domingo, 23 de abril de 2017

Falando sobre a valsa:

Convite à valsa
de Columbano Bordalo Pinheiro

(…)
                Uma vez, nas Caldas da Rainha, por uma deliciosa noite de Verão – o belo luar de Agosto! – dançava-se no Clube uma valsa. O famoso Pavão – que fazia estragar às noites o efeito benéfico das águas medicinais tomadas durante o dia – estava ao piano interpretando Waldteufel.
                Fora, havia grupos de curiosos que, através das janelas abertas, seguiam com interesse as evoluções de uma valsa dançada pela fina-flor da nobreza… termal. Não sei se têm notado que há uma nobreza de exportação balnear que todos os anos se promove a “rainha das águas”. No regresso, em Lisboa, essa nobreza desaparece, como se ficasse no fundo das termas.
                Pois era nas Caldas, aí mesmo, onde há muito disso.
                Uma primorosa valsista, de vinte e dois a vinte e três anos, mais elegante do que formosa, tendo porém todo o seu encanto no garbo da estatura, na basta abundância dos cabelos e na funda voluptuosidade dos olhos, voava nos braços do parceiro, parecendo emergir dos compassos ternários da valsa com os requebros airosos com que um cisne emerge de rápidos mergulhos na água azul de um lago plácido.
                Um lavrador de Alfeizerão, que por contumácia na prudência não quisera inscrever-se como sócio do Clube, foi encontrar as filhas a espreitarem para dentro da sala.
                - Meninas! – exclamou ele – não estejam a ver isso, que estraga a saúde!
                Uma das meninas replicou:
                - Ver não faz mal, dançar é que talvez faça, e ainda assim duvido.
                O pai, muito severo, tirou-lhe pelo braço, dizendo;
                - Isso não são figuras de cera que se possa ver sem perigo.
                Palavras sentenciosas que sempre me ficaram gravadas na memória. Todo o perigo da valsa está justamente nisso_ que só de vê-la dançar, larga a gente a correr para o país dos sonhos numa carreira doida, sem saber quando e onde poderá parar.
                Faz efectivamente muita diferença das figuras de cera…
                Mas vai uma grande distância vê-la ou dançá-la, tanta como a de observar o Vesúvio de longe ou ao perto. E foram esses maganões dos Strauss, especialmente o pai e João [Johann], que acenderam o vulcão da valsa para abrasar a humanidade.

11 de Junho de 1899



(PIMENTEL, Alberto, Figuras Humanas, Capitulo 13 ("Strauss e Filhos") 
Parceria António Maria Pereira - Livraria Editora, Lisboa, 1905)


Alfeizerão, num poema de Francisco Manuel da Silveira Malhão





[POESIAS de Francisco Manoel Gomes da Silveira Malhão - oferecidas a seus amigos de toda a ordem, publicadas por João Nunes Esteves, Lisboa, 1802]

segunda-feira, 20 de março de 2017

Uma viagem atribulada da Vestiaria às Caldas



                Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão, nasceu em Óbidos a 22 de Setembro de 1757, formou-se em Leis em Coimbra e abriu uma banca de advogado na sua vila natal, onde viria a falecer no ano de 1816. Celebrado boémio e poeta prolífico, tornou-se conhecido nos seus tempos de Coimbra pela sua paixão pela música, quer como executante (viola e guitarra),quer como cantor. É muitas vezes referido como Malhão Velho para o distinguir do seu filho, o padre Francisco Rafael da Silveira Malhão, poeta e orador sacro. Entre 1792 e 1797, publicou as suas memórias autobiográficas: Vida e Feitos de Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão, escritas por ele mesmo, de cujo Tomo III retiramos o excerto que aqui apresentamos.
                O filho homónimo de Francisco da Silveira Malhão granjeou a estima e admiração dos seus contemporâneos pelas suas prédicas e pelos seus escritos. Júlio César Machado, que não perdia a oportunidade de se entrevistar com ele, evoca-o em sentidas palavras na sua prosa memorialista:
                “Oh! Como nós conversamos nesse dia; ao deixá-lo, apartei-me saudoso de Óbidos, que tanto vale dizer que me apartei do poeta, porque Óbidos nesse tempo não era mais do que Malhão, e hoje Óbidos não é nada. Pagou-lhe mal a sua terra, e a gente que o cercava pouca saudade pareceu sentir quando a sua alma voou para Deus. O seu enterro, que deu lugar a tantas misérias, que nem se citam, foi um acto indiferente para os dali. Poucos o acompanharam em vida, e na morte não o acompanhou nenhum. Uma frieza glacial pareceu acolher a queda do poeta sagrado (...) O pobre Malhão morreu pobre e só ao canto da vila onde vivera, sem o entender ninguém. E os senhores ministros da nossa terra, que têm sempre dinheiro e pachorra para mandarem patetas passear em comissões, nunca encontraram maneira de estabelecer uma pensão a uma irmã do poeta, senhora idosa que ficou em desgraça, e que havia sido a companheira constante da modesta e sublime existência do primeiro orador sagrado do nosso país". (MACHADO, Júlio César, Scenas da Minha Terra, pp. 47-48, Lisboa, Editor José Maria Correia Seabra, 1862)



Vida e Feitos de Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão,

escritas por ele mesmo, Tomo III



VI
Continuava esta minha vida no estudo lento da Geometria, remetendo-me sempre de dia em dia, por mais que me gritavam os amigos, porque todo enfronhado em agradar a um mestre que já me havia negado piedade, não me receava tanto de outro em quem supunha não me guardaria tanto no fundo da canastra; e por isso, chegando-se o Natal, em vez de ocupar nisso as férias, vim de escaramuça a Óbidos porque também desejava ter notícias verdadeiras do estado em que se achava o meu irmão, a quem já por duas vezes haviam dado como morto.
VII
Sendo meu companheiro nesta jornada, António Joaquim Franca, de Torres Vedras, o qual nesse tempo ainda não havia apostatado do Direito Civil, fomos no dia primeiro a Pombal a casa do Marquês do Couto, e no segundo a Alcobaça a casa de António Batista; mas minto, no segundo dia a Leiria, e no terceiro a jantar em Alcobaça na casa do dito; porque eu não quero senão o que é verdade.
VIII
Como ele (o dono da casa) também nessa tarde ia para Óbidos, mas não precisava de ir tão cedo como nós, esperamos um pouco, e partimos muito contentes da bela sociedade, picando as bestas em direção[direitura] à Vestiaria, fazendo caminho para a vila da Cela, com efeito íamos pernoitar a Óbidos, o que não sucedeu (coisa que muito estimei), e o porquê aí vai em poucas palavras.
IX
É costume de tempo que excede a memória dos vivos, e de que nem os mortos dão notícias, fazer-se logo, passada a Vestiaria, um grande lameirão, com as suas semelhanças comum golfo ou sorvedouro; aqui vai ela, o meu companheiro, como francamente fazia tudo, francamente e apesar de advertido, meteu-se a ele por sempre gostar de caminhar pelo trilhado, e não reparou que o que se figurava lama cortada, era falta de cortadura, e humidade do olheiro, que ali dormia muito solapado. 
X
Enfim, apenas entrou foi a inversão dos dentes de Cadmo, e se não me lanço ao lameiro por uma parte mais sólida, de onde o agarrei pelo que restava do seu pequeno corpo, teria de ser procurado à fateixa! Trouxe-o de rojo, fazendo uma grande esteira pelo lameiro, e como eu nunca atei botas, lá me ficou uma, e primeiro que a achasse, descalçou-se a outra, e saí segunda vez com uma bota em cada mão, e tão cheias de barro que, sem encarecimento, me custaram mais do que ele; feita a primeira parte, entra a segunda. 
XI
Postos nós a olhar uns para os outros, e naquele desamparo, sem aparecer viva alma, e com o cavalo atolado de modo que só se lhe via o pescoço, o arção da sela e a mala, ficamos amarelos, mudos, quedos, e juntos de um penedo, dois penedos.
XII
Como estávamos daquele feitio, e quais dois porcos que se levantam do chiqueiro, fomos cá de largo soltando a mala, e conseguimos tirar-lhe a sela, e postos de atalaia, descobrimos dois homens que andavam cavando, dos quais o Batista foi em demanda e os trouxe consigo, pois a Providência não falta, e quando dá o trabalho, também acode com o remédio. 
XIII
Lançados os dois atletas, por mais diligências que fizeram, apenas conseguiram pô-lo em melhor carregadouro; e só com uma corda que se foi buscar à Vestiaria, e outro camarada mais, é que lançando-a atada por baixo das mãos e puxando todos, veio vindo como barco à sirga, e deu com os ilhais em terra dura, donde custou a levantar-se. 
XIV
Era uma coisa galante ver seis figuras, e com o cavalo sete, barradas como uns fogareiros, sacudindo as mãos e tirando de si lama às postas, levando um a sela, outro as botas, outro a mala, e outro o freio. E eu mesmo, que por isto passava, não pude deixar de rir. 
XV
Vendo nós as horas em que estávamos, consequência de toda esta lastimosa e enlameada tragédia, resolvemo-nos a ir pernoitar a Alfeizerão [Alfazirão], que nos ficava mais perto, e proporcionado com o resto do dia, para cuja continuação de viagem tirei sapatos da mala, e fui com as botas em ar de coldre, atascadas de lama até à boca. 
XVI Chegados à Cela, bebemos aguardente como uns desesperados, e dando às gâmbias, descemos já de noite a ladeira de Alfeizerão, aonde aportamos, fazendo riso a quanta gente estava na casa que escolhemos para pousada. 
XVII
Era véspera de Natal e eu levava uma fome horrendíssima, quisemos consoar mas não havia mais do que pão e vinho, e carne de porco crua; torrei fatias, aboboreias no vinho, assim chamado porque para vinagre faltava-lhe muito pouco, e dando providência à frigideirada para depois da meia-noite, nos amerendamos à fogueira, esperando pela Missa do Galo, a que fomos, e voltamos a dar com a prateirada nas tripas, a beber quatro trângolas, e a descansar alguma coisa em cima de uma cama, que sendo má, levamos nela um sono muito bom.
 XVIII
No outro dia, calçadas as botas, na limpeza das quais levou toda a noite um rapaz dacasa, me guindei ao meu rocim, e patinhando, ora lamas, ora poças d’água, entramos pela vila das Caldas, dando muito estalos de manopla e fazendo toda a paracuada de estudante de Coimbra; mas quão diversas, quão mudáveis e instantâneas são as coisas do mundo e, principalmente, as glórias.


(MALHÃO, Francisco Manuel Gomes da Silveira,
Vida e Feitos de Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão, escritas por ele mesmo
, Tomo III, Lisboa, 1823, Tipografia de J. F. M. de Campos]




segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

As ferras de Alfeizerão, numa Farpa de Ramalho Ortigão



            «A mim, valentes entrudadas com ovos de gema, bisnagas e limões de cheiro. A mim, ó Terça-Feira gorda, com todos os teus adminículos e atributos, vasos de noite, abanos, chavelhos, rabos-leva, esguichos, pós de sapatos, filhós e coscorões recheados de estopa, trambolhos para atar os artelhos e tachadas de breu para pegar fundilhos às cadeiras! A mim, palavrões, gibadas, pés de nariz e cambalhotas! A mim, toda a pilhéria e toda a laracha do tempo em que Lisboa ria! A mim, as noites à viola do Baldansa, do Colete Encarnado e do Perna de Pau! A mim, as olímpicas piadas do Sol, em tardes de touros no Campo Grande e nas apartações e nas ferras de Castelo Melhor ou dos Campos de Alfeizerão!».


(Ramalho ORTIGÃO, Últimas Farpas, página 216, Editora Bertrand, 1916)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

O busto do Professor Joaquim André dos Santos


                Transcrevo o texto da acta da Junta de Freguesia de Alfeizerão que deliberou erguer o busto em homenagem ao professor Joaquim André dos Santos no Largo de Santo Amaro (que por então, ainda conservou este nome). Esta acta (fl. 45) consta do Livro de Actas existente na própria Junta, cujo Termo de Abertura tem a data de 2 de Janeiro de 1951.

                Acta da sessão extraordinária da Junta de Freguesia de Alfeizerão, concelho de Alcobaça, em 7 de Janeiro de 1956.
                Aos sete dias do mês de Janeiro de mil e novecentos e cinquenta e seis anos, nesta vila de Alfeizerão e sala das sessões da Junta de Freguesia, pelas vinte horas, se reuniu em sessão extraordinária a mesma Junta de Freguesia, composta pelos senhores Joaquim da Silva Pereira, Joaquim Ladeira e José Simões, respectivamente, Presidente, Tesoureiro e Secretário.
                Aberta a sessão, cujo fim foi delineado [?] sobre a colocação do busto do Sr. Professor Joaquim André dos Santos no Largo de Santo Amaro, esta Junta resolveu o seguinte.
                Tendo vindo até nós uma comissão composta pelos senhores Francisco Almeida Caiado, José Augusto Machado da Polónia e Francisco Madeira, naturais de Alfeizerão, manifestou essa comissão o desejo de prestar homenagem ao falecido professor Joaquim André dos Santos, pessoa que relevantes serviços prestou no exercício das suas funções, e indo até mais além, ao ponto de chegar a dar de comer e artigos escolares aos seus alunos mais necessitados, veio a mesma pedir a esta Junta o seu apoio a que seja colocado o busto do referido Mestre no Largo de Santo Amaro.
                Assim deliberou esta Junta na sua sessão extraordinária de sete de Janeiro de mil, novecentos e cinquenta e seis, dar pleno apoio a que o referido busto seja erigido no Largo de Santo Amaro.
                Mais deliberou dar conhecimento ao Exmo. Senhor Presidente da Câmara do Concelho, da atitude que tomou, e que para tal lhe seja enviada uma cópia desta acta.
                Não havendo mais nada a tratar, foi encerrada a sessão, do que para constar se lavrou a presente acta, que eu, José Simões, secretário, a subscrevi, e também assino.

[assinaturas: Joaquim da Silva Pereira, Joaquim Ladeira, José Simões]


terça-feira, 1 de novembro de 2016

O filme «Lobos da Serra» – um close-up na carreira de Maria Domingas



O realizador Jorge Brum do Canto, e o seu assistente, Fernando Garcia

O filme
                LOBOS DA SERRA, Realização, argumento e diálogos de Jorge Brum do Canto, Estúdios da Tobis Portuguesa. Estreia no Tivoli, em Lisboa, a 23 de Fevereiro de 1942.

                Enredo:
                António, noivo de Margarida (Maria Domingas) fica a tomar conta das terras do tio (Tio Luís, personagem interpretado por António Silva) quando este tem de partir para a capital. Os contrabandistas descem ao povoado, e encontram-se com Joaquim (Carlos Otero), o irmão de Margarida, que trabalha para eles. Numa operação de contrabando em que Joaquim participa, as coisas correm mal, e dois deles são mortos pela Guarda Fiscal e o próprio Joaquim fica ferido. Consegue fugir e voltar a casa, onde a família o encobre, apesar das suspeitas do sargento da Guarda (o sargento Batata – Manuel Santos Carvalho), que fica de olho nele. Durante a festa da Senhora da Peneda, o sargento volta à carga, querendo obter uma confissão de Joaquim, mas tudo se aquieta com a chegada da procissão, como se trouxesse a paz e a oportunidade para Joaquim abandonar a vida de contrabando e se regenerar. António e Margarida trabalham afincadamente nas terras, mas essa prosperidade é destruída durante a noite por uma tempestade medonha que destrói as culturas e tudo o que haviam conseguido com o seu trabalho. Margarida vai trabalhar para ajudar o marido, e este, em segredo, aceita trabalhar com os contrabandistas para tentar obter dinheiro e recuperar a propriedade que o tio deixara ao seu cuidado. Quando pela calada da noite, se dirige para Espanha para ir buscar a mercadoria, adormece e tem um sonho em que antevê o que poderia acontecer se continuasse naquele caminho. Tomando o sonho como um sinal, António arrepende-se e volta para trás, decidido a vingar pelo trabalho e não pelo crime (mais uma experiência exemplar dos filmes deste realizador); e, para sua surpresa, constata que toda a aldeia se juntara para recuperar as suas terras e limpá-las dos efeitos da tempestade. Neste cenário de reconstrução e recomeço, o filme acaba de forma idílica com António e Margarida abraçados e unidos, enquanto o cão Patinhas saltita em redor.

                Intérpretes: Américo Leite Rosa (Ralha); António de Sousa (António); António Rosa (Pancho); António Silva (Tio Luís); Armando Chagas (1º Miúdo); Armando Machado (Cabo Maximino); Artur Rodrigues (Tio João); Augusto Costa - Costinha (Joãozinho); Carlinhos - António da Silva Viana (2º Miúdo); Carlos Barros (1º Guarda Fiscal); Carlos Otero (Joaquim); Ema de Oliveira (Senhora Micas); Jaime Mendes; João Guerra (Pintassilgo); João Marques (3º Miúdo); João Tavares (1º Contrabandista); José Alves (Chiola); José Malveira; Madalena Vilaça (Lola); Manuel Santos Carvalho (Sargento Batata); Maria Domingas (Margarida); Maria Emília Villas - Marimília (Senhora Conceição); Natália Silva (Garota); Reginaldo Duarte (2º Guarda Fiscal); Silva Araújo (Padre Eduardo). Participação especial do cão Vouga (o Patinhas).

Estúdios, cenários e filmagens
                A consulta da revista “Animatógrafo”, dirigida por António Lopes Ribeiro, permitiu-nos encontrar elementos que documentam todo o processo de criação deste filme, desde os primeiros preparativos, à sua demorada montagem e subsequente estreia em Lisboa no cinema Tivoli. São esses elementos que trazemos aqui de uma forma organizada e cronológica.

                Logo no ano de 1940, ano de estreia do filme João Ratão de Jorge Brum do Canto, a produtora Tobis anuncia que já se iniciara nos estúdios da Quinta das Conchas a construção dos cenários do próximo filme do realizador, Lobos da Serra. Num artigo não assinado, pode ler-se na revista Animatógrafo:
                Maria Domingas que com a interpretação de «Vitória» de «João Ratão» marcou definitivamente o seu lugar dentro do cinema português, vai novamente encarregar-se dum papel cheio de dificuldades que é o de «Margarida», protagonista de «Os Lobos da Serra». Sabemos que a personagem se lhe ajusta muito especialmente por foi escrita de propósito para ela. Jorge Brum do Canto ficou tão satisfeito com o trabalho de Domingas no «João Ratão» que teve sempre presente as qualidades e grandes possibilidades dela enquanto delineou a ação de «Lobos da Serra» a qual gira, precisamente, à volta de «Margarida» curiosa figura de rapariga que luta pela felicidade e pela reconquista dos dias alegres quando estes fogem. No «João Ratão» Domingas tivera já ocasião para cantar, chorar e rir. Agora em todos estes aspetos e noutros a simpática vedeta, que está entusiasmada com o seu novo papel, vai alargar com certeza as provas prestadas e cativar ainda mais as nossas plateias – o que, aliás, pela maneira enérgica como luta para triunfar e pelo seu inegável talento e fotogenia, merece absolutamente (revista Animatógrafo, direção de António Lopes Ribeiro, 2ª. série, n.º 7, Natal de 1940).
                Dois meses depois, à data do início das filmagens, a revista descreve os cenários ultimados da Tobis portuguesa: O estúdio da Quinta das Conchas está neste momento completamente cheio, atravancado de lés-a-lés, oferecendo um aspeto que se pode considerar inédito. Com efeito, levantaram-se ao mesmo tempo vários complexos de cenários, depois de estudada uma arrumação especial e conseguiu-se juntar, lado a lado, um posto de fronteira da Guarda-Fiscal, o interior de uma casa de lavradores minhotos remediados, uma grande azenha, uma ampla cozinha, vários quartos e um pequeno aspeto duma rua de vila nortenha (Animatógrafo, 2ª série, n.º 15, p. 7, Lisboa, 17 de Fevereiro de 1941).
                No mês de Março, decorre a rodagem das difíceis filmagens de exteriores na Serra da Estrela. Durante dez dias, e sob difíceis condições climatéricas, estabeleceram a sua base na Covilhã e filmaram planos e cenas que precisavam na Serra; o camião da Tobis carregado com a aparelhagem ficou atascado na neve e houve que abrir uma estrada para o tirar dali; noutra ocasião, foi o realizador e o seu assistente, Fernando Garcia, quem foi surpreendido pela nevasca enquanto filmavam sozinhos alguns planos do alto da serra, e só a muito custo os dois conseguiram regressar para junto da restante equipa (Animatógrafo, 2ª Série, nº. 20, 24 de Março de 1941).

Duas peripécias (O Animatógrafo, 2.ª Série, n.º 22, 7 de Abril de 1941)

                A 14 de Abril, o Animatógrafo anunciava o fim das filmagens de interiores para o filme, realçando entre as gravações, a de uma cena entre Maria Domingas e António de Sousa, um episódio romântico, ao velho gosto lusíada, num cenário florido, como é do gosto de Jorge Brum do Canto (id. 2ª. Série, nº. 23, 14 de Abril de 1941). Os exteriores prosseguem, em Arcos de Valdevez, na serra da Peneda e em Lisboa (ibid., nº. 31, de 9 de Junho de 1941), filmam-se cenas noturnas, e novas cenas de interior, e novamente se regressa à Serra da Peneda, à Estrela e a Arcos-de-Valdevez (ibid, nº. 33, de 23 de Junho de 1941; nº. 35, 7 de Julho de 1941; nº. 43 de 1 de Setembro de 1941).
                Depois de meses de montagem, com a captura de mais cenas de permeio, o Animatógrafo de 17 de Fevereiro de 1942 (3ª. Série, nº. 67) proclama a estreia do filme no Tivoli a 23 desse mês. Nesse mesmo artigo se resume com as seguintes palavras o enredo do filme e o seu conteúdo moral e normalizador: Pelos cenários grandiosos da Serra da Estrela e da Serra da Peneda, vão passar as cavalgadas do bando do contrabandista Chiola, fugidas e escondidas da vigilância da Guarda Fiscal. São eles os «lobos da Serra». São eles que, descendo ao povoado, virão tentar a vida calma que se desenrola na paisagem tranquila da terra do Minho (...) Jorge Brum do Canto baseou o seu novo trabalho numa história original onde dois temas, um movimentado, que é a vida dos contrabandistas, e outro sentimental, se ligam para erguer uma ideia moral - que é o regresso à terra e o abandono do lucro fácil, mas ilícito, do contrabando.
                A estreia verifica-se na data anunciada, numa récita de gala no Tivoli com a presença dos ministros das Finanças e das Colónias e do General Amílcar Mota em representação do presidente da república. O Animatógrafo (3.ª Série, nº. 69, 3 de Março de 1942) descreve com cores vivas a festa e os seus intervenientes. Na mesma revista, na crítica ao filme, escreve Fernando Fragoso sobre o desempenho de Maria Domingas: Maria Domingas é, fora de dúvida, uma das raparigas com mais personalidade e intuição que têm aparecido nos nossos filmes. Impôs a «Guida» de Lobos da Serra com a mesma facilidade com que nos deu a «Vitória» de João Ratão. E esta «Guida» é bem mais difícil de "defender" do que a terna namorada do soldado combatente da Flandres. Todas as expressões e inflexões de Maria Domingas estão certas - e, a dominar umas e outras, uma espantosa naturalidade que as valoriza constantemente. A sua atuação, tão justa e tão brilhante, até nos faz esquecer certos vestidos e certos penteados que lhe não vão bem - e de que ela, aliás, não tem culpa.



Alguns dos técnicos e atores do filme, com Maria Domingas, Brum do Canto e António Silva no centro

Alguns frames do filme









domingo, 30 de outubro de 2016

Maria Domingas - breve evocação da sua carreira artística

              MARIA DOMINGAS nasceu em Alfeizerão a 11 de Setembro de 1921, e foi batizada com o nome de Maria Domingas da Cunha Meneses. Era filha de Francisco da Cunha Meneses e de Adelaide Baiana da Silva, residentes na vila. O seu pai, nascido na freguesia de S. José em Lisboa, era filho do 6.º Conde de Lumiares, enquanto a mãe, nascida em Alfeizerão, possui ascendentes na vila que se podem seguir nos assentos paroquiais de Alfeizerão até ao século XVIII.





                O seu primeiro trabalho no cinema foi como figurante no filme Maria Papoila de 1936, quando contava apenas quinze anos. Quatro anos depois, Jorge Brum do Canto convida-a para ser a protagonista feminina do filme João Ratão (1940). O filme segue a história de um jovem, João Ratão (Óscar de Lemos) que é convocado para a guerra na Flandres e que ao regressar à terra natal, se vê envolvido num triângulo amoroso com a sua noiva, Vitória (Maria Domingas) e uma mulher de posses, Manuela (Teresa Casal). O filme conhecerá um enorme sucesso, em grande parte devido à sua componente musical, onde se destaca o Fado das Trincheiras, mais tarde imortalizado na voz de Fernando Farinha, e canções que nos dão a conhecer a musicalidade da sua voz, como a Cantiga da Primavera.




                Dois anos depois, Maria Domingas entra em Os Lobos da Serra, também sob a direção de Jorge Brum do Canto, um filme dramático ambientado em paragens raianas, onde António (o ator António de Sousa), noivo de Margarida (Maria Domingas), se deixa enredar nas teias do contrabando para fazer face às dificuldades que atravessam.



                Em 24 de Setembro de 1947 é estreado o filme seguinte da carreira de Maria Domingas, Bola ao Centro, com argumento e realização de João Moreira, com Jorge Brum do Canto a supervisionar as filmagens; e que contaria com Alves Redol na escrita dos diálogos. O filme conta a história de um jovem apaixonado pelo futebol, Zé António (José Amaro) que para se tornar jogador abandona a família e a noiva, Maria Leonor (Maria Domingas), e ingressa num clube de futebol da capital. Aí, depois de um começo promissor embelezado por falsas promessas de carreira e pela trepidante vida noturna citadina, Zé António vê o seu sonho frustrado, o que o leva a regressar desencantado à sua terra, onde se reconcilia com Maria Leonor e consegue um emprego modesto, caindo de imediato no esquecimento daqueles que antes o aplaudiam.



                O título seguinte da filmografia de Maria Domingas acontece apenas doze anos depois. O Primo Basílio, adaptação cinematográfica de António Lopes Ribeiro da obra homónima de Eça de Queirós sobre a relação adúltera entre Luísa e Basílio. Neste filme, Maria Domingas desempenhará um papel secundário numa produção que contará com atores como Ribeirinho, João Villaret ou Manuel Santos Carvalho.



                O último filme em que Maria Domingas participou, no papel de uma viúva, foi A Cruz de Ferro (1968), filme realizado pelo cineasta que a descobriu, Jorge Brum do Canto e que também participa no filme como ator. Como em outros filmes deste realizador, a ação desenrola-se no campo, e a tensão dramática do enredo gira em volta de duas aldeias que disputam entre si a posse da água.

                Em paralelo com a sua carreira cinematográfica, Maria Domingas, desenvolve a sua participação no teatro. Foi no Teatro de Revista que Maria Domingas mais se destacou, chegando a ser uma atriz de primeira grandeza, e tendo contracenado com os maiores nomes da época, chegando a trabalhar em todos os teatros do género. Também trabalhou como atriz teatral no Brasil e em Moçambique, país onde viveu durante alguns anos.
                O final dos anos sessenta do século vinte assinala a retirada de Maria Domingas da vida artística, movida por razões de foro pessoal.

                De salientar que Maria Domingas sempre manteve uma forte ligação à sua terra, onde manteve uma casa e onde passava grande parte dos seus tempos livres. Também era aí que estanciava durante as tournées pelo país, recebendo outros atores em animados serões que as pessoas ainda recordam com agrado. Refira-se ainda que Maria Domingas se propôs para ser juíza da Festa de Santo Amaro em 1967, facto que não concretizou devido ao seu casamento em 1966, tendo delegado esse cargo numa pessoa de sua confiança.

(Revista Animatógrafo, 2ª. Série, nº. 51, 27 de Outubro de 1941)