Resumo:
O Livro
das Contas da Livraria do Real Mosteiro d'Alcobaça (BNP, cod-7353,
versão eletrónica no endereço http://purl.pt/24965) apresenta-nos o
registo minucioso das rendas e despesas da Livraria no período (final)
compreendido entre 1812 e 1833. As rendas e foros atribuídos pelo Mosteiro à
sua Livraria tinham a sua proveniência no interior e fora dos Coutos de
Alcobaça, ao passo que o arrolamento das despesas nos permite compreender onde
é que esses réditos eram aplicados. Privilegiaremos a natureza desses
movimentos contabilísticos em detrimento da sua expressão financeira e do
tratamento estatístico dos dados disponíveis.
Para
transmitir um enquadramento temático dessa obra, começaremos por tecer algumas
considerações sobre a Livraria conventual e o seu espaço físico ao longo dos
séculos, rematando essa introdução com algumas considerações sobre o fim da
Livraria e o destino do seu espólio.
Os três avatares da Livraria de Alcobaça
1 – As duas primeiras livrarias.
Quando
no início do século XIII se conclui a igreja do mosteiro de Alcobaça e os
monges se transferem para aí no ano de 1227, vindos da Chiqueda; a Livraria
inicial do Mosteiro, o Scriptorium,
fica instalada junto à Sala dos Monges, no lugar onde depois se construiu as
cozinhas do mosteiro (RASQUILHO, 2011; e RASQUILHO, 20151), e aí permanecerá
até ao século XVI, quando é transferida para os dormitórios do Mosteiro, sendo
assim descrita por Frei Manoel dos Santos por volta do ano de 1700 (SANTOS, 1979,
p. 56): O Archivo Real do Mosteiro de
Alcobaça he uma casa grande repartida em tres salas. Está situada no primeiro
lanço dos dormitorios à parte esquerda; e da outra parte as cellas, ou quartos,
dos Abbades Geraes, e dos seus secretarios; em tal forma, que a porta do
Archivo e a dos Abbades ficam em correspondencia na frontaria do taboleiro, ou
patim da escada grande que sobe do claustro. A primeira sala das tres he
publica; serve de escreverem nela os tabelliaens e de se ouvirem e despacharem
as partes, que tem negocio. Na segunda está o cartorio; e na ultima a livraria
antiga manuscrita.
Tratando
a livraria manuscrita com nítida admiração (os
pergaminhos sam alvos como a neve; e alguns tam finos, e delicados, o que nam
havera papel por mais fino que seja que os iguale), o cronista fala já do
descaminho que fora dado a muitos manuscritos dos mais preciosos da livraria,
dado já avançado na primeira parte da Alcobaça
Illustrada (SANTOS, 1710, P. 80): [os monges ] por que ainda com nam terem no seu tempo outro modo de compor senão
escrevendo em pergaminho, nos deixarão huma livraria manuscrita, a qual assim
truncada como está, & meyo roubada, he hum dos mais preciosos thezouros que
de semelhante genero, se sabem em toda Hespanha. Neste descaminho de livros
manuscritos, temos de associar os castelhanos ao tempo da dominação filipina,
que Frei Fortunato de S. Boaventura (S. BOAVENTURA, 1827) acusa diretamente (ainda
que essa acusação careça de uma crítica acurada) de tirarem livros importantes do
mosteiro para enriquecer a coleção do Escorial.
Na
descrição da livraria, Frei Manuel dos Santos explana as partes e figuras que
compõem o teto pintado (SANTOS, 1979, pp. 68-75), relato que principia assim: o tecto he de forro apainelado, repartido em
16 quadrangulos maiores com sua caixa no centro e a coxia tambem dividida em
seis grandes e des quadrangulos mais piquenos tudo pintado primorosamente ao
intento da livraria. Ao redor das paredes por sima das estantes vam quadros ou
paineis, de preciosissimas pinturas nos quais se vem santos escritores da Ordem
da figura, ou proporção, natural. Dou notícia da pintura do tecto, e depois dos
escritores, que se vem nos quadros.
Um
outro relato desse teto pintado de grande riqueza simbólica e iconográfica,
pode e merece ser lido no Index da Livraria composto por Fr. António de Araújo
em 1656 (ARAUJO, 1656, fls. 8-15 v.), e do qual respigo duas passagens para
estimular a curiosidade: O Segundo
Emblema que lhe fica proximo à parte direita he a officina de hum impressor com
hua letra que diz, Ex fumo in lucem, porque assim como a obra da impressão de
hum tão fumozo e escuro lugar sae tão luzida, que se faz commua aos olhos de
todos, assim quanto mais a vista cança cõ a continuação do estudo, e quando
mais se offende os olhos com o fumo do trabalho, tanto a vista do mundo saem
seus effeitos mais luzidos, ou tambem nisto se mostra que tem a sciencia tal
vigor, que aqueles que nas fumozas trevas de seu abatimento vivião
desconhecidos, os faz logrando luzes proprias, ficar acreditados e lustrosos.
(...) O Quinto, que lhe fica fronteiro he hum Sino quebrado posto em huma torre
alta; diz a letra: Ex pulsu noscitur. Hum Sino quebrado pode enganar os olhos
mas não engana os ouvidos, porque pello som que da se julga se tem quebras ou
deffeitos; a isto parece que alludia o filozofo Biantes, quando dezia que
emquanto hum homem estava callado, se podia julgar por entendido; pellas vozes
que se formão, se infere bem a discrição ou ignorancia de quem as lança: he a
lingua, fiel interprete do Juízo, não pode mentir a palavra à muita ou pouca
sciencia de quem a forma, e como as palavras são sobrescrito do entendimento,
não pode desdizer a letra de fora as muitas ou poucas letras que dentro ficão
encerradas.
Outros
três códices da BNP versam esta biblioteca “intermédia”, constituindo índices
das suas obras, elaborados segundo diferentes critérios. Constituem matéria de
estudo, mas sobretudo, e sobremaneira, objetos de apreciação estética pela sua
composição, caligrafia e ilustrações. O Códice 7412 (AUREA CLAVIS, 1701)
integra uma gravura da biblioteca (Figura 2) com o altar ao topo da sala, as estantes de
livros, as duas grandes mesas de trabalho e, entre elas, o símbolo de Cristo
entre um globo terrestre e um globo representando a esfera
celeste; por cima das estantes, percebem-se os quadros com os santos escritores da Ordem de que fala Frei Manoel dos Santos. Os outros dois códices (Códices 7382 e 7383) são complementares um do
outro, datam do Ano do Senhor de 1684 e ostentam a “assinatura” do frade «Anonimo
de Castrebbedred». Do primeiro (RADIUS BIBLIOTHECAE, 1684) extraímos a planta
da biblioteca (Figura 1) que corresponde à gravura do Aurea
Clavis, e que servia de base aos catálogos de obras, indicando o lugar onde
podiam ser procuradas ou aonde deviam regressar após o seu manuseamento.
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Figura 1 |
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Figura 2 Gravura assinada pelo autor na moldura inferior: Fr. Ludovico (?) José fez: Fr. Loud.is. Ioxepho fecit. |
2 - A Biblioteca de 1800
Mesmo
com as condições e possibilidades criadas com a instalação da Biblioteca nos
antigos dormitórios, as necessidades crescentes (os trabalhos de impressão e
encadernação, a aquisição de novas obras, e a complexidade do Cartório)
impunham a criação de um novo espaço dedicado a ela. Já em 1716, Frei Manuel
dos Santos escreveu que na Ala a Sul do Claustro do Rachadouro estava «ideada
uma Livraria», o edifício onde ela se implantaria estaria praticamente
concluído em 1772 (TAVARES, 2001, P. 92), mas prosseguiam as obras no seu
interior, que se prolongaram por mais duas décadas. Em 1773, D. José I determina
a Wiiliam Elsden que fosse ao Mosteiro por causa das obras no Colégio e na
Biblioteca; mas em 1786, quando a rainha D. Maria I visita o mosteiro, a biblioteca
ainda estava instalada nos antigos dormitórios. Em 1798, o viajante alemão Heinrich
Friedrich Link visita o Mosteiro e afirma que «agora está a ser arranjada uma
nova e magnífica sala» para a Biblioteca (RASQUILHO, 2015).
A
mudança das obras para o novo salão junto ao claustro do Rachadouro deve ter ocorrido na viragem do século, e já
aí funcionava em pleno em 1811 quando o exército de Massena devastou o
Mosteiro, facto reforçado pelas informações disponibilizadas pelo Livro das Contas da Livraria do Real Mosteiro
de Alcobaça, cujos assentos se iniciam em 1812.
Manuel
Vieira Natividade (NATIVIDADE, 1885, PP. 91-95) traça-nos um fresco da nova
livraria:
A livraria e o cartório estavam
num dos lados do claustro do Rachadouro. O cartório situado no primeiro plano é
uma espaçosa e lindíssima sala, formada por uma série de arcos que assentam
sobre colunas jónicas de uma grande imponência. No plano inferior - rés-do-chão
- ficavam algumas oficinas do mosteiro, tais como as de carpintaria,
encadernadores, barristas, serralharias, escultores, etc.
No plano superior, o segundo,
abre um extenso corredor em todo o comprimento da sala da livraria. É esta uma
elegante e formosa sala, lajeada do mais fino mármore. Mede 47,70 metros de
comprimento por 12,70 de largura, e as suas estantes mediam 3,70 metros de
altura. Recebe luz por vinte e duas amplas janelas em duas alturas, e por doze
frestas elipsoides quase a tocar o teto. A meia altura sai uma varanda interior
que rodeia toda a sala, e que dá para as onze janelas superiores. Nos golpes da
parede correspondentes a cada janela, tanto inferiores como superiores, destacam-se
uns frescos admiráveis, umas miniaturas cheias de poesia que fazem muitas vezes
lembrar o rasgo de um grande talento.
No estuque do teto nota-se com
assombro a elegância e o colorido. Ao centro sobressai a imagem de S. Bernardo
a mais de meio relevo, rodeada de florões, insígnias e símbolos que se sucedem
em todo o comprimento e largura, como que num artístico labirinto.
Tem três estradas: a principal
ao centro e duas que abrem nos topos e que veem de uns pequenos gabinetes que
supomos serem de estudo. Nota-se nestes o mesmo estilo da sala e é para
lastimar que os bocados de estuque que tem caído fossem substituídos por uns
remendos boçais e estúpidos, em vez de se ter imitado o trabalho geral do teto
de cada um.
(...) Ao lado esquerdo da
livraria, fazendo a frente para leste, existem uns quartos bastante espaçosos
que eram destinados a encerrar os livros proibidos, os livros dos grandes
pensadores que só aos monges velhos e de reconhecido fervor religioso era
permitido ver, porque esses por certo se não deixariam arrastar pelas doutrinas
dos novos filósofos.
Outro
historiador, Vilhena Barbosa (BARBOSA, 1886, p. 262), faz esta “leitura” da
sala da Biblioteca:
É uma sala mui vasta e alegre.
Não é proporcionada a altura à sua vastidão. Se tivera maior elevação
ofereceria um aspeto mais grandioso. De um lado, em todo o seu comprimento, é
aberta a parede em grandes janelas, com os seus óculos por cima, correspondendo
a estes outros óculos iguais na parede fronteira. O pavimento é de mármore de
cores em mosaico; e o teto, de obra de estuque e pintura, não de muita
perfeição, mas vistosa. As paredes, hoje nuas, vestiam-se outrora com as
estantes dos livros, e por cima com painéis a óleo, com medalhões e figuras de
alabastro. Não havia em tido isto coisa alguma de primor de arte. Todavia,
aqueles diversos ornamentos davam à sala uma perspetiva de magnificência que
encantava a quantos a viam. Foi certamente um ato de vandalismo despojá-la dos
adornos, que lhe formavam uma feição tão particular, e fora dali pouco valor
podiam ter (...) A biblioteca do mosteiro de Alcobaça contavam perto de 25.000
volumes, em que avultavam muitas obras raras, e entre estas algumas impressas
pelo próprio Gutenberg. Porém, os manuscritos é que constituíam a sua principal
riqueza e a tornavam célebre no nosso país. Conforme o catálogo que se publicou
em 1775, passavam de 400 os códices manuscritos, in-fólio.
Da
sala grande da Biblioteca mantém-se o piso em mármore e a galeria de madeira em
volta. O teto estucado e pintado desapareceu na sua maior parte devido às
infiltrações de água, já assinaladas por Natividade para os gabinetes contíguos.
Em 1904, o peso do «barrotado da cobertura» fez mesmo cair uma parte do teto; e
do seu teto original apenas se conserva hoje os florões dos cantos (RASQUILHO,
2011). Em jeito de ilustração, trazemos aqui uma imagem de como esse teto se
apresenta atualmente (Figura 3),
extraída de uma das obras de um grande investigador, Dom Maur Cocheril
(COCHERIL, 1989), uma fotografia (Figura
4) do período em que aí estavam aquartelados os militares da Cavalaria 9 em
finais do século XIX e, finalmente, uma estampa
patente na referida obra de Vilhena Barbosa (Figura 5).
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Figura 3 |
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Figura 4 |
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Figura 5 |
Bibliografia:
ARAUJO, António de, Index. e su[m]mario dos livros que conte[m]
esta Livraria de Alcobaça com o epitome e declaração de todas as tarjas,
emblemas, e quadros, de que está ornada, a qual liuraria foi ampleada e
renouada pello grãnde zello do Nosso Reuerendissimo P.e Frei Manoel de Moraes
Abbade Geral deste Real Conuento, anno de 1656, BNP, cod-8388, exemplar
digitalizado no endereço http://purl.pt/27198.
Aurea
clavis reserans bibliophilacium hoc magnum Alcobatiae, 1701, BNP, cod-7412.
Exemplar digitalizado no endereço http://purl.pt/24968.
BARBOSA, Inácio de Vilhena,
Monumentos de Portugal - Históricos, artísticos e arqueológicos, Castro Irmão
Editores, Lisboa, 1886.
COCHERIL, Dom Maur, Alcobaça –
abadia cisterciense de Portugal, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa 1989.
NATIVIDADE, Manuel Vieira, O Mosteiro de Alcobaça - notas históricas,
Coimbra, Imprensa Progresso, 1885
Radiolus
Radiolorum Radii Bibliothecae Secundariae Regalis Archicoenobii Alcobacensis /
Irradiatus breuiter A Fr[atre] Anonimo de Castrebbedred Anno Domini 1684.
BNP, cod-7383. Exemplar digitalizado no endereço http://purl.pt/24967.
Radius
Bibliothecae Secu[n]dariae Regalis Archicoenobii Alcobacensi / Ex quo Radioli
Bis duodecim radiant, Breuiter radiati A Fr[atr]e Anonimo de Castrebhedred. Anno
D[omi]ni 1684. BNP, cod-7382. Exemplar digitalizado no endereço http://purl.pt/24966.
RASQUILHO, Rui (2015), “As três
Bibliotecas do Mosteiro de Alcobaça”, in Caderno de Estudos Leirienses,
Textiverso, Leiria, 2015.
RASQUILHO, Rui, e MADURO, António, 50 coisas de escrita vária alcobacense, edição conjunta do CEPAE –
Centro de Património da Estremadura e AMA – Amigos do Mosteiro de Alcobaça,
Alcobaça, 2011.
S. BOAVENTURA, Fr. Fortunato de, Historia Chronologica e Critica da Real
Abbadia de Alcobaça da Congregação Cisterciense de Portugal para servir de
continuação à Alcobaça Illustrada do chronista Fr.Manoel dos Santos,
Lisboa, Impressão Régia, 1827.
SANTOS, Frei Manoel, Alcobaça Illustrada - Notícias e Historia
dos Mosteyros & Monges insignes Cistercienses da Congregaçam de Santa Maria
de Alcobaça da Ordem de S. bernardo nestes Reynos de Portugal & Algarves,
Primeyra Parte, Coimbra, Officina de Bento Seco Ferreira, 1710.
SANTOS, Frei Manoel dos, Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça -
Século XVIII, leitura, introdução e notas de Aires Augusto NASCIMENTO, in Alcobaciana
- Colectânea Histórica, Arqueológica, Etnográfica e Artística da Região de
Alcobaça, n.º 3, 1979.
TAVARES, José Pedro Duarte, “Hidráulica
– Linhas gerais do sistema hidráulico Cisterciense em Alcobaça”, in Roteiro
Cultural da Região de Alcobaça – a Oeste da Serra dos Candeeiros, edição da
Câmara Municipal de Alcobaça com coordenação de Carlos Mendonça da Silva, 2001.
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