domingo, 13 de março de 2016

Júlio César Machado, e uma viagem a cavalo de Peniche a Vale de Maceira



Introdução

     Júlio César Machado (1835-1890), escritor prolífico, deixou-nos romances, biografias e contos, crónicas e peças de teatro. Nasceu em Lisboa, mas passou a infância em A-dos-Ruivos (Durruivos), que considerava a sua verdadeira terra, e que evocará ao longo das suas obras com uma doce e nostálgica afeição. Viajou muito por esta região, que descreveu num olhar matizado pelo bom-humor. O seu primeiro romance foi publicado em folhetins com o apoio de Camilo Castelo Branco - um amigo para toda a vida - descreveu como poucos as festas da Nazaré (em Contos ao Luar, Livraria de António Maria Pereira, Lisboa) e cultivou a amizade de figuras como o beneficiado Malhão, de Óbidos, e Rafael Bordalo Pinheiro, que ilustrará a sua obra Os Theatros de Lisboa (Lisboa, 1874). A quem tomar conhecimento com a sua forma de escrever e com a ironia e bonomia que caracteriza as suas obras, decerto chocará o desenlace trágico da sua vida (como chocou aos seus pares e contemporâneos), mas importa reter o criador, a obra, e nesse prisma, referenciava uma dissertação de mestrado de Licínia Rodrigues Ferreira, Júlio César Machado Cronista de Teatro: Os Folhetins d’A Revolução de Setembro e do Diário de Notícias (versão eletrónica no endereço http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/5352/1/ulfl106439_tm.pdf, consultado pela última vez a 12/03/2016), que nos apresenta também a biografia do autor, sem o colorido sensacionalista de algumas páginas.

     De Júlio César Machado transcrevo aqui parte de um capítulo intitulado Peniche, o penúltimo capítulo da sua obra Scenas da minha terra, (editor José Maria Correia Seabra, Lisboa, 1862). Esta e outras obras de Júlio César Machado podem ser lidas a partir do portal Archive.org.


«Peniche»
     (...)     Entrei de novo em Peniche à hora de jantar. Que “espetáculo” me esperava ! Não encontrei pelas ruas senão gente carregada de peixe; este levava um safio, aquele um besugo, o outro uma corvina, uma dourada, um ruivo, um rodovalho, que sei eu!?           Haviam chegado os barcos da pesca, e vinham cheiinhos a não poderem mais; de todos os lados não se ouvia senão o grito de:
     — Robalo! robalo!
     — Quem quer cachucho?
     — O rico peixe galo! o rico peixe galo!
     — Chicharrinho ! Chicharrinho fresco!
     — Rodovalho às postas! Rodovalho às postas!
     E as mulheres dos lugares de venda a pesarem o peixe, e toda a gente a comprar, e a levar para casa!
     Fomos ainda dar um passeio pela vila. A praça de Peniche é realmente uma coisa para ver; consta de seis grandes baluartes, defendendo esta fortificação o istmo e as enseadas do norte e sul; o contorno da fortificação tem de extensão quase seiscentas braças: a praça foi mandada levantar por ordem de D. João IV debaixo da direção do Conde d'Atouguia, D. Luís d'Ataíde, que foi duas vezes vice-rei da Índia, e concluída no tempo de D. João IV, sob a inspeção de D. Jerónimo D’Ataíde, também conde da Atouguia.
     Em todas as ruas, rara é a casa baixa em que não se vejam as rendeiras a trabalhar. Há alguma coisa que sensibiliza naquele espetáculo simples, sereno, e humilde. Elas estão sentadas, juntinhas umas às outras, entretidas com os seus bilros, e o seu torçal, sem afastarem os olhos de cima da obra.     Uma sociedade empresária adianta-lhes os aviamentos, e dá-lhes uma bagatela pelo seu trabalho de cada dia. As pobres rendeiras assim vivem, a trabalhar desde o romper do dia, felizes apenas quando algum viajante tem a curiosidade de querer um cabeção, ou umas rendas, para trazer em lembrança de Peniche, e lhes paga mais generosamente.     Apesar do seu vestido humilde, e do ar de pobreza que de si respiram, há uma curiosa elegância na finura e distinção das suas mãos; como as rendas não podem lavar-se, são obrigadas elas a conservarem sempre as mãos no mais escrupuloso asseio.
     Oh, castas inocentes! Oh, cândidas pobrezinhas! Como elas atravessam amarguradamente a vida, preparando enfeites para as felizes do mundo! Símplices donzelas, que purificais pela honestidade o ar de miséria que vos pesa! Os anjos por estarem de luto não deixam de ser anjos, e as suas lágrimas, em vez de murcharem as flores da alma, avivam-lhes o brilho, desenvolvem-lhes os perfumes, abrem os corações à doçura, e às virtudes da humildade. Através das vossas rendas, vê-se o céu! Oh! inocentes, trabalhai, trabalhai, pobrezinhas! Nos casamentos, nos bailes, nas festas, esses cabeções, esses punhos, esses pequeninos lenços para conservar na mão, assistirão por vós às alegrias da vaidade; ainda bem que lá não estais, coitadas; para não empalidecerdes de pena quando ouvísseis chamar rendas de França, às rendas que vós fizestes!
      Oh! ficai aí, e trabalhai, pobrezinhas !
     De madrugada, quando os galos e os barqueiros principiavam a dar sinal de si, montávamos nós a cavalo, e atravessávamos tranquilamente a praia, e o nevoeiro horrível que a cobria. O arrieiro praguejava como um danado, os cavalos tinham um sono horrível, e nós, um frio de sorvete. Verdade, verdade, havia uma cor fantástica naquela partida: o mar gemia escondido atrás da névoa, a areia estava toda húmida da geada, o céu não queria deixar ver-se, e nós não tínhamos sequer a força de falar. Há ocasiões em que parece à gente que as almas do outro mundo não são quimeras: o nevoeiro parecia tomar as formas conhecidas de seres outrora queridos, que não vivem já senão na nossa memória. Melancólicos, cismáticos, silenciosos, fomos cavalgando por aquela enorme praia solitária.
     — Que calada de coelhos! - dizia o arrieiro – Vai chegar-me a tristeza não tarda nada ; se não bebo uma pinga de vinho, sou capaz de ter por aí algum desmaio I Eu cá me sinto! Quando me dão estas debilidades, ou beber, ou dormir: minha mulher, que Deus tenha...quando a levar para si, porque pelas boas obras dela é natural que ainda lá não esteja, disse-me sempre, que o sono é como os chupistas, não se chega senão para quem vive bem; mas comigo a modo que falha a regra, porque quanto pior vivo mais sono tenho!
     Ao chegarmos a Vale de Maceira, entramos numa estalagem para almoçar.
     — Ovos fritos e vinho, patroa!
     A estalajadeira principiou a frigir os ovos, e a estender uma toalha sobre o balcão.         Depois, mediu o vinho, tirou os ovos do lume, puxou-nos um banco, e disse-nos depois com serenidade:
     — O que os senhores não têm, é pão!
     — Não temos pão? Mas, mande-o buscar!
     — Não há pão na terra, senhores, ao meio dia é que se há-de cozer. Só se o senhor cura tiver ainda algum pedaço, mas a minha confiança não chega a ir lá pedir-lho.
     O arrieiro vazou o vinho na frigideira, mexeu com a colher, e encheu os copos.
     — Bebam os senhores, que isto é muito peitoral! À saúde desta povoação, que, pelos modos, bebe mais do que come! Viva Vale de Maceira!     — Viva Vale de Maceira! - Exclamámos nós, bebendo, e em seguida montando a cavalo.
 

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