quinta-feira, 12 de maio de 2016

Frei José da Conceição, dos Raposos, reformador do Convento franciscano da Arrábida


Convento de Nossa Senhora da Conceição dos Frades Franciscanos Capuchos de Alferrara, em Palmela, onde foi inumado Frei José da Conceição
(créditos das imagens: Urban Exploration in the World)
Frei José

     Frei José da Conceição, denominado Raposo por ter nascido nos Raposos, Coutos de Alcobaça, é biografado por frei José de Jesus Maria num registo piedoso e quase hagiográfico no tomo segundo da sua Crónica da Província de Santa Maria da Arrábida (Fr. José de Jesus Maria, Chronica da Provincia de Santa Maria da Arrabida, da regular e mais estreita Observancia da Ordem do Serafico Patriarcha S. Francisco, Tomo 2, impresso na Oficina de José Antóno da Silva, Lisboa, 1737. A biografia de Frei José da Conceição preenche o capítulo quarto da obra (páginas 783 a 789), e transcrevemo-lo aqui, servindo-nos da sua versão eletrónica no portal do GoogleBooks. Atualizamos a grafia, mas as páginas originais do capítulo IV podem ser lidas neste ficheiro PDF.
     Os Raposos ou Casal dos Raposos, hoje na freguesia de Famalicão da Nazaré, esteve inserido até à extinção das Ordens Religiosas (embora algumas fontes o omitam) no couto de Alfeizerão, que a norte da vila compreendia também a Macarca, o Rebolo, Famalicão de Baixo e Mata da Torre.


O Capítulo IV


CAPITULO IV
Operações de vida, e feliz morte de Frei José da Conceição Raposo.

                Venturosa discrição, que sabe tirar das infelicidades do Mundo documentos para evitar desgraças eternas, desenganando-se, que servir aos homens é trabalhar debalde, e só servir a Deus é segurar o prémio em que se cifra a coroa de todas as felicidades! A má correspondência que achou nos homens Frei José da Conceição, vulgarmente chamado o Raposo por nascer nos Coutos de Alcobaça em um Casal conhecido por esta denominação, foi motivo, segundo conceito geral da Província, de passar de religioso ordinário a ser perfeito na vida. Vivia entre os Frades sem mais opinião que a de bem procedido: esperava em um Capítulo que atendendo ai serviço e trabalho que teve em reedificar o Convento de Óbidos sendo dele Guardião, lhe dessem o prémio do seu merecimento; e como visse preferidos para as prelazias a outros que no seu conceito eram de inferior merecimento, renunciou como em despique o ofício de Pregador e se pôs a seguir os atos de Comunidade, retirando-se a todo o trato das criaturas. Algumas mortificações experimentou nos Prelados pela renúncia do ofício, atribuindo-o à demasiada paixão: não nos toca a disputar se o foi, e só narrando o facto dizer que as tolerou com alegria e admirável paciência. Foi-se entregando a vários exercícios penais além dos ordinários da nossa vida comum [«commua» no original, usado como feminino de comum], multiplicando as horas de oração com grande edificação dos que notavam a sua já admirável vida, louvando a Divina Sabedoria, pois com regras tortas sabe formar linhas direitas.
                No ano de mil e seiscentos e noventa e um, mandou o Provincial Frei Paulo da Ressurreição circular uma patente pelos Conventos da Província, em que dava a notícia de que o Senhor Rei D. Pedro II nos oferecia uma Missão em Pernambuco, como deixamos em seu lugar escrito, e nela convidava os frades para que se animassem a tão gloriosa empresa, como era a redução e catecismo daqueles pobres e cegos gentios que viviam e morriam na escravidão do Demónio por falta de quem os doutrinasse nas verdades da Fé Católica, ordenando que os que se alentassem a fazer este bom serviço a Deus e à sua Igreja assinassem ao pé da patente, e foi Frei José um dos primeiros que se ofereceram para a jornada, mais ambicioso já da salvação das almas do que das honras do Mundo. Desvaneceu-se esta santa Missão pelas razões que já dissemos, e o mandou a obediência da família para o Convento da Arrábida; aí se portou com tanto retiro ao trato das criaturas, ainda dos mesmos religiosos seus Irmãos, que se não via mais do que nos atos da Comunidade, ou no Coro de noite, onde passava muitas horas em oração. Das suas penitências particulares só podemos dizer pela voz comum que eram muitas, mas não individualizá-las porque a sua humilde cautela as sabia esconder, ainda que não podia ocultar os seus efeitos no pálido e macilento do rosto com que a todos se fazia objeto de veneração.
                Nove anos com pouca diferença se conservou nesta asperíssima vida, mas como ela fosse flagelo para alguns, que estudavam menos conseguir o caminho da perfeição satisfazendo-se com a vida ordinária e comum a todos os Conventos, solicitaram cautelosamente que o mudassem para outro Convento, e com efeito o puseram no de Alferrara [Convento de Nossa Senhora da Conceição dos frades franciscanos capuchos de Alferrara, em Palmela]. Mudou de Convento mas não de vida, pois neste observava os mesmos exercícios que no outro praticava, servindo de tanta edificação aos noviços que mais os incitava para a virtude o seu exemplo do que as devotas exortações dos seus mestres. Nunca o viam pelos dormitórios sem o capelo na cabeça, as mãos metidas nas mangas, os olhos caídos sobre o peito; era o mesmo velo que admirar um verdadeiro Typus Religionis. Nunca admitiu que alguém o servisse porque o hábito, panos menores, e lenço, que era a única coisa que tinha de seu uso, ele mesmo os lavava. Causava-lhe uma grande aflição ver que se faltasse a qualquer ápice das nossas leis e criação Regular, e com caridade o advertia aos transgressores, e especialmente aos frades moços, mas com tanta doçura de palavras, que ao mesmo tempo que os arguia, os deixava obrigados; e não lucravam pouco os noviços com as suas admoestações.
                Havia tempos em que os frades mais velhos e zelosos da nossa reforma se lamentavam de ver que o Convento da Arrábida, que tinha sido o jardim, onde sempre com mais singularidade floresceram as virtudes que tanto ilustraram esta Província, e que de entre os seus duros penhascos tinham saído os ecos daquelas assombrosas penitências de um S. Pedro de Alcântara e outros servos de Deus que tanto atroaram o mundo pela miséria dos tempos e pela tibieza dos Prelados se tivesse reduzido a um estado que já não se diferenciava dos outros Conventos mais, que na abstinência da carne que ali se observa por lei, porque o silêncio que nele tinha sido inviolável, totalmente se desterrara com a especiosa capa de que seria desatenção faltar à política religiosa não assistir aos hóspedes e benfeitores que buscavam o Convento, e remediavam a nossa pobreza com as suas contínuas esmolas, que sem dúvida negariam se por esta falta de assistência fossem escandalizados, devendo só entender que quem busca os Conventos, é mais por se edificar dos exercícios religiosos do que por recreação profana; e que o sustento dos Frades Menores, quando satisfazem à obrigação de tais, corre por conta da liberal mão da Divina Providência, abonando Deus o infalível desta sua promessa com continuados prodígios.
                No ano de mil setecentos e quatro, em que saiu eleito Provincial Frei António dos Santos, se reforçaram os clamores, e pelas zelosas instâncias dos que mais sentiam esta ruína, se resolveram os Padres da Definição a elegerem em Guardião para o Convento da Arrábida ao devoto Frei José pela grande opinião que dele tinha formado a Província. Aceitou ele obrigado dos pareceres de pessoas doutas e virtuosas a quem para esse fim consultou, porém, com as condições que já deixamos notado, de lhe darem por companheiros e súbditos os frades que ele nomeasse, e voluntariamente quisessem entrar nesta espiritual conquista; pois só assim poderia venturosamente, e com mais suavidade desterrar os abusos introduzidos contra o instituto particular daquele devotíssimo santuário, reduzindo-o ao seu antigo esplendor. Tudo se conseguiu, favorecendo-o a Divina graça, com tanta facilidade que o Convento logo se viu um Paraíso de virtudes, e terror espantoso ao Inferno pela guerra que lhe faziam os seus novos habitadores com rigorosíssimas penitências, vendo-se ali reproduzidos os espíritos dos seus primitivos fundadores.
                Já tornaram a ter uso as cortiças, que estavam na maior parte postas em esquecimento, servindo de cama a muitos, e de cabeceiras, duros madeiros. O sangue, de que as paredes das Ermidas da Cerca se achavam rubricadas, dava fiel testemunho da crueldade com que alguns castigavam a rebeldia da carne para sujeitá-la às leis do espírito, e as muitas horas que, de dia e de noite, se viam gastar de joelhos no Coro e na Capela, manifestavam as poucas, que outros tomavam para o descanso do corpo, e sono; e também o Céu concorreu com o seu testemunho nos muitos e grandes prodígios que Deus tem obrado nestes tempos em crédito da virtude de alguns, que estão já na glória, gozando o prémio dos seus merecimentos, de que brevemente daremos notícia; e para confusão daqueles que capeavam a relaxação do silêncio com o pretexto de um política assistência aos hóspedes e negociação do sustento necessário, foram tantas as esmolas com que a devoção dos fiéis socorria ao Convento, que foi necessário à espiritual prudência do Guardião algumas vezes rejeitá-las, temendo que fossem indústria do Demónio para relaxação de tanta pobreza, de que fui testemunha ocular, como quem teve a fortuna de que ele neste tempo me admitisse por seu súbdito para me confirmar as lições que principiou a dar-me sendo meu Mestre no Noviciado. A mesma abundância experimentei, precisando-me a coartar a liberalidade de alguns devotos poucos anos passados, sucedendo-lhe no lugar, porque é Deus muito fiel em pagar aos jornaleiros que trabalham na sua vinha.
                Continuou este venerável padre a prelazia os três anos, guardando tanto à risca os ápices das leis especiais do Convento que para os súbditos se suavizava o seu rigor vendo que ele em tudo era o primeiro para o exemplo, e com tanta caridade para todos, como se fosse pai de cada um. A Matinas, que não só neste Convento mas em todos são indispensáveis à meia-noite, sendo ele dos primeiros que entravam no Coro, nos dias que chovia muito tinha a compaixão de esperar que a chuva aplacasse para que os frades pudessem vir com mais comodidade isentos de se molharem, por razão de que as celas estão divididas pela Serra, que depois de se acabarem, se a chuva continua, escolhem por mais conveniência ficar no Coro até Prima [primeira hora canónica diurna], tomando o descanso necessário encostados às cadeiras. Acabada a hora da Prima, e a oração mental que se lhe segue, ia dizer a sua missa, que servia a todos de compunção a devoção com que nela se portava, e voltava para o Coro a dar graças, ouvindo também outras missas até à hora da Terça, se as obrigações de Prelado algumas vezes o não precisavam a sair do Coro. Jejuava todas as Quaresmas de nosso Padre S. Francisco, que compreendem onze meses do ano, e no comer era tão parco que muitos dias da semana se contentava só com alguns legumes; tendo porém a advertência de mandar por obediência a alguns dos seus súbditos comessem a porção do peixe, se via que excediam os limites da prudente mortificação, ou eram improporcionadas as suas mortificações ao débil da natureza que neles se notava.
                Para todas as festividades de Nossa Senhora e outras festas de Sabaoth, se preparava com uma novena de mortificações especiais e rigoroso silêncio quanto permitia o seu ofício, virtude que introduziu na maior parte da comunidade. Depois de jantar, ainda que tivesse algum hóspede de especial respeito a que assistir, primeiro ia buscar a sua quarta de água à fonte para o serviço da cozinha, por não deixar de acompanhar aos súbditos neste ato de trabalho que se faz todos os dias em ato de comunidade. Nos dias santos e mais solenes, em que depois do jantar se costuma dispensar no silêncio para que em alguma conversação honesta tomem os frades algum alívio, tanto que saía de Vésperas se deixava ficar no antecoro incitando os súbditos a esta recreação, mas brevemente se despedia por dar lugar aos que ali ficavam violentos [impetuosos], a retirarem-se para as suas celas, onde faziam mais gosto divertirem-se com a lição dos seus livros. Acabados à noite os atos da comunidade, se não recolhia sem primeiro ir ao Coro gastar com Deus largo tempo em oração. Estra era a ordinária forma da sua vida nos três anos em que foi ali Prelado. No Capítulo imediato o elegeram Custódio e ficou continuando a sua habitação neste mesmo santuário, de onde não saía sem um negócio [empresa, tarefa] muito preciso. Sendo chamado a Lisboa para assistir à Congregação por razão do seu ofício, e no mesmo dia em que ela se celebrou veio dormir ao Convento, ficando este em distância de seis léguas, três de mar e três de terra, que a todo este excesso o obrigava o amor da solidão e a displicência que tinha ao trato de seculares.

                Como se viu sem as obrigações de Prelado, acrescentou as horas que aquelas lhe ocupavam aos seus santos exercícios e lição de livros espirituais, dispondo-se para a morte de que entendeu tivera revelação, pois disse muito tempo antecedente que, depois de fazer certa jornada logo se lhe seguia fazer a da eternidade. O efeito o mostrou porque voltando do Alentejo, onde a obediência o mandou, se sentiu agravado com uma febre maligna que o precisou a buscar-lhe remédio na Enfermaria de Setúbal; porém, respeitando mais as necessidades do espírito do que as do corpo, feita uma confissão geral, pediu que lhe dessem o Santíssimo Viático, e para o receber, não obstante a muita debilidade em que estava, se prostrou de joelhos sobre a cama fazendo uma devota protestação da Fé e proferindo jaculatórias com palavras tão doces e enternecidas, que bem mostravam o fogo do amor Divino que ardia no seu peito. A seu tempo pediu a Santa Unção, e continuou todos os dias que viveu com tantos atos de verdadeiro católico e perfeito religioso até exalar o espírito, que a todos fez entender foi a sua morte preciosa aos olhos de Deus. Pela grande fama que havia da sua virtude, concorreu muita gente a venerá-lo, e o acompanhou até ao Convento de Alferrara onde foi a sepultar. Testemunharam muitas pessoas fidedignas que em toda a distância do caminho que vai da vila ao Convento, que será de meia légua, viram sobre o féretro uma pomba, e como só foi vista por particulares e devotos, deu motivo a formarem juízo que ela seria Maria Santíssima naquela cândida figura, de quem foi devotíssimo, que lhe veio assistir em gratificação do bem com que a tinha servido, especialmente em lhe restaurar a reforma do Convento da Arrábida que esta Soberana Senhora tem debaixo do seu patrocínio. Foi a sua ditosa morte em oito de Novembro de mil, setecentos e onze.

Convento franciscano da Nossa Senhora da Arrábida

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