quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Contexto e estudo do «Livro das Contas da Livraria do Real Mosteiro de Alcobaça» - parte 2.ª


O fim da livraria e algumas notas sobre as suas obras

                Nos alvores do século XIX, a Livraria ou biblioteca do Mosteiro de Alcobaça está implantada no seu novo espaço, no edifício sobranceiro ao claustro do Rachadouro. A obra em epígrafe a estas linhas, o Livro das Contas da Livraria do Real Mosteiro de Alcobaça, transmite-nos, como teremos oportunidade de expor, a ideia de uma Biblioteca com uma grande vitalidade, adquirem-se periodicamente novas obras em livrarias e espólios (livros, panfletos, mapas), assinam-se periódicos (uma das grandes inovações dos novos tempos) que são depois encadernados para se guardar nas estantes, e desenvolve-se algum trabalho de impressão. Para fazer face a esse trabalho e às despesas originadas por ele, a biblioteca tinha de ter rendimentos próprios consignados pelo Mosteiro, disposição que encontramos já para a Biblioteca do princípio de 1700, segundo nos conta na sua Corografia o padre António Carvalho da Costa COSTA, 1706, P. 89): «A Religião lhe tem consignada renda em cada hum anno para a reforma & augmento dos livros».
                A vida efémera desta nova Biblioteca, desde os primeiros anos do século à partida dos monges, permitiu-lhe ainda assim conhecer um flagelo sem paralelo na História do cenóbio, com as destruições provocadas no Mosteiro pelas tropas de Massena no ano de 1811.
                Um testemunho eloquente dessa destruição é uma carta, não assinada, publicada na Gazeta de Lisboa de 9 de Maio de 1811 (Gazeta de Lisboa, n.º 110, Impressão Régia, Lisboa), pouco depois dos eventos. A referência na carta ao «meu Prelado maior» deixa suspeitar que seria um religioso (monge de Alcobaça?), impressão reforçada pelas duas referências feitas à literatura francesa, Fénelon e Bossuet, dois teólogos que se posicionaram nos dois extremos do espetro político, liberalismo e absolutismo. Transcrevemos literalmente essa carta:

LISBOA, 9 de Maio
Cópia de huma Carta de Alcobaça, de 30 de Abril
                Cheguei a esta Villa, e encontrei ainda muitos vestigios da precipitada fugida de Massena; e juntando a estes muitos outros, que tenho diante dos olhos, penso que o Redactor da Gazeta de Lisboa não deve ser acusado de exaggeração, quando elevou a sua perda em cavallaria em mais de 80 praças. O contagio, que he a consequencia natural do abandono e miseria em que ficarão muitas povoações que não forão evacuadas inteiramente á chegada dos Francezes, continua a fazer muitos estragos naquellas, em que os auxilios de Medicina são ainda muito escaços. Nesta Villa, porém, graças ao meu Prelado maior, que trouxe uma grande quantidade de Agoa de Inglaterra, e hum Medico para assistir aos enfermos, estes são já em pouco número, e ha oito dias que cheguei aqui, tem morrido 2 ou 3 pessoas, o que não tem proporção alguma com o estrago de outras povoações, onde morrem todos os dias, pelo menos, 6 pessoas.
                Tenho observado com atenção as espantosas ruinas deste Mosteiro; confesso-lhe que me parecem mais horríveis do que julgava. A Igreja toda denegrida pelas chamas, que consumirão totalmente o Coro; as naves que sustentavão os órgãos, todas estaladas, offerecem hum golpe de vista muito desagradavel. Nota-se que as Imagens de Jesu Christo, Nosso Salvador, e de Nossa Senhora forão as mais insultadas, apparecendo quasi todas inteiramente desfiguradas, ou com as cabeças cortadas. Outras tem os rostos denegridos, e conhece-se que he por lhes terem applicado vellas acezas; em fim a Religião dos Soldados de Buonaparte apparecerá em toda a sua luz a quem examinar a Igreja de Alcobaça.
                Na casa dos Tumulos Reaes fizerão insolencias, que revoltão os espiritos mais indiferentes. Abrirão quasi todas com martello e picareta, donde resultou ficarem estragados, e mormente os do Sr. D.Pedro I, e D. Ignez de Castro, que erão primorosamente lavrados. As Rainhas D. Beatriz e D. Urraca, apparecerão inteiras, e aquella ainda com os proprios vestidos com que foi sepultada. O Corpo do Sr. D. Pedro I, estava perfeitamente organisado, não assim o de D. Ignez, de quem só existião ilesos os cabellos. Em tres pequenos tumulos jazião tres Infantes, cujos restos não apparecem. As grandes aberturas que fizerão nos mais, já forão tapadas.
                Na Livraria deixarão monumentos incontrastáveis do seu amor ás letras. despedaçarão mezas, cadeiras, escadas, vidros, parte das varandas, e lançarão para a cerca muitos livros, que se estragarão com o tempo, e que felizmente não eram os melhores, que muito antes forão postos a salvo. Rasgarão muitos, e he sensivel a perda de quatro globos, dois terraqueos, e dois celestes, de que só existem alguns pedaços.
                Na Hospedaria ficou salva huma casa ou sala, chamada dos Reis, ou por acaso, ou para vermos os nossos Monarchas viipendiados, e com effeito estragarão, ou rasgarão todas as suas pinturas.
                Da relação antecedente se póde colligir qual he o gosto, que tem pelas sciencias, e pelas artes os satellites do Tyrano Napoleão. Com he crível que estes homens sejão os habitantes da mesma Patria dos Fenelons, e dos Bossuetes? Huns monumentos augustos, como os de Alcobaça, e da Batalha, que tinhão respeitado os seculos, vierão a ser destruidos por esta raça perversa de Soldados embrutecidos! A sua destruição porém não pôde ser completa, e cuida-se em reparar os seus estragos; aquelles que forem reparaveis.

                Pela carta, ficamos a saber que os monges se haviam precavido contra a ação dos franceses, escondendo as suas obras mais importantes. Depois deles partirem, foi chegada a hora de reparar alguns dos estragos, e os restauros na Livraria devem ter acompanhado os do resto do Mosteiro, reconstrução que pela sua dimensão, terá sido demorada. O Livro das Contas da Livraria (BNP, cod-7353), que se inicia de forma não regular a 5 de Outubro de 1811, não menciona obras no primeiro triénio (1810-1811-1812), mas o ano que abre o triénio seguinte, 1813, descrimina restauros na Livraria coerentes com o teor da carta: madeira e ferragens para as mesas pequenas e a jorna dos oficiais que consertaram as ditas; vidros e caixões (caixilhos) para eles e «outras coisas precisas para o conserto das vidraças da Livraria». No ano de 1814 prossegue a recuperação da Livraria: compra-se um pranchão de madeira para se consertar as mesas grandes da Livraria, pagando-se as jornas dos carpinteiros para a obra. Paga-se também a jorna de homens contratados para raspar as estantes, certamente para as restaurar.
                A Biblioteca e o Mosteiro refazem-se como podem no coração dos coutos de Alcobaça onde a passagem dos franceses e a epidemia que campeava pelas terras matou muita gente, deixando aos que regressavam às suas terras e casas, a certeza de uma vida difícil envolta pelo espetro da fome. Um decreto de 31 de Março de 1811 (GAZETA DE LISBOA, nº 79, de 2 de Abril de 1811, Impressão Régia, Lisboa), assinado em nome do Príncipe por D. Miguel Pereira Forjaz e pelo desembargador Sebastião Xavier Botelho, determina que se regularize os portos do Tejo para daí se fazer remessas para os pontos da costa de forma a aprovisionar mais facilmente as comarcas do interior como Leiria ou Alcobaça. Estabelece-se que, de quinze em quinze dias, partiriam de Lisboa embarcações carregadas com os géneros que as pessoas pudessem oferecer, e que se dirigiriam aos portos de Peniche, S. Martinho e Figueira para levar essa ajuda aos que dela precisavam. Noutro despacho, datado de 15 de Abril de 1811 (GAZETA DE LISBOA, nº 89, de 15 de Abril de 1811, Impressão Régia, Lisboa), declara-se que o Governo, procurando aliviar as calamidades causadas pelo inimigo com a invasão das terras que ocupou, determinou a efetiva distribuição pelo território do reino, de 1000 moios de grão a um preço simbólico (1050 réis a metal cada alqueire), que deveriam ser embarcados para dez pontos da costa. Ao porto de S. Martinho seriam enviados 120 moios de grão para a comarca de Alcobaça, enquanto a comarca de Leiria teria direito a 230 moios de grão que lhe chegaria por S. Pedro de Muel. No que toca apenas às rendas atribuídas à Livraria ou Biblioteca, sabemos pelo respetivo Livro das Contas que no ano de 1810, quando os Franceses ocupavam a região, o Mosteiro perdoou ou declinou as rendas ordinárias que lhe eram devidos e alguns foros das Quintas do Mosteiro; e que em 1811, perdoou metade das rendas ordinárias para, no ano seguinte, 1812, escusar à cobrança um quarto das rendas ordinárias que recebia, sendo depois disso cobrados normalmente esses rendimentos.
                Com a Revolução de 1820, o Mosteiro de Alcobaça entra num período delicado da sua existência com os progressos dos liberais no sentido de abolir a estrutura senhorial do reino a servir de estímulo para a contestação social crescente dos direitos e foros que se encontravam fixados nos forais das vilas dos coutos. A 20 de Março de 1821 é publicado o decreto (COLLEÇÃO DA LEGISLAÇÃO MODERNA PORTUGUESA, 1823, pp. 30-31) que, entre outras especificações, extingue todos os serviços pessoais feitos pela própria pessoa ou com animais, fundados em Foral (artigo 1.º) e igualmente, «todos os Direitos chamados Banaes que são os de Fornos, Moinhos e Lagares de toda a qualidade» (artigo 2.º), obrigações e prestações consistentes em frutos, dinheiro, aves ou cereais impostas aos habitantes de qualquer povoação, ou distrito, a favor de algum Senhorio (artigo 3.º); e finalmente, no Artigo 4.º, extingue-se «o Privilégio chamado de Relêgo, pelo qual «a Coroa, Donatarios della, ou quaesquer outros agraciados, tinhão a venda exclusiva dos Vinhos em certos meses do anno». A 5 de Junho de 1822, um novo Decreto (COLLEÇÃO DA LEGISLAÇÃO MODERNA PORTUGUESA, Tomo II, 1823, pp. 34-38) determina a reforma dos Forais «considerando que os foraes dados às diversas terras do Reino nos primeiros tempos da Monarquia excessivamente oprimem a Agricultura, tornando-se indispensável diminuir ao menos este gravame quanto seja possível e prescrever regras certas, e claras, que substituão a confusão, e quasi infinita variedade daquelles antigos títulos». Entre outras disposições (o decreto compõem-se de 25 artigos diferentes), dita-se que as quotas incertas estabelecidas por forais e os foros e pensões certas nelas contidas seriam reduzidas a metade da sua vigente importância (Artigo 1.º), a suspensão dos laudémios (Artigo 4.º), abrindo-se ainda a possibilidade do lavrador ou foreiro proceder à remissão da pensão ou foro segundo condições estabelecidas no próprio decreto (Artigo 18.º).
                O decreto de 1821 e o da reforma dos forais refletem-se de imediato no Livro das Contas da Livraria. No período entre 1 de Maio de 1821 e o último dia de Abril do ano seguinte, o Mosteiro apenas consegue receber os direitos de cinco das oito Quintas em que habitualmente os cobrava, e apenas um dos foros costumeiros (o de uma azenha na Mata da Torre), ficando os outros em dívida. Nos dois anos seguintes, o quadro mantém-se nas suas linhas gerais.
                A situação financeira do Mosteiro sofre um grande impacto com estes dois decretos, e na sessão das Cortes Constituintes, é apresentado um requerimento dirigido à Comissão de Agricultura pelo Abade do Mosteiro de Alcobaça (DIÁRIO DO GOVERNO, 1822, p. 1219), no qual este pede certas alterações na Lei dos Forais e «expõe que ela reduz as rendas daquela Corporação ao mais lamentável estado, e que finalmente ela tem por fim promover a anarquia entre os povos». Depois de alguns debates, e seguindo a opinião da Comissão, o requerimento é indeferido, e chega-se a ponderar a possibilidade do Abade ser repreendido nas Cortes por denegrir a finalidade da Lei dos Forais.
                A «anarquia» mencionada pelo Abade traduz o clima de instabilidade e revolta que se instalara nos coutos, com foreiros e Câmaras a desafiarem os quarteiros enviados pelo Mosteiro para arrecadar os direitos e foros. A reação aos decretos do vintismo vai proporcionar ao Mosteiro um novo alento e um último período de prosperidade - o seu canto de cisne. A Carta de Lei de D. João VI de 4 de Junho de 1824, publicada em suplemento na Gazeta de Lisboa do dia 5 desse mês (GAZETA DE LISBOA, 1824, p. 625) revoga as leis e decretos da «monstruosa Constituição de mil, oitocentos e vinte e dois», e restitui a vigência dos forais tradicionais, mantendo no entanto suprimidos os Direitos Banais. Precedido por diversas tentativas políticas e militares de conduzir D. Miguel ao poder, este regressa do exílio e é aclamado rei a 23 de Junho de 1828, apressando-se a contrariar o que fora implementado pelos liberais.
                Para o mosteiro e convento de Alcobaça, a opção era óbvia entre uma fação liberal que era a antítese do seu domínio senhorial e dos seus privilégios, e um rei contrarrevolucionário e tradicional na pessoa do qual os seus interesses ficariam escudados. O apoio incondicional ao rei D. Miguel ficou claro no Auto de Preito e Vassalagem que lhe consagraram, redigido a 9 de Outubro de 1831, onde, além do próprio Abade, assinaram Frei Francisco de Castro, Secretário-geral da Congregação; Frei Manuel de Morais, Visitador Geral; e Frei José de Mendonça, Definidor.
                Esse compromisso sitiou os religiosos do Mosteiro após as vitórias liberais de 1833 e, sobretudo, a capitulação de Lisboa a 24 de Julho de 1833. Mesmo com a corte de D. Miguel deslocada para Santarém, a causa sabia-se perdida e o desfecho inevitável.
                Narra Manuel Vieira Natividade (NATIVIDADE, 1885): A primeira vez que os frades de Alcobaça abandonaram o mosteiro foi em Julho de 1833. Voltaram depois, e essa fuga repetiu-se com pequenos intervalos até princípios de Outubro em que um grito de alarme mais positivo os obrigou a sair de vez (...) em 16 de Outubro de 1833 opera-se em Alcobaça um levantamento liberal, destruindo de uma vez todas as dependências que havia dos senhores dos coutos (...) Apossaram-se da livraria, das alfaias, das mobílias, de tudo o que sem grande custo podiam levar, e senhores de tudo, destruíram, venderam, inutilizaram. Foi um verdadeiro saque que durou onze dias sem que ninguém se lhe opusesse, sem que ninguém lhe lembrasse que faziam um roubo às artes, às ciências e ao Estado. Os soldados de uma divisão francesa que estava em Peniche, e que acudiu aos gritos dos revoltosos, foram os que mais prejudicaram o mosteiro. A livraria foi na maior parte dividida entre eles, sendo-lhes ainda apreendidos nas Caldas muitos livros de grande importância.
                Uma narrativa aproximada é-nos dada por uma carta coletiva enviada ao redator do jornal Nacional, e que integrou o processo do Corregedor António Luís de Seabra (SEABRA, 1871, pp. 27-28): Os monges de S. Bernardo abandonaram o convento em 26 de Julho de 1833; e só três meses depois, em 27 de Outubro seguinte, deu entrada nesta vila o Corregedor António Luís de Seabra. Foi nesse período que os povos dos coutos de Alcobaça e da serra vizinha, que odiavam nos frades os seus opressores e viam neles a causa das perseguições políticas que o governo de D. Miguel tinha por aqui exercido em larga escala, foi então, repetimos, que os povos invadiram e talaram as ricas propriedades do mosteiro, apoderando-se a seu bel-prazer dos móveis, alfaias e frutos que encontraram ao abandono. Nestas correrias tomaram uma parte importante a guerrilha do Vasa, de Santa Catarina, e uma força de franceses dos que estavam nesse tempo em Peniche.
                Na sua fuga em direção aos mosteiros cistercienses de Salzedas e Maceira Dão, os monges haviam já levado consigo os livros que compunham o seu Cartório, e aqueles ditos livros proibidos que se guardavam aos olhares dos comuns nos gabinetes contíguos ao salão da Biblioteca; os livros do Cartório foram depois apreendidos na Beira Alta pelo seu Prefeito (SEABRA, 1871, p. 16). O Auto de Exame da Livraria de Alcobaça, de 15 de Novembro de 1834, confirma que se havia recuperado os livros do Cartório, e que este havia sido achado no convento de Maceira Dão (RASQUILHO, 2015).
                Num nosso artigo anterior (O trilho dos manuscritos do Mosteiro, de Fevereiro de 2015), delineamos o caminho dos códices da Livraria a partir das alegações do Visconde de Seabra (SEABRA, 1835; e SEABRA, 1871) e dos estudos sobre o tema do historiador Paulo J. S. Barata (BARATA, 2003; e BARATA, 2004). Os manuscritos, descobertos pelo Corregedor interino de Alcobaça, António Luís de Seabra, num esconderijo na sacristia da igreja do Valado dos Frades, são encaixotados e enviados para Alfeizerão, onde o Corregedor os vai inventariar, antes dos 27 caixotes serem fechados novamente e levados para o porto de S. Martinho para serem embarcados para Lisboa. Um ofício de 24 de Abril de 1839 do Administrador do Concelho de S. Martinho do Porto, dirigido ao Vice-Secretário da Comissão Administrativa do depósito das Livrarias dos extintos Conventos, informa também da existência de onze estantes que pertenciam à Livraria de Alcobaça e que estavam guardadas em S. Martinho, no Armazém Nacional da Administração dos Pinhais Nacionais de Leiria (NASCIMENTO, 1979, p. 280), provavelmente aguardando o embarque para a capital.
                Um índice impresso dos manuscritos da Livraria, o Index Codicum Bibliothecae Alcobatie, sem nome de autor e impresso em Lisboa, na Tipografia Régia no ano de 1775, recenseia e descreve na Biblioteca do Mosteiro 476 códices diferentes. Essa cifra não é alcançada pelo número de códices alcobacenses que sobreviveram em Lisboa: 456 na Biblioteca Nacional de Portugal e 8 no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (NASCIMENTO, 1979). Dos doze códices em falta, alguns terão sido desencaminhados antes e depois da partida dos monges de Alcobaça em 1833, mas alguns terão sido simplesmente destruídos depois do saque do Mosteiro, como testemunha em Alcobaça Manuel Vieira Natividade (NATIVIDADE, 1885): Folhas de pergaminho com lindíssimas iluminuras temos nós visto dispersas, cortadas, e muitos livros manuscritos estupidamente mutilados.
                Entre os códices cuja natureza e localização foi estudada por Aires Augusto Nascimento (NASCIMENTO, 1979, pp. 282-283), existe o caso exemplar de três grandes volumes em pergaminho (Códices 350, 351 e 352) que constituíam uma versão das obras de Flávio Josefo, compostos em fins do século XIII ou princípios do XIV por um frade de Alcobaça, Frei Damião de Óbidos. Esses volumes estavam desaparecidos da Biblioteca quando Frei Fortunato de S. Boaventura compôs a sua Historia Chronologica (S. BOAVENTURA, 1827, p. 60), e escreveu nessa mesma obra o cronista: presumo que forão roubados pela Divisão Franceza que incendiou o Mosteiro de Alcobaça. No seu estudo, Aires Augusto Nascimento localizou essas obras perdidas no acervo do Museu Britânico, ou seja, tinham sido levados, não pelos bárbaros franceses, mas pelos nossos aliados na guerra peninsular; os mesmos que, nas memórias de um militar inglês, William Grattan (GRATTAN, 1902 – a sua passagem por Alcobaça ocupa as páginas 43 a 46), se dá testemunho da sua conduta irrepreensível no teatro de guerra.
                Sobre os manuscritos, e sobre as obras impressas que se contavam em vinte e cinco milhares, existem diversos dados, mas também algumas incertezas que se perfilam como pontas soltas deste tema.
                Um dos testemunhos abonatórios da atuação de António Luís de Seabra (SEABRA, 1871, p. 81) fala-nos de dois baús com manuscritos que presumivelmente, teriam sido também encaminhados para Lisboa, mas na exposição transparece alguma incerteza sobre essa asserção. Joaquim António de Carvalho, de Porto de Mós, disse que havia sido confiado em tempos ao pai de Joaquim do Nascimento Pereira do Vale (Escrivão da Fazenda do concelho de Alcobaça) por dois padres (frades?) dois caixotes ou baús com coisas preciosas, e que ele, testemunha e um seu irmão, espiaram o conteúdo dos baús e viram que continha «livros com capas de pergaminho, alguns com folhas douradas, e manuscritos», havendo também aí «um instrumento bem trabalhado com rodas de metal, cuja aplicação ele, Nascimento, não soube, nem ninguém lhe pôde dizer e explicar, apesar da descrição que dele fez a muitas pessoas». Os baús teriam sido entregues pelo pai de Joaquim do Nascimento à autoridade constituída pelo governo constitucional, mas o tal misterioso instrumento com rodas de metal, a testemunha voltou a encontrá-lo num lugar inusitado, a casa do Escrivão do Juízo de Alcobaça, Joaquim Custódio Freire.
                Sobre os livros impressos, é-nos dito que «alguns soldados franceses venderão livros nas Caldas e em Alfeizirão, [e] que uma grande cópia delles foi levada para Peniche» e que «[se vira] as camas, colxas do convento,vendendo-se pela villa de Obidos, Caldas, Peniche, e os livros da livraria vendiam-se em Lisboa» ( [SEABRA, 1835, p. 13 e p. 125). Por seu turno, António Vitorino da Fonseca Froes (tio de Victorino de Avelar Froes), testemunha que viu «vender publicamente, pelos soldados franceses e batalhão dos Polacos da Serra, livros pertencentes ao mosteiro e que dali tinham furtado e que vendiam às cargas pelo insignificante preço de um pataco» (SEABRA, 1875, p. 70).
                O governador da praça de Peniche, segundo informação de António Luís de Seabra, tinha tratado de apreender e recolher os livros de Alcobaça que para ali tinham sido levados (SEABRA, 1835, p. 33). É o que nos dá conta a Relação dos Livros, pertencentes ao Mosteiro de Alcobaça, aprehendidos em Peniche que ficarão em poder do juis de fora desta ultima villa (BNP, co-cx19), uma relação que impressiona pela vastidão dos títulos, mas também pela sua diversidade – livros religiosos, livros de viagens, biografias, tratados de medicina…
                Um último reparo sobre o fim da livraria. Nas memórias do Dr. António Maria da Silva Brilhante (BIOGRAPHIAS, 1877, p. 206), nascido em Alcobaça a 2 de Fevereiro de 1821, e que Manuel Vieira Natividade diz ter sido o primeiro médico homeopata do nosso país (NATIVIDADE, 1885), ele fala da extinta Livraria de Alcobaça e surpreendentemente, de livros encaixotados a apodrecer sob as abóbadas do Mosteiro. Cito o parágrafo sobre a Livraria: «Estava avaliada em dois mil e quinhentos contos de réis. Eu não conheço maior sala em todo o reino: quem for visitar a livraria do Convento de Jesus nesta cidade, pode fazer ideia do molde. Lá está a casa, nua de livros, estantes e ornatos! Haverá dois anos vi estes já pôdres, encaxotados e metidos debaixo das abóbadas onde quizeram fazer a sala da exposição das Bellas Artes! E que Bellas Artes estas!...».


Bibliografia:

BARATA, Paulo J. S., Os Livros e o Liberalismo: da Livraria Conventual à Biblioteca Pública, edição da Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, 2003

BARATA, Paulo J. S. Roubos, Extravios e Descaminhos nas Livrarias Conventuais Portuguesas após a Extinção das Ordens Religiosas: um Quadro Impressivo, Revista Lusitânia Sacra, 2ª série, nº 16, Lisboa, 2004.

BIOGRAPHIAS DOS MUI DISTINCTOS E MUITISSIMOS MÉDICOS, OS SRS. DR. ANTÓNIO JOSÉ DE LIMA LEITÃO E DR. ANTÓNIO MARIA DOS SANTOS BRILHANTE, Tipografia Universal, Lisboa, 1877.

COLLEÇÃO DA LEGISLAÇÃO MODERNA PORTUGUESA - Da instalaçção das Cortes Extraordinarias e Constituintes em Diante, Legislação de 1821, Tomo I, pp. 30-31, Tipografia Maigrense, Lisboa, 1823.

COLLEÇÃO DA LEGISLAÇÃO MODERNA PORTUGUESA - Da instalaçção das Cortes Extraordinarias e Constituintes em Diante, Legislação de 1822, Tomo II, pp. 30-31, Tipografia Maigrense, Lisboa, 1823.

COSTA, António Carvalho da, Corografia portugueza e descripçam topografica do famoso Reyno de Portugal, com as noticias das fundações das cidades, villas, & lugares, que contem; varões illustres, gealogias das familias nobres, fundações de conventos, catalogos dos Bispos, antiguidades, maravilhas da natureza, edificios, & outras curiosas observaçoens,  Tomo I, Lisboa, officina de Valentim da Costa Deslandes, 1706.

DIÁRIO DO GOVERNO, n. 168, p. 1219, de 19 de Julho de 1822, Lisboa

GAZETA DE LISBOA, n.º 133, de 5 de Junho de 1824, Impressão Régia, Lisboa

GRATTAN, William, Adventures with the Connaught Rangers (1809-1814), Edward Arnold, London, 1902. (versão eletrónica em https://archive.org/details/adventureswithc01omangoog).

INDEX CODICUM BIBLIOTHECAE ALCOBATIE, Lisboa, na Tipografia Régia, 1775.

NASCIMENTO, Aires Augusto, Em busca dos códices alcobacenses perdidos, revista Didaskalia, volume IX, pp. 279-288, Lisboa, 1979.

NATIVIDADE, Manuel Vieira, O Mosteiro de Alcobaça - notas históricas, Coimbra, Imprensa Progresso, 1885.

RASQUILHO, Rui (2015), “As três Bibliotecas do Mosteiro de Alcobaça”, in Caderno de Estudos Leirienses, Textiverso, Leiria, 2015.

RELAÇÃO DOS LIVROS, PERTENCENTES AO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, APREHENDIDOS EM PENICHE, QUE FICARÃO EM PODER DO JUIS DE FORA DESTA ULTIMA VILLA, Alcobaça, 11 de Abril de 1834 (BNP, co-cx19). Versão eletrónica no endereço http://purl.pt/27233, visitado pela última vez em 3 de Agosto de 2016.

S. BOAVENTURA, Fr. Fortunato de, Historia Chronologica e Critica da Real Abbadia de Alcobaça da Congregação Cisterciense de Portugal para servir de continuação à Alcobaça Illustrada do chronista Fr.Manoel dos Santos, Lisboa, Impressão Régia, 1827.

SEABRA, António Luís de, Observações do ex-corregedor de Alcobaça sobre um papel enviado à Camara dos Senhores Deputados a cerca da arrecadação dos bens do mosteiro daquella villa, Typographia de Eugenio Augusto, Lisboa, 1835.

SEABRA, António Luís de, Resposta do Visconde de Seabra aos seus calumniadores, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1871.


sexta-feira, 29 de julho de 2016

Contexto e estudo do «Livro das Contas da Livraria do Real Mosteiro de Alcobaça» - parte 1.ª

Resumo:
                O Livro das Contas da Livraria do Real Mosteiro d'Alcobaça (BNP, cod-7353, versão eletrónica no endereço http://purl.pt/24965) apresenta-nos o registo minucioso das rendas e despesas da Livraria no período (final) compreendido entre 1812 e 1833. As rendas e foros atribuídos pelo Mosteiro à sua Livraria tinham a sua proveniência no interior e fora dos Coutos de Alcobaça, ao passo que o arrolamento das despesas nos permite compreender onde é que esses réditos eram aplicados. Privilegiaremos a natureza desses movimentos contabilísticos em detrimento da sua expressão financeira e do tratamento estatístico dos dados disponíveis.
                Para transmitir um enquadramento temático dessa obra, começaremos por tecer algumas considerações sobre a Livraria conventual e o seu espaço físico ao longo dos séculos, rematando essa introdução com algumas considerações sobre o fim da Livraria e o destino do seu espólio. 


Os três avatares da Livraria de Alcobaça

1 – As duas primeiras livrarias.
                Quando no início do século XIII se conclui a igreja do mosteiro de Alcobaça e os monges se transferem para aí no ano de 1227, vindos da Chiqueda; a Livraria inicial do Mosteiro, o Scriptorium, fica instalada junto à Sala dos Monges, no lugar onde depois se construiu as cozinhas do mosteiro (RASQUILHO, 2011; e RASQUILHO, 20151), e aí permanecerá até ao século XVI, quando é transferida para os dormitórios do Mosteiro, sendo assim descrita por Frei Manoel dos Santos por volta do ano de 1700 (SANTOS, 1979, p. 56): O Archivo Real do Mosteiro de Alcobaça he uma casa grande repartida em tres salas. Está situada no primeiro lanço dos dormitorios à parte esquerda; e da outra parte as cellas, ou quartos, dos Abbades Geraes, e dos seus secretarios; em tal forma, que a porta do Archivo e a dos Abbades ficam em correspondencia na frontaria do taboleiro, ou patim da escada grande que sobe do claustro. A primeira sala das tres he publica; serve de escreverem nela os tabelliaens e de se ouvirem e despacharem as partes, que tem negocio. Na segunda está o cartorio; e na ultima a livraria antiga manuscrita.
                Tratando a livraria manuscrita com nítida admiração (os pergaminhos sam alvos como a neve; e alguns tam finos, e delicados, o que nam havera papel por mais fino que seja que os iguale), o cronista fala já do descaminho que fora dado a muitos manuscritos dos mais preciosos da livraria, dado já avançado na primeira parte da Alcobaça Illustrada (SANTOS, 1710, P. 80): [os monges ] por que ainda com nam terem no seu tempo outro modo de compor senão escrevendo em pergaminho, nos deixarão huma livraria manuscrita, a qual assim truncada como está, & meyo roubada, he hum dos mais preciosos thezouros que de semelhante genero, se sabem em toda Hespanha. Neste descaminho de livros manuscritos, temos de associar os castelhanos ao tempo da dominação filipina, que Frei Fortunato de S. Boaventura (S. BOAVENTURA, 1827) acusa diretamente (ainda que essa acusação careça de uma crítica acurada) de tirarem livros importantes do mosteiro para enriquecer a coleção do Escorial.
                Na descrição da livraria, Frei Manuel dos Santos explana as partes e figuras que compõem o teto pintado (SANTOS, 1979, pp. 68-75), relato que principia assim: o tecto he de forro apainelado, repartido em 16 quadrangulos maiores com sua caixa no centro e a coxia tambem dividida em seis grandes e des quadrangulos mais piquenos tudo pintado primorosamente ao intento da livraria. Ao redor das paredes por sima das estantes vam quadros ou paineis, de preciosissimas pinturas nos quais se vem santos escritores da Ordem da figura, ou proporção, natural. Dou notícia da pintura do tecto, e depois dos escritores, que se vem nos quadros.
                Um outro relato desse teto pintado de grande riqueza simbólica e iconográfica, pode e merece ser lido no Index da Livraria composto por Fr. António de Araújo em 1656 (ARAUJO, 1656, fls. 8-15 v.), e do qual respigo duas passagens para estimular a curiosidade: O Segundo Emblema que lhe fica proximo à parte direita he a officina de hum impressor com hua letra que diz, Ex fumo in lucem, porque assim como a obra da impressão de hum tão fumozo e escuro lugar sae tão luzida, que se faz commua aos olhos de todos, assim quanto mais a vista cança cõ a continuação do estudo, e quando mais se offende os olhos com o fumo do trabalho, tanto a vista do mundo saem seus effeitos mais luzidos, ou tambem nisto se mostra que tem a sciencia tal vigor, que aqueles que nas fumozas trevas de seu abatimento vivião desconhecidos, os faz logrando luzes proprias, ficar acreditados e lustrosos. (...) O Quinto, que lhe fica fronteiro he hum Sino quebrado posto em huma torre alta; diz a letra: Ex pulsu noscitur. Hum Sino quebrado pode enganar os olhos mas não engana os ouvidos, porque pello som que da se julga se tem quebras ou deffeitos; a isto parece que alludia o filozofo Biantes, quando dezia que emquanto hum homem estava callado, se podia julgar por entendido; pellas vozes que se formão, se infere bem a discrição ou ignorancia de quem as lança: he a lingua, fiel interprete do Juízo, não pode mentir a palavra à muita ou pouca sciencia de quem a forma, e como as palavras são sobrescrito do entendimento, não pode desdizer a letra de fora as muitas ou poucas letras que dentro ficão encerradas.

                Outros três códices da BNP versam esta biblioteca “intermédia”, constituindo índices das suas obras, elaborados segundo diferentes critérios. Constituem matéria de estudo, mas sobretudo, e sobremaneira, objetos de apreciação estética pela sua composição, caligrafia e ilustrações. O Códice 7412 (AUREA CLAVIS, 1701) integra uma gravura da biblioteca (Figura 2) com o altar ao topo da sala, as estantes de livros, as duas grandes mesas de trabalho e, entre elas, o símbolo de Cristo entre um globo terrestre e um globo representando a esfera celeste; por cima das estantes, percebem-se os quadros com os santos escritores da Ordem de que fala Frei Manoel dos Santos. Os outros dois códices (Códices 7382 e 7383) são complementares um do outro, datam do Ano do Senhor de 1684 e ostentam a “assinatura” do frade «Anonimo de Castrebbedred». Do primeiro (RADIUS BIBLIOTHECAE, 1684) extraímos a planta da biblioteca (Figura 1) que corresponde à gravura do Aurea Clavis, e que servia de base aos catálogos de obras, indicando o lugar onde podiam ser procuradas ou aonde deviam regressar após o seu manuseamento.

Figura 1

Figura 2
Gravura assinada pelo autor na moldura inferior:
 Fr. Ludovico (?) José fez: Fr. Loud.is. Ioxepho fecit.

2 - A Biblioteca de 1800
                Mesmo com as condições e possibilidades criadas com a instalação da Biblioteca nos antigos dormitórios, as necessidades crescentes (os trabalhos de impressão e encadernação, a aquisição de novas obras, e a complexidade do Cartório) impunham a criação de um novo espaço dedicado a ela. Já em 1716, Frei Manuel dos Santos escreveu que na Ala a Sul do Claustro do Rachadouro estava «ideada uma Livraria», o edifício onde ela se implantaria estaria praticamente concluído em 1772 (TAVARES, 2001, P. 92), mas prosseguiam as obras no seu interior, que se prolongaram por mais duas décadas. Em 1773, D. José I determina a Wiiliam Elsden que fosse ao Mosteiro por causa das obras no Colégio e na Biblioteca; mas em 1786, quando a rainha D. Maria I visita o mosteiro, a biblioteca ainda estava instalada nos antigos dormitórios. Em 1798, o viajante alemão Heinrich Friedrich Link visita o Mosteiro e afirma que «agora está a ser arranjada uma nova e magnífica sala» para a Biblioteca (RASQUILHO, 2015).
                A mudança das obras para o novo salão junto ao claustro do Rachadouro deve ter ocorrido na viragem do século, e já aí funcionava em pleno em 1811 quando o exército de Massena devastou o Mosteiro, facto reforçado pelas informações disponibilizadas pelo Livro das Contas da Livraria do Real Mosteiro de Alcobaça, cujos assentos se iniciam em 1812.
                Manuel Vieira Natividade (NATIVIDADE, 1885, PP. 91-95) traça-nos um fresco da nova livraria:
                A livraria e o cartório estavam num dos lados do claustro do Rachadouro. O cartório situado no primeiro plano é uma espaçosa e lindíssima sala, formada por uma série de arcos que assentam sobre colunas jónicas de uma grande imponência. No plano inferior - rés-do-chão - ficavam algumas oficinas do mosteiro, tais como as de carpintaria, encadernadores, barristas, serralharias, escultores, etc.
                No plano superior, o segundo, abre um extenso corredor em todo o comprimento da sala da livraria. É esta uma elegante e formosa sala, lajeada do mais fino mármore. Mede 47,70 metros de comprimento por 12,70 de largura, e as suas estantes mediam 3,70 metros de altura. Recebe luz por vinte e duas amplas janelas em duas alturas, e por doze frestas elipsoides quase a tocar o teto. A meia altura sai uma varanda interior que rodeia toda a sala, e que dá para as onze janelas superiores. Nos golpes da parede correspondentes a cada janela, tanto inferiores como superiores, destacam-se uns frescos admiráveis, umas miniaturas cheias de poesia que fazem muitas vezes lembrar o rasgo de um grande talento.
                No estuque do teto nota-se com assombro a elegância e o colorido. Ao centro sobressai a imagem de S. Bernardo a mais de meio relevo, rodeada de florões, insígnias e símbolos que se sucedem em todo o comprimento e largura, como que num artístico labirinto.
                Tem três estradas: a principal ao centro e duas que abrem nos topos e que veem de uns pequenos gabinetes que supomos serem de estudo. Nota-se nestes o mesmo estilo da sala e é para lastimar que os bocados de estuque que tem caído fossem substituídos por uns remendos boçais e estúpidos, em vez de se ter imitado o trabalho geral do teto de cada um.
                (...) Ao lado esquerdo da livraria, fazendo a frente para leste, existem uns quartos bastante espaçosos que eram destinados a encerrar os livros proibidos, os livros dos grandes pensadores que só aos monges velhos e de reconhecido fervor religioso era permitido ver, porque esses por certo se não deixariam arrastar pelas doutrinas dos novos filósofos.

                Outro historiador, Vilhena Barbosa (BARBOSA, 1886, p. 262), faz esta “leitura” da sala da Biblioteca:
                É uma sala mui vasta e alegre. Não é proporcionada a altura à sua vastidão. Se tivera maior elevação ofereceria um aspeto mais grandioso. De um lado, em todo o seu comprimento, é aberta a parede em grandes janelas, com os seus óculos por cima, correspondendo a estes outros óculos iguais na parede fronteira. O pavimento é de mármore de cores em mosaico; e o teto, de obra de estuque e pintura, não de muita perfeição, mas vistosa. As paredes, hoje nuas, vestiam-se outrora com as estantes dos livros, e por cima com painéis a óleo, com medalhões e figuras de alabastro. Não havia em tido isto coisa alguma de primor de arte. Todavia, aqueles diversos ornamentos davam à sala uma perspetiva de magnificência que encantava a quantos a viam. Foi certamente um ato de vandalismo despojá-la dos adornos, que lhe formavam uma feição tão particular, e fora dali pouco valor podiam ter (...) A biblioteca do mosteiro de Alcobaça contavam perto de 25.000 volumes, em que avultavam muitas obras raras, e entre estas algumas impressas pelo próprio Gutenberg. Porém, os manuscritos é que constituíam a sua principal riqueza e a tornavam célebre no nosso país. Conforme o catálogo que se publicou em 1775, passavam de 400 os códices manuscritos, in-fólio.

                Da sala grande da Biblioteca mantém-se o piso em mármore e a galeria de madeira em volta. O teto estucado e pintado desapareceu na sua maior parte devido às infiltrações de água, já assinaladas por Natividade para os gabinetes contíguos. Em 1904, o peso do «barrotado da cobertura» fez mesmo cair uma parte do teto; e do seu teto original apenas se conserva hoje os florões dos cantos (RASQUILHO, 2011). Em jeito de ilustração, trazemos aqui uma imagem de como esse teto se apresenta atualmente (Figura 3), extraída de uma das obras de um grande investigador, Dom Maur Cocheril (COCHERIL, 1989), uma fotografia (Figura 4) do período em que aí estavam aquartelados os militares da Cavalaria 9 em finais do século XIX e, finalmente, uma estampa patente na referida obra de Vilhena Barbosa (Figura 5). 

Figura 3

Figura 4

Figura 5
Bibliografia:

ARAUJO, António de, Index. e su[m]mario dos livros que conte[m] esta Livraria de Alcobaça com o epitome e declaração de todas as tarjas, emblemas, e quadros, de que está ornada, a qual liuraria foi ampleada e renouada pello grãnde zello do Nosso Reuerendissimo P.e Frei Manoel de Moraes Abbade Geral deste Real Conuento, anno de 1656, BNP, cod-8388, exemplar digitalizado no endereço http://purl.pt/27198.

Aurea clavis reserans bibliophilacium hoc magnum Alcobatiae, 1701, BNP, cod-7412. Exemplar digitalizado no endereço http://purl.pt/24968.

BARBOSA, Inácio de Vilhena, Monumentos de Portugal - Históricos, artísticos e arqueológicos, Castro Irmão Editores, Lisboa, 1886.

COCHERIL, Dom Maur, Alcobaça – abadia cisterciense de Portugal, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa 1989.

NATIVIDADE, Manuel Vieira, O Mosteiro de Alcobaça - notas históricas, Coimbra, Imprensa Progresso, 1885

Radiolus Radiolorum Radii Bibliothecae Secundariae Regalis Archicoenobii Alcobacensis / Irradiatus breuiter A Fr[atre] Anonimo de Castrebbedred Anno Domini 1684. BNP, cod-7383. Exemplar digitalizado no endereço http://purl.pt/24967.

Radius Bibliothecae Secu[n]dariae Regalis Archicoenobii Alcobacensi / Ex quo Radioli Bis duodecim radiant, Breuiter radiati A Fr[atr]e Anonimo de Castrebhedred. Anno D[omi]ni 1684. BNP, cod-7382. Exemplar digitalizado no endereço http://purl.pt/24966.

RASQUILHO, Rui (2015), “As três Bibliotecas do Mosteiro de Alcobaça”, in Caderno de Estudos Leirienses, Textiverso, Leiria, 2015.

RASQUILHO, Rui, e MADURO, António, 50 coisas de escrita vária alcobacense, edição conjunta do CEPAE – Centro de Património da Estremadura e AMA – Amigos do Mosteiro de Alcobaça, Alcobaça, 2011.

S. BOAVENTURA, Fr. Fortunato de, Historia Chronologica e Critica da Real Abbadia de Alcobaça da Congregação Cisterciense de Portugal para servir de continuação à Alcobaça Illustrada do chronista Fr.Manoel dos Santos, Lisboa, Impressão Régia, 1827.

SANTOS, Frei Manoel, Alcobaça Illustrada - Notícias e Historia dos Mosteyros & Monges insignes Cistercienses da Congregaçam de Santa Maria de Alcobaça da Ordem de S. bernardo nestes Reynos de Portugal & Algarves, Primeyra Parte, Coimbra, Officina de Bento Seco Ferreira, 1710.

SANTOS, Frei Manoel dos, Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça - Século XVIII, leitura, introdução e notas de Aires Augusto NASCIMENTO,  in Alcobaciana - Colectânea Histórica, Arqueológica, Etnográfica e Artística da Região de Alcobaça, n.º 3, 1979.

TAVARES, José Pedro Duarte, “Hidráulica – Linhas gerais do sistema hidráulico Cisterciense em Alcobaça”, in Roteiro Cultural da Região de Alcobaça – a Oeste da Serra dos Candeeiros, edição da Câmara Municipal de Alcobaça com coordenação de Carlos Mendonça da Silva, 2001.


quinta-feira, 28 de julho de 2016

Uma citação de Frei Manuel dos Santos, e um dado cronológico para o fim do porto de Alfeizerão


                A Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça, de Frei Manuel dos Santos (SANTOS, 1929) principia com uma descrição da região em que o Mosteiro está implantado (nos três primeiros parágrafos do Título 15 da obra). Sobre os Coutos, escreve o cronista:

                As Terras, e coutos de que he senhor o dito mosteiro e no meio dos quaes está fundado são na província da Estremadura, e Arcebispado de Lisboa naquela parte, que toca o Arcebispado na diocesia de Leyria da qual também participão as ditas terras; seu comprimento he de Norte a Sul pela costa do oceano; e a largura he do Oriente ao Poente olhando da serra para o mar; da parte do Norte confinão com terras de Leyria; dahi voltando para o nacente vem partindo com terras de Porto de Mos; e da parte do Poente terminão no Mar. São terras sem aspereza montuosas; cortadas de rios e abundantes de fontes; os altos todos são frutíforos, que parece os plantou a natureza para competirem na fertilidade com as planícies e campos que tambem há em distancias proporcionadas. Se fechassem com hum muro as mesmas terras, e coutos, tem dentro de si, sem necessidade de sahir fora, quanto he necessario, e se pode desejar para delicia, e alimento da vida humana: carnes, gados, caça de todo o genero, lacticinios, peixe, pam, vinhos, azeites, fructas, legumes, poços, marinhas de sal, matas, souttos, pinhaes, panos, lans; e tudo em abundancia com dous portos de mar nas villas da Pederneira e S. Martinho; além de outros que as areas entupirão há menos de cem anos, nas villas de Alfeizarão, Paredes e na Serra da Pescaria; ares benignos e sadios porque he o mesmo de ventos frescos do Norte e do mar; todas as quaes commodidades fazem ser a terra bem povoada e deliciosa.
                Quasi no meio deste fecundo e aprazível território está situado o Real Mosteiro em hum vale dilatado como coração e alma que dá vida ao corpo das suas terras e he alimentado exercicio das suas partes (…).

                A frase que destacamos no texto citado contém o dado cronológico que enunciamos em título. Esta descrição do Mosteiro de Frei Manuel dos Santos (1672-1740) teria como finalidade, segundo Aires Augusto Nascimento, ser interpolada na segunda parte da Alcobaça Illustrada, pelo que a data da sua redação estaria (estimamos nós) próxima da data de publicação da parte primeira da mesma obra, 1710. Desse modo, «menos de cem anos» antes dessa data, colocaria o fim desses portos nas primeiras décadas do século XVII. Naturalmente, e apesar da sua validade, este não é um dado absoluto, acrescido da evidência do declínio desses portos ter sido cronologicamente próximo, mas não repentista.
                O porto de Paredes da Vitória desapareceu de forma gradual durante o século XVI. Nas Memórias da Real Casa de Nossa Senhora da Nazaré, de José de Almeida Salazar, citadas por Adolpho Loureiro (LOUREIRO, 1904:245), diz-se que a vila tinha um forte e 17 caravelas para a defesa do porto, mas que as areias destruíram o porto por volta de 1600; nos seus estaleiros, no entanto, ainda em 1612 D. Gastão Coutinho mandou aí construir a nau Nossa Senhora da Nazareth. No entanto, a vila despovoou-se rapidamente, pois já em 1628, Manuel de Brito Alão diz que ela se encontra deserta (ALÃO, 1628).
                O porto da Serra da Pescaria de que fala Frei Manuel dos Santos, é uma forma diversa de aludir ao antigo porto da Pederneira, que se encontrava aninhado dentro da antiga lagoa da Pederneira e mais distante da vila do mesmo nome. Adolpho Loureiro (LOUREIRO, 1904:249), retira dos escritos de Frei Manuel de Figueiredo a informação de que no Campo e Aljarifeira, na foz do Alcoa, se situava o porto da Pederneira, e que os seus estaleiros funcionavam junto à ponte da Barquinha (hoje, ponte da Barca), logo, nas faldas da Serra da Pescaria. As atividades portuárias e a construção de navios foram sendo deslocadas mais para a foz por força do assoreamento da lagoa, mas não possuímos dados cronológicos documentados para esse processo.
                Sobre o porto de Alfeizerão, já aqui apontamos (in “Os Portos da Lagoa de Salir – um pequeno périplo, de Outubro de 2015) que a ruína do seu porto ocorreu no último quartel do século XVI. Num mapa inserto no livro de arquitetura militar composto por Luís de Figueiredo Falcão entre 1607 e 1617 (FALCÃO), podemos admirar o desenho do rio alargado por onde os barcos alcançariam a vila, mas a situação já seria diferente por essa altura. Datam de 1616 (LIVRO DE PRIVILÉGIOS, JURISDIÇÕES…, fl. 274), as primeiras instruções do rei D. João IV ao Juiz de Fora de Óbidos para mandar abrir o rio de Alfeizerão, prova cabal de que este já se encontrava intransitável.
                Os dados que possuímos sobre dois dos três portos, Paredes e Alfeizerão, parecem validar a informação transmitida por Frei Manuel dos Santos.

Bibliografia:
Livros impressos:

ALÃO, Manuel de Brito, Antiguidade da sagrada imagem de Nossa S. de Nazareth : grandezas de seu sitio, casa, & jurisdiçaõ real, sita junto à villa da Pederneira, capítulo 36, impresso por Pedro Crasbeek, Lisboa
FALCÃO, Luís de Figueiredo (organização), Descrição e plantas da costa, dos castelos e fortalezas,desde o reino do Algarve até Cascais, da ilha Terceira, da praça de Mazagão, da ilha de Santa Helena, da fortaleza da ponta do palmar na entrada do rio de Goa,da cidade de Argel e de Larache, composto entre 1607 e 1617, Direção Geral de Arquivos/TT, Casa de Cadaval, nº 29
LOUREIRO, Adolpho, Os Portos Marítimos de Portugal e Ilhas Adjacentes, volume II, Imprensa Nacional, Lisboa, 1904
SANTOS, Frei Manuel dos, Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça, leitura, introdução e notas de Aires Augusto NASCIMENTO, Separata de Alcobaciana – Colectânea, Histórica, Arqueológica, etnográfica, e artística da região de Alcobaça, 1979.

Fonte manuscrita:


LIVRO DE PRIVILÉGIOS, JURISDIÇÕES, SENTENÇAS, IGREJAS DESTE REAL MOSTEIRO DE SANTA MARIA DE ALCOBAÇA – Ano de 1750 (Direção Geral de Arquivos/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 92).

quarta-feira, 6 de julho de 2016

CASTELO DE ALFEIZERÃO: alguns elementos cronológicos

   


- (Imagina-se que) o castelo fundado pelos muçulmanos em 714 (Larcher, 1933:37) ou 717 (Leal, 1873:117).


- Terá sido conquistada por D. Afonso Henriques em 1148 (Brandão, 1632: f. 185r).


- Na luta dinástica entre D. Sancho II e Afonso III, o Mosteiro de Alcobaça, com as suas duas fortalezas, tomou o partido de D. Afonso III: «Contra os dois castelos, de Alcobaça e de Alfeizerão (que são da Casa, e os alcaides deles postos pelos abades) não lhe foi necessário a El Rei D. Afonso III levantar lança, mas assegurando-se dos Abades de que a todo o tempo que ele se visse na posse pacífica da Coroa, ou por morte ou por desistência do seu irmão D. Sancho, teria à sua obediência os mesmos castelos, e deixou-os estar como em depósito nas mãos dos monges» (Santos, 1710:102-103).


- «No mês de Maio de 1287 sucedeu que fez jornada el-rei D. Dinis de Lisboa para Coimbra e na sua companhia a mesma Rainha Santa e tomaram ambos a via de Alenquer; de Alenquer vieram a Óbidos e daí teve aviso o Abade Dom Frei Martinho da vizinhança das Pessoas Reais, pelo que os foi esperar à sua Vila de Alfeizerão, que é entre Óbidos e Alcobaça. Chegaram a Alfeizerão os dois Reis a 9 do mês de Junho e no Castelo da mesma vila os agasalhou o Abade com o devido esplendor a tanta Alteza; do Castelo abalaram para Alcobaça em 12 de Junho» (Santos, 1710:122 – atualizamos a grafia). Frei Francisco Brandão, na quinta parte da “Monarchia Lusitana” conta essa viagem com palavras idênticas: «[os reis] fizeram a jornada por Alenquer, Torres Vedras e Óbidos; daqui chegaram á vila de Alfeizerão a nove de Junho e nela foram agasalhados no Castelo, que é dos bons daquele tempo, pelo Abade de Alcobaça, D. Martinho, segundo do nome, de cujo Senhorio é aquela Vila (...) De Alfeizerão acompanhou o Abade Dom Martinho a el-Rei e á Rainha até ao Convento de Alcobaça» (Brandão, 1650:124r-124v – atualizamos a grafia).


- Por duas vezes estanciou no castelo o rei D. Pedro I, em Setembro de 1357, quando viajava de Óbidos para Leiria, e em Agosto do ano seguinte, altura em que se redigiu em Alfeizerão o diploma em que o rei entregava o castelo de Montemor-o-Novo a Gonçalo de Alcácer (Machado, 1978).


- O seu filho, o rei D. Fernando I, alojou-se em Alfeizerão em 1375 (a 14 de Outubro) e a 20 de Outubro de 1382 (Rodrigues, 1978). Uma ordenação feita em benefício do Mosteiro e lavrada e assinada quando o rei D. Fernando se encontrava hospedado no castelo de Alfeizerão, é referida sem menção da data por frei Manuel dos Santos, podendo recair numa das datas acima indicadas (Santos, 1710:204).


- Na crise de 1383-85, o Mosteiro de Alcobaça, com os seus domínios, efetivos e fortalezas, tomou o partido de D. João I: das Cortes de Coimbra «partiu também o Abade D. Frei João de Ornelas para as suas terras a se preparar, e sendo já no Mosteiro, primeiro que tudo reformou os seus Castelos, que estavam danificados do ócio da paz, e para fazer mais defensável o de Alcobaça lhe acrescentou a barbacã, que ainda não tinha; juntamente levantou um bom troço de soldadesca que entregou a Martim de Ornelas, seu irmão, com outras muitas prevenções que fez de armas, mantimentos e dinheiro» (Santos, 1710:212).


- «Os abades de Alcobaça residiram muitas vezes nesta fortaleza, na qual estava, a 4 de Janeiro de 1430, D. Estevão de Aguiar. O comendatário D. Henrique o habitou também» (Larcher, 1907:207).


- O rei D. João II alojou-se no castelo de Alfeizerão em Agosto de 1485 (Serrão, 1975), e o seu filho, o infante D. Pedro, também aí estanciou, como nos conta o cronista Rui de Pina. Em 1439, viajando de Coimbra para as Cortes que se iriam realizar em Lisboa, D. Pedro é interpelado em “Alfeizeeram” por um enviado da rainha, que lhe transmite a solicitação da rainha para que regresse sem demora a Lisboa, apresentando o argumento de «a Vila não ser capaz de seu aposentamento, e menos abastante [abastada, com posses] para vos manter” (Pina, 1971).


- Nele terá residido por vezes o cardeal-infante D. Afonso no tempo em que foi Abade do Mosteiro de Alcobaça (1519-1540), quem o afirma é o padre Luís Cardoso no seu Dicionário Geográfico, registando também que ele terá oferecido à paróquia uma imagem do Santo Cristo que era muito venerada no lugar (Cardoso, 1747:279).


- Nos anos de 1532 a 1533, o abade de Claraval, Dom Edme de Saulieu e o seu secretário, frei Claude de Bronseval, iniciam uma viagem pelos mosteiros cistercienses de Portugal e Espanha com o objectivo de comprovarem o cumprimento das regras da Ordem de Cister. Em Portugal, visitam Alfeizerão (a que chamam Lezeram) e o seu castelo durante a viagem entre Óbidos e Alcobaça, pernoitando no castelo entre os dias 10 e 11 de Novembro de 1532. Depois de cruzarem por uma ponte o rio da Mota ou rio chamado Mota («pluviolum nomine Amotte»), atravessam um vale ao pé de “montanhas estéreis” e chegam a Lezeram: «Vimos aí uma fortaleza, que pertence a Alcobaça, para onde os abades têm, por vezes, o costume de se retirar, porque dista apenas duas léguas do mosteiro. Nós fomos aí pobremente alojados e tratados. Deitamo-nos sobre o chão, à maneira do país, e não encontramos carne para nós» (Cocheril, 1986).


- As lacunas documentais sobre o castelo a partir de finais do século XVI parecem documentar o seu progressivo abandono, quer como fortaleza, quer como lugar de residência: «no tempo dos abades comendatários D. José de Almeida, D. José de Ataíde e de D. Fernando de Áustria, se arruinou o edifício da casaria por falta de reparos e ainda a 27 de Junho de 1630 declarou o auto de posse ao novo alcaide-mor que estavam vigadas as casas e a grande com 18 vigas muito fortes capazes de duração» (Larcher, 1907:207). A fonte parece ser a corografia de frei Manuel de Figueiredo, que nos diz que nesse mesmo ano de 1630, na tomada de posse como alcaide-mor interino de Francisco da Silva da Fonseca em nome do seu neto Silvério Salvado de Morais «nas casas que havia dentro e fora do mesmo castelo, só se conservavam as traves, e que as casas de dentro tinham ainda dezoito» (Leroux, 2020:130).


- No sismo de 1 de Novembro de 1755, conforme narra o pároco de Alfeizerão, «caiu muita parte mas sempre lhe ficaram bastantes torres ilesas» (ANTT, Memórias Paroquiais, vol. 2, n.º 53, f. 469). A iconografia novecentista sobre o castelo, permite constatar que o castelo se manteve bem conservado até datas muito próximas de nós. Em 1788, frei Manuel de Figueiredo visita-o e faz uma descrição do que ele fora e do estado em que se encontrava.






Fontes:
BRANDÃO, Fr. António – TERCEIRA PARTE DA MONARCHIA LVSITANA - Que contem a Historia de Portugal desde o Conde Dom Herique, até todo o reinado delRey Dom Afonso Henriques, impressa por Pedro Craesbeck, Lisboa, 1632
BRANDAO, Francisco, Quinta parte da Monarchia lusytana : que contem a historia dos primeiros 23. annos delRey D. Dinis... / escrita pelo Doutor Fr. Francisco Brandão... - Em Lisboa : na officina de Paulo Craesbeeck, 1650.
CARDOSO, Pe. Luís, «Diccionario Geografico ou Noticia Historica de todas as Cidades, Villas, Lugares e Aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dps Reynos de Portugal e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas», Tomo I, p. 479, Lisboa, na Regia Oficina Sylvana e da Academia Real, 1747.
COCHERIL, Maur (1978) – “Routier des Abbayes Cisterciennes du Portugal”, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian - Centro Cultural Português (2.ª edição, Paris, 1986)
GONÇALVES, Iria – O Património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV, edição da Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, Julho de 1989
CORREIA, Fernando Branco – “Fortificações de iniciativa omíada no Gharb al-Andalus nos séculos IX e X: hipóteses em torno da chegada dos Majus (entre Tejo e Mondego)”, in
Fortificações e Território na Península Ibérica e no Magreb (Séculos VI a XVI) – II Simpósio Internacional sobre Castelos. Lisboa, Edições Colibri, 2013.
LARCHER, Jorge das Neves – Castelos de Portugal – Distrito de Leiria , ImprensaNacional de Lisboa, 1933.
LARCHER, Tito Benvenuto de Sousa, «Dicionário Biográfico, Corográfico e Histórico do Distrito de Leiria», Leiria, 1907
LEAL, Augusto Soares d'Azevedo Barbosa de – Portugal antigo e moderno : diccionario geographico... , Volume Primeiro, Lisboa, Livraria Editora de Mattos Moreira & Companhia, 1873.
LEROUX, Gérard, «Frei Manuel de Figueiredo – Memórias de várias vilas e terras dos Coutos de Alcobaça (1780-1781)», Alcobaça, Jornal «O Alcoa», 2020
MACHADO, J. T. Montalvão, “Itinerários de El-Rei D. Pedro I”, volume I (1357-1367), Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1978.
PINA, Rui de Pina, “Crónicas de Rui de Pina”. Lello e Irmão Editora, Porto, 1971.
RODRIGUES, Maria Teresa Campos, “Itinerários de Dom Fernando (1367-1383), Separata de Bracara Augusta, 32 Braga, 1978.
SANTOS, Frei Manuel dos – Alcobaça illustrada: Noticias e Historia dos Mosteyros et monges insignes Cistercienses da Congregaçam de santa Maria de Alcobaça da Ordem de S. Bernardo nestes Reynos de Portugal et Algarves, Primeira Parte, impresso na Oficina de Bento Seco Ferreira, Coimbra, 1710.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo, “Itinerários de El-Rei D. João II”, volume I, Academia Portuguesa de História. Lisboa, 1975.


José L. Coutinho

   

terça-feira, 5 de julho de 2016

MARIA DOMINGAS (um primeiro apontamento)

     Maria Domingas iniciou a sua carreira artística com apenas quinze anos (como figurante no filme Maria Papoila, de 1936) para se converter quatro anos depois numa das maiores estrelas do seu tempo, tanto no cinema como no teatro de revista. Em apontamentos pontuais e diferenciados, iremos aportando aqui alguns elementos sobre o que foi e o que representou a sua carreira, limitando-nos por ora a apresentar alguns detalhes sobre as suas raízes familiares, e a enquadrar uma fotografia sua publicada num número da revista LIFE do ano de 1940..

AS RAÍZES DE UMA ESTRELA

     Nascida em Alfeizerão a 11 de Setembro de 1921, foi batizada como Maria Domingas da Cunha Meneses.


     Recolhemos outros informes sobre as suas origens no livro de Carlos Casimiro de Almeida (Alfeizerão - Genealogias, edição da Junta de Freguesia de Alfeizerão, 2004). Maria Domingas era filha de Francisco da Cunha Meneses e Adelaide Baiana da Silva, residentes em Alfeizerão e nascidos, respetivamente, em 1875 e 1883. O aturado estudo genealógico de Casimiro de Almeida apresenta os nomes dos ascendentes de Maria Domingas até aos seus tetravós, esmiuçando uniões onde nos surgem apelidos como Meneses (Cunha), Baiana, Silva, Leal, Oliveira ou Simões. Reproduzimos da página 196 desse livro, com a devida vénia ao seu autor, Carlos Casimiro de Almeida, o quadro dos ascendentes de Maria Domingas:
     Outras informações chegam-nos do registo de nascimento de Maria Domingas, do qual possuímos uma cópia que nos foi gentilmente facultada por Virgílio Marques (os nossos agradecimentos!). Reproduzimos a imagem desse documento, sintetizando em seguida o seu teor.




     Às seis horas do dia onze do mês de Setembro de mil novecentos e vinte e um nasceu em Alfeizerão um indivíduo do sexo feminino a quem foi dado o nome de Maria Domingas da Cunha Menezes, filha legítima de Francisco da Cunha Menezes, de quarenta e seis anos de idade e natural da freguesia de S. José da cidade de Lisboa; e de Adelaide Baiana da Cunha Marques, de trinta e oito anos de idade e natural do lugar e freguesia de Alfeizerão, onde ambos são residentes. Neta paterna de José Manuel da Cunha Menezes e Ana Pinto de Sousa Coutinho e materna de Joaquim Alexandre da Silva e Maria de Oliveira Baiana. Foram testemunhas, António Tempero Júnior, comerciante, e Rafael Pereira Leite, proprietário, moradores em Alfeizerão.
     Na margem esquerda está averbado o seu matrimónio: casou com António Júlio Caldeira Pinto, natural de Carrazeda de Ansiães, filho de Manuel António Pinto e de Dulce de Jesus Saraiva Caldeira. O vínculo foi celebrado na 8ª Conservatória de Lisboa a 4 de Abril de 1966, e a nubente adotou o apelido Caldeira Pinto, como era de direito.

HISTÓRIA DE UMA FOTO




     No ano de 1940 o fotógrafo americano Bernard Hoffman realizou para a revista LIFE um documentário fotográfico sobre Portugal. Não foi uma peça jornalística espontânea ou casual, mas inseria-se num contexto de aproximação e negociações entre Portugal e os Estados Unidos perante o jogo de forças originado pela eclosão da Segunda Guerra Mundial (the war, by cutting the lines of the intercourse to northern Europe, has made Potugal what geography intended - not a faraway corner of Europe but his front door, lê-se na reportagem). Bernard Hoffman é secundado em Portugal pelo Dr. Celestino Soares que viera com ele dos Estados Unidos onde desempenhara uma missão (diplomática) oficial, e ambos são também acompanhados por todo o lado pelo Propaganda Ministry do Estado Novo. O Estado Novo não tinha um Ministro da Propaganda, e a menção da LIFE deve aludir a António Ferro, Secretário da Propaganda Oficial e um homem influente do regime.   
     Bernard Hoffman percorre o país durante cinco semanas, e a sua reportagem é publicada na edição da LIFE de 29 de Julho de 1940. É um retrato amável e propagandista do país. Quem visse o país há 15 anos, diz-nos o texto, bem poderia dizer que o país merecia morrer, porque era governado atrozmente e encontrava-se na bancarrota, esquálido e dominado pela doença e pela pobreza. Então, o exército tomou o poder e concedeu-lhe um governante benevolente: Salazar – de longe, o melhor ditador do mundo e o maior português desde o Príncipe Henrique, o Navegador, pai dos Descobrimentos. O texto escrito - seguido pelas fotografias tomadas por Bernard Hoffman - prossegue num tom similar entre a pálida admissão das dificuldades sociais e económicas e a exaltação do regime soteriológico de Salazar. A fotografia  que precede o título é uma imagem panorâmica tirada do promontório da  Nazaré, e onde se pode admirar a praia, o casario da Nazaré e da Pederneira e o perfil inconfundível do monte S. Bartolomeu. Encontramos depois as fotos inevitáveis do regime, Salazar e Carmona, a Mocidade Portuguesa, ou o retrato do Cardeal Cerejeira, com o sorriso aberto de um abade tranquilo. A reportagem fotográfica faz então um périplo turístico do país, a região do Douro e o seu vinho, o fado e a tourada, o castelo de Guimarães, alguns apontamentos sobre os aristocratas do país, um campino diante do portão de uma quinta ou uma varina das ruas de Lisboa.
     A fotografia de Maria Domingas (que atingira a fama nesse ano como atriz principal de João Ratão, de Jorge Brum do Canto) surge-nos na página 70 da revista e ostenta a legenda: The top movie star of Portugal is Maria Domingas, 18, daughter of a fine Lisbon family. She made a big hit in her first picture, João Ratão, this year. Portuguese films have a good market in Brazil.




sábado, 18 de junho de 2016

A novel República e a igreja de Alfeizerão



                Um dos diplomas caraterísticos dos primeiros tempos da República em Portugal é a Lei de Separação das Igrejas do Estado, decretada a 20 de Abril de 1911. O diploma proclama a definitiva laicização do Estado português e a plena liberdade religiosa, deixando a religião católica e apostólica romana de ser considerada a religião do Estado.
                Mais se define que o Estado, os corpos administrativos e os estabelecimentos públicos não podem cumprir direta ou indiretamente quaisquer encargos cultuais (artigo 6.º), e que é também livre o culto público de qualquer religião nas casas para isso destinadas, que podem sempre tomar forma exterior de templo; mas deve subordinar-se, no interesse da ordem pública e da liberdade e segurança dos cidadãos, às condições legais do exercício dos direitos de reunião e associação (artigo 8.º).
                O culto público era permitido nas casas para tal destinadas para o período entre o nascer e o pôr-do-sol, carecendo qualquer exceção a esse horário de permissão da autoridade administrativa local (artigos 43.º e 44.º). As cerimónias públicas e procissões podiam ser permitidas nos locais onde constituíssem tradição, mas seriam definitivamente proibidas se por ocasião delas alguém gerasse tumultos ou alterações da ordem pública (artigo 57.º). Era também regulado pela autoridade municipal os toques dos sinos, e expressamente proibida, sob pena de desobediência, a aposição de qualquer signo ou emblema religioso nos monumentos, espaços públicos e fachadas de edifícios particulares (artigos 59.º e 60.º).

As côngruas
                A Lei de 1911 determina que a partir de 1 de Julho desse ano seriam extintas as côngruas e quaisquer outras imposições destinadas ao exercício do culto católico (artigo 5.º). A medida levaria à extinção de muitas confrarias religiosas, e retiraria aos párocos uma parte substancial dos seus rendimentos.
                A título exemplificativo, encontramos no Arquivo Digital do Ministério das Finanças, uma reclamação da Junta de Paróquia da Freguesia de Famalicão da Nazaré (url: http://purl.sgmf.pt/140724) de 14 de Dezembro de 1912, que alegava que tendo sido aí extinta a Confraria do Santíssimo Sacramento por sentença proferida pelo Governador Civil de Leiria, tinham sido inventariados foros e rendimentos que a confraria recebia, e que com a sua extinção deveriam transitar para a Junta, e não para o Estado como efetivamente ocorreu.
                Em Alfeizerão, um outro documento do mesmo Arquivo (url: http://purl.sgmf.pt/155097) fala-nos do padre João de Matos Vieira, uma figura referencial do passado recente da vila e da sua população. A Comissão Central de Execução de Lei de Separação, reconhece que o rendimento do chamado pé de altar do padre João de Matos Vieira (parocho encomendado da freguesia de Alfeizeirão) fora substancialmente reduzido pelo registo civil das populações, função antes exercida pelos párocos, e delibera assim a concessão de uma pensão mensal ao pároco para a sua subsistência, a 22 de Setembro de 1911.

A propriedade e destino dos bens da igreja
                 Os Capítulos IV e V da Lei de Separação das Igrejas e do Estado, são claros e categóricos sobre as propriedades e os bens da igreja. Todas as catedrais, igrejas e capelas, bens imobiliários e mobiliários que têm sido ou se destinava a ser aplicados ao culto público da religião católica (…) [são declarados] pertença e propriedade do Estado e dos corpos administrativos, e devem ser, como tais, arrolados e inventariados (…), entregando-se os mobiliários de valor, cujo extravio se recear, provisoriamente, à guarda das juntas de paróquia ou remetendo-se para os depósitos públicos ou para os museus. As catedrais, igrejas e capelas, assim como os seus objetos mobiliários, seriam cedidos gratuitamente e a título precário pelo Estado à corporação encarregada do respetivo culto (cap. V, artigo 89.º). A lei possibilitava a alienação de edifícios que tivessem perdido a sua função religiosa (caso de uma capela em ruínas em Évora de Alcobaça, vide http://purl.sgmf.pt/139991), ou a venda de bens móveis ou imóveis da igreja católica que não fossem estritamente necessários ao culto religioso. Inserida neste último caso está uma carta com a data de 9 de Setembro de 1912 do Presidente da Comissão Concelhia de Alcobaça dirigida ao Presidente da Comissão Central de Execução da Lei da Separação (vide http://purl.sgmf.pt/140030), em que se propõe o arrendamento em hasta pública de uma courela de terra na Ramalheira, Alfeizerão; juntamente com o arrendamento de outros terrenos em Turquel, Vestiaria, Vimeiro, Cós e Cela.
                A 2 de Agosto de 1911, é realizado na igreja paroquial de S. João Batista o arrolamento e inventário dos bens da paróquia de Alfeizerão (url: http://purl.sgmf.pt/140050), pelo administrador do concelho, José Coelho da Silva, por um membro da Junta de Paróquia, Manuel José Abreu, e por Tristão d’Araújo Abreu Bacelar Júnior (?), secretário de finanças da comissão concelhia do inventário. O inventário arrolará na paróquia 138 itens (quantos destes ainda existirão hoje?), desde alfaias e paramentos, custódias, crucifixos, castiçais, lanternas, missal, fios de ouro, mobiliário, quadros, imagens religiosas e templos. A este documento está anexado um segundo documento da Comissão Jurisdicional dos Bens Cultuais, este datado de 19 de Maio de 1931, em que se descreve principalmente os bens imóveis da paróquia, com alguns dos seus pertences.
                Nas imagens religiosas existentes na paróquia descreve-se (itens 97 a 102): uma imagem de São João Batista, uma imagem de Nossa Senhora do Rosário com o menino Jesus ao colo, uma imagem de Santa Quitéria, de Santo António, uma de S. Sebastião, e outra de Jesus Crucificado. Nos templos, menciona-se sucintamente a igreja paroquial, a capela de Santo Amaro, e a capela de Santa Quitéria no Valado. Da Capela de Santo Amaro, diz-se que tem adjunta a casa da Junta da Paróquia (como terá até tempos relativamente recentes a sede da Junta de Freguesia).
                O ofício de 19 de Maio de 1931 pormenoriza mais os templos, indicando as suas confrontações:
                - Capela de Santo Amaro, adro pertencendo à capela, confrontando de todos os lados com terreno público.
                - Na capela de Santa Quitéria, adro pertencente à mesma capela, confrontando do norte com casa de José Rebelo e Joaquim Lopes; sul, com caminho público; nascente, Maria José Sales (herdeiros); poente, José Rebelo e estrada; (contém) um sino com trinta e cinco quilos de peso.
                - Na igreja Paroquial, um sino com cem quilos de peso; uma casa denominada a “Casa das Almas”, confrontando do norte com igreja, sul com a estrada, nascente com o adro da igreja e poente com sacristia e um sino com setenta e cinco quilos de peso; e (contém também) uma casa denominada a “Casa das Sessões”, confrontando do norte com o adro da igreja; sul, igreja; nascente, adro; e poente, cemitério.
                Temos uma ideia assertiva do que serão estas “casas” ou divisões adossadas à igreja paroquial de Alfeizerão. A Casa das Sessões era onde a Junta realizava as suas reuniões ou assembleias. No Arquivo da SGMF existe um protesto da Junta da Paróquia da Maiorga (vide http://purl.sgmf.pt/140029), em que esta reclama que a Casa das Sessões da Junta fora inventariada indevidamente como residência do pároco e solicita a reparação do erro.
                A Casa das Almas possui uma outra raiz. Ela funcionaria como uma casa mortuária ou capela de cemitério onde eram velados os mortos antes de serem entregues à terra, e a origem do seu nome poderá dever-se à existência em Alfeizerão de uma Confraria das Almas. Os membros deste género de confrarias pagava uma quota anual ou ofertava esmolas para terem um funeral religioso condigno com a presença dos confrades e beneficiarem das missas que eram rezadas pela salvação da sua alma. Nas Memórias Paroquiais de 1758 (Memórias paroquiais, vol. 2, nº 53, p. 465 a 472), o vigário D. Manuel Romão diz que a paróquia possui três confrarias, a do Santíssimo Sacramento, a de Nossa Senhora do Rosário, e a das Almas com esmolas que dão os devotos. Um pouco mais de duas décadas depois, na sua Corografia da Comarca de Alcobaça (1782), Frei Manuel de Figueiredo apenas indica a Irmandade do Santíssimo Sacramento, a que se haviam unido as Irmandades do Espírito Santo e de São João Batista, não sendo uma ideia excêntrica supor que esta florescente confraria fosse suprindo gradualmente as necessidades espirituais daqueles que antes eram irmãos na Confraria das Almas; e isto num período invulgarmente agitado na vida dos paroquianos, com a reconstrução ou reedificação da sua igreja matriz a mando do Abade D. Frei Caetano Sampaio, segundo o mesmo cronista.

Um tema derivado – o pelourinho de Alfeizerão
                Hoje erguido junto à igreja de Alfeizerão, o pelourinho manuelino foi reconstruído a partir da quase totalidade dos seus fragmentos, peças que por ali foram sobrevivendo, usadas como frades de pedra no adro da igreja ou arrumadas à entrada do cemitério. Comparando-o com o pelourinho “gémeo” de Turquel, apenas lhe parece faltar o soco da base em que assentaria o fuste ou coluna, peça que é razoável supor que tivesse tido dada a extrema afinidade morfológica e decorativa entre os dois pelourinhos (vide um nosso artigo sobre o tema).  Se esse fragmento existiu e desapareceu, a explicação mais imediata é que tivesse sido usado no aparelho de algum muro ou parede de casa.
                No Arquivo digital do SGMF, encontramos um documento da Secção do Cadastro da Repartição do Património da Direção Geral da Fazenda Pública (Processo 628, Livro 6), onde se declara, em carta datada de 3 de Março de 1943, que os fragmentos do Pelourinho de Alfeizerão, quando da sua demolição há dezenas de anos, foram aproveitados para obras particulares, restando ainda alguns, servindo de marcos que delimitam o adro da igreja da estrada pública. A hipótese de reutilização do fragmento desaparecido continua assim em aberto.

                Num outro documento similar da mesma Repartição do Património (processo 1246, Livro 5.º), fala-se de um outro pelourinho dos coutos, o pelourinho da Pederneira. Demolido como outros, manteve-se no local a base de degraus octogonais onde se ergueu em 1876 um tronco fóssil para “substituir” o pelourinho desaparecido. Mas neste processo repete-se que alguns fragmentos ou pedaços do pelourinho desaparecido foram guardados no antigo Edifício dos Paços do Concelho, sito na Praça Bastião Fernandes da citada vila.