quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Contexto e estudo do «Livro das Contas da Livraria do Real Mosteiro de Alcobaça» - parte 2.ª


O fim da livraria e algumas notas sobre as suas obras

                Nos alvores do século XIX, a Livraria ou biblioteca do Mosteiro de Alcobaça está implantada no seu novo espaço, no edifício sobranceiro ao claustro do Rachadouro. A obra em epígrafe a estas linhas, o Livro das Contas da Livraria do Real Mosteiro de Alcobaça, transmite-nos, como teremos oportunidade de expor, a ideia de uma Biblioteca com uma grande vitalidade, adquirem-se periodicamente novas obras em livrarias e espólios (livros, panfletos, mapas), assinam-se periódicos (uma das grandes inovações dos novos tempos) que são depois encadernados para se guardar nas estantes, e desenvolve-se algum trabalho de impressão. Para fazer face a esse trabalho e às despesas originadas por ele, a biblioteca tinha de ter rendimentos próprios consignados pelo Mosteiro, disposição que encontramos já para a Biblioteca do princípio de 1700, segundo nos conta na sua Corografia o padre António Carvalho da Costa COSTA, 1706, P. 89): «A Religião lhe tem consignada renda em cada hum anno para a reforma & augmento dos livros».
                A vida efémera desta nova Biblioteca, desde os primeiros anos do século à partida dos monges, permitiu-lhe ainda assim conhecer um flagelo sem paralelo na História do cenóbio, com as destruições provocadas no Mosteiro pelas tropas de Massena no ano de 1811.
                Um testemunho eloquente dessa destruição é uma carta, não assinada, publicada na Gazeta de Lisboa de 9 de Maio de 1811 (Gazeta de Lisboa, n.º 110, Impressão Régia, Lisboa), pouco depois dos eventos. A referência na carta ao «meu Prelado maior» deixa suspeitar que seria um religioso (monge de Alcobaça?), impressão reforçada pelas duas referências feitas à literatura francesa, Fénelon e Bossuet, dois teólogos que se posicionaram nos dois extremos do espetro político, liberalismo e absolutismo. Transcrevemos literalmente essa carta:

LISBOA, 9 de Maio
Cópia de huma Carta de Alcobaça, de 30 de Abril
                Cheguei a esta Villa, e encontrei ainda muitos vestigios da precipitada fugida de Massena; e juntando a estes muitos outros, que tenho diante dos olhos, penso que o Redactor da Gazeta de Lisboa não deve ser acusado de exaggeração, quando elevou a sua perda em cavallaria em mais de 80 praças. O contagio, que he a consequencia natural do abandono e miseria em que ficarão muitas povoações que não forão evacuadas inteiramente á chegada dos Francezes, continua a fazer muitos estragos naquellas, em que os auxilios de Medicina são ainda muito escaços. Nesta Villa, porém, graças ao meu Prelado maior, que trouxe uma grande quantidade de Agoa de Inglaterra, e hum Medico para assistir aos enfermos, estes são já em pouco número, e ha oito dias que cheguei aqui, tem morrido 2 ou 3 pessoas, o que não tem proporção alguma com o estrago de outras povoações, onde morrem todos os dias, pelo menos, 6 pessoas.
                Tenho observado com atenção as espantosas ruinas deste Mosteiro; confesso-lhe que me parecem mais horríveis do que julgava. A Igreja toda denegrida pelas chamas, que consumirão totalmente o Coro; as naves que sustentavão os órgãos, todas estaladas, offerecem hum golpe de vista muito desagradavel. Nota-se que as Imagens de Jesu Christo, Nosso Salvador, e de Nossa Senhora forão as mais insultadas, apparecendo quasi todas inteiramente desfiguradas, ou com as cabeças cortadas. Outras tem os rostos denegridos, e conhece-se que he por lhes terem applicado vellas acezas; em fim a Religião dos Soldados de Buonaparte apparecerá em toda a sua luz a quem examinar a Igreja de Alcobaça.
                Na casa dos Tumulos Reaes fizerão insolencias, que revoltão os espiritos mais indiferentes. Abrirão quasi todas com martello e picareta, donde resultou ficarem estragados, e mormente os do Sr. D.Pedro I, e D. Ignez de Castro, que erão primorosamente lavrados. As Rainhas D. Beatriz e D. Urraca, apparecerão inteiras, e aquella ainda com os proprios vestidos com que foi sepultada. O Corpo do Sr. D. Pedro I, estava perfeitamente organisado, não assim o de D. Ignez, de quem só existião ilesos os cabellos. Em tres pequenos tumulos jazião tres Infantes, cujos restos não apparecem. As grandes aberturas que fizerão nos mais, já forão tapadas.
                Na Livraria deixarão monumentos incontrastáveis do seu amor ás letras. despedaçarão mezas, cadeiras, escadas, vidros, parte das varandas, e lançarão para a cerca muitos livros, que se estragarão com o tempo, e que felizmente não eram os melhores, que muito antes forão postos a salvo. Rasgarão muitos, e he sensivel a perda de quatro globos, dois terraqueos, e dois celestes, de que só existem alguns pedaços.
                Na Hospedaria ficou salva huma casa ou sala, chamada dos Reis, ou por acaso, ou para vermos os nossos Monarchas viipendiados, e com effeito estragarão, ou rasgarão todas as suas pinturas.
                Da relação antecedente se póde colligir qual he o gosto, que tem pelas sciencias, e pelas artes os satellites do Tyrano Napoleão. Com he crível que estes homens sejão os habitantes da mesma Patria dos Fenelons, e dos Bossuetes? Huns monumentos augustos, como os de Alcobaça, e da Batalha, que tinhão respeitado os seculos, vierão a ser destruidos por esta raça perversa de Soldados embrutecidos! A sua destruição porém não pôde ser completa, e cuida-se em reparar os seus estragos; aquelles que forem reparaveis.

                Pela carta, ficamos a saber que os monges se haviam precavido contra a ação dos franceses, escondendo as suas obras mais importantes. Depois deles partirem, foi chegada a hora de reparar alguns dos estragos, e os restauros na Livraria devem ter acompanhado os do resto do Mosteiro, reconstrução que pela sua dimensão, terá sido demorada. O Livro das Contas da Livraria (BNP, cod-7353), que se inicia de forma não regular a 5 de Outubro de 1811, não menciona obras no primeiro triénio (1810-1811-1812), mas o ano que abre o triénio seguinte, 1813, descrimina restauros na Livraria coerentes com o teor da carta: madeira e ferragens para as mesas pequenas e a jorna dos oficiais que consertaram as ditas; vidros e caixões (caixilhos) para eles e «outras coisas precisas para o conserto das vidraças da Livraria». No ano de 1814 prossegue a recuperação da Livraria: compra-se um pranchão de madeira para se consertar as mesas grandes da Livraria, pagando-se as jornas dos carpinteiros para a obra. Paga-se também a jorna de homens contratados para raspar as estantes, certamente para as restaurar.
                A Biblioteca e o Mosteiro refazem-se como podem no coração dos coutos de Alcobaça onde a passagem dos franceses e a epidemia que campeava pelas terras matou muita gente, deixando aos que regressavam às suas terras e casas, a certeza de uma vida difícil envolta pelo espetro da fome. Um decreto de 31 de Março de 1811 (GAZETA DE LISBOA, nº 79, de 2 de Abril de 1811, Impressão Régia, Lisboa), assinado em nome do Príncipe por D. Miguel Pereira Forjaz e pelo desembargador Sebastião Xavier Botelho, determina que se regularize os portos do Tejo para daí se fazer remessas para os pontos da costa de forma a aprovisionar mais facilmente as comarcas do interior como Leiria ou Alcobaça. Estabelece-se que, de quinze em quinze dias, partiriam de Lisboa embarcações carregadas com os géneros que as pessoas pudessem oferecer, e que se dirigiriam aos portos de Peniche, S. Martinho e Figueira para levar essa ajuda aos que dela precisavam. Noutro despacho, datado de 15 de Abril de 1811 (GAZETA DE LISBOA, nº 89, de 15 de Abril de 1811, Impressão Régia, Lisboa), declara-se que o Governo, procurando aliviar as calamidades causadas pelo inimigo com a invasão das terras que ocupou, determinou a efetiva distribuição pelo território do reino, de 1000 moios de grão a um preço simbólico (1050 réis a metal cada alqueire), que deveriam ser embarcados para dez pontos da costa. Ao porto de S. Martinho seriam enviados 120 moios de grão para a comarca de Alcobaça, enquanto a comarca de Leiria teria direito a 230 moios de grão que lhe chegaria por S. Pedro de Muel. No que toca apenas às rendas atribuídas à Livraria ou Biblioteca, sabemos pelo respetivo Livro das Contas que no ano de 1810, quando os Franceses ocupavam a região, o Mosteiro perdoou ou declinou as rendas ordinárias que lhe eram devidos e alguns foros das Quintas do Mosteiro; e que em 1811, perdoou metade das rendas ordinárias para, no ano seguinte, 1812, escusar à cobrança um quarto das rendas ordinárias que recebia, sendo depois disso cobrados normalmente esses rendimentos.
                Com a Revolução de 1820, o Mosteiro de Alcobaça entra num período delicado da sua existência com os progressos dos liberais no sentido de abolir a estrutura senhorial do reino a servir de estímulo para a contestação social crescente dos direitos e foros que se encontravam fixados nos forais das vilas dos coutos. A 20 de Março de 1821 é publicado o decreto (COLLEÇÃO DA LEGISLAÇÃO MODERNA PORTUGUESA, 1823, pp. 30-31) que, entre outras especificações, extingue todos os serviços pessoais feitos pela própria pessoa ou com animais, fundados em Foral (artigo 1.º) e igualmente, «todos os Direitos chamados Banaes que são os de Fornos, Moinhos e Lagares de toda a qualidade» (artigo 2.º), obrigações e prestações consistentes em frutos, dinheiro, aves ou cereais impostas aos habitantes de qualquer povoação, ou distrito, a favor de algum Senhorio (artigo 3.º); e finalmente, no Artigo 4.º, extingue-se «o Privilégio chamado de Relêgo, pelo qual «a Coroa, Donatarios della, ou quaesquer outros agraciados, tinhão a venda exclusiva dos Vinhos em certos meses do anno». A 5 de Junho de 1822, um novo Decreto (COLLEÇÃO DA LEGISLAÇÃO MODERNA PORTUGUESA, Tomo II, 1823, pp. 34-38) determina a reforma dos Forais «considerando que os foraes dados às diversas terras do Reino nos primeiros tempos da Monarquia excessivamente oprimem a Agricultura, tornando-se indispensável diminuir ao menos este gravame quanto seja possível e prescrever regras certas, e claras, que substituão a confusão, e quasi infinita variedade daquelles antigos títulos». Entre outras disposições (o decreto compõem-se de 25 artigos diferentes), dita-se que as quotas incertas estabelecidas por forais e os foros e pensões certas nelas contidas seriam reduzidas a metade da sua vigente importância (Artigo 1.º), a suspensão dos laudémios (Artigo 4.º), abrindo-se ainda a possibilidade do lavrador ou foreiro proceder à remissão da pensão ou foro segundo condições estabelecidas no próprio decreto (Artigo 18.º).
                O decreto de 1821 e o da reforma dos forais refletem-se de imediato no Livro das Contas da Livraria. No período entre 1 de Maio de 1821 e o último dia de Abril do ano seguinte, o Mosteiro apenas consegue receber os direitos de cinco das oito Quintas em que habitualmente os cobrava, e apenas um dos foros costumeiros (o de uma azenha na Mata da Torre), ficando os outros em dívida. Nos dois anos seguintes, o quadro mantém-se nas suas linhas gerais.
                A situação financeira do Mosteiro sofre um grande impacto com estes dois decretos, e na sessão das Cortes Constituintes, é apresentado um requerimento dirigido à Comissão de Agricultura pelo Abade do Mosteiro de Alcobaça (DIÁRIO DO GOVERNO, 1822, p. 1219), no qual este pede certas alterações na Lei dos Forais e «expõe que ela reduz as rendas daquela Corporação ao mais lamentável estado, e que finalmente ela tem por fim promover a anarquia entre os povos». Depois de alguns debates, e seguindo a opinião da Comissão, o requerimento é indeferido, e chega-se a ponderar a possibilidade do Abade ser repreendido nas Cortes por denegrir a finalidade da Lei dos Forais.
                A «anarquia» mencionada pelo Abade traduz o clima de instabilidade e revolta que se instalara nos coutos, com foreiros e Câmaras a desafiarem os quarteiros enviados pelo Mosteiro para arrecadar os direitos e foros. A reação aos decretos do vintismo vai proporcionar ao Mosteiro um novo alento e um último período de prosperidade - o seu canto de cisne. A Carta de Lei de D. João VI de 4 de Junho de 1824, publicada em suplemento na Gazeta de Lisboa do dia 5 desse mês (GAZETA DE LISBOA, 1824, p. 625) revoga as leis e decretos da «monstruosa Constituição de mil, oitocentos e vinte e dois», e restitui a vigência dos forais tradicionais, mantendo no entanto suprimidos os Direitos Banais. Precedido por diversas tentativas políticas e militares de conduzir D. Miguel ao poder, este regressa do exílio e é aclamado rei a 23 de Junho de 1828, apressando-se a contrariar o que fora implementado pelos liberais.
                Para o mosteiro e convento de Alcobaça, a opção era óbvia entre uma fação liberal que era a antítese do seu domínio senhorial e dos seus privilégios, e um rei contrarrevolucionário e tradicional na pessoa do qual os seus interesses ficariam escudados. O apoio incondicional ao rei D. Miguel ficou claro no Auto de Preito e Vassalagem que lhe consagraram, redigido a 9 de Outubro de 1831, onde, além do próprio Abade, assinaram Frei Francisco de Castro, Secretário-geral da Congregação; Frei Manuel de Morais, Visitador Geral; e Frei José de Mendonça, Definidor.
                Esse compromisso sitiou os religiosos do Mosteiro após as vitórias liberais de 1833 e, sobretudo, a capitulação de Lisboa a 24 de Julho de 1833. Mesmo com a corte de D. Miguel deslocada para Santarém, a causa sabia-se perdida e o desfecho inevitável.
                Narra Manuel Vieira Natividade (NATIVIDADE, 1885): A primeira vez que os frades de Alcobaça abandonaram o mosteiro foi em Julho de 1833. Voltaram depois, e essa fuga repetiu-se com pequenos intervalos até princípios de Outubro em que um grito de alarme mais positivo os obrigou a sair de vez (...) em 16 de Outubro de 1833 opera-se em Alcobaça um levantamento liberal, destruindo de uma vez todas as dependências que havia dos senhores dos coutos (...) Apossaram-se da livraria, das alfaias, das mobílias, de tudo o que sem grande custo podiam levar, e senhores de tudo, destruíram, venderam, inutilizaram. Foi um verdadeiro saque que durou onze dias sem que ninguém se lhe opusesse, sem que ninguém lhe lembrasse que faziam um roubo às artes, às ciências e ao Estado. Os soldados de uma divisão francesa que estava em Peniche, e que acudiu aos gritos dos revoltosos, foram os que mais prejudicaram o mosteiro. A livraria foi na maior parte dividida entre eles, sendo-lhes ainda apreendidos nas Caldas muitos livros de grande importância.
                Uma narrativa aproximada é-nos dada por uma carta coletiva enviada ao redator do jornal Nacional, e que integrou o processo do Corregedor António Luís de Seabra (SEABRA, 1871, pp. 27-28): Os monges de S. Bernardo abandonaram o convento em 26 de Julho de 1833; e só três meses depois, em 27 de Outubro seguinte, deu entrada nesta vila o Corregedor António Luís de Seabra. Foi nesse período que os povos dos coutos de Alcobaça e da serra vizinha, que odiavam nos frades os seus opressores e viam neles a causa das perseguições políticas que o governo de D. Miguel tinha por aqui exercido em larga escala, foi então, repetimos, que os povos invadiram e talaram as ricas propriedades do mosteiro, apoderando-se a seu bel-prazer dos móveis, alfaias e frutos que encontraram ao abandono. Nestas correrias tomaram uma parte importante a guerrilha do Vasa, de Santa Catarina, e uma força de franceses dos que estavam nesse tempo em Peniche.
                Na sua fuga em direção aos mosteiros cistercienses de Salzedas e Maceira Dão, os monges haviam já levado consigo os livros que compunham o seu Cartório, e aqueles ditos livros proibidos que se guardavam aos olhares dos comuns nos gabinetes contíguos ao salão da Biblioteca; os livros do Cartório foram depois apreendidos na Beira Alta pelo seu Prefeito (SEABRA, 1871, p. 16). O Auto de Exame da Livraria de Alcobaça, de 15 de Novembro de 1834, confirma que se havia recuperado os livros do Cartório, e que este havia sido achado no convento de Maceira Dão (RASQUILHO, 2015).
                Num nosso artigo anterior (O trilho dos manuscritos do Mosteiro, de Fevereiro de 2015), delineamos o caminho dos códices da Livraria a partir das alegações do Visconde de Seabra (SEABRA, 1835; e SEABRA, 1871) e dos estudos sobre o tema do historiador Paulo J. S. Barata (BARATA, 2003; e BARATA, 2004). Os manuscritos, descobertos pelo Corregedor interino de Alcobaça, António Luís de Seabra, num esconderijo na sacristia da igreja do Valado dos Frades, são encaixotados e enviados para Alfeizerão, onde o Corregedor os vai inventariar, antes dos 27 caixotes serem fechados novamente e levados para o porto de S. Martinho para serem embarcados para Lisboa. Um ofício de 24 de Abril de 1839 do Administrador do Concelho de S. Martinho do Porto, dirigido ao Vice-Secretário da Comissão Administrativa do depósito das Livrarias dos extintos Conventos, informa também da existência de onze estantes que pertenciam à Livraria de Alcobaça e que estavam guardadas em S. Martinho, no Armazém Nacional da Administração dos Pinhais Nacionais de Leiria (NASCIMENTO, 1979, p. 280), provavelmente aguardando o embarque para a capital.
                Um índice impresso dos manuscritos da Livraria, o Index Codicum Bibliothecae Alcobatie, sem nome de autor e impresso em Lisboa, na Tipografia Régia no ano de 1775, recenseia e descreve na Biblioteca do Mosteiro 476 códices diferentes. Essa cifra não é alcançada pelo número de códices alcobacenses que sobreviveram em Lisboa: 456 na Biblioteca Nacional de Portugal e 8 no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (NASCIMENTO, 1979). Dos doze códices em falta, alguns terão sido desencaminhados antes e depois da partida dos monges de Alcobaça em 1833, mas alguns terão sido simplesmente destruídos depois do saque do Mosteiro, como testemunha em Alcobaça Manuel Vieira Natividade (NATIVIDADE, 1885): Folhas de pergaminho com lindíssimas iluminuras temos nós visto dispersas, cortadas, e muitos livros manuscritos estupidamente mutilados.
                Entre os códices cuja natureza e localização foi estudada por Aires Augusto Nascimento (NASCIMENTO, 1979, pp. 282-283), existe o caso exemplar de três grandes volumes em pergaminho (Códices 350, 351 e 352) que constituíam uma versão das obras de Flávio Josefo, compostos em fins do século XIII ou princípios do XIV por um frade de Alcobaça, Frei Damião de Óbidos. Esses volumes estavam desaparecidos da Biblioteca quando Frei Fortunato de S. Boaventura compôs a sua Historia Chronologica (S. BOAVENTURA, 1827, p. 60), e escreveu nessa mesma obra o cronista: presumo que forão roubados pela Divisão Franceza que incendiou o Mosteiro de Alcobaça. No seu estudo, Aires Augusto Nascimento localizou essas obras perdidas no acervo do Museu Britânico, ou seja, tinham sido levados, não pelos bárbaros franceses, mas pelos nossos aliados na guerra peninsular; os mesmos que, nas memórias de um militar inglês, William Grattan (GRATTAN, 1902 – a sua passagem por Alcobaça ocupa as páginas 43 a 46), se dá testemunho da sua conduta irrepreensível no teatro de guerra.
                Sobre os manuscritos, e sobre as obras impressas que se contavam em vinte e cinco milhares, existem diversos dados, mas também algumas incertezas que se perfilam como pontas soltas deste tema.
                Um dos testemunhos abonatórios da atuação de António Luís de Seabra (SEABRA, 1871, p. 81) fala-nos de dois baús com manuscritos que presumivelmente, teriam sido também encaminhados para Lisboa, mas na exposição transparece alguma incerteza sobre essa asserção. Joaquim António de Carvalho, de Porto de Mós, disse que havia sido confiado em tempos ao pai de Joaquim do Nascimento Pereira do Vale (Escrivão da Fazenda do concelho de Alcobaça) por dois padres (frades?) dois caixotes ou baús com coisas preciosas, e que ele, testemunha e um seu irmão, espiaram o conteúdo dos baús e viram que continha «livros com capas de pergaminho, alguns com folhas douradas, e manuscritos», havendo também aí «um instrumento bem trabalhado com rodas de metal, cuja aplicação ele, Nascimento, não soube, nem ninguém lhe pôde dizer e explicar, apesar da descrição que dele fez a muitas pessoas». Os baús teriam sido entregues pelo pai de Joaquim do Nascimento à autoridade constituída pelo governo constitucional, mas o tal misterioso instrumento com rodas de metal, a testemunha voltou a encontrá-lo num lugar inusitado, a casa do Escrivão do Juízo de Alcobaça, Joaquim Custódio Freire.
                Sobre os livros impressos, é-nos dito que «alguns soldados franceses venderão livros nas Caldas e em Alfeizirão, [e] que uma grande cópia delles foi levada para Peniche» e que «[se vira] as camas, colxas do convento,vendendo-se pela villa de Obidos, Caldas, Peniche, e os livros da livraria vendiam-se em Lisboa» ( [SEABRA, 1835, p. 13 e p. 125). Por seu turno, António Vitorino da Fonseca Froes (tio de Victorino de Avelar Froes), testemunha que viu «vender publicamente, pelos soldados franceses e batalhão dos Polacos da Serra, livros pertencentes ao mosteiro e que dali tinham furtado e que vendiam às cargas pelo insignificante preço de um pataco» (SEABRA, 1875, p. 70).
                O governador da praça de Peniche, segundo informação de António Luís de Seabra, tinha tratado de apreender e recolher os livros de Alcobaça que para ali tinham sido levados (SEABRA, 1835, p. 33). É o que nos dá conta a Relação dos Livros, pertencentes ao Mosteiro de Alcobaça, aprehendidos em Peniche que ficarão em poder do juis de fora desta ultima villa (BNP, co-cx19), uma relação que impressiona pela vastidão dos títulos, mas também pela sua diversidade – livros religiosos, livros de viagens, biografias, tratados de medicina…
                Um último reparo sobre o fim da livraria. Nas memórias do Dr. António Maria da Silva Brilhante (BIOGRAPHIAS, 1877, p. 206), nascido em Alcobaça a 2 de Fevereiro de 1821, e que Manuel Vieira Natividade diz ter sido o primeiro médico homeopata do nosso país (NATIVIDADE, 1885), ele fala da extinta Livraria de Alcobaça e surpreendentemente, de livros encaixotados a apodrecer sob as abóbadas do Mosteiro. Cito o parágrafo sobre a Livraria: «Estava avaliada em dois mil e quinhentos contos de réis. Eu não conheço maior sala em todo o reino: quem for visitar a livraria do Convento de Jesus nesta cidade, pode fazer ideia do molde. Lá está a casa, nua de livros, estantes e ornatos! Haverá dois anos vi estes já pôdres, encaxotados e metidos debaixo das abóbadas onde quizeram fazer a sala da exposição das Bellas Artes! E que Bellas Artes estas!...».


Bibliografia:

BARATA, Paulo J. S., Os Livros e o Liberalismo: da Livraria Conventual à Biblioteca Pública, edição da Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, 2003

BARATA, Paulo J. S. Roubos, Extravios e Descaminhos nas Livrarias Conventuais Portuguesas após a Extinção das Ordens Religiosas: um Quadro Impressivo, Revista Lusitânia Sacra, 2ª série, nº 16, Lisboa, 2004.

BIOGRAPHIAS DOS MUI DISTINCTOS E MUITISSIMOS MÉDICOS, OS SRS. DR. ANTÓNIO JOSÉ DE LIMA LEITÃO E DR. ANTÓNIO MARIA DOS SANTOS BRILHANTE, Tipografia Universal, Lisboa, 1877.

COLLEÇÃO DA LEGISLAÇÃO MODERNA PORTUGUESA - Da instalaçção das Cortes Extraordinarias e Constituintes em Diante, Legislação de 1821, Tomo I, pp. 30-31, Tipografia Maigrense, Lisboa, 1823.

COLLEÇÃO DA LEGISLAÇÃO MODERNA PORTUGUESA - Da instalaçção das Cortes Extraordinarias e Constituintes em Diante, Legislação de 1822, Tomo II, pp. 30-31, Tipografia Maigrense, Lisboa, 1823.

COSTA, António Carvalho da, Corografia portugueza e descripçam topografica do famoso Reyno de Portugal, com as noticias das fundações das cidades, villas, & lugares, que contem; varões illustres, gealogias das familias nobres, fundações de conventos, catalogos dos Bispos, antiguidades, maravilhas da natureza, edificios, & outras curiosas observaçoens,  Tomo I, Lisboa, officina de Valentim da Costa Deslandes, 1706.

DIÁRIO DO GOVERNO, n. 168, p. 1219, de 19 de Julho de 1822, Lisboa

GAZETA DE LISBOA, n.º 133, de 5 de Junho de 1824, Impressão Régia, Lisboa

GRATTAN, William, Adventures with the Connaught Rangers (1809-1814), Edward Arnold, London, 1902. (versão eletrónica em https://archive.org/details/adventureswithc01omangoog).

INDEX CODICUM BIBLIOTHECAE ALCOBATIE, Lisboa, na Tipografia Régia, 1775.

NASCIMENTO, Aires Augusto, Em busca dos códices alcobacenses perdidos, revista Didaskalia, volume IX, pp. 279-288, Lisboa, 1979.

NATIVIDADE, Manuel Vieira, O Mosteiro de Alcobaça - notas históricas, Coimbra, Imprensa Progresso, 1885.

RASQUILHO, Rui (2015), “As três Bibliotecas do Mosteiro de Alcobaça”, in Caderno de Estudos Leirienses, Textiverso, Leiria, 2015.

RELAÇÃO DOS LIVROS, PERTENCENTES AO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, APREHENDIDOS EM PENICHE, QUE FICARÃO EM PODER DO JUIS DE FORA DESTA ULTIMA VILLA, Alcobaça, 11 de Abril de 1834 (BNP, co-cx19). Versão eletrónica no endereço http://purl.pt/27233, visitado pela última vez em 3 de Agosto de 2016.

S. BOAVENTURA, Fr. Fortunato de, Historia Chronologica e Critica da Real Abbadia de Alcobaça da Congregação Cisterciense de Portugal para servir de continuação à Alcobaça Illustrada do chronista Fr.Manoel dos Santos, Lisboa, Impressão Régia, 1827.

SEABRA, António Luís de, Observações do ex-corregedor de Alcobaça sobre um papel enviado à Camara dos Senhores Deputados a cerca da arrecadação dos bens do mosteiro daquella villa, Typographia de Eugenio Augusto, Lisboa, 1835.

SEABRA, António Luís de, Resposta do Visconde de Seabra aos seus calumniadores, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1871.


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