segunda-feira, 20 de março de 2017

Uma viagem atribulada da Vestiaria às Caldas



                Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão, nasceu em Óbidos a 22 de Setembro de 1757, formou-se em Leis em Coimbra e abriu uma banca de advogado na sua vila natal, onde viria a falecer no ano de 1816. Celebrado boémio e poeta prolífico, tornou-se conhecido nos seus tempos de Coimbra pela sua paixão pela música, quer como executante (viola e guitarra),quer como cantor. É muitas vezes referido como Malhão Velho para o distinguir do seu filho, o padre Francisco Rafael da Silveira Malhão, poeta e orador sacro. Entre 1792 e 1797, publicou as suas memórias autobiográficas: Vida e Feitos de Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão, escritas por ele mesmo, de cujo Tomo III retiramos o excerto que aqui apresentamos.
                O filho homónimo de Francisco da Silveira Malhão granjeou a estima e admiração dos seus contemporâneos pelas suas prédicas e pelos seus escritos. Júlio César Machado, que não perdia a oportunidade de se entrevistar com ele, evoca-o em sentidas palavras na sua prosa memorialista:
                “Oh! Como nós conversamos nesse dia; ao deixá-lo, apartei-me saudoso de Óbidos, que tanto vale dizer que me apartei do poeta, porque Óbidos nesse tempo não era mais do que Malhão, e hoje Óbidos não é nada. Pagou-lhe mal a sua terra, e a gente que o cercava pouca saudade pareceu sentir quando a sua alma voou para Deus. O seu enterro, que deu lugar a tantas misérias, que nem se citam, foi um acto indiferente para os dali. Poucos o acompanharam em vida, e na morte não o acompanhou nenhum. Uma frieza glacial pareceu acolher a queda do poeta sagrado (...) O pobre Malhão morreu pobre e só ao canto da vila onde vivera, sem o entender ninguém. E os senhores ministros da nossa terra, que têm sempre dinheiro e pachorra para mandarem patetas passear em comissões, nunca encontraram maneira de estabelecer uma pensão a uma irmã do poeta, senhora idosa que ficou em desgraça, e que havia sido a companheira constante da modesta e sublime existência do primeiro orador sagrado do nosso país". (MACHADO, Júlio César, Scenas da Minha Terra, pp. 47-48, Lisboa, Editor José Maria Correia Seabra, 1862)



Vida e Feitos de Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão,

escritas por ele mesmo, Tomo III



VI
Continuava esta minha vida no estudo lento da Geometria, remetendo-me sempre de dia em dia, por mais que me gritavam os amigos, porque todo enfronhado em agradar a um mestre que já me havia negado piedade, não me receava tanto de outro em quem supunha não me guardaria tanto no fundo da canastra; e por isso, chegando-se o Natal, em vez de ocupar nisso as férias, vim de escaramuça a Óbidos porque também desejava ter notícias verdadeiras do estado em que se achava o meu irmão, a quem já por duas vezes haviam dado como morto.
VII
Sendo meu companheiro nesta jornada, António Joaquim Franca, de Torres Vedras, o qual nesse tempo ainda não havia apostatado do Direito Civil, fomos no dia primeiro a Pombal a casa do Marquês do Couto, e no segundo a Alcobaça a casa de António Batista; mas minto, no segundo dia a Leiria, e no terceiro a jantar em Alcobaça na casa do dito; porque eu não quero senão o que é verdade.
VIII
Como ele (o dono da casa) também nessa tarde ia para Óbidos, mas não precisava de ir tão cedo como nós, esperamos um pouco, e partimos muito contentes da bela sociedade, picando as bestas em direção[direitura] à Vestiaria, fazendo caminho para a vila da Cela, com efeito íamos pernoitar a Óbidos, o que não sucedeu (coisa que muito estimei), e o porquê aí vai em poucas palavras.
IX
É costume de tempo que excede a memória dos vivos, e de que nem os mortos dão notícias, fazer-se logo, passada a Vestiaria, um grande lameirão, com as suas semelhanças comum golfo ou sorvedouro; aqui vai ela, o meu companheiro, como francamente fazia tudo, francamente e apesar de advertido, meteu-se a ele por sempre gostar de caminhar pelo trilhado, e não reparou que o que se figurava lama cortada, era falta de cortadura, e humidade do olheiro, que ali dormia muito solapado. 
X
Enfim, apenas entrou foi a inversão dos dentes de Cadmo, e se não me lanço ao lameiro por uma parte mais sólida, de onde o agarrei pelo que restava do seu pequeno corpo, teria de ser procurado à fateixa! Trouxe-o de rojo, fazendo uma grande esteira pelo lameiro, e como eu nunca atei botas, lá me ficou uma, e primeiro que a achasse, descalçou-se a outra, e saí segunda vez com uma bota em cada mão, e tão cheias de barro que, sem encarecimento, me custaram mais do que ele; feita a primeira parte, entra a segunda. 
XI
Postos nós a olhar uns para os outros, e naquele desamparo, sem aparecer viva alma, e com o cavalo atolado de modo que só se lhe via o pescoço, o arção da sela e a mala, ficamos amarelos, mudos, quedos, e juntos de um penedo, dois penedos.
XII
Como estávamos daquele feitio, e quais dois porcos que se levantam do chiqueiro, fomos cá de largo soltando a mala, e conseguimos tirar-lhe a sela, e postos de atalaia, descobrimos dois homens que andavam cavando, dos quais o Batista foi em demanda e os trouxe consigo, pois a Providência não falta, e quando dá o trabalho, também acode com o remédio. 
XIII
Lançados os dois atletas, por mais diligências que fizeram, apenas conseguiram pô-lo em melhor carregadouro; e só com uma corda que se foi buscar à Vestiaria, e outro camarada mais, é que lançando-a atada por baixo das mãos e puxando todos, veio vindo como barco à sirga, e deu com os ilhais em terra dura, donde custou a levantar-se. 
XIV
Era uma coisa galante ver seis figuras, e com o cavalo sete, barradas como uns fogareiros, sacudindo as mãos e tirando de si lama às postas, levando um a sela, outro as botas, outro a mala, e outro o freio. E eu mesmo, que por isto passava, não pude deixar de rir. 
XV
Vendo nós as horas em que estávamos, consequência de toda esta lastimosa e enlameada tragédia, resolvemo-nos a ir pernoitar a Alfeizerão [Alfazirão], que nos ficava mais perto, e proporcionado com o resto do dia, para cuja continuação de viagem tirei sapatos da mala, e fui com as botas em ar de coldre, atascadas de lama até à boca. 
XVI Chegados à Cela, bebemos aguardente como uns desesperados, e dando às gâmbias, descemos já de noite a ladeira de Alfeizerão, aonde aportamos, fazendo riso a quanta gente estava na casa que escolhemos para pousada. 
XVII
Era véspera de Natal e eu levava uma fome horrendíssima, quisemos consoar mas não havia mais do que pão e vinho, e carne de porco crua; torrei fatias, aboboreias no vinho, assim chamado porque para vinagre faltava-lhe muito pouco, e dando providência à frigideirada para depois da meia-noite, nos amerendamos à fogueira, esperando pela Missa do Galo, a que fomos, e voltamos a dar com a prateirada nas tripas, a beber quatro trângolas, e a descansar alguma coisa em cima de uma cama, que sendo má, levamos nela um sono muito bom.
 XVIII
No outro dia, calçadas as botas, na limpeza das quais levou toda a noite um rapaz dacasa, me guindei ao meu rocim, e patinhando, ora lamas, ora poças d’água, entramos pela vila das Caldas, dando muito estalos de manopla e fazendo toda a paracuada de estudante de Coimbra; mas quão diversas, quão mudáveis e instantâneas são as coisas do mundo e, principalmente, as glórias.


(MALHÃO, Francisco Manuel Gomes da Silveira,
Vida e Feitos de Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão, escritas por ele mesmo
, Tomo III, Lisboa, 1823, Tipografia de J. F. M. de Campos]




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