe as mãos enclavinhadas na barbela e desenvencilharam-no das armas da rês, dando-lhe ainda algumas palmadas rijas nas costas.
            Endireitou-se enfim o valente dez réis de gente e olhou vagamente em roda.
            Aquela turba então, vendo-o ileso, virou-se do avesso e agora aplaudia delirante numa ovação estrondosa e frenética, desejosa de abafar com clamores a implacável voz da consciência que a condenava da brutalidade inconcebível do seu feroz egoísmo; arrependida talvez, mas um pouco tarde.
            Levaram o involuntário forcado à sala de jantar, obrigando-o a beber alguns cálices de velho vinho do Porto, que o reanimavam daquele violento abalo, fazendo-o enfim assomar às faces o seu simpático e franco sorriso. Alguém, entre aquele numeroso grupo que o rodeava, movido pelo entusiasmo, espontaneamente exclamou: «Bravo, Ferro-velho! Fizeste uma pega rijíssima!».
            Ao que aquele generoso moço, sem a mais leve censura, respondeu galhofeiramente, dirigindo-se àqueles que poderiam ter sido os seus algozes: «Aquilo, rapazes…não era uma vaca!...Era o Facho (1) que desabava sobre mim…fechei os olhos e não me lembro de mais nada…tenho sono!».
            O nosso Ferro-velho, estendido numa cama, adormeceu num sono pesado e seguido de treze horas.
           


(1) O Facho é o monte de maior altitude da costa de Portugal, sito próximo a S. Martinho do Porto.
 [nota original do livro]



Fernando Perfeito de Magalhães e Menezes de Vilas-Boas
OS DEZ-RÉIS DE GENTE de S. Martinho do Porto - Contos Verídicos,
 Companhia Portuguesa Editora, Lda., Porto, 1923




ANEXO 1: 
Legendas: 1 - Um aspecto do pic-nic no pinhal / 2 . Citando um touro para bandarilhas /
3 - As chocas na praça / 4 - Outro aspecto do pic-nic no pinhal

ANEXO 2 : 
Legendas: 1 – Sorte de muleta / 2 – O sr. Ruy da Câmara fazendo uma sorte de morte / 
3 – O fim da corrida / (clichés de Benoliel)




segunda-feira, 23 de março de 2015

O MOLEQUE - um conto de Fernando Perfeito de Magalhães


O MOLEQUE
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            Lá ia ele, alegremente assobiando e conduzindo o seu carro de mão, pejado de dois barris da aguada para os calafates do estaleiro. Todos os dias, por três vezes, cumpria aquela tarefa desde a fonte pública (1) até ao extremo do longo cais deste utilíssimo, mas desprezado, porto de mar.
            Às vezes, parava a descansar, e a sua silhueta esguia e nervosa quedava imóvel entre os banzos do carro, contemplando o mar, lançando-lhe um olhar entre vago e receoso, triste talvez, por não lhe compreender os insondáveis mistérios. Depois volvia de novo os olhos para o carro; a sua face de gavroche (2), com a tez tostada do Sol e dos ventos, abria-se num sorriso alegre, como se visse nele o companheiro fiel e amigo da sua dura vida, e lá ía, cais fora, de pés descalços, assobiando talvez à sua pobreza.
            Os calafates e carpinteiros navais estimavam-no, pois era presto em lhes chegar as ferramentas e a estopa. Rápido como um coelho, saltando alegremente por entre aquele dédalo de obstáculos, de prumos, barrotes, escoras, cachorros e cavernames, servia a todos e era sobretudo muito cuidadoso naquele serviço de água, para que a tivessem sempre fresca.
            Entrava o mês de Setembro; alguns caíques de Olhão atracados ao cais, com os porões repletos já dos preciosos pomos de Alcobaça, destinados à indústria da fruta seca da província do Algarve, impregnavam a atmosfera do perfume intenso e sadio da maçã. Era já tarde, o cais achava-se agora deserto pois há muito que tinha terminado a lufa-lufa da carregação e o mar bastante agitado lambia de quando em vez, com o dorso das suas vagas orladas de espuma, as negras pedras da muralha.
            O Moleque impulsionava naquela tarde, pela derradeira vez, o seu carro de mão na direção do estaleiro. De súbito, vibram no espaço uns brados; algumas mulheres de braços estendidos, dando gritos aflitivos, clamavam por socorro, correndo desordenadamente para a borda do cais e, no desespero da angústia, erguiam as mãos convulsas, implorando à Providência e olhando desvairadas um remoinho que a alvura de um vestido fazia na água.
            O  Moleque acelerou o andamento ao carro, os barris chocavam-se e saltavam desordenados pelos sobressaltos que lhes imprimiam as rotações da roda de ferro, tropeçando ruidosamente nas juntas desniveladas das lajes de granito e, ao chegar junto das desvairadas mulheres, largou-o; olhou o remoinho e empalideceu. Por um segundo, o seu olhar pousou sinistramente sobre a superfície do mar, duas rugas profundas vincavam-lhe a fronte e, irrefletidamente, fez o movimento de se lançar à água. Porém, o intuito de conservação deteve-o: não sabia nadar!
            Mas eis que dá de rosto num argolão de ferro que servia de amarra aos caíques atracados e, rápido, enovelou-se como um chimpanzé naquela argola. Desprendendo um dos seus esguios braços, estendeu-o para o remoinho e numa crispação intensa do seu temperamento nervoso, filou o que emergia ainda da água.
            Era o artelho de uma criança!
            Nada mais pôde fazer naquela crítica posição. As mulheres redobraram o seu alarido desesperado e inútil, mas um vulto rude e esforçado de um algarvio arredou bruscamente o mulherio, e vociferou ameaçadoramente ao pobre Moleque: «Eh, malandro! Não o largues, hein!?». E estendendo-se ao longo do cais, começou a içar aquele esguio [sic] (3) como se fosse um cabo. Em breve depositou os dois fardos nas lajes da muralha. O pequeno náufrago bolsava em abundância água salgada, e então as mulheres tentaram erguê-lo para o levarem; porém, a mão do Moleque crispada como uma tenaz no artelho da criança não o permitia. Foi preciso que o homem do mar fizesse novamente uso dos seus possantes músculos para o obrigar a abrir os dedos.
           Uma mulher pôde enfim levantar nos braços o pequeno desmaiado e correu, seguida de todas as outras, em direção a uma habitação luxuosa, enquanto o nosso Moleque para ali ficava estendido, sacudindo o corpo com os soluços de um choro convulso.
            O algarvio olhou-o - baixou-se e ergueu-o como a uma pena e cingiu-o com força ao possante arcaboiço, e dos seus olhos desprendeu-se uma grossa lágrima, que tropeçando nas rugas fundas da sua face, caiu por fim sobre os cabelos da criança.
            A crise tinha passado!
            O Moleque estava de pé, encarou o homem e sorriu; olhou o mar e o seu semblante velou-se de uma expressão sombria e sinistra, estendeu para o elemento o seu débil e nervoso punho e dos seus lábios soltou-se uma imprecação: «Maldito!».
           Depois deu com os olhos no carro, no seu carro, e todo ele se transformou. A sua fisionomia irradiava uma felicidade imensa, correu para ele, agarrou-o pelos banzos que pareciam dois braços amigos que o esperavam para o cingir também e, sopesando-o, partiu a trote pelo cais fora.
           O homem ficou ali, imóvel, a olhá-lo.
           A noite apenumbrava já com o seu manto os mastros e vergas do caíque, mas aquela silhueta franzina que se afastava destacava-se ao longe, rodeada de uma auréola de luz; levava consigo o augusto prémio de Deus, a humilde lágrima do rude lobo do mar brilhava-lhe entre os cabelos como a estrela da manhã e, por entre o marulhar do mar, ouvia-se o silvo alegre daquela feliz consciência, assobiando estoicamente à sua pobreza.

Dezembro, 1921.


Fernando Perfeito de Magalhães e Menezes de Vilas-Boas 
OS DEZ-RÉIS DE GENTE de S. Martinho do Porto - Contos Verídicos
publicado pela Companhia Portuguesa Editora, Lda., Porto, 1923

      (1) Fonte que era, sem dúvida, a seiscentista Fonte da Praia, que se mantém discretamente num escaninho do Largo Engenheiro José Frederico Ulrich.

      (2)   Gavroche: personagem inolvidável d’Os Miseráveis de Víctor Hugo. Era filho do casal Thénardier mas, enjeitado pelos pais, o rapaz acaba por viver nas ruas, sobrevivendo como podia; é caracterizado pelo romancista como possuindo um coração generoso e um temperamento vivo e alegre.
      (3) Sugere-se a ideia de volume esguio, um só "corpo" com as duas crianças enganchadas pela mão do Moleque. No segundo parágrafo, o autor qualificara já de esguia a silhueta do Moleque.

terça-feira, 17 de março de 2015

TOURO TRESMALHADO - um conto de Francisco Perfeito de Magalhães

Postal com 2 clichés(Bezerros para uma ferra e Touros no campo). Edição F.A. Martins, Lisboa, 1903
(Proveniência da imagem: BMCR - Biblioteca Municipal de Caldas da Rainha)



TOURO TRESMALHADO









fórmula algébrica que deu a Newton o epitáfio para o seu túmulo em Westminster – o célebre binómio – naquele ano da graça de 1891, deram-me a mim uma bicicleta!...Pois com tão valioso brinde, meu pai galardoava a distinção no exame matemático que, aí pela canícula lisboeta de entre Julho e Agosto, coroara de triunfos o trabalho escolar deste seu filho.
            E, logo depois, para retemperar a saúde da família, partíamos todos em caravana veraneante para a pitoresca praia de São Martinho do Porto. Resolvi inaugurar a máquina luxuosa num passeio por aquela estrada que liga São Martinho às Caldas da Rainha, crochetando em duas rectas angulares que apoiam o vértice na aldeia de Alfeizerão; rectas quilométricas de britado macadame (1), planas, unidas, bem cuidadas; uma pista enfim, quase sempre deserta.
            Parti assistido por todo o conselho de família. A minha boa mãe, inquieta, recomendava: «Olha, filho! Toma cuidado com os touros do Vitorino!»… A prudentíssima senhora bem sabia que é pelas lezírias que marginam essa estrada que o conhecido ganadero Vitorino Fróis faz pastar as suas manadas de gado bravio. Ah, as mães!...
            Mas o meu pai sossegou-a: «As valas que separam os campos do caminho, andam sempre cheias de água… De resto, o nosso Francisco já sabe o que faz; está um homenzinho!» - rematou ele, paternalmente desvanecido.
            E todos aplaudiram a desenvolta perícia com que este homem de dezasseis anos montava a bicicleta nova, buzinante e largada na apoteose da minha mocidade, que uma camisola vermelha vestia como uma flâmula triunfadora…
            Deixando a vila, logo me tomou pelas costas um vento do mar largo, tão alegre e buliçoso que fazia rodar a maquineta sem esforço muscular da minha parte e eu, deliciado, feliz, imaginoso, emprestava ao meu próprio espírito a ilusão de que, novo Parsifal, também corria, invencível, para um Montsalvat de sonho, em demanda do cálice místico do Santo-Graal!...
            Nas horas de estalar, é que eu ia, como se costuma dizer (2).
            A menos de um quilómetro de Alfeizerão, avistei um grande vulto escuro, meio escondido por detrás dos troncos das árvores que orlavam a via; dir-se-ia que estava de emboscada!... Era um touro! Um isolado, uma dessas rezes já velhas, que os machos novos vencem e afugentam das manadas das vacas em cio… Esses touros tresmalhados, enraivados pela derrota, são sempre perigosíssimos!
            Não havia dúvida – estava metido em maus lençóis!
            Voltar para trás, com aquele vento tão forte pelo peito, era fazer com que o bicho, em dois saltos, me alcançasse. A salvação seria passar vertiginosamente pela frente do perigo… E não era eu Parsifal, o invencível, o eleito de Deus?... Adiante, pois!...
            Pedalei com fúria, mas o touro, dando conta do vulto estranho, silencioso, brilhante de metais niquelados, variegado de cores berrantes, que avançava sobe ele, perfilou-se no meio do caminho e, num trotezinho dançante, adiantou-se a receber-me… Tive apenas tempo de desmontar, saltando para trás das rodas, que lá continuaram a correr, sozinhas, até às hastes da fera, que logo as enganchou, dando com a bicicleta num alto galho de plátano, onde ficou, lamentosamente, ainda a rodar, pendurada pelo guiador!... Foi o que a salvou a ela, e o que me ia perdendo a mim!...
            O cornúpeto, não vendo cair aquele inimigo que havia volteado para as alturas, avançou no mesmo trotezinho dançarinado para o ciclista que, mal refeito ainda do susto do mau encontro e do abalo do salto rude, não hesitou contudo em lançar-se de cabeça na vala mais próxima, pondo-se em duas braçadas fora do alcance do seu cornudo perseguidor…
            Mas o bicho seguiu-me e o combate, de terrestre, passou a ser batalha naval!... Eu nadava; ele galeava aos saltos quando topava apoio no fundo lodoso do canal, e assim ganhava distância… A vala começou de estreitar para dar passagem a uma ponte que a atravessava; tomei terra e logo o maldito fez outro tanto.
            Felizmente, tive tempo de passar para a outra margem pelo estreito ponteio (3)…
            O touro, teimoso, quis seguir-me, mas a prancha não fora ali posta para a sua corpulência; vergou, e o diabo furioso, escorregando, deu consigo na água, de onde ficou a olhar para mim, que, ofegante, me sentara a meio da ponte salvadora, a insultá-lo com os piores nomes do meu repertório de estudante. Por fim, chamei-lhe homem – o doesto que mais adequado encontrei para classificar aquela falsa-fé no ataque, e este encarniçamento na cilada… E assim ficamos toda a santíssima tarde em patético idílio!
            Pela charneca profunda, nem vivalma; pela imensa estrada, ninguém!
            Caída a noite, ele mugiu de impaciência, talvez de frio, pelo prolongado banho. Afastou-se, para voltar uma outra vez a espreitar a sua vítima… Escarvou, tornou a mugir longamente e, por fim, desapareceu no escuro da lezíria…
            Era já bem tarde quando eu, encharcado Parsifal, entrei em casa, onde toda a gente, alarmada com tanta demora, se impacientava em sobressaltos…
            No dia seguinte, a máquina brilhante, depois de retirada do seu nicho aéreo, dava entrada numa enfermaria de bicicletas, e o ciclista guardava-se no leito, a consertar de uma fortíssima bronquite.
            O Santo Graal ficara, mais uma vez, por conquistar! Mas a moral ganhara com esta finalidade: as mães têm sempre razão, mesmo quando aconselham os Parsifais magníficos, seus filhos, a terem a prudência do resto dos mortais.


 Francisco Perfeito de Magalhães e Menezes de Villas-Boas,
Quarenta Contos – Narrativas Breves
Typographia Fonseca, Porto, 1924



            (1) Este conto, como os dois que se seguirão, foram objecto de algum trabalho de edição, mínimo e parco. Atualizamos algumas palavras na grafia ou acentuação, e pouco mais. Conservamos, por norma, as palavras de que o narrador se serviu, mesmo que elas tenham caido entretanto em desuso (permanecem, contudo, nos dicionários, com a dignidade das suas antigas roupagens). Proceder de outra forma, iria empobrecer e vulgarizar o texto literário original.
            (2) Horas de estalar, é uma expressão que traduz pressa, rapidez, como era o caso da bicicleta do Francisco. Num sentido coerente, chegar nas horas de estalar significa chegar às pressas, à ultima da hora.
           (3) Um ponteio é uma ponte estreita para peões; o nome originou-se de ponteiro, peão condutor de gado.

sábado, 14 de março de 2015

A família PERFEITO DE MAGALHÃES – um apontamento sobre dois irmãos

                     A história recente de São Martinho do Porto, a sua prosperidade, é indissociável das suas condições idílicas como estância de veraneio (não falemos do clima inconstante, porque até as terras têm direito aos seus caprichos), e da beleza da enseada e a variedade de ambientes e cenários que lhe estão associados - a praia curvilínea e feminil, as dunas ciclópicas de areia de Salir, os morros alcantilados, e as agrestes arribas marinhas procuradas por pacientes pescadores e caminhantes contemplativos. Ao longo do século dezanove e alvores do século seguinte, São Martinho consagra-se como a praia de eleição das famílias aristocráticas ou de posses e local de descanso do agrado da casa de Bragança. As ocupações e divertimentos desfrutados por esses banhistas ociosos são evocados com nostalgia por João António de Oliveira e Sousa, o Marquês de Rio Maior, nas crónicas que escreveu no jornal O Alcoa. A caldeirada à fragateiro em porções pantagruélicas que era cozinhada na própria praia e que juntava à sua volta uma pequena multidão de comensais; as caminhadas salutares pelos montes em redor; ou as toirinhas de beneficência organizadas pela colónia balnear, onde os donzéis lidavam um toiro simulado: uma canastra «que simbolizava o cornúpeto», envergada por um dos rapazes da terra.

     Esse ambiente de lazer e festa, animou os anos de juventude dos dois irmãos que trazemos a estas páginas: Francisco Perfeito de Magalhães e Menezes de Villas-Boas, o primogénito, que herdou o título de conde de Alvellos, e um dos seus quatro irmãos, Fernando Perfeito de Magalhães e Menezes de Villas-Boas. Ambos com percursos biográficos e literários singulares, e que possuem a particularidade de terem escrito versos e contos onde reencontramos a nossa região, e através dos quais se percebe desveladamente o amor que lhe tinham. Estes contos foram-nos amavelmente facultados pelo bisneto de Francisco Perfeito de Magalhães, Luís Mascarenhas Gaivão, que mantém uma página (o Pretérito Perfeito) consagrada à história e realizações da família Perfeito de Magalhães, e aos temas a ela imbricados: a casa da Corredoura, as Águas de Cambres, o título de Conde de Alvellos, etc. Essa página é um ótimo repositório de dados sobre a família e foi-nos muito útil no processo de pesquisa. Numa página monográfica como essa, o conteúdo nunca se esgota e é atualizado por aditamentos e reformulações; pelo que, solicitávamos a quem possuísse dados sobre a família ou as suas obras, que tivesse a gentileza de os comunicar ao endereço eletrónico da página, omaganifico@gmail.com (estou a pensar particularmente nas pessoas que se dedicam ao estudo da história e da cultura da vila de São Martinho do Porto, local de férias, mas também de trabalho, dos dois irmãos).

      Francisco Perfeito de Magalhães e Menezes de Villas-Boas (1875-1960), herdeiro do título de Conde de Alvellos, conhecerá na sua juventude o ócio ameno das margens da enseada de S. Martinho do Porto, que deixará a sua branda marca nalguns poemas que escreveu. Esteve em Moçambique, onde trabalhou na administração aduaneira da província ultramarina, e regressa à metrópole em 1904. A implantação da República empurra-o para o exílio no Brasil. Durante os anos de 1911 e 1912, participa nas incursões monárquicas no norte do país, cujo insucesso o conduz a um novo período de exílio político que o levará sucessivamente a Madrid, à Galiza, a Londres, e de novo à Galiza (o desterro será um dos motes amargos da sua escrita). No Verão de 1915, termina o seu exílio político, e regressa finalmente ao país, onde, em 1918, se torna senhor da Casa da Corredoura após o falecimento do pai, o engenheiro Francisco Perfeito de Magalhães e Menezes. Defensor apaixonado da causa monárquica, pugnará incansavelmente por ela até ao fim dos seus dias no seu labor político e literário.
     Como autor, deixou-nos uma extensa obra repartida por poemas, contos, novelas e ensaios. O conto que aqui traremos, Touro Tresmalhado, integra o livro Quarenta Contos – Narrativas Breves (edição da Typographia Fonseca, Porto, 1924); e entre os seus poemas, como aqueles que constituem os seus Cantares – Versos de Moço (Typ. dos Caminhos de Ferro do Estado, 1905), existe um muito especial, que aqui recordamos porque está gravado no painel de azulejos da frontaria da emblemática capela de Santo António, em São Martinho do Porto:

SANTO ANTÓNIO

Do nicho d'esta capella,
Que está em cima do monte,
P'ra proteger todo o mar,
O santo fica a rezar,
Se vê sumir-se uma vela,
Na linha azul do horizonte!

E reza, reza - coitado,
Porque, em terra ha mais d'uma,
Mais d'uma noiva, que o santo,
Não quer que tenha por manto,
Por alvo veo de noivado,
Uma murtalha de d'espuma....

Francisco P. de Magalhães e Menezes

São Martinho, 1896



     Fernando Perfeito de Magalhães e Menezes de Vilas-Boas (1880-1958), nascido em Marco de Canavezes, e filho do segundo Conde de Alvelos, Francisco Perfeito de Magalhães e Menezes, divide os anos da sua juventude entre a casa dos seus pais em Cambres, Lamego (a Casa da Corredoura) e estadias no Porto, em Lisboa e São Martinho do Porto. Tira o curso de arquitetura, concluído em 1899, e desenvolve o seu trabalho, em grande parte, ao serviço da CP, na qual é nomeado em 1923 Arquiteto de Via e Obras, categoria técnica que desempenhou durante um quarto de século. Fernando Perfeito de Magalhães desenhou centenas de projetos, alguns na vila de São Martinho, e dedicou-se com afinco a um grande projeto de conjunto para esta vila que não passou (infelizmente) do papel, porque constituía um oportunidade dourada para esta vila crescer de uma forma ordenada e equilibrada na orla da enseada. O projeto contava com o eventual investimento de financeiros destacados como John George e José de Azevedo Castelo Branco, e preconizava uma série de edifícios e estruturas a erguer ao longo da marginal que incluíam um moderno estabelecimento balnear onde seriam aproveitadas as águas medicinais de Salir do Porto. Este projeto, delineado no ano de 1920, intitulava-se Plano Geral do Desenvolvimento Industrial e de Turismo de S. Martinho do Porto e propunha a criação de diferentes equipamentos turísticos como dois hotéis, um clube náutico, um Casino que incluiria também um conjunto de lojas (ao que hoje chamamos centro comercial), um parque, um bairro de moradias, uma praça de touros, um clube desportivo (o Stadium) com campos de ténis e campo de jogos, e um hangar para hidroaviões (1).

     Os temas a que se dedicou Fernando Perfeito de Magalhães são diversificados. O Marquês de Rio Maior apresenta assim este seu amigo: «artista, da planta dos pés à ponta dos cabelos, entusiasta cultor das tradições portuguesas, grande amigo de São Martinho do Porto, onde residiu muitos anos e mereceu, pela sua perícia na arte da pesca, o título de Mestre-Pescador, e conhecedor, como poucos, da linda região» (São Martinho do Porto, artigo no jornal O Alcoa, de Alcobaça, nº35, de 22 de Agosto de 1946). No mesmo artigo, o Marquês de Rio Maior refere um conjunto de 241 fotografias de castelos tiradas pelo arquiteto, e exibidas em 1936 numa exposição na Sociedade de Propaganda de Portugal. O mesmo arquiteto e artista interessou-se (documentando) pelos moinhos portugueses, pela arquitetura tradicional, pelos relógios de sol e, e isto devemos destacar, pelos pelourinhos de Portugal, dos quais realizou 223 aguarelas diferentes, reunidas e publicadas apenas em 1991 (Pelourinhos Portugueses, com texto de Vasco da Costa Salema, pelas Edições Inapa, Lisboa). 

     A sua atividade literária está disseminada por jornais e revistas, e deu forma a alguns livros. Um deles, um livro de contos, ficcionaliza, pelo que o título sugere, pessoas e peripécias autênticas que conheceu em São Martinho do Porto. OS DEZ-RÉIS DE GENTE de S. Martinho do Porto - Contos Verídicos, foi publicado no Porto em 1923 pela Companhia Portuguesa Editora, Lda., e conta com ilustrações de Emmerico Hartwich Nunes. Cada conto representa a(s) aventura(s) de uma criança ou adolescente (os dez-réis de gente), narradas com um realismo cercano e tangível. De entre eles, escolhemos dois para os publicar aqui: O Moleque, e O Ferro-Velho, este, passado na Quinta do Fróis.



(1) A fonte imediata para o que escrevemos sobre o projeto é um artigo de Susana LOBO (A Colonização da Linha de Costa: da Marginal ao Resort), mas servimo-nos também de outras textos eletrónicos, sendo que quase todos aludem a uma tese, que não consultamos, de Eduardo Cardoso Mascarenhas de Lemos: 
MASCARENHAS DE LEMOS, Eduardo Cardoso “Desenvolvimento de conceitos Urbanísticos : Contexto Nacional e Internacional - O Actor, O Arquitecto e os Outros”, in, Modelos urbanos e a formação da cidade balnear. Portugal e a Europa, tese de doutoramento em Arquitectura, especialidade de Planeamento Urbano, Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Wroclaw, Polónia, 200&.


Imagem do Plano... desenhado por Fernando Perfeito de Magalhães

sábado, 7 de março de 2015

João de Sousa Brito: Entrevista a José Rino de Avelar Fróis (jornal O Alcoa, de 20/10/1949)


José Rino de Avelar Fróis, com a esposa e os 23 netos mais velhos (1)


O SENHOR JOSÉ RINO FRÓIS fala a O ALCOA
Por João de Sousa

Entrevista noturna. A Quinta de Alfeizerão adormecera já, no silêncio escuro da noite, comodamente recostada sobre os fofos areais das dunas de S. Martinho.
Mal saímos do carro que nos havia conduzido, logo avistámos o sorriso acolhedor e afável do Sr. José Rino Fróis. S. Exª já conhecia o fim que ali nos levava e por isso, sem mais preâmbulos, entramos decididamente no assunto.
- Podia o Sr. Fróis contar-nos as origens desta bela Quinta de que é proprietário?
- Esta Quinta fazia parte de uma grande propriedade que se compunha da maioria dos campos de Alfeizerão e que em 1797 era pertença do Sr. Francisco Manuel D’Affonseca e Silva. Conservo nos meus arquivos, datada daquele ano, uma planta feita em braças, levantada sob as ordens do Tenente Coronel Guilherme Elsden, pelo Capitão Engenheiro Joaquim de Oliveira e pelo ajudante Ricardo Franco de Almeida e Serra.
«Passou a propriedade para um sobrinho do Sr. Francisco Manuel D’Affonseca e Silva, o Sr. João Pereira da Silva D’Affonseca, fidalgo da Casa Real com exercício no Paço que por escritura de aforamento perpétuo feita em 30 de Setembro de 1857 no Palácio dos Condes da Lapa, em Lisboa, a passou para seu primo José Vitorino D’Affonseca Frois (2), meu avô, e para o Sr. José da Trindade Leitão.
«No ano de 1861 foi a propriedade dividida entre o meu referido avô e o Sr. José da Trindade Leitão, que tiraram à sorte os dois lotes, cabendo ao primeiro a parte sul e tendo sido estas moradias por ele já construídas. A parte que coube ao Sr. José da Trindade Leitão passou a denominar-se Quinta de S. José (por ali existir uma capela dedicada a S. José) e a outra parte Quinta Nova de S. José, mais correntemente conhecida por Quinta de Alfeizerão».
- A esta Quinta está ligada uma gloriosa tradição de touros, não é verdade?
- Atualmente tem uma pequena ganadaria em pequena escala. Mas o meu avô já foi criador de reses bravas. Contudo, a ganadaria da casa atingiu o seu maior expoente nos tempos do meu pai, Vitorino de Avelar Fróis, pela aquisição que fez ao Conde de Três Palácios (Cáceres) de um semental e vacas da sua ganadaria.
«Nessa mesma altura, e por incumbência de El-Rei D. Carlos, adquiriu meu pai também vacas da mesma procedência para a Casa de Bragança, que as cruzou com semental de Ibarra, dando origem a uma vacada de grande renome.
«Meu pai foi ainda exímio na arte de bem cavalgar e lidar toiros. Da «Escola de Alfeizerâo» saíram artistas e amadores de grande nomeada. Às «tentas e faenas do campo» acorreram aqui os mais célebres toureiros espanhóis».
- E, diga-me, El-Rei D. Carlos também por aqui vinha?
- Assim foi. El-Rei comprazia-se muito em vir à Quinta de Alfeizerão. Fosse para caçar ou para assistir às lides taurinas. Por aí vemos algumas fotografias relembrando essas visitas. Também aqui vieram, com muita frequência, o Sr. Infante D. Augusto e mais tarde o Sr. Infante D. Afonso.
- E além das preocupações da lavoura, não tem V. Exª. (perdoe a indiscrição…) outras preocupações de carácter político ou espiritual?
- Politicamente, ao conceito de chefia do Estado, transitório e apenas legal, prefiro o conceito de chefia da Nação, legítimo e eterno.
- No social e económico, qual a preferência do Sr. Fróis: liberalismo ou totalitarismo?
- Em matéria de totalitarismo só aceito um: o de Cristo. Jesus nas famílias, nos campos, nas oficinas, nos escritórios; Jesus nos corações.
            «E ao conceito abstrato de liberdade prefiro as liberdades concretas e efetivas. O indivíduo de nome não é nada. Mas o indivíduo na sua profissão, no seu estado, na sua alma, é tudo. Assim, na base da orgânica do Estado, deviam estar sempre os valores morais, a família, a profissão.».

*
*       *

             Para quê os nossos comentários? Seria melhor, decerto, nada acrescentarmos, para que as palavras do Sr. José Rino Fróis ficassem a ressoar na inteligência e no coração dos amáveis leitores.
Mas é necessário acrescentarmos alguma coisa. E é que as palavras de S. Exª. são a expressão do seu pensamento, e o seu pensamento concorda em absoluto com a sua vida. É um elogio que hoje em dia, de poucos se pode fazer.
             Homem de carácter íntegro, cidadão devotado aos interesses da Pátria, chefe extremoso de uma numerosíssima família, católico de fé, de sentimentos e de mandamentos, S. Exª. dá um nobre exemplo à sociedade desvairada dos tempos de hoje.
             Os pobres conhecem a sua caridade, e os trabalhadores o seu respeito pela justiça.
Alfeizerão, sobretudo, tem no Sr. José Rino Fróis um dedicado amigo. Não é por isso de estranhar que numa das dependências da Igreja Paroquial se encontre uma fotografia de S. Exª. com os dizeres da Escritura: a memória do justo será eterna.
             O valor intelectual e moral do Sr. Fróis tem sido posto em evidência no desempenho de várias missões de responsabilidade na vida económica da Nação. Presentemente, é Administrador da Companhia Resineira e Presidente da Câmara de Comércio com a Argentina (3).
            «O Alcoa» sente-se, em extremo, desvanecido, por poder arquivar nas suas colunas as palavras luminosas e sinceras do Sr. José Rino Fróis. E ao mesmo tempo que agradece reconhecidamente esta amável entrevista, formula os mais ardentes votos pela prosperidade de S. Exª. e de sua Exma. Família.

João de Sousa

(Jornal O Alcoa, Ano III, nº192, de 20 de Outubro de 1949)



(1) Esta foto foi-me amavelmente facultada por Jorge Froes (os meus agradecimentos), um dos 65 netos de José Rino de Avelar Fróis. Uma fotografia idêntica (que não consegui copiar com a nitidez que seria desejável) acompanhava a entrevista n'O Alcoa, e ostentava a seguinte legenda:
A GERAÇÃO DO JUSTO SERÁ ABENÇOADA - O sr. José Rino Avelar Frois com sua esposa e o lindo ranchinho dos seus netos.

(2) O genealogista João de Quental Lobo, traçou uma árvore genealógica dos Fróis ou Froes com início em Vitorino José Fróis, pai deste José Vitorino da Fonseca Fróis; e que pode ser consultada nesta hiperligação para o fórum do portal GENEALL. 

(3) José Rino de Avelar Fróis, a título local, era também nesta data, presidente da Assembleia Geral Casa do Povo de Alfeizerão.

quarta-feira, 4 de março de 2015

Entrevista a Vitorino Fróis, por Luís Teixeira (jornal Gazeta das Caldas, de 20/12/1925)





VICTORINO FROES
Fala-nos do seu Tempo e da sua Arte
Por Luiz Teixeira (1)

     Toiradas de verdad, gente de sangue azul, audaciosa, aventureira e fidalga a lidar toiros de afamados ferros com valentia e nobreza. Praças repletas, tempo em que os camarotes do Campo Pequeno eram canteiros povoados de sorrisos das mais lindas mulheres de Lisboa, olhos belos vivendo a emoção da faena e em que a primeira sorte era sempre oferecida a Sua Majestade…
     Triunfos, apoteoses de palmas calorosas, e nuvens de lenços brancos acenando como bando de gaivotas sobre o mar imenso da multidão ululante de entusiasmo. Boémia literária e fidalga do século que passou…
     Fala um pouco de tudo isto o nome de Victorino Froes.
     Mestre dos maiores toureiros do nosso Pais, ele é o monte Himalaia, o nome-cartaz da tauromaquia nacional.
     Não há quem melhor que ele saiba da arte de tourear. Da Espanha das toiradas-festa nacional, onde o toureiro é culto e é paixão, mandou Cañero, o cordovês que é hoje a assinatura do seu país traçada com a ponta de uma farpa, um cavalo para que Victorino Froes o ensinasse à maneira de tantos que ele tem ensinado, e que são sempre uma garantia de êxito para o cavaleiro que os possui.
     Conhecendo bem cavalos e cavaleiros, ele foi um grande colaborador da vitória de Tanganho no Circuito Hípico de Portugal. Em todos os pontos de controlo lá havia para o caldense glorioso – seu discípulo muito querido – uma carta sua com indicações, a lembrar cuidados, a incutir coragem…
     Victorino Froes, nascido em 1862, na Quinta Velha de Alfeizerão, é um dos maiores amigos das Caldas.
     Num destes dias invernosos, com lama a atapetar as ruas, e com promessas de chuva no cinzento-chumbo do céu, fui visitá-lo e colher pormenores da sua vida que eu pudesse transformar num álbum, e oferecer aos leitores da Gazeta, rico pelo recheio de recordações, pobre e modesto pela encadernação humilde em que os meus recursos limitados e prosa descolorida da minha forma descritiva as poderiam envolver.
     É uma velhice risonha, Victorino Froes. O seu espírito tem a mocidade dalgum rapaz da minha geração. Na sala em que me recebe tudo respira alegria. A sua casa banhada de vermelho é uma gargalhada de cor…
     - Impressões da minha vida? Olhe que eu não tenho nada que contar. Ainda há tempos aqui esteve um jornalista de Lisboa, a quem eu nada disse.
     Insistimos.
     - A Gazeta é o jornal do povo caldense, do povo que tem por si uma grande admiração e estima.
     - Pois sentemo-nos e vejamos se alguma coisa de interesse para os seus leitores, eu lhe posso dizer.
     Ficamos, vis-à-vis, separados por uma pequena mesa, perto da janela.
     Victorino Froes faz do fumo do seu charuto a moldura das suas frases, caixilho de névoa azul para evocações dum passado distante.
     - As grandes recordações da vida de um toureiro são os trambolhões sob as patas dos toiros
     - Onde toureou pela primeira vez?
     - Na Golegã, na praça particular do Sr. Carlos Relvas… tinha eu então 14 anos. Acompanhava-me o meu professor, Conde de Castelo Melhor.
     A cinza de charuto vai-se amontoando no cinzeiro modesto.
     Toda a gente tem na sua vida um cofrezinho de marfim onde guarda as suas recordações do tempo que passou. Não são fotografias nem documentos, são apenas lembranças…lantejoulas a brilhar na distância do tempo…
     Sinto que o grande cavaleiro dá a volta à chave do seu cofre e prodigamente vai espalhando na intimidade daquele cantinho perto da janela as suas melhores confidências.
     - Depois tomei parte em todas as corridas promovidas pelo rei D. Carlos, e cuja receita era oferecida a S. M. a Rainha para manter a Creche de que era protetora.
     Foram essas as melhores corridas da minha vida. Há quantos anos isso vai.
     - O Sr. Victorino conviveu muito com o Rei?
     - Sim, senhor. Vê esta fotografia? Foi tirada em Vila Viçosa depois do almoço, em dia de caçada.
     Contemplei, por momentos, aquela relíquia do passado do grande cavaleiro, e, de todo o grupo, não me foi difícil reconhecer duas pessoas. Uma, de mazantini caído para a nuca, era o Rei que a carabina do Buiça matou e, perto dele, o Victorino Froes de há quarenta anos. Vai-me apresentando o resto do grupo: …aquele o Albuquerque, este o Pinto Coelho, médico do Paço, e espalhados o Conde de Pindela, o general Queiroz, o Guerreiro…Quantos que a morte levou
     O seu sorriso deixou por momentos de iluminar a nossa conversa. Lê-se saudade nos seus olhos e adivinha-se no fumo do charuto que se eleva pelo ar, todo um mundo de sonhos, imagens do passado que morreu…
     - O Rei e a Corte vinham muitas vezes às Caldas?
     - Muitas. A propósito não quero deixar de lhe contar um episódio que um dia, há muitos anos já, me aconteceu: Eu estava comendo em Alfeizerão um modestíssimo almoço de chouriço com ovos que a criada da Quinta Velha me havia arranjado à pressa, pois cuidava que eu nesse dia não almoçava lá, quando um criado esbaforido me veio avisar: El-Rei! – Pois El-Rei que venha. E depois da criadagem ter tomado conta do cavalo, eu não quiz deixar de oferecer do meu pobre almoço a Sua Majestade, embora fosse mais um «lunch» próprio para um criado do que uma refeição para um Rei.
     «Pois supõe-me um criado, se quiseres, mas hei-de ajudar-te a comer o chouriço com ovos…».
     «E tirando o seu grande chapéu claro, sentou-se e comeu.
     «Era assim D. Carlos… Tornava-se necessário não esquecer que ele era o Rei, porque a liberdade e intimidade com que nos tratava fazia-nos esquecer a distância que devíamos guardar.
     - O Sr. Victorino passou longas temporadas em Lisboa?
     - Bons tempos. Eram então meus companheiros de boémia o Alexandre Vila Real, o Mascarenhas, o Paraty, Conde de Caparica, Alfredo Tinoco e outros. Não nos interessava a Política. Nunca sabíamos quem era o Presidente do Conselho. Interessava-nos somente onde melhor e com mais alegria poderíamos passar a noite. Nesse tempo também o Grandela e o Ferreira do Amaral eram nossos companheiros…ainda eram monárquicos…
     Enquanto íamos falando assim os seus olhos em êxtase parecem seguir algum pensamento intimo. Acende um novo charuto, e durante momentos permanece calado. Eu envolvo-me mais na capa do meu silêncio para melhor ouvir os seus gestos…
     - Saudades? Se não há de ter saudades quem como eu teve épocas de grande felicidade na vida…
     - Nunca toureou em Espanha?
     - Não. Toureei uma vez em França. O D. Ruy estava em Bayonne e convidou-me a tomar parte numa corrida promovida por ele. Escreveu-me, também, pedindo-me que lhe mandasse ferros, prospetos, etc. Eu, como ele não pedisse bolas para a embolação, mandei-lhe o que me pedia e perguntei-lhe se se havia esquecido disso. Respondeu-me que lá se toureava á espanhola, e perguntava-me se eu tinha relutância em tourear daquela fôrma. Mandei dizer então ao bom D. Ruy que em lugar da lide ser em hastes limpas, podia anunciar, se quisesse, que os toiros que me coubessem trariam punhais de morte nas hastes.
     - É talvez d’aí que vem a lenda do Sr. Victorino ter toureado em Espanha toiros nessas condições.
     - Talvez.
     - D. Ruy da Camara foi seu discípulo?
     - Ele, o Núncio, o D. João de Mascarenhas e muitos outros.
     - Quer dizer-nos qual é atualmente o melhor cavaleiro tauromáquico português?
     - Conheço-os a todos e sou amigo de todos. Não posso, por isso responder-lhe.
     - Cañero?
     - É um bom cavaleiro…espanhol, mas não se pode comparar com os nossos. Ele não sabe tourear: caimpina…Os nossos campinos doutros tempos, que sabiam muito bem do seu ofício, faziam tanto como ele faz. Toureio há apenas o toureio português. Nobreza, valentia e, sobretudo, arte a lidar o toiro. Cañero não é um cavaleiro tauromáquico, é um sportsman que campina toiros.
     - Como se explica então o seu formidável sucesso?
     - Olhe, os nossos podiam fazer incomparavelmente mais, se como ele trouxessem a acompanhá-los toda uma «equipe» de jornalistas, fotógrafos e até desenhador. Ele deve ganhar por ano uns mil contos mas metade é só para essa gente que lhe faz o nome. Fique certo: Cañero não faz a mínima sombra aos cavaleiros portugueses.
     - As toiradas de Espanha?
     - Uma brutalidade. Uma verdadeira selvageria. É improprio de povo civilizado o espetáculo bárbaro dos cavalos mortos, de tripas ao sol, em dolorosa agonia.
     - Viu tourear o Gallito?
     - Muitas vezes. Tinha pela sua arte uma verdadeira admiração. Era inexcedível de perfeição e audácia. Quando me vieram dizer que ele tinha morrido, estava eu em Badajoz para o ver tourear, e perguntei se ele havia sucumbido com alguma congestão, ou outra qualquer doença, pois me repugnava acreditar que ele tivesse morrido nas hastes de um toiro.
     A expressão do meu entrevistado ilumina-se de entusiasmo.
     - Tomou parte em muitas corridas nas Caldas?
     - Em todas que eram organizadas em benefício da Associação dos Bombeiros. Os meus colegas em Lisboa riam-se de eu vir às Caldas tourear vacas, mas eu ficava sempre satisfeito por me tornar útil a tão simpática coletividade…Afinal…
     - Ingratidão?
     - Nada. É melhor não falarmos nisso.
     Só depois me quis recordar de alguma homenagem que a Associação dos Bombeiros Voluntários lhe tenha prestado, mas de nenhuma me lembrei. Que me conste, nem no Quadro de Honra que existe na sua sede, está o nome desse homem que tem empregado sempre o seu melhor esforço e boa vontade para que mais brilho e prestígio tenha o nome desta terra, que não é a dele, mas que ele distingue com a sua grande afeição (2).
     A entrevista tinha acabado. Eu agora já não era o jornalista curioso interrogando. Era apenas alguém que escutava com interesse as confidências com que o grande cavaleiro me quis premiar e que não passaram daquele cantinho, perto da janela, em volta da mesa pequena e íntima.


Luiz Teixeira

[GAZÊTA DAS CALDAS, Ano I, nº 11, de 20 de Dezembro de 1925]





            (1) Luís Teixeira (ou Luiz), que realiza esta entrevista a Vitorino Fróis, merece uma apresentação condigna. Nascido nas Caldas em 1904, inicia a sua carreira jornalística no jornal A Época, e transita depois para os jornais O Século e Diário de Notícias. Cultivou a crónica, o ensaio e a ficção literária, estreando-se na literatura com um livro de contos e crónicas – Feira de Amostras (Empreza Nacional de Publicidade, 1931). Entre as suas muitas obras, destaca-se a Pequena Crónica da Índia (Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1954), a Vida de Antero de Quental (Livraria Clássica Editora) e sobretudo, e atendendo à época em que foi escrito, o seu esboço biográfico de Salazar: Perfil de Salazar: Elementos para a história da sua vida e da sua época (Edição de autor, Lisboa, 1936). No ano de 1940, quando se realizam as comemorações do Duplo Centenário (1140 - fundação da nacionalidade / 1640 - Restauração), é um texto de Luís Teixeira (adequadamente patriótico e inflamado) que prefacia as reportagens sobre esse evento a nível nacional no Boletim da Junta da Província da Estremadura.


(2) - No Quadro de Honra do moderno quartel dos Bombeiros Voluntários das Caldas da Rainha, continua a não figurar o nome do Vitorino Fróis.