Um
dos diplomas caraterísticos dos primeiros tempos da República em Portugal é a Lei de
Separação das Igrejas do Estado, decretada a 20 de Abril de 1911. O diploma proclama
a definitiva laicização do Estado português e a plena liberdade religiosa,
deixando a religião católica e apostólica romana de ser considerada a religião
do Estado.
Mais
se define que o Estado, os corpos
administrativos e os estabelecimentos públicos não podem cumprir direta ou
indiretamente quaisquer encargos cultuais (artigo 6.º), e que é também livre o culto público de qualquer
religião nas casas para isso destinadas, que podem sempre tomar forma exterior
de templo; mas deve subordinar-se, no interesse da ordem pública e da liberdade
e segurança dos cidadãos, às condições legais do exercício dos direitos de
reunião e associação (artigo 8.º).
O
culto público era permitido nas casas para tal destinadas para o período entre
o nascer e o pôr-do-sol, carecendo qualquer exceção a esse horário de permissão
da autoridade administrativa local (artigos 43.º e 44.º). As cerimónias
públicas e procissões podiam ser permitidas nos locais onde constituíssem
tradição, mas seriam definitivamente proibidas se por ocasião delas alguém
gerasse tumultos ou alterações da ordem pública (artigo 57.º). Era também
regulado pela autoridade municipal os toques dos sinos, e expressamente
proibida, sob pena de desobediência, a aposição de qualquer signo ou emblema
religioso nos monumentos, espaços públicos e fachadas de edifícios particulares
(artigos 59.º e 60.º).
As côngruas
A
Lei de 1911 determina que a partir de 1 de Julho desse ano seriam extintas as côngruas e quaisquer outras
imposições destinadas ao exercício do culto católico (artigo 5.º). A medida
levaria à extinção de muitas confrarias religiosas, e retiraria aos párocos uma
parte substancial dos seus rendimentos.
A
título exemplificativo, encontramos no Arquivo Digital do Ministério das
Finanças, uma reclamação da Junta de Paróquia da Freguesia de Famalicão da
Nazaré (url: http://purl.sgmf.pt/140724)
de 14 de Dezembro de 1912, que alegava que tendo sido aí extinta a Confraria do
Santíssimo Sacramento por sentença proferida pelo Governador Civil de Leiria,
tinham sido inventariados foros e rendimentos que a confraria recebia, e que
com a sua extinção deveriam transitar para a Junta, e não para o Estado como
efetivamente ocorreu.
Em
Alfeizerão, um outro documento do mesmo Arquivo (url: http://purl.sgmf.pt/155097) fala-nos do
padre João de Matos Vieira, uma figura referencial do passado recente da vila e
da sua população. A Comissão Central de Execução de Lei de Separação, reconhece
que o rendimento do chamado pé de altar
do padre João de Matos Vieira (parocho
encomendado da freguesia de Alfeizeirão) fora substancialmente reduzido
pelo registo civil das populações, função antes exercida pelos párocos, e
delibera assim a concessão de uma pensão mensal ao pároco para a sua
subsistência, a 22 de Setembro de 1911.
A propriedade e destino dos bens da igreja
Os Capítulos IV e V da Lei de Separação das
Igrejas e do Estado, são claros e categóricos sobre as propriedades e os bens
da igreja. Todas as catedrais, igrejas e
capelas, bens imobiliários e mobiliários que têm sido ou se destinava a ser
aplicados ao culto público da religião católica (…) [são declarados] pertença e propriedade do Estado e dos
corpos administrativos, e devem ser, como tais, arrolados e inventariados (…),
entregando-se os mobiliários de valor, cujo extravio se recear,
provisoriamente, à guarda das juntas de paróquia ou remetendo-se para os
depósitos públicos ou para os museus. As catedrais, igrejas e capelas,
assim como os seus objetos mobiliários, seriam cedidos gratuitamente e a título precário pelo Estado à
corporação encarregada do respetivo culto (cap. V, artigo 89.º). A lei
possibilitava a alienação de edifícios que tivessem perdido a sua função
religiosa (caso de uma capela em ruínas em Évora de Alcobaça, vide http://purl.sgmf.pt/139991),
ou a venda de bens móveis ou imóveis da igreja católica que não fossem estritamente
necessários ao culto religioso. Inserida neste último caso está uma carta com a
data de 9 de Setembro de 1912 do Presidente da Comissão Concelhia de Alcobaça dirigida
ao Presidente da Comissão Central de Execução da Lei da Separação (vide http://purl.sgmf.pt/140030),
em que se propõe o arrendamento em hasta pública de uma courela de terra na
Ramalheira, Alfeizerão; juntamente com o arrendamento de outros terrenos em
Turquel, Vestiaria, Vimeiro, Cós e Cela.
A
2 de Agosto de 1911, é realizado na igreja paroquial de S. João Batista o
arrolamento e inventário dos bens da paróquia de Alfeizerão (url: http://purl.sgmf.pt/140050), pelo
administrador do concelho, José Coelho da Silva, por um membro da Junta de
Paróquia, Manuel José Abreu, e por Tristão d’Araújo Abreu Bacelar Júnior (?),
secretário de finanças da comissão concelhia do inventário. O inventário
arrolará na paróquia 138 itens (quantos destes ainda existirão hoje?), desde
alfaias e paramentos, custódias, crucifixos, castiçais, lanternas, missal, fios
de ouro, mobiliário, quadros, imagens religiosas e templos. A este documento
está anexado um segundo documento da Comissão Jurisdicional dos Bens Cultuais, este
datado de 19 de Maio de 1931, em que se descreve principalmente os bens imóveis
da paróquia, com alguns dos seus pertences.
Nas
imagens religiosas existentes na paróquia descreve-se (itens 97 a 102): uma
imagem de São João Batista, uma imagem de Nossa Senhora do Rosário com o menino
Jesus ao colo, uma imagem de Santa Quitéria, de Santo António, uma de S.
Sebastião, e outra de Jesus Crucificado. Nos templos, menciona-se sucintamente
a igreja paroquial, a capela de Santo Amaro, e a capela de Santa Quitéria no
Valado. Da Capela de Santo Amaro, diz-se que tem adjunta a casa da Junta da Paróquia (como terá até tempos
relativamente recentes a sede da Junta de Freguesia).
O
ofício de 19 de Maio de 1931 pormenoriza mais os templos, indicando as suas
confrontações:
-
Capela de Santo Amaro, adro pertencendo à capela, confrontando de todos os
lados com terreno público.
-
Na capela de Santa Quitéria, adro pertencente à mesma capela, confrontando do
norte com casa de José Rebelo e Joaquim Lopes; sul, com caminho público;
nascente, Maria José Sales (herdeiros); poente, José Rebelo e estrada; (contém)
um sino com trinta e cinco quilos de peso.
-
Na igreja Paroquial, um sino com cem quilos de peso; uma casa denominada a “Casa das Almas”, confrontando do norte com
igreja, sul com a estrada, nascente com o adro da igreja e poente com sacristia
e um sino com setenta e cinco quilos de peso; e (contém também) uma casa denominada a “Casa das Sessões”,
confrontando do norte com o adro da igreja; sul, igreja; nascente, adro; e
poente, cemitério.
Temos
uma ideia assertiva do que serão estas “casas” ou divisões adossadas à igreja
paroquial de Alfeizerão. A Casa das Sessões era onde a Junta realizava as suas
reuniões ou assembleias. No Arquivo da SGMF existe
um protesto da Junta da Paróquia da Maiorga (vide http://purl.sgmf.pt/140029),
em que esta reclama que a Casa das Sessões da Junta fora inventariada
indevidamente como residência do pároco e solicita a reparação do erro.
A
Casa das Almas possui uma outra raiz. Ela funcionaria como uma casa mortuária
ou capela de cemitério onde eram velados os mortos antes de serem entregues à
terra, e a origem do seu nome poderá dever-se à existência em Alfeizerão de uma
Confraria das Almas. Os membros deste género de confrarias pagava uma quota
anual ou ofertava esmolas para terem um funeral religioso condigno com a
presença dos confrades e beneficiarem das missas que eram rezadas pela salvação
da sua alma. Nas Memórias Paroquiais de 1758 (Memórias paroquiais, vol. 2, nº 53, p. 465 a 472), o vigário D.
Manuel Romão diz que a paróquia possui três confrarias, a do Santíssimo
Sacramento, a de Nossa Senhora do Rosário, e a das Almas com esmolas que dão os devotos. Um pouco mais de duas décadas
depois, na sua Corografia da Comarca de
Alcobaça (1782), Frei Manuel de Figueiredo apenas indica a Irmandade do
Santíssimo Sacramento, a que se haviam unido as Irmandades do Espírito Santo e
de São João Batista, não sendo uma ideia excêntrica supor que esta florescente
confraria fosse suprindo gradualmente as necessidades espirituais daqueles que
antes eram irmãos na Confraria das Almas; e isto num período invulgarmente
agitado na vida dos paroquianos, com a reconstrução ou reedificação da sua
igreja matriz a mando do Abade D. Frei Caetano Sampaio, segundo o mesmo
cronista.
Um tema derivado – o pelourinho de Alfeizerão
Hoje
erguido junto à igreja de Alfeizerão, o pelourinho manuelino foi reconstruído a
partir da quase totalidade dos seus fragmentos, peças que por ali foram
sobrevivendo, usadas como frades de pedra no adro da igreja ou arrumadas à
entrada do cemitério. Comparando-o com o pelourinho “gémeo” de Turquel, apenas
lhe parece faltar o soco da base em que assentaria o fuste ou coluna, peça que
é razoável supor que tivesse tido dada a extrema afinidade morfológica e
decorativa entre os dois pelourinhos (vide
um nosso artigo
sobre o tema). Se esse fragmento existiu
e desapareceu, a explicação mais imediata é que tivesse sido usado no aparelho
de algum muro ou parede de casa.
No
Arquivo
digital do SGMF, encontramos um documento da Secção do Cadastro da
Repartição do Património da Direção Geral da Fazenda Pública (Processo 628,
Livro 6), onde se declara, em carta datada de 3 de Março de 1943, que os fragmentos do Pelourinho de Alfeizerão,
quando da sua demolição há dezenas de anos, foram aproveitados para obras
particulares, restando ainda alguns, servindo de marcos que delimitam o adro da
igreja da estrada pública. A hipótese de reutilização do fragmento desaparecido continua
assim em aberto.
Num outro documento
similar da mesma Repartição do Património (processo 1246, Livro 5.º), fala-se de
um outro pelourinho dos coutos, o pelourinho da Pederneira. Demolido como
outros, manteve-se no local a base de degraus octogonais onde se ergueu em 1876
um tronco fóssil para “substituir” o pelourinho desaparecido. Mas neste
processo repete-se que alguns fragmentos ou pedaços do pelourinho desaparecido foram
guardados no antigo Edifício dos Paços do
Concelho, sito na Praça Bastião Fernandes da citada vila.