domingo, 27 de março de 2016

I Grande Guerra - um vislumbre do conflito

Algumas notas 

     O Portugal do alvor do século XX, o Portugal da implantação da República e da entrada na Guerra, é um país retalhado por diversas clivagens políticas e sociais, e cuja massa populacional é maioritariamente analfabeta (segundo os resultados do Censo de 1911) e consagrada ao trabalho nos campos, e a emigração cresce de ano para ano.



     A guerra efetiva contra a Alemanha começa, não nos campos da Flandres, mas no continente africano, no rio Rovuma, fronteira norte de Moçambique, e no sul de Angola, iniciada com os ataques alemães de 24 de Agosto de 1914 ao posto moçambicano de Maziua, e de 19 de Outubro de 1914 a Naulila, na fronteira de Angola, e a 30 do mesmo mês, ao forte de Cuangar e aos postos de Sâmbio, Bunja e Dirico, também em Angola. São enviadas de Portugal forças expedicionárias para as duas costas africanas sob as ordens do tenente-coronel Alves Roçadas (para Angola, com 1477 soldados) e do tenente-coronel Massano de Amorim, que contava com 1525 homens, destacamentos mistos de Artilharia de Montanha, Infantaria, Cavalaria e Metralhadoras, destacamentos que foram avaliados como contendo ridículos efectivos (palavras do Tenente-coronel Eduardo Barbosa na Revista Militar, Ano LXXI, n.º 4, Abril de 1919), insuficientes para debelar a ofensiva das forças alemãs nessas zonas de África. Outros contingentes rumarão a África até ao final da guerra até perfazerem em 1918, 89.264 portugueses, somando-se a estes números os 16.278 das ditas praças indígenas (segundo Henrique Manuel GOMES DA CRUZ na sua tese de mestrado em História Contemporânea: Portugal na Grande Guerra: a construção do «mito» de La Lys na imprensa escrita entre 1918 e 1940, FCSH - Universidade Nova de Lisboa, Março de 2014). A mesma Revista Militar, nesse ano de 1919, historia e faz o balanço desse conflito africano de portugueses e ingleses contra os alemães, que se arrastaria até 1918 como a guerra na Europa e se saldaria em cerca de 5.600 mortos e um número dilatado de feridos e desaparecidos. Uma prova eloquente dessas baixas portugueses em África, são dois cadernos do Arquivo da Secretaria Geral do Ministério das Finanças, onde estão listados os nomes dos soldados portugueses mortos na Grande Guerra com o fito de se atribuir uma pensão de sangue aos herdeiros. Ao folhearmos essas páginas com os soldados mortos na Guerra, vemos que no local onde tombaram, a Campanha em África rivaliza com a Campanha em França.


[Leitura complementar: Naulila, de Augusto Casimiro, Seara Nova, Lisboa, 1922]

Militares portugueses a atravessar o rio Rovuma numa jangada
(Revista Militar, Ano LXXI, Números 6 e 7, Junho e Julho de 1919, página 343)

     Todos conhecemos dos livros de História os motivos imediatos da declaração de guerra da Alemanha a Portugal: Portugal requisita os navios alemães estacionados em portos portugueses (Decreto n.º 2.229 de 24 de Fevereiro de 1916), que terá como reacção a Declaração de Guerra da Alemanha a Portugal em 9 de Março de 1916. Mas a entrada de Portugal na Grande Guerra persegue não só objetivos externos, de política internacional, mas também objetivos internos - consolidação do novel regime e superação das profundas divisões políticas sob o pretexto do combate a um inimigo comum. Se a política intervencionista era partilhada pelo Partido Democrático, pelo Partido Socialista e pelos Partido Evolucionista de António José de Almeida, o anti-intervencionismo era defendido pelos monárquicos, unionistas, grande parte do anarco-sindicalismo, e uma facção crescente dentro do próprio Partido Democrático, de onde nascerá o golpe de Sidónio Pais.


     Teixeira de Pascoaes reagiu na Águia contra esse extremo partidarismo da vida política portuguesa: O português ou ama a República ou a Monarquia. Se é republicano é francófilo; se é monárquico é germanófilo, com algumas honrosas exceções. O português é profunda e lastimavelmente partidarista. Trocou os Lusíadas e a Bíblia pelo Século e pela Carta... Não há portugueses. Há políticos. Vale mais para nós o predomínio do nosso partido do que a honra e independência da Pátria. Se a vitória da Alemanha assegurasse as instituições republicanas não haveria um republicano que fosse francófilo. Se a vitória da França restaurasse a Monarquia, entre os monárquicos não haveria um germanófilo. Não há portugueses. Há políticos. A nossa terra é um cenário de acaso, onde se representam egoísmos, falcatruas, misérias... Portugal não existe; existem partidos... (citado por Augusto CASIMIRO (capitão) em Nas trincheiras da Flandres, edição da Renascença Portuguesa, Porto, 1918)


     Movidos pela dupla frente da oposição interna e do xadrez político internacional, os republicanos no poder forçaram a entrada do país na guerra. Escreve Nuno Severiano Teixeira: Fragilidade política do regime, no plano interno, e fragilidade internacional do país, no plano externo: ameaçado pela Alemanha nas colónias; ameaçado pela Espanha, na Península; e consciente da transigência de Inglaterra, a sua fiel aliada e garante da sua soberania, em relação à Alemanha e em relação à Espanha. Situação mais grave e crise mais profunda é difícil de imaginar: não estava só em causa a sobrevivência do regime; mais do que isso, estava em causa a soberania do Estado. A decisão da intervenção de Portugal na guerra europeia faz-se, pois, segundo uma estratégia intervencionista, isto é, uma estratégia diplomática que forçou, deliberadamente, a entrada em guerra. Uma estratégia que, aproveitando uma conjuntura internacional favorável, obrigou a Inglaterra, contra a sua própria vontade e quiçá contra o seu próprio interesse, a aceitar a entrada de Portugal na Grande Guerra (Teixeira, Nuno Severiano, PORTUGAL E A GRANDE GUERRA: ENTRE A MEMÓRIA DO PASSADO E OS DESAFIOS DO FUTURO, comunicação feita no colóquio Portugal e a I Guerra Mundial (1914-1918) realizado na Sala do Senado da Assembleia da República em Lisboa, a 7 de Outubro de 2014).


     O discurso "oficial" difundia a ideia de que a entrada na guerra no ano de 1916 se destinava a proteger as nossas colónias em África, onde lutávamos contra os alemães desde 1914. Mas mesmo na época essa explicação não era aceite sem reservas. Escreve nas suas memórias o alferes António Joaquim Henriques: Justo é dizer que Portugal foi para esta guerra sem preparação moral e que muitos não viam explicação suficiente para nela tomarmos parte, a começar pelos partidos políticos (...) Antes de marcharem houve até casos em Santarém e Figueira da Foz nos regimentos de infantaria que ali se encontravam aquartelados, que eram respectivamente os nº 34 e nº 28, que deram origem ao castigo de alguns oficiais e sargentos. E não se podia dizer que foi por cobardia que estes graduados tiveram tal atitude. Era apenas por entenderem que a nossa intervenção não tinha razão de ser em França, mas em África, nem para ela estávamos preparados (in  Revista Militar, edição 2561/2562).


    À declaração de guerra da Alemanha, segue-se a atabalhoada mobilização, e a preparação das tropas (sobretudo em Tancos) com vista ao envio do primeiro contingente para França. O discurso oficial falará do "milagre de Tancos" (na Ilustração Portuguesa e no Diário de Notícias), mas era notório que as tropas saíram de Portugal mal preparadas. É o que nos contam as Impressões do capitão Menezes Ferreira: Depois de ter suportado as soalheiras de "Paulôna", esse inolvidável acampamento de Tancos, besuntado ligeiramente de um treino guerreiro muito rudimentar - ora vai hoje, ora vai amanhã - lá foi chamado enfim para o embarque naquele áspero Inverno de 1917! Quantas hesitações. quanto comodismo, quantas contrariedades a vencer! E o pior de tudo era que os compromissos tinham sido tomados em nome da nação [Capitão Menezes FERREIRA (texto e desenhos), João Ninguém, soldado da Grande Guerra, composto e impresso nas Oficinas dos Serviços Gráficos do Exército em 1921] .


Dos campos para os quartéis
(Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 528, 3 de Abril de 1916)
Infantaria 7 (de Leiria) - Exercícios de tiro na charneca da Chamusca (Ilustração Portugueza, idem)


Manobras da artilharia em Tancos (Portugal na Guerra - revista quinzenal ilustrada, n.º 2, Paris, 15 de Junho de 1917)

     A 1.ª Brigada do Corpo Expedicionário Português (C.E.P.) parte do cais de Alcântara a 26 de Janeiro de 1917 a bordo de três vapores britânicos, sob o comando do general Gomes da Costa; e desembarcam em Brest. 

     ...foi curta a demora na cidade. Apenas o tempo de se encher os cantis e de atulhar os bornais com as rações de corned-beef, foram nessa mesma noite amontoados como sardinha em canastra pelo míseros «vagons J» (40 homens e 8 cavalos) onde "João Ninguém", meio aturdido e desconfiado, demonstra a evidência com o seu ar bisonho e o seu negro olhar, onde transparece o sentimentalismo lamuriento de uma raça de contemplativos (...) E assim, posto o comboio em andamento, afogadas as mágoas na aguardente da ração, já meio conformados e embrulhados no fatalismo que lhe vem da sua raça. lá se deixam conduzir, os soldados portugueses, para muito longe da sua terra, não sabendo bem para onde, e muitos deles talvez para nunca mais voltar (capitão Menezes Ferreira, op. cit.).



Embarque do Corpo Expedicionário Português
(fotografia de Joshua Benoliel)
(Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 582, 16 de Abril de 1917 - capa)


(Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 578, 19 de Março de 1917)

      Tomam o caminho do sul da Flandres, onde integraram as linhas britânicas segundo os termos da Convenção Luso-Britânica. A viagem para França será assinalada pelos primeiros incidentes disciplinares (e consequente punição) entre as tropas portuguesas, primeiros sintomas de um mal-estar e um desagrado no seio dos militares (praças e oficiais) que as duras condições da frente (o frio, a fome e os bombardeamentos e raids) irão agravar progressivamente. Os Boletins Individuais dos militares, guardados no Arquivo Histórico Militar, fazem transparecer esse ambiente, e estão pontuados nas Observações por punições disciplinares por desobediência ou altercações, e licenças gozadas para além do termo concedido.

     Jaime Cortesão, nas suas Memórias, explica o posicionamento no terreno das nossas forças: Estende-se a gente portuguesa por uma faixa do país mais ou menos limitável dentro de um grande triângulo isósceles. O vértice, que entesta com a nossa linha de batalha, longa de alguns quilómetros (12, com a entrada da 2.ª divisão, medeia entre Armentières, ao norte, e Bethune, ao sul; e a base, larga de 60 quilómetros, é a própria costa marítima, banhada do Mar da Mancha. Fecham-no duas linhas que, do vértice, vão terminar, uma em Calais, ao norte, outra em Etaples, a sul (...) São primeiro as tropas de infantaria ocupando as trincheiras e os apoios desde Fleurbaix a Festubert, passando pela Rur de Bois, Fanquissart, Neuve-Chapelle, Ferme du Bois. Segue-se-lhe logo a artilharia de campanha, e depois os quartéis de Brigada e as ambulãncias da frente, estes últimos gozando já um princípio de conforto. Vem depois, por Lestrem e Lagorgue os quartéis generais de Divisão com as suas muitas e variadas secções: Estado Maior, comandos de engenharia e artilharia, chefia dos serviços de saúdem serviços administrativos, serviços postais, etc, etc. (...) Logo após algumas escolas, oficinas e depósitos distribuídos por localidades de somenos importância. Agora Merville com o seu hospital de sangue n.º 1. Depois Saint-Venant, quartel-general do C.E.P., com a aristocracia dos galões. 

(Cortesão. Jaime, Memórias da Grande Guerra (1916-1919) edição da Renascença Portuguesa, Porto, 1919)

     O C.E.P. em França, e tendo como modelo a estrutura do exército inglês, ficou organizado em duas Divisões, cada uma delas comportando três Brigadas com quatro Batalhões de Infantaria. Quase todos os soldados do distrito de Leiria compunham inicialmente o Batalhão de Infantaria n.º 7, da 2.ª Brigada da 1.ª Divisão. O Infantaria 7 foi um dos três Batalhões envolvidos em motins das tropas portuguesas ocorridos em 4 de Abril de 1918 em Ferme du Bois. As outras unidades envolvidas foram o Batalhão de Infantaria 24 de Aveiro e o Batalhão de Infantaria 23, de Coimbra


     As condições de vida na frente, o desgaste do inferno das trincheiras, pode ser visto através das palavras de Jaime Cortesão ou Augusto Casimiro, Menezes Ferreira ou António Joaquim Henriques. Narra o primeiro:

     Um sistema de fossos rasga o chão até à altura de um homem e sucede-se em três linhas paralelas, ziguezagueando e entreunindo-se até aos parapeitos sobre a "terra-de-ninguém". Nestes fossos abriram-se lateralmente algumas cavernas, espécie de silos escuros para vegetar. As granadas e a chuva, aqui e ali revolvem, abrem, obstroem encharcam em lama e água. Todavia, nesses fossos e cavernas, sujos e viscosos, alguns homens habitam. 

     Tudo ali é lodo e miséria. A esperança da vida assenta apenas sobre o acaso. E a inquietação devora o peito nas horas lentas. 
     Estes homens, que vivem de um modo nunca visto, ganharam com o tempo uma fisionomia especial, tanto mais acusada, quanto mais próxima do inimigo. Era inevitável (...) A imobilidade e frescura especial do rosto, que dão a mocidade e a vida calma, secaram, murcharam inteiramente. 
     Há crianças com caras de velhos.
     A esta transformação dos rostos, corresponde uma outra mais profunda nas almas (...) Moços de 20 anos possuem a sabedoria de séculos.
     Quando se anda pela primeira linha, surdem a espaços, dos buracos do chão, rastejando e erguendo-se a custo, ou circulando nos traveses, uns espetros lamacentos.
     Às vezes esses fantasmas mostram os dentes num riso sinistro e olham com certos olhos implacáveis, como quem doutro planeta com mais aguda vista considerasse as baixezas e os erros dos humanos.
    No seu conjunto esta faixa estreita das trincheiras assemelha-se na hierarquia do risco ao conjunto do sector. Todos os que habitam fossos e cavernas vivem ao pé da morte, no meio das balas e granadas, que são cegas. Mas os oficiais do estado maior do batalhão, incluindo os médicos e o comandante, são nas horas mais calmas, os menos expostos aos perigos. Igual sorte, a de todos os subalternos que os acompanham. Seguem-se todos os homens dos comandos da companhia. Chegam na escala máxima do risco e da miséria os pelotões, desde o alferes ao soldado.
(Jaime Cortesão, op. cit,).

Portugal na Guerra - revista quinzenal ilustrada, n.º 5, Paris, Outubro de 1917
Foto de Arnaldo Garcês (Portugal na Guerra - revista quinzenal ilustrada, n.º 5, Paris, Outubro de 1917)
Portugal na Guerra - revista quinzenal ilustrada, n.º 5, Paris, Outubro de 1917

     Com a chegada de Sidónio Pais ao poder, cessa o envio de novos contingentes de tropas para França, por vontade do caudilho (que alguns reputavam de germanófilo), mas também pela inexistência de transportes, uma vez que os vasos britânicos estavam agora dedicados ao transporte de tropas norte-americanas para o velho continente. No sector português os soldados não são rendidos por novas tropas, e subsistiam em condições físicas e psicológicas deploráveis, permanecendo nas trincheiras durante cinco meses a fio (capitão Augusto CASIMIRO, Nas trincheiras da Flandres, edição da Renascença Portuguesa, Porto, 1918). Disso se apercebem os britânicos, que organizam a sua retirada da frente de batalha e a sua substituição por batalhões ingleses. Nesse interim, e com todo o peso de uma monstruosa ironia, dá-se o desastre de La Lys.


     A 4 de Abril, o chefe militar da Alemanha, o general Erich von Rudendorff, com as suas forças reforçadas pelas tropas que trouxera da frente oriental depois dos soviéticos assinarem o Tratado de Brest-Litovksi, inicia uma nova ofensiva no Somme, que suspende no dia seguinte ante a sua incapacidade de conquistar Amiens perante a tenacidade dos Aliados. Uma nova estratégia ofensiva se impunha, e os alemães preparam-na rapidamente, cunhando-a com o nome de código de Operação Georgette.

     No dia 8 de Abril, às 20 horas, o Quartel-General português anuncia aos batalhões portugueses que no dia seguinte iriam ser rendidos por tropas inglesas e abandonariam por completo a linha da frente, notícia confirmada duas horas mais tarde ante a incredulidade dos militares esgotados - Os batalhões estão cansados, exaustos. As rendições sucessivas dos últimos dias, as promessas, as esperanças, as desilusões de um descanso que não chega, a visão próxima dos horrores de Março, o desprezo a que Portugal parece ter votado os seus homens, a ausência de reforços, o sofrimento e a saudade, trazem o moral das unidades diminuído e leso. Os efetivos andam reduzidíssimos. A nova rendição, apesar de inesperada, traz, pois, um alívio (Augusto Casimiro, id.). 

     Na noite de 8 para 9 de Abril, às 4.15. os alemães começam o bombardeamento, intenso e ininterrupto, toneladas de granadas de gás chovem sobre Armentières e o setor português - Gases...gases...E as casas tombam num desabar que prolonga explosões. Homens correm pelas passadeiras, ao longo dos canais que cercam as fermes. Outros esperam, brancos...E a tormenta redobra, tombam os muros e os telhados, caem, num massacre, os altos troncos que a névoa reveste...A terra estremece, agita-se e, num delírio horrível, deforma-se...Sob a névoa há horrores que a névoa mal esconde...Às 5 h. o Batalhão encontra-se isolado completamente (Augusto Casimiro, ibid.). Quatro Divisões alemãs sob as ordens do general von Quast atacam a Divisão portuguesa, conseguem romper a linha das trincheiras e atacam pelos flancos e pela retaguarda, anulando as bolsas de resistência, o heroísmo desesperado de vários militares é registado, preservado, nas memórias do poeta Augusto Casimiro. A batalha estava perdida - Tudo perdido, menos a honra! Cercados! E agora? Os oficiais teem lágrimas nos olhos. A guarnição desequipa-se. Rende-se. «Na frente e nos flancos da trincheira vencida os uniformes feld-grün amontoavam-se no chão». E os prisioneiros, dolorosos, desfilaram entre os mortos sem conta, altivos e senhores de si.

     No dia 9 de Abril, Jaime Cortesão já não se encontrava na primeira linha, convalescia no hospital de Saint-Venant dos efeitos do gás-mostarda que o torturavam desde 22 de Março. Às 10 da manhã dizem-lhe que os alemães haviam rompido as linhas portuguesas e adentravam-se pelo território. O hospital enche-se de feridos, de gente mutilada, de gaseados em convulsões. Conta-lhe um: Depois, ao vir da manhã, atacaram. Atacaram em massa, às ondas, sempre em ondas, numa catadupa de homens. Só muito perto os vimos surgir do nevoeiro espesso da manhã. De nós, os que ficamos, raros intactos, resistimos até à última. Houve cargas de baionetas, uma fúria! Tu sabes: a coisa que mais detesto são os falsos heróis. Mas ninguém, ninguém faria mais! E tu conheces como estávamos cansados...A seguir, abateram ou manietaram tudo à força de número. Vi junto de mim, ali ao pé, oficiais alemães, pistola em punho, atirando sobre os poucos que tentavam salvar-se. Eu próprio estive envolvido. Atirei sobre um. Resisti. Furtei-me. O nevoeiro, o fumo da pólvora, a poeira levantada no ar eram tão densos, que pude escapar com duas ordenanças. Todo o meu terror era cair prisioneiro. Antes morrer, morrer mil vezes!

     As detonações, e os alemães, aproximam-se de Saint-Venant, e os portugueses são evacuados. Cortesão e alguns camaradas, debilitados como ele, recuam, a pé, como podem, e conseguem chegar a Ambleteuse, em cujo hospital ficam a recuperar.

     A Batalha de La Lys é o cerrar do pano para o C.E.P. Os dados estatísticos são impressionantes: 398 mortos, 4626 feridos, 1932 desaparecidos e 6585 prisioneiros (os números divergem). Depois dessa data ainda há militares portugueses a combater em França, mas de uma forma quase espontânea, autónoma, reorganizam-se, juntam-se aos Aliados e perseguem a vitória final. Jaime Cortesão dá notícia de alguns desses grupos de soldados que lutam à revelia do Estado português, que não os vê com bons olhos, ele próprio, quando regressa, ainda convalescente, é olhado com suspeição e preso por razões políticas.



Reconstituição  cartográfica da Batalha de La Lys
(Ilustração Portuguesa, edição semanal do jornal O Século, n.º 790. de 9 de Abril de 1921)

     Quando a guerra termina, a 11 de Novembro de 1918, os alemães ainda têm em seu poder 6767 prisioneiros portugueses que são libertados; 233 haviam já morrido em cativeiro. A forma como haviam sido tratados era, e continua a ser, de alguma forma, um tema delicado, incómodo, suprimido (como o desaire da Batalha de La Lys). Ainda que já existam publicados relatos, e cartas de prisioneiros portugueses, e se tenham realizado estudos sobre eles, como a oportuna tese de Maria José Monteiro de Oliveira.


[Leituras complementares:

Carlos OLAVO, Jornal d'um prisioneiro de guerra na Alemanha, Guimarães e C.ª Editores, Lisboa, 1919.
Tese de Maria José Monteiro de OLIVEIRA, Deste triste viver - Memórias dos prisioneiros de guerra portugueses na primeira Guerra Mundial, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Setembro de 2011]


Prisioneiros portugueses em Karlsruhe
(Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 647, 15 de Julho de 1918)

Os nossos prisioneiros
 (Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 650, 5 de agosto de 1918)

Os nossos prisioneiros
 (Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 650, 5 de agosto de 1918)
O desembarque dos prisioneiros portugueses repatriados pelo Northwestern Miller
(Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 676, 3 de Fevereiro de 1919)
O desembarque dos prisioneiros portugueses repatriados pelo cruzador inglês Helenus
 (Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 677, 10 de Fevereiro de 1919)

Cemitério na Rue de Bois, onde repousa grande número de portugueses
 (Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 646, 8 de Julho de 1918)
O glorioso sono... (gravura de Menezes Ferreira)

Uma nota sobre as fontes:

- Os dados estatísticos sobre a Grande Guerra e a Batalha de La Lys baseiam-se na tese de mestrado em História Contemporânea, já referida, de Henrique Manuel Gomes da Cruz: Portugal na Grande Guerra: a construção do «mito» de La Lys na imprensa escrita entre 1918 e 1940, FCSH - Universidade Nova de Lisboa, Março de 2014. Outras estatísticas distintas podem ser encontradas nos trabalhos de Nuno Severiano Teixeira ou Maria José Monteiro de Oliveira.

- As narrativas primárias sobre a Grande Guerra (Cortesão, Augusto Casimiro, Menezes Ferreira,  António Joaquim Henriques) podem ser acedidas através da hiperligação contida no título. Estamos conscientes de que são descrições subjetivas, pessoais e literárias, do conflito, com todas as limitações e imperfeições que possam conter. Mas assumimos o risco. São experiências pessoais, escritas ou vividas debaixo de fogo, mais autênticas (julgo) do que algumas "leituras" modernas do que se passou e sofreu na Front.

- A Ilustração Portuguesa e o Portugal na Guerra podem ser acedidas através da Hemeroteca Digital da Câmara Municipal de Lisboa, onde se podem consultar outros títulos da época, como O Século, A Capital, ou a República.

sexta-feira, 25 de março de 2016

I Grande Guerra - imagens visuais e escritas de uma memória sofrida

Gravura do Capitão Menezes Ferreira (in João Ninguém, soldado da Grande Guerra, composto e impresso nas Oficinas dos Serviços Gráficos do Exército, 1921)

Um enunciado e um desafio

     Nós entramos, desde 2014, na efeméride do centenário da guerra de 1914-1918. Uma centúria parece muito tempo mas alcança-nos na longa sombra da memória coletiva; quase todos nós temos avós, ou bisavós que sofreram as suas agruras, ou recebemos relatos orais que foram transmitidos desde esses familiares até à geração dos nossos pais. O meu avô paterno era de Famalicão da Nazaré e esteve na Flandres na Grande Guerra - estas ligações. estas sinapses entre gerações distintas e nem sempre coincidentes, fazem-nos perceber que é muito importante resgatar a memória dessa guerra e dos que nela participaram, mesmo porque, pela forma como decorreu e pelas sequelas físicas e psicológicas que deixou nos expedicionários, essa memória, tantas vezes traumática, foi muitas vezes reprimida, apoucada, pelos próprios sobreviventes.

     A aproximação do centenário, e o seu início, tem sido assinalado - à escala mundial, como a guerra - por um esforço generalizado para reaver e reabilitar as memórias da Grande Guerra. Imagens e memórias do conflito e variegados documentos da época tem vindo a ser colocados à disposição do grande público em representação digital, que todos podem conhecer, estudar e difundir.

     Graças a esses recursos disponibilizados por Arquivos, bibliotecas e outras instituições, temos à disposição, ou a informação integral do que pretendemos conhecer, ou os índices e bases de dados que constituem um válido ponto de partida para qualquer pesquisa, a informação clara sobre onde e como encontrar o que procuramos.

     Indicar alguns desses recursos será, numa escala restrita, local, a finalidade dos textos que se seguirem a este. Começaremos por tentar transmitir uma pálida perspetiva (apenas algumas anotações) sobre o que foi a Grande Guerra, com citações e imagens que funcionarão como parcos fragmentos de um vastíssimo mosaico (um mosaico sempre incompleto) para em seguida reproduzir listas dos nossos militares no Corpo Expedicionário Português a nível do distrito de Leiria, e do concelho de Alcobaça; e, por fim, da freguesia de Alfeizerão e das freguesias que a envolvem.

     Falava no título acima de um desafio, e esse desafio tem a ver com tudo isto - resgatar as memórias da Grande Guerra passa pelo enriquecimento do que é público e conhecido dessas memórias, porque aqueles artigos (medalhas, fotos, caderneta militar, textos, desenhos, cartas...) que são guardados pelos descendentes ou familiares dos que travaram a guerra de 14-18 podem ser acrescentados à memória partilhada do conflito, e os ditos familiares podem, se o desejarem, tirar fotografias desses objetos ou digitalizar fotos e textos que pertenciam aos seus parentes e transmiti-las aos organismos que ensaiam essa recuperação. A plataforma europeia dessas Memórias da I Guerra Mundial é o Projecto Europeana 1914-1918, com uma valência nacional no Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

     Em todo o caso, e aqui projeta-se esse repto: se existirem artigos desses na posse dos que lerem estas linhas e se os pretenderem partilhar ou divulgar, colocamo-nos à disposição para articular esse processo, e para os divulgarmos também aqui, se tal nos for permitido. O nosso contato é o habitual: joseduardol@gmail.com

Três memórias

     A nossa fonte para o texto que iniciará este tema será, além de citações de alguns estudos e teses e frases ou parágrafos (além das fotos) da Ilustração Portuguesa - três obras de intervenientes e testemunhas da Grande Guerra.

    A primeira, do Capitão Menezes Ferreira [Capitão Menezes Ferreira (texto e desenhos), João Ninguém, soldado da Grande Guerra, composto e impresso nas Oficinas dos Serviços Gráficos do Exército em 1921] forma como que um registo gráfico da Grande Guerra e onde o oficial nos apresenta a figura do João Ninguém como um símbolo do soldado modesto e anónimo que acorreu à mobilização, partindo das oito províncias de Portugal com a sua mochila às costas.

    Um outro relato de referência é constituído pelas memórias manuscritas do Capitão António Joaquim Henriques, que foram publicadas pela Revista Militar, edição 2561/2562, de Junho/Julho de 2015 com transcrição e notas de Mestre Luís Miguel Pulido Garcia Cardoso de Menezes e do Dr. Emanuel Luís de Oliveira Morão Lopes da Silva. Os mesmos autores haviam estudado e publicado anteriormente (Revista Militar, edição 2539/2540, de Agosto/Setembro de 2013) a narrativa do mesmo militar sobre a Revolução de 5 de Outubro de 1910.

    Por fim, e não por ser menos importante, tivemos como fonte privilegiada um livro de memórias da guerra escrito pelo médico e historiador Jaime Cortesão (Cortesão. Jaime, Memórias da Grande Guerra (1916-1919) edição da Renascença Portuguesa, Porto, 1919), que depois de se oferecer como voluntário, enceta a viagem por Espanha até à Flandres onde trabalha como capitão-médico na frente da batalha. As suas memórias são um pungente documento sobre a violência e a crueza da I Guerra Mundial, transmitindo-nos com descrições vívidas todo o desespero e horror que as fotografias apenas permitem suspeitar.

Bilhete postal (acervo da Biblioteca Nacional de Portugal) que reproduz uma fotografia de Arnaldo Garcez

quinta-feira, 24 de março de 2016

População e instrução no início da I República - o Censo Populacional de 1911

     O Censo Populacional de 1 de Dezembro de 1911 (o 5º Censo geral da população), foi o primeiro recenseamento do século XX, e tem uma importância acrescida por ter sido o primeiro realizado no período republicano e nos dar uma visão detalhada da população na década em que o país mergulharia no moloque da Grande Guerra. Os quadros sinópticos deste Censo também estabelecem a comparação com os resultados dos dois Censos anteriores (1890 e 1900) ou, por vezes, com a totalidade dos cinco Censos.

     Do original, publicado em 1913 (Estatística Demográfica - Censo da População de Portugal no Iº de Dezembro de 1911, Parte I, Imprensa Nacional, Lisboa, 1913), recolhemos alguns dados e quadros que compilamos num ficheiro PDF (ßlink). Destes, transpusemos para esta publicação alguns dos dados mais significativos no contexto da freguesia de Alfeizerão e do concelho e distrito em que se insere. Um dado demográfico relevante que vários autores indicam para o ano de 1910 (fonte?), é a percentagem da população (65%) que nessa data teria a agricultura como ocupação.

     Os quadros elaborados a partir dos resultados do recenseamento são suficientemente explícitos (população, analfabetismo, etc.) nos âmbitos regional e nacional para carecerem de análises de maior.


Densidade populacional por concelhos:

Evolução da população (crescimento demográfico):


Estrangeiros por Distrito, com a sua proveniência e situação (2 imagens):




Analfabetos por Distrito, nos três Censos (2 imagens):




A população por Distrito, com distinção de género, estado civil e instrução (2 imagens):



A população por concelhos (2 imagens):






A população por freguesias (2 imagens):




domingo, 13 de março de 2016

O «Fora da Terra» de Pinheiro Chagas


(gravura extraída da revista Occidente, n.º57, Janeiro de 1880)

A obra

     Fóra da Terra, o livro de passeios de lisboetas fora de Lisboa, foi publicado pela Livraria Internacional em 1875, e a folha de rosto atribui a sua autoria a Júlio César Machado e a Pinheiro Chagas. O corpo da obra deve-se a Pinheiro Chagas, cabendo a Júlio César Machado o extenso prefácio de 47 páginas que ele, inclusive, sela com a sua "assinatura". O prefácio deste e as viagem narradas por Pinheiro Chagas seguem o mote das Viagens na Minha Terra de Garret, mas numa inversão irónica desse postulado. Escreve o escritor de A-dos-Ruivos: O ir simplesmente fora da terra, isto é, o deitar só até Pedroiços, Oeiras, Paço d'Arcos, Benfica, Lumiar, a jucunda Ameixoeira, Cascais, Sintra, Figueira, Nazaré, substitui com elegância as longas ausências da pátria, e tem as vantagens de sair mais barato e de facultar com maior frequência o aparecer citado nos jornais. Se o homem vai para França, não se fala mais nele, se vai para a Ericeira, temos notícias suas todos os dias nas folhas da capital em interessantes correspondências que nos descrevem como ele por lá come, como anda vestido, e em que danças anda metido no clube, à noite. Distrações a que não se liga importância na cidade mudam-se logo em divertimentos quando vão surpreender-nos a algumas léguas de Lisboa. O teatro, por exemplo! (...) A outra opinião mais seguida e mais moderna é que o campo melhor de todos é o povoado por gente da cidade, isto é o Fora da Terra de Pinheiro Chagas, os sítios elegantes que ele tão primorosamente conta e historia nesta obra, e que são no Verão e no Outono o refúgio da gente da moda, ao ponto de dizerem sempre os noticiários por esta época: Lisboa não está em Lisboa! De modo que, o que nós dizemos e chamamos Fora da Terra, vem a ser o que há de mais Lisboa, a Lisboa pura, a Lisboa que tem meios, que vive e que é propriamente Lisboa! As inversões anfibológicas, as silepses incoerentes, as designações absurdas fazem sempre carreira entre nós...

     Deste livro de leitura agradável e divertida, transcrevemos alguns trechos; outros de interesse igualmente relevante poderão ser procurados pelo leitor na hiperligação que abre esta introdução, lembrando nós em golpe de asa os que Pinheiro Chagas escreve sobre a Foz do Arelho, a Pederneira e a Nazaré, ou sobre a vila de Alcobaça, onde perora sobre a ruína do mosteiro abandonado.

Uma estilha da obra
                [Caldas da Rainha] Ah! Se estas localidades servissem unicamente para o fim a que se destinam, que aborrecido aspeto teriam! Não haveria nas Caldas senão coxos arrastando-se penosamente, e uma turba de gente pálida tomando melancolicamente as águas sulfúreas. Assim pelo contrário o aspeto é risonho e alegre.
                Desperta um banhista pela manhã, atravessa a praça onde se acumulam ao Domingo inúmeros camponeses que trazem a ótima fruta dos coutos de Alcobaça, e que, encostados aos seus longos varapaus, conversam uns com os outros naquele tom de voz arrastado e lento, peculiar das populações ao sul do Mondego. Em barracas armadas de improviso vendem-se os lenços vistosos, que cativam o gosto ingénuo das raparigas destes sítios. Elas, com os seus pequenos chapéus desabados, postos sobre os lenços vermelhos flutuantes ao vento, namoram as riquezas expendidas nas barracas, e discutem acaloradamente o preço com os vendedores. Por toda a parte se ouve falar espanhol. Desabou nas Caldas da Rainha um enxame de vizinhos nossos - Badajoz, Madrid e Sevilha sobretudo trasbordaram para estes sítios.
                Descendo-se por uma rua mal calçada, vai-se ter ao excelente estabelecimento de banhos, edifício elegante e simples, construído pelo hábil arquiteto Manuel da Maia, segundo diz o Sr. Pinho Leal no seu noticiosíssimo Portugal Antigo e Moderno. Uns tomam as águas, outros tomam os banhos ou na vasta piscina, onde borbulha a água azulada da nascente sulfúrea, ou nas tinas de mármore dos quartos particulares. Observa-se em toda a parte uma ordem e um asseio notáveis, graças à excelente direção do atual administrador, o Sr. Resende, cavalheiro do mais fino trato, inteligente, ativíssimo, a quem se devem em grande parte, segundo todos confessam, os melhoramentos que fazem com que os estrangeiros possam comparar, sem desdouro, o estabelecimento das Caldas da Rainha com os estabelecimentos de banhos termais doutros países mais opulentos que o nosso.
                Almoça-se, e depois é de rigor um passeio à alameda da Copa, que fica defronte do hospital. O seu aspeto exterior é delicioso. O arco alto, que tem o seu tanto ou quanto de monumental, que lhe serve de entrada, enche-se completamente com a folhagem dos arvoredos, como se enche de azul celeste, no dizer poético de Victor Hugo, a curva dourada pelo poente do arco da Estrela em Paris, depois, ao entrar-se, desfaz-se a ilusão ótica, e as árvores alinham-se com a sua folhagem miúda, os seus troncos lisos, e a sua copa não muito frondosa. Passa então a ser um passeio bonito mas trivial. A entrada fizera-nos sonhar uma dessas alamedas senhoriais das quintas aristocráticas, onde se erguem sobre o veludo orvalhado da relva as gigantes e austeras carvalheiras.
                É uso também atravessar-se o clube, ao sair-se da Copa. Lêem-se os jornais, conversa-se e uma vez ou outra canta o piano debaixo dos dedos de algum virtuose, ou a voz vibrante e melodiosa de uma ou outra menina espanhola entoa, com suave requebro, as voluptuosas malagueñas do seu país.
                Das três para as quatro horas abandona-se o clube e cada qual se retira para jantar. À tarde o ponto de reunião é diverso por simples capricho da moda, a qual se mostra, como sabem, indiferente sempre às formosas paisagens e aos pontos de vista encantadores. Nas ruas da mata regradas e alinhadas como os jardins públicos das cidades, passeia-se escolhendo-se o sítio que mais lembre o Passeio Público de Lisboa, abandonando-se lá em cima no alto do Pinheiro os horizontes, senão extremamente formosos, pelo menos desafogados e amplos.                (…) Um dia destes, por um calor de abrasar, juntávamo-nos uns poucos de amigos e íamos respirar a S. Martinho a brisa do oceano. Eram do rancho Eugénio Masoni, o nosso admirável pianista, Narciso de Freitas Guimarães, amigo excelente, e companheiro magnífico, um distinto pintor espanhol que aqui temos, D. Manuel Quadra, que trouxe para as Caldas uma grande provisão de alegria e de reumatismo, que tem muito mais talento do que cabelo, e cujos retratos estão sendo entre nós muito apreciados, um cavalheiro desta vila, extremamente obsequioso e extremamente amável, o Sr. João Pulquério [Coelho] e outros mais.
                Seguimos a risonha estrada, que vai, depois de Tornada, passando por Vale de Maceira, antiga estação da antiga mala-posta, na direção de Alcobaça, por baixo da fronde dos arvoredos, e, chegando a uma encruzilhada, voltamos as costas ao caminho da antiga povoação fradesca, e, atravessando Alfeizerão, pequena e melancólica vila, que estende ao longo da estrada as suas casas quase tão silenciosas como as ruínas quase arrasadas de uma velha fortificação que se diz mourisca, chegamos enfim à pequena e graciosa vila de S. Martinho, que se desenrola em anfiteatro à beira da sua plácida enseada, a qual dá apenas fundo a pequenos navios.
                São tristes as povoações da costa quando é desabrigado o porto, e que das humildes choças dos pescadores se ouve o longo bramido do oceano fazendo pairar sobre as cabanas as eternas ameaças do naufrágio. Quando porém se debruçam, brancas e ridentes, sobre uma enseada tranquila como esta, onde através da água transparente se veem as conchinhas do fundo, tomam da própria vizinhança do mar não sei que ares de vida e de alegria, e os barcos que entram ou saem, expandindo as asas brancas ao sopro da viração, animam a graciosa vila, que enche ainda por mais de uma vez ao dia com o seu rumor de azáfama, com o silvo agudo dos seus avisos, harmonia rude mas característica da industria moderna, o caminho de ferro americano da fábrica da Marinha Grande, que tem aqui a sua estação terminal.
                Subimos por veredas escarpadas ao castelo arruinado [o forte] que domina a barra da enseada, e divisámos então, lá em baixo, a imensa extensão do oceano, que rugia brandamente como um leão enamorado, e cujas ondas se enrolavam preguiçosamente, coroavam-se de espuma, e vinham desfazer-se, queixosas e não irritadas, nos rochedos negros que semeiam a costa, e num dos quais ainda se viam restos da madeira dum barco que aqui naufragou há tempos, morrendo quase toda a tripulação.
                Quando o rapazito, que nos servia de guia, nos contava esse drama, o oceano parecia protestar contra a calúnia que lhe assacavam, com o terno marulhar das suas ondas lânguidas e inofensivas, que não pensavam senão em acariciar os rochedos rugosos que lhes aceitam impassíveis os seus beijos de espuma.
                É que eles sabem que, quando o temporal doideja essas vagas, hoje como que suplicantes, vem lá de longe a correr bravas, ululantes, desesperadas, esbofeteiam-nos com a chapada das suas águas, ressaltam a alturas enormes, e arrojam-lhes ao seio não as algas verdes e as conchas mimosas, mas os cadáveres despedaçados, os mastros partidos, os bastidores e os acessórios das tragédias dos naufrágios.
                Esse dia findou para nós tão agradavelmente como começara. Um obsequioso cavalheiro das Caldas, o Sr. José de Sales, convidara-nos para jantar na sua Quinta da Mota, onde passámos uma tarde deliciosa, em plena liberdade campestre, tomando café estendidos sobre uns sofás de maçarocas de milho, como quaisquer Tireis e Silvanos das éclogas do Quita [Reis Quita, poeta setecentista].
                Já voltei depois disso a S. Martinho, mas dessa vez acompanhando senhoras. Estava ainda tão plácido o mar que passeámos na bailia, e espreitámos a barra, que ainda assim não foi para mais a intrepidez das nossas companheiras. A água da enseada estava serena como um lago, o dia nublado e fresco poupava-as ao calor intensíssimo da minha primeira visita. Subimos à rústica ermida de Santo António, que domina o oceano, e de onde se goza um panorama tão extenso como o do castelo. À volta era esplêndido o ocaso do sol; quando caiu a noite, acendeu-se à nossa esquerda, no alto dum píncaro elevado, uma luz votiva numa capelinha de S. Domingos, que serve de guia aos navegantes no mar alto que demandam a enseada de S. Martinho.
                São sem dúvida mais apreciáveis os faróis de rotação e outros que hoje iluminam as costas, mas têm por acaso a comovente poesia desta luz votiva da capela, que arde diante de um altar, que de súbito anuncia aos navegantes, com a sua doce chama, a terra querida da pátria, que tem, na sua meiga irradiação de estrela, não sei que vagos reflexos do alegre fogo do lar, e que espalha nos ares um aroma de afetos, de recordações de infância, que deve por força rasar de água os olhos do marinheiro, quando vê ao longe cortar a cerração noturna, estrela da pátria, da família e da fé, o ténue farol da capelinha?
                Oh! Por isto não suponham que vou pedir que o ministério das obras públicas substitua os faróis por ermidas de S. Domingos, mas deixem-me consagrar uma lágrima a estes últimos sopros de poesia, e depois...aquecer caldeiras, e siga avante na estrada do infinito o paquete da civilização.
                Um outro dia eu e os meus metemo-nos num trem, e fomos visitar Óbidos. Ali se encontraram connosco Narciso de Freitas, Masoni, um amigo deste, o Sr. Santos, amável companheiro também da nossa primeira digressão a S. Martinho, D. Manuel Quadra, e um distinto medico das Caldas, José Filipe, meu antigo condiscípulo, cuja imperturbável jovialidade não se altera, que me conste, em caso algum conhecido ou por conhecer.                Nunca vi na minha vida uma vila mais triste do que Óbidos. As velhas muralhas, que datam, segundo creio, da Idade Média, mas onde a esfera armilar e os rendilhados manuelinos de algumas janelas e portas atestam que andou por ali a mão reedificadora de D. Manuel, apertam-na no seu estreito recinto, e como que a resguardam das invasões do tumulto e da civilização moderna. Do alto do castelo divisa-se um panorama extensíssimo, formoso, mas ainda melancólico. Dum lado a Várzea da Rainha, planície imensa, onde os verdes cambiantes do solo lhe atestam a feracidade, por aqui, e por além, algumas bonitas casas de quintas, ao longe as Caldas, para outro lado a lagoa, ao fundo o mar, aos nossos pés a vila. Começavam-se a esfumar os campos na sombra do crepúsculo, não se erguia um murmúrio das planícies em repouso, não se ouvia uma voz nas ruas estreitas e desertas de Óbidos, que seguiam rigorosamente pelo interior as linhas flexuosas das muralhas. Da altura onde estávamos abrangia-se a vila toda; próximo de nós numa casa com pátio viam-se duas mulheres sentadas a coser no alto de uma escada de pedra. Era o único sintoma de vida da povoação, que parecia meditar nos esplendores do seu passado, quando a visitavam os reis e as rainhas, e quando os besteiros do conto retesavam o arco nas ameias das fortíssimas muralhas, espreitando com olhar vigilante e altivo os campos em redor. Fazia tristeza Óbidos vista assim ao pôr-do-sol. Ainda o horizonte ocidental se afogueava em púrpura e luz, e já nas ruas desertas da vila se acumulavam as sombras e a melancolia da noite.

Júlio César Machado, e uma viagem a cavalo de Peniche a Vale de Maceira



Introdução

     Júlio César Machado (1835-1890), escritor prolífico, deixou-nos romances, biografias e contos, crónicas e peças de teatro. Nasceu em Lisboa, mas passou a infância em A-dos-Ruivos (Durruivos), que considerava a sua verdadeira terra, e que evocará ao longo das suas obras com uma doce e nostálgica afeição. Viajou muito por esta região, que descreveu num olhar matizado pelo bom-humor. O seu primeiro romance foi publicado em folhetins com o apoio de Camilo Castelo Branco - um amigo para toda a vida - descreveu como poucos as festas da Nazaré (em Contos ao Luar, Livraria de António Maria Pereira, Lisboa) e cultivou a amizade de figuras como o beneficiado Malhão, de Óbidos, e Rafael Bordalo Pinheiro, que ilustrará a sua obra Os Theatros de Lisboa (Lisboa, 1874). A quem tomar conhecimento com a sua forma de escrever e com a ironia e bonomia que caracteriza as suas obras, decerto chocará o desenlace trágico da sua vida (como chocou aos seus pares e contemporâneos), mas importa reter o criador, a obra, e nesse prisma, referenciava uma dissertação de mestrado de Licínia Rodrigues Ferreira, Júlio César Machado Cronista de Teatro: Os Folhetins d’A Revolução de Setembro e do Diário de Notícias (versão eletrónica no endereço http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/5352/1/ulfl106439_tm.pdf, consultado pela última vez a 12/03/2016), que nos apresenta também a biografia do autor, sem o colorido sensacionalista de algumas páginas.

     De Júlio César Machado transcrevo aqui parte de um capítulo intitulado Peniche, o penúltimo capítulo da sua obra Scenas da minha terra, (editor José Maria Correia Seabra, Lisboa, 1862). Esta e outras obras de Júlio César Machado podem ser lidas a partir do portal Archive.org.


«Peniche»
     (...)     Entrei de novo em Peniche à hora de jantar. Que “espetáculo” me esperava ! Não encontrei pelas ruas senão gente carregada de peixe; este levava um safio, aquele um besugo, o outro uma corvina, uma dourada, um ruivo, um rodovalho, que sei eu!?           Haviam chegado os barcos da pesca, e vinham cheiinhos a não poderem mais; de todos os lados não se ouvia senão o grito de:
     — Robalo! robalo!
     — Quem quer cachucho?
     — O rico peixe galo! o rico peixe galo!
     — Chicharrinho ! Chicharrinho fresco!
     — Rodovalho às postas! Rodovalho às postas!
     E as mulheres dos lugares de venda a pesarem o peixe, e toda a gente a comprar, e a levar para casa!
     Fomos ainda dar um passeio pela vila. A praça de Peniche é realmente uma coisa para ver; consta de seis grandes baluartes, defendendo esta fortificação o istmo e as enseadas do norte e sul; o contorno da fortificação tem de extensão quase seiscentas braças: a praça foi mandada levantar por ordem de D. João IV debaixo da direção do Conde d'Atouguia, D. Luís d'Ataíde, que foi duas vezes vice-rei da Índia, e concluída no tempo de D. João IV, sob a inspeção de D. Jerónimo D’Ataíde, também conde da Atouguia.
     Em todas as ruas, rara é a casa baixa em que não se vejam as rendeiras a trabalhar. Há alguma coisa que sensibiliza naquele espetáculo simples, sereno, e humilde. Elas estão sentadas, juntinhas umas às outras, entretidas com os seus bilros, e o seu torçal, sem afastarem os olhos de cima da obra.     Uma sociedade empresária adianta-lhes os aviamentos, e dá-lhes uma bagatela pelo seu trabalho de cada dia. As pobres rendeiras assim vivem, a trabalhar desde o romper do dia, felizes apenas quando algum viajante tem a curiosidade de querer um cabeção, ou umas rendas, para trazer em lembrança de Peniche, e lhes paga mais generosamente.     Apesar do seu vestido humilde, e do ar de pobreza que de si respiram, há uma curiosa elegância na finura e distinção das suas mãos; como as rendas não podem lavar-se, são obrigadas elas a conservarem sempre as mãos no mais escrupuloso asseio.
     Oh, castas inocentes! Oh, cândidas pobrezinhas! Como elas atravessam amarguradamente a vida, preparando enfeites para as felizes do mundo! Símplices donzelas, que purificais pela honestidade o ar de miséria que vos pesa! Os anjos por estarem de luto não deixam de ser anjos, e as suas lágrimas, em vez de murcharem as flores da alma, avivam-lhes o brilho, desenvolvem-lhes os perfumes, abrem os corações à doçura, e às virtudes da humildade. Através das vossas rendas, vê-se o céu! Oh! inocentes, trabalhai, trabalhai, pobrezinhas! Nos casamentos, nos bailes, nas festas, esses cabeções, esses punhos, esses pequeninos lenços para conservar na mão, assistirão por vós às alegrias da vaidade; ainda bem que lá não estais, coitadas; para não empalidecerdes de pena quando ouvísseis chamar rendas de França, às rendas que vós fizestes!
      Oh! ficai aí, e trabalhai, pobrezinhas !
     De madrugada, quando os galos e os barqueiros principiavam a dar sinal de si, montávamos nós a cavalo, e atravessávamos tranquilamente a praia, e o nevoeiro horrível que a cobria. O arrieiro praguejava como um danado, os cavalos tinham um sono horrível, e nós, um frio de sorvete. Verdade, verdade, havia uma cor fantástica naquela partida: o mar gemia escondido atrás da névoa, a areia estava toda húmida da geada, o céu não queria deixar ver-se, e nós não tínhamos sequer a força de falar. Há ocasiões em que parece à gente que as almas do outro mundo não são quimeras: o nevoeiro parecia tomar as formas conhecidas de seres outrora queridos, que não vivem já senão na nossa memória. Melancólicos, cismáticos, silenciosos, fomos cavalgando por aquela enorme praia solitária.
     — Que calada de coelhos! - dizia o arrieiro – Vai chegar-me a tristeza não tarda nada ; se não bebo uma pinga de vinho, sou capaz de ter por aí algum desmaio I Eu cá me sinto! Quando me dão estas debilidades, ou beber, ou dormir: minha mulher, que Deus tenha...quando a levar para si, porque pelas boas obras dela é natural que ainda lá não esteja, disse-me sempre, que o sono é como os chupistas, não se chega senão para quem vive bem; mas comigo a modo que falha a regra, porque quanto pior vivo mais sono tenho!
     Ao chegarmos a Vale de Maceira, entramos numa estalagem para almoçar.
     — Ovos fritos e vinho, patroa!
     A estalajadeira principiou a frigir os ovos, e a estender uma toalha sobre o balcão.         Depois, mediu o vinho, tirou os ovos do lume, puxou-nos um banco, e disse-nos depois com serenidade:
     — O que os senhores não têm, é pão!
     — Não temos pão? Mas, mande-o buscar!
     — Não há pão na terra, senhores, ao meio dia é que se há-de cozer. Só se o senhor cura tiver ainda algum pedaço, mas a minha confiança não chega a ir lá pedir-lho.
     O arrieiro vazou o vinho na frigideira, mexeu com a colher, e encheu os copos.
     — Bebam os senhores, que isto é muito peitoral! À saúde desta povoação, que, pelos modos, bebe mais do que come! Viva Vale de Maceira!     — Viva Vale de Maceira! - Exclamámos nós, bebendo, e em seguida montando a cavalo.