domingo, 13 de março de 2016

O «Fora da Terra» de Pinheiro Chagas


(gravura extraída da revista Occidente, n.º57, Janeiro de 1880)

A obra

     Fóra da Terra, o livro de passeios de lisboetas fora de Lisboa, foi publicado pela Livraria Internacional em 1875, e a folha de rosto atribui a sua autoria a Júlio César Machado e a Pinheiro Chagas. O corpo da obra deve-se a Pinheiro Chagas, cabendo a Júlio César Machado o extenso prefácio de 47 páginas que ele, inclusive, sela com a sua "assinatura". O prefácio deste e as viagem narradas por Pinheiro Chagas seguem o mote das Viagens na Minha Terra de Garret, mas numa inversão irónica desse postulado. Escreve o escritor de A-dos-Ruivos: O ir simplesmente fora da terra, isto é, o deitar só até Pedroiços, Oeiras, Paço d'Arcos, Benfica, Lumiar, a jucunda Ameixoeira, Cascais, Sintra, Figueira, Nazaré, substitui com elegância as longas ausências da pátria, e tem as vantagens de sair mais barato e de facultar com maior frequência o aparecer citado nos jornais. Se o homem vai para França, não se fala mais nele, se vai para a Ericeira, temos notícias suas todos os dias nas folhas da capital em interessantes correspondências que nos descrevem como ele por lá come, como anda vestido, e em que danças anda metido no clube, à noite. Distrações a que não se liga importância na cidade mudam-se logo em divertimentos quando vão surpreender-nos a algumas léguas de Lisboa. O teatro, por exemplo! (...) A outra opinião mais seguida e mais moderna é que o campo melhor de todos é o povoado por gente da cidade, isto é o Fora da Terra de Pinheiro Chagas, os sítios elegantes que ele tão primorosamente conta e historia nesta obra, e que são no Verão e no Outono o refúgio da gente da moda, ao ponto de dizerem sempre os noticiários por esta época: Lisboa não está em Lisboa! De modo que, o que nós dizemos e chamamos Fora da Terra, vem a ser o que há de mais Lisboa, a Lisboa pura, a Lisboa que tem meios, que vive e que é propriamente Lisboa! As inversões anfibológicas, as silepses incoerentes, as designações absurdas fazem sempre carreira entre nós...

     Deste livro de leitura agradável e divertida, transcrevemos alguns trechos; outros de interesse igualmente relevante poderão ser procurados pelo leitor na hiperligação que abre esta introdução, lembrando nós em golpe de asa os que Pinheiro Chagas escreve sobre a Foz do Arelho, a Pederneira e a Nazaré, ou sobre a vila de Alcobaça, onde perora sobre a ruína do mosteiro abandonado.

Uma estilha da obra
                [Caldas da Rainha] Ah! Se estas localidades servissem unicamente para o fim a que se destinam, que aborrecido aspeto teriam! Não haveria nas Caldas senão coxos arrastando-se penosamente, e uma turba de gente pálida tomando melancolicamente as águas sulfúreas. Assim pelo contrário o aspeto é risonho e alegre.
                Desperta um banhista pela manhã, atravessa a praça onde se acumulam ao Domingo inúmeros camponeses que trazem a ótima fruta dos coutos de Alcobaça, e que, encostados aos seus longos varapaus, conversam uns com os outros naquele tom de voz arrastado e lento, peculiar das populações ao sul do Mondego. Em barracas armadas de improviso vendem-se os lenços vistosos, que cativam o gosto ingénuo das raparigas destes sítios. Elas, com os seus pequenos chapéus desabados, postos sobre os lenços vermelhos flutuantes ao vento, namoram as riquezas expendidas nas barracas, e discutem acaloradamente o preço com os vendedores. Por toda a parte se ouve falar espanhol. Desabou nas Caldas da Rainha um enxame de vizinhos nossos - Badajoz, Madrid e Sevilha sobretudo trasbordaram para estes sítios.
                Descendo-se por uma rua mal calçada, vai-se ter ao excelente estabelecimento de banhos, edifício elegante e simples, construído pelo hábil arquiteto Manuel da Maia, segundo diz o Sr. Pinho Leal no seu noticiosíssimo Portugal Antigo e Moderno. Uns tomam as águas, outros tomam os banhos ou na vasta piscina, onde borbulha a água azulada da nascente sulfúrea, ou nas tinas de mármore dos quartos particulares. Observa-se em toda a parte uma ordem e um asseio notáveis, graças à excelente direção do atual administrador, o Sr. Resende, cavalheiro do mais fino trato, inteligente, ativíssimo, a quem se devem em grande parte, segundo todos confessam, os melhoramentos que fazem com que os estrangeiros possam comparar, sem desdouro, o estabelecimento das Caldas da Rainha com os estabelecimentos de banhos termais doutros países mais opulentos que o nosso.
                Almoça-se, e depois é de rigor um passeio à alameda da Copa, que fica defronte do hospital. O seu aspeto exterior é delicioso. O arco alto, que tem o seu tanto ou quanto de monumental, que lhe serve de entrada, enche-se completamente com a folhagem dos arvoredos, como se enche de azul celeste, no dizer poético de Victor Hugo, a curva dourada pelo poente do arco da Estrela em Paris, depois, ao entrar-se, desfaz-se a ilusão ótica, e as árvores alinham-se com a sua folhagem miúda, os seus troncos lisos, e a sua copa não muito frondosa. Passa então a ser um passeio bonito mas trivial. A entrada fizera-nos sonhar uma dessas alamedas senhoriais das quintas aristocráticas, onde se erguem sobre o veludo orvalhado da relva as gigantes e austeras carvalheiras.
                É uso também atravessar-se o clube, ao sair-se da Copa. Lêem-se os jornais, conversa-se e uma vez ou outra canta o piano debaixo dos dedos de algum virtuose, ou a voz vibrante e melodiosa de uma ou outra menina espanhola entoa, com suave requebro, as voluptuosas malagueñas do seu país.
                Das três para as quatro horas abandona-se o clube e cada qual se retira para jantar. À tarde o ponto de reunião é diverso por simples capricho da moda, a qual se mostra, como sabem, indiferente sempre às formosas paisagens e aos pontos de vista encantadores. Nas ruas da mata regradas e alinhadas como os jardins públicos das cidades, passeia-se escolhendo-se o sítio que mais lembre o Passeio Público de Lisboa, abandonando-se lá em cima no alto do Pinheiro os horizontes, senão extremamente formosos, pelo menos desafogados e amplos.                (…) Um dia destes, por um calor de abrasar, juntávamo-nos uns poucos de amigos e íamos respirar a S. Martinho a brisa do oceano. Eram do rancho Eugénio Masoni, o nosso admirável pianista, Narciso de Freitas Guimarães, amigo excelente, e companheiro magnífico, um distinto pintor espanhol que aqui temos, D. Manuel Quadra, que trouxe para as Caldas uma grande provisão de alegria e de reumatismo, que tem muito mais talento do que cabelo, e cujos retratos estão sendo entre nós muito apreciados, um cavalheiro desta vila, extremamente obsequioso e extremamente amável, o Sr. João Pulquério [Coelho] e outros mais.
                Seguimos a risonha estrada, que vai, depois de Tornada, passando por Vale de Maceira, antiga estação da antiga mala-posta, na direção de Alcobaça, por baixo da fronde dos arvoredos, e, chegando a uma encruzilhada, voltamos as costas ao caminho da antiga povoação fradesca, e, atravessando Alfeizerão, pequena e melancólica vila, que estende ao longo da estrada as suas casas quase tão silenciosas como as ruínas quase arrasadas de uma velha fortificação que se diz mourisca, chegamos enfim à pequena e graciosa vila de S. Martinho, que se desenrola em anfiteatro à beira da sua plácida enseada, a qual dá apenas fundo a pequenos navios.
                São tristes as povoações da costa quando é desabrigado o porto, e que das humildes choças dos pescadores se ouve o longo bramido do oceano fazendo pairar sobre as cabanas as eternas ameaças do naufrágio. Quando porém se debruçam, brancas e ridentes, sobre uma enseada tranquila como esta, onde através da água transparente se veem as conchinhas do fundo, tomam da própria vizinhança do mar não sei que ares de vida e de alegria, e os barcos que entram ou saem, expandindo as asas brancas ao sopro da viração, animam a graciosa vila, que enche ainda por mais de uma vez ao dia com o seu rumor de azáfama, com o silvo agudo dos seus avisos, harmonia rude mas característica da industria moderna, o caminho de ferro americano da fábrica da Marinha Grande, que tem aqui a sua estação terminal.
                Subimos por veredas escarpadas ao castelo arruinado [o forte] que domina a barra da enseada, e divisámos então, lá em baixo, a imensa extensão do oceano, que rugia brandamente como um leão enamorado, e cujas ondas se enrolavam preguiçosamente, coroavam-se de espuma, e vinham desfazer-se, queixosas e não irritadas, nos rochedos negros que semeiam a costa, e num dos quais ainda se viam restos da madeira dum barco que aqui naufragou há tempos, morrendo quase toda a tripulação.
                Quando o rapazito, que nos servia de guia, nos contava esse drama, o oceano parecia protestar contra a calúnia que lhe assacavam, com o terno marulhar das suas ondas lânguidas e inofensivas, que não pensavam senão em acariciar os rochedos rugosos que lhes aceitam impassíveis os seus beijos de espuma.
                É que eles sabem que, quando o temporal doideja essas vagas, hoje como que suplicantes, vem lá de longe a correr bravas, ululantes, desesperadas, esbofeteiam-nos com a chapada das suas águas, ressaltam a alturas enormes, e arrojam-lhes ao seio não as algas verdes e as conchas mimosas, mas os cadáveres despedaçados, os mastros partidos, os bastidores e os acessórios das tragédias dos naufrágios.
                Esse dia findou para nós tão agradavelmente como começara. Um obsequioso cavalheiro das Caldas, o Sr. José de Sales, convidara-nos para jantar na sua Quinta da Mota, onde passámos uma tarde deliciosa, em plena liberdade campestre, tomando café estendidos sobre uns sofás de maçarocas de milho, como quaisquer Tireis e Silvanos das éclogas do Quita [Reis Quita, poeta setecentista].
                Já voltei depois disso a S. Martinho, mas dessa vez acompanhando senhoras. Estava ainda tão plácido o mar que passeámos na bailia, e espreitámos a barra, que ainda assim não foi para mais a intrepidez das nossas companheiras. A água da enseada estava serena como um lago, o dia nublado e fresco poupava-as ao calor intensíssimo da minha primeira visita. Subimos à rústica ermida de Santo António, que domina o oceano, e de onde se goza um panorama tão extenso como o do castelo. À volta era esplêndido o ocaso do sol; quando caiu a noite, acendeu-se à nossa esquerda, no alto dum píncaro elevado, uma luz votiva numa capelinha de S. Domingos, que serve de guia aos navegantes no mar alto que demandam a enseada de S. Martinho.
                São sem dúvida mais apreciáveis os faróis de rotação e outros que hoje iluminam as costas, mas têm por acaso a comovente poesia desta luz votiva da capela, que arde diante de um altar, que de súbito anuncia aos navegantes, com a sua doce chama, a terra querida da pátria, que tem, na sua meiga irradiação de estrela, não sei que vagos reflexos do alegre fogo do lar, e que espalha nos ares um aroma de afetos, de recordações de infância, que deve por força rasar de água os olhos do marinheiro, quando vê ao longe cortar a cerração noturna, estrela da pátria, da família e da fé, o ténue farol da capelinha?
                Oh! Por isto não suponham que vou pedir que o ministério das obras públicas substitua os faróis por ermidas de S. Domingos, mas deixem-me consagrar uma lágrima a estes últimos sopros de poesia, e depois...aquecer caldeiras, e siga avante na estrada do infinito o paquete da civilização.
                Um outro dia eu e os meus metemo-nos num trem, e fomos visitar Óbidos. Ali se encontraram connosco Narciso de Freitas, Masoni, um amigo deste, o Sr. Santos, amável companheiro também da nossa primeira digressão a S. Martinho, D. Manuel Quadra, e um distinto medico das Caldas, José Filipe, meu antigo condiscípulo, cuja imperturbável jovialidade não se altera, que me conste, em caso algum conhecido ou por conhecer.                Nunca vi na minha vida uma vila mais triste do que Óbidos. As velhas muralhas, que datam, segundo creio, da Idade Média, mas onde a esfera armilar e os rendilhados manuelinos de algumas janelas e portas atestam que andou por ali a mão reedificadora de D. Manuel, apertam-na no seu estreito recinto, e como que a resguardam das invasões do tumulto e da civilização moderna. Do alto do castelo divisa-se um panorama extensíssimo, formoso, mas ainda melancólico. Dum lado a Várzea da Rainha, planície imensa, onde os verdes cambiantes do solo lhe atestam a feracidade, por aqui, e por além, algumas bonitas casas de quintas, ao longe as Caldas, para outro lado a lagoa, ao fundo o mar, aos nossos pés a vila. Começavam-se a esfumar os campos na sombra do crepúsculo, não se erguia um murmúrio das planícies em repouso, não se ouvia uma voz nas ruas estreitas e desertas de Óbidos, que seguiam rigorosamente pelo interior as linhas flexuosas das muralhas. Da altura onde estávamos abrangia-se a vila toda; próximo de nós numa casa com pátio viam-se duas mulheres sentadas a coser no alto de uma escada de pedra. Era o único sintoma de vida da povoação, que parecia meditar nos esplendores do seu passado, quando a visitavam os reis e as rainhas, e quando os besteiros do conto retesavam o arco nas ameias das fortíssimas muralhas, espreitando com olhar vigilante e altivo os campos em redor. Fazia tristeza Óbidos vista assim ao pôr-do-sol. Ainda o horizonte ocidental se afogueava em púrpura e luz, e já nas ruas desertas da vila se acumulavam as sombras e a melancolia da noite.

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