domingo, 27 de março de 2016

I Grande Guerra - um vislumbre do conflito

Algumas notas 

     O Portugal do alvor do século XX, o Portugal da implantação da República e da entrada na Guerra, é um país retalhado por diversas clivagens políticas e sociais, e cuja massa populacional é maioritariamente analfabeta (segundo os resultados do Censo de 1911) e consagrada ao trabalho nos campos, e a emigração cresce de ano para ano.



     A guerra efetiva contra a Alemanha começa, não nos campos da Flandres, mas no continente africano, no rio Rovuma, fronteira norte de Moçambique, e no sul de Angola, iniciada com os ataques alemães de 24 de Agosto de 1914 ao posto moçambicano de Maziua, e de 19 de Outubro de 1914 a Naulila, na fronteira de Angola, e a 30 do mesmo mês, ao forte de Cuangar e aos postos de Sâmbio, Bunja e Dirico, também em Angola. São enviadas de Portugal forças expedicionárias para as duas costas africanas sob as ordens do tenente-coronel Alves Roçadas (para Angola, com 1477 soldados) e do tenente-coronel Massano de Amorim, que contava com 1525 homens, destacamentos mistos de Artilharia de Montanha, Infantaria, Cavalaria e Metralhadoras, destacamentos que foram avaliados como contendo ridículos efectivos (palavras do Tenente-coronel Eduardo Barbosa na Revista Militar, Ano LXXI, n.º 4, Abril de 1919), insuficientes para debelar a ofensiva das forças alemãs nessas zonas de África. Outros contingentes rumarão a África até ao final da guerra até perfazerem em 1918, 89.264 portugueses, somando-se a estes números os 16.278 das ditas praças indígenas (segundo Henrique Manuel GOMES DA CRUZ na sua tese de mestrado em História Contemporânea: Portugal na Grande Guerra: a construção do «mito» de La Lys na imprensa escrita entre 1918 e 1940, FCSH - Universidade Nova de Lisboa, Março de 2014). A mesma Revista Militar, nesse ano de 1919, historia e faz o balanço desse conflito africano de portugueses e ingleses contra os alemães, que se arrastaria até 1918 como a guerra na Europa e se saldaria em cerca de 5.600 mortos e um número dilatado de feridos e desaparecidos. Uma prova eloquente dessas baixas portugueses em África, são dois cadernos do Arquivo da Secretaria Geral do Ministério das Finanças, onde estão listados os nomes dos soldados portugueses mortos na Grande Guerra com o fito de se atribuir uma pensão de sangue aos herdeiros. Ao folhearmos essas páginas com os soldados mortos na Guerra, vemos que no local onde tombaram, a Campanha em África rivaliza com a Campanha em França.


[Leitura complementar: Naulila, de Augusto Casimiro, Seara Nova, Lisboa, 1922]

Militares portugueses a atravessar o rio Rovuma numa jangada
(Revista Militar, Ano LXXI, Números 6 e 7, Junho e Julho de 1919, página 343)

     Todos conhecemos dos livros de História os motivos imediatos da declaração de guerra da Alemanha a Portugal: Portugal requisita os navios alemães estacionados em portos portugueses (Decreto n.º 2.229 de 24 de Fevereiro de 1916), que terá como reacção a Declaração de Guerra da Alemanha a Portugal em 9 de Março de 1916. Mas a entrada de Portugal na Grande Guerra persegue não só objetivos externos, de política internacional, mas também objetivos internos - consolidação do novel regime e superação das profundas divisões políticas sob o pretexto do combate a um inimigo comum. Se a política intervencionista era partilhada pelo Partido Democrático, pelo Partido Socialista e pelos Partido Evolucionista de António José de Almeida, o anti-intervencionismo era defendido pelos monárquicos, unionistas, grande parte do anarco-sindicalismo, e uma facção crescente dentro do próprio Partido Democrático, de onde nascerá o golpe de Sidónio Pais.


     Teixeira de Pascoaes reagiu na Águia contra esse extremo partidarismo da vida política portuguesa: O português ou ama a República ou a Monarquia. Se é republicano é francófilo; se é monárquico é germanófilo, com algumas honrosas exceções. O português é profunda e lastimavelmente partidarista. Trocou os Lusíadas e a Bíblia pelo Século e pela Carta... Não há portugueses. Há políticos. Vale mais para nós o predomínio do nosso partido do que a honra e independência da Pátria. Se a vitória da Alemanha assegurasse as instituições republicanas não haveria um republicano que fosse francófilo. Se a vitória da França restaurasse a Monarquia, entre os monárquicos não haveria um germanófilo. Não há portugueses. Há políticos. A nossa terra é um cenário de acaso, onde se representam egoísmos, falcatruas, misérias... Portugal não existe; existem partidos... (citado por Augusto CASIMIRO (capitão) em Nas trincheiras da Flandres, edição da Renascença Portuguesa, Porto, 1918)


     Movidos pela dupla frente da oposição interna e do xadrez político internacional, os republicanos no poder forçaram a entrada do país na guerra. Escreve Nuno Severiano Teixeira: Fragilidade política do regime, no plano interno, e fragilidade internacional do país, no plano externo: ameaçado pela Alemanha nas colónias; ameaçado pela Espanha, na Península; e consciente da transigência de Inglaterra, a sua fiel aliada e garante da sua soberania, em relação à Alemanha e em relação à Espanha. Situação mais grave e crise mais profunda é difícil de imaginar: não estava só em causa a sobrevivência do regime; mais do que isso, estava em causa a soberania do Estado. A decisão da intervenção de Portugal na guerra europeia faz-se, pois, segundo uma estratégia intervencionista, isto é, uma estratégia diplomática que forçou, deliberadamente, a entrada em guerra. Uma estratégia que, aproveitando uma conjuntura internacional favorável, obrigou a Inglaterra, contra a sua própria vontade e quiçá contra o seu próprio interesse, a aceitar a entrada de Portugal na Grande Guerra (Teixeira, Nuno Severiano, PORTUGAL E A GRANDE GUERRA: ENTRE A MEMÓRIA DO PASSADO E OS DESAFIOS DO FUTURO, comunicação feita no colóquio Portugal e a I Guerra Mundial (1914-1918) realizado na Sala do Senado da Assembleia da República em Lisboa, a 7 de Outubro de 2014).


     O discurso "oficial" difundia a ideia de que a entrada na guerra no ano de 1916 se destinava a proteger as nossas colónias em África, onde lutávamos contra os alemães desde 1914. Mas mesmo na época essa explicação não era aceite sem reservas. Escreve nas suas memórias o alferes António Joaquim Henriques: Justo é dizer que Portugal foi para esta guerra sem preparação moral e que muitos não viam explicação suficiente para nela tomarmos parte, a começar pelos partidos políticos (...) Antes de marcharem houve até casos em Santarém e Figueira da Foz nos regimentos de infantaria que ali se encontravam aquartelados, que eram respectivamente os nº 34 e nº 28, que deram origem ao castigo de alguns oficiais e sargentos. E não se podia dizer que foi por cobardia que estes graduados tiveram tal atitude. Era apenas por entenderem que a nossa intervenção não tinha razão de ser em França, mas em África, nem para ela estávamos preparados (in  Revista Militar, edição 2561/2562).


    À declaração de guerra da Alemanha, segue-se a atabalhoada mobilização, e a preparação das tropas (sobretudo em Tancos) com vista ao envio do primeiro contingente para França. O discurso oficial falará do "milagre de Tancos" (na Ilustração Portuguesa e no Diário de Notícias), mas era notório que as tropas saíram de Portugal mal preparadas. É o que nos contam as Impressões do capitão Menezes Ferreira: Depois de ter suportado as soalheiras de "Paulôna", esse inolvidável acampamento de Tancos, besuntado ligeiramente de um treino guerreiro muito rudimentar - ora vai hoje, ora vai amanhã - lá foi chamado enfim para o embarque naquele áspero Inverno de 1917! Quantas hesitações. quanto comodismo, quantas contrariedades a vencer! E o pior de tudo era que os compromissos tinham sido tomados em nome da nação [Capitão Menezes FERREIRA (texto e desenhos), João Ninguém, soldado da Grande Guerra, composto e impresso nas Oficinas dos Serviços Gráficos do Exército em 1921] .


Dos campos para os quartéis
(Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 528, 3 de Abril de 1916)
Infantaria 7 (de Leiria) - Exercícios de tiro na charneca da Chamusca (Ilustração Portugueza, idem)


Manobras da artilharia em Tancos (Portugal na Guerra - revista quinzenal ilustrada, n.º 2, Paris, 15 de Junho de 1917)

     A 1.ª Brigada do Corpo Expedicionário Português (C.E.P.) parte do cais de Alcântara a 26 de Janeiro de 1917 a bordo de três vapores britânicos, sob o comando do general Gomes da Costa; e desembarcam em Brest. 

     ...foi curta a demora na cidade. Apenas o tempo de se encher os cantis e de atulhar os bornais com as rações de corned-beef, foram nessa mesma noite amontoados como sardinha em canastra pelo míseros «vagons J» (40 homens e 8 cavalos) onde "João Ninguém", meio aturdido e desconfiado, demonstra a evidência com o seu ar bisonho e o seu negro olhar, onde transparece o sentimentalismo lamuriento de uma raça de contemplativos (...) E assim, posto o comboio em andamento, afogadas as mágoas na aguardente da ração, já meio conformados e embrulhados no fatalismo que lhe vem da sua raça. lá se deixam conduzir, os soldados portugueses, para muito longe da sua terra, não sabendo bem para onde, e muitos deles talvez para nunca mais voltar (capitão Menezes Ferreira, op. cit.).



Embarque do Corpo Expedicionário Português
(fotografia de Joshua Benoliel)
(Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 582, 16 de Abril de 1917 - capa)


(Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 578, 19 de Março de 1917)

      Tomam o caminho do sul da Flandres, onde integraram as linhas britânicas segundo os termos da Convenção Luso-Britânica. A viagem para França será assinalada pelos primeiros incidentes disciplinares (e consequente punição) entre as tropas portuguesas, primeiros sintomas de um mal-estar e um desagrado no seio dos militares (praças e oficiais) que as duras condições da frente (o frio, a fome e os bombardeamentos e raids) irão agravar progressivamente. Os Boletins Individuais dos militares, guardados no Arquivo Histórico Militar, fazem transparecer esse ambiente, e estão pontuados nas Observações por punições disciplinares por desobediência ou altercações, e licenças gozadas para além do termo concedido.

     Jaime Cortesão, nas suas Memórias, explica o posicionamento no terreno das nossas forças: Estende-se a gente portuguesa por uma faixa do país mais ou menos limitável dentro de um grande triângulo isósceles. O vértice, que entesta com a nossa linha de batalha, longa de alguns quilómetros (12, com a entrada da 2.ª divisão, medeia entre Armentières, ao norte, e Bethune, ao sul; e a base, larga de 60 quilómetros, é a própria costa marítima, banhada do Mar da Mancha. Fecham-no duas linhas que, do vértice, vão terminar, uma em Calais, ao norte, outra em Etaples, a sul (...) São primeiro as tropas de infantaria ocupando as trincheiras e os apoios desde Fleurbaix a Festubert, passando pela Rur de Bois, Fanquissart, Neuve-Chapelle, Ferme du Bois. Segue-se-lhe logo a artilharia de campanha, e depois os quartéis de Brigada e as ambulãncias da frente, estes últimos gozando já um princípio de conforto. Vem depois, por Lestrem e Lagorgue os quartéis generais de Divisão com as suas muitas e variadas secções: Estado Maior, comandos de engenharia e artilharia, chefia dos serviços de saúdem serviços administrativos, serviços postais, etc, etc. (...) Logo após algumas escolas, oficinas e depósitos distribuídos por localidades de somenos importância. Agora Merville com o seu hospital de sangue n.º 1. Depois Saint-Venant, quartel-general do C.E.P., com a aristocracia dos galões. 

(Cortesão. Jaime, Memórias da Grande Guerra (1916-1919) edição da Renascença Portuguesa, Porto, 1919)

     O C.E.P. em França, e tendo como modelo a estrutura do exército inglês, ficou organizado em duas Divisões, cada uma delas comportando três Brigadas com quatro Batalhões de Infantaria. Quase todos os soldados do distrito de Leiria compunham inicialmente o Batalhão de Infantaria n.º 7, da 2.ª Brigada da 1.ª Divisão. O Infantaria 7 foi um dos três Batalhões envolvidos em motins das tropas portuguesas ocorridos em 4 de Abril de 1918 em Ferme du Bois. As outras unidades envolvidas foram o Batalhão de Infantaria 24 de Aveiro e o Batalhão de Infantaria 23, de Coimbra


     As condições de vida na frente, o desgaste do inferno das trincheiras, pode ser visto através das palavras de Jaime Cortesão ou Augusto Casimiro, Menezes Ferreira ou António Joaquim Henriques. Narra o primeiro:

     Um sistema de fossos rasga o chão até à altura de um homem e sucede-se em três linhas paralelas, ziguezagueando e entreunindo-se até aos parapeitos sobre a "terra-de-ninguém". Nestes fossos abriram-se lateralmente algumas cavernas, espécie de silos escuros para vegetar. As granadas e a chuva, aqui e ali revolvem, abrem, obstroem encharcam em lama e água. Todavia, nesses fossos e cavernas, sujos e viscosos, alguns homens habitam. 

     Tudo ali é lodo e miséria. A esperança da vida assenta apenas sobre o acaso. E a inquietação devora o peito nas horas lentas. 
     Estes homens, que vivem de um modo nunca visto, ganharam com o tempo uma fisionomia especial, tanto mais acusada, quanto mais próxima do inimigo. Era inevitável (...) A imobilidade e frescura especial do rosto, que dão a mocidade e a vida calma, secaram, murcharam inteiramente. 
     Há crianças com caras de velhos.
     A esta transformação dos rostos, corresponde uma outra mais profunda nas almas (...) Moços de 20 anos possuem a sabedoria de séculos.
     Quando se anda pela primeira linha, surdem a espaços, dos buracos do chão, rastejando e erguendo-se a custo, ou circulando nos traveses, uns espetros lamacentos.
     Às vezes esses fantasmas mostram os dentes num riso sinistro e olham com certos olhos implacáveis, como quem doutro planeta com mais aguda vista considerasse as baixezas e os erros dos humanos.
    No seu conjunto esta faixa estreita das trincheiras assemelha-se na hierarquia do risco ao conjunto do sector. Todos os que habitam fossos e cavernas vivem ao pé da morte, no meio das balas e granadas, que são cegas. Mas os oficiais do estado maior do batalhão, incluindo os médicos e o comandante, são nas horas mais calmas, os menos expostos aos perigos. Igual sorte, a de todos os subalternos que os acompanham. Seguem-se todos os homens dos comandos da companhia. Chegam na escala máxima do risco e da miséria os pelotões, desde o alferes ao soldado.
(Jaime Cortesão, op. cit,).

Portugal na Guerra - revista quinzenal ilustrada, n.º 5, Paris, Outubro de 1917
Foto de Arnaldo Garcês (Portugal na Guerra - revista quinzenal ilustrada, n.º 5, Paris, Outubro de 1917)
Portugal na Guerra - revista quinzenal ilustrada, n.º 5, Paris, Outubro de 1917

     Com a chegada de Sidónio Pais ao poder, cessa o envio de novos contingentes de tropas para França, por vontade do caudilho (que alguns reputavam de germanófilo), mas também pela inexistência de transportes, uma vez que os vasos britânicos estavam agora dedicados ao transporte de tropas norte-americanas para o velho continente. No sector português os soldados não são rendidos por novas tropas, e subsistiam em condições físicas e psicológicas deploráveis, permanecendo nas trincheiras durante cinco meses a fio (capitão Augusto CASIMIRO, Nas trincheiras da Flandres, edição da Renascença Portuguesa, Porto, 1918). Disso se apercebem os britânicos, que organizam a sua retirada da frente de batalha e a sua substituição por batalhões ingleses. Nesse interim, e com todo o peso de uma monstruosa ironia, dá-se o desastre de La Lys.


     A 4 de Abril, o chefe militar da Alemanha, o general Erich von Rudendorff, com as suas forças reforçadas pelas tropas que trouxera da frente oriental depois dos soviéticos assinarem o Tratado de Brest-Litovksi, inicia uma nova ofensiva no Somme, que suspende no dia seguinte ante a sua incapacidade de conquistar Amiens perante a tenacidade dos Aliados. Uma nova estratégia ofensiva se impunha, e os alemães preparam-na rapidamente, cunhando-a com o nome de código de Operação Georgette.

     No dia 8 de Abril, às 20 horas, o Quartel-General português anuncia aos batalhões portugueses que no dia seguinte iriam ser rendidos por tropas inglesas e abandonariam por completo a linha da frente, notícia confirmada duas horas mais tarde ante a incredulidade dos militares esgotados - Os batalhões estão cansados, exaustos. As rendições sucessivas dos últimos dias, as promessas, as esperanças, as desilusões de um descanso que não chega, a visão próxima dos horrores de Março, o desprezo a que Portugal parece ter votado os seus homens, a ausência de reforços, o sofrimento e a saudade, trazem o moral das unidades diminuído e leso. Os efetivos andam reduzidíssimos. A nova rendição, apesar de inesperada, traz, pois, um alívio (Augusto Casimiro, id.). 

     Na noite de 8 para 9 de Abril, às 4.15. os alemães começam o bombardeamento, intenso e ininterrupto, toneladas de granadas de gás chovem sobre Armentières e o setor português - Gases...gases...E as casas tombam num desabar que prolonga explosões. Homens correm pelas passadeiras, ao longo dos canais que cercam as fermes. Outros esperam, brancos...E a tormenta redobra, tombam os muros e os telhados, caem, num massacre, os altos troncos que a névoa reveste...A terra estremece, agita-se e, num delírio horrível, deforma-se...Sob a névoa há horrores que a névoa mal esconde...Às 5 h. o Batalhão encontra-se isolado completamente (Augusto Casimiro, ibid.). Quatro Divisões alemãs sob as ordens do general von Quast atacam a Divisão portuguesa, conseguem romper a linha das trincheiras e atacam pelos flancos e pela retaguarda, anulando as bolsas de resistência, o heroísmo desesperado de vários militares é registado, preservado, nas memórias do poeta Augusto Casimiro. A batalha estava perdida - Tudo perdido, menos a honra! Cercados! E agora? Os oficiais teem lágrimas nos olhos. A guarnição desequipa-se. Rende-se. «Na frente e nos flancos da trincheira vencida os uniformes feld-grün amontoavam-se no chão». E os prisioneiros, dolorosos, desfilaram entre os mortos sem conta, altivos e senhores de si.

     No dia 9 de Abril, Jaime Cortesão já não se encontrava na primeira linha, convalescia no hospital de Saint-Venant dos efeitos do gás-mostarda que o torturavam desde 22 de Março. Às 10 da manhã dizem-lhe que os alemães haviam rompido as linhas portuguesas e adentravam-se pelo território. O hospital enche-se de feridos, de gente mutilada, de gaseados em convulsões. Conta-lhe um: Depois, ao vir da manhã, atacaram. Atacaram em massa, às ondas, sempre em ondas, numa catadupa de homens. Só muito perto os vimos surgir do nevoeiro espesso da manhã. De nós, os que ficamos, raros intactos, resistimos até à última. Houve cargas de baionetas, uma fúria! Tu sabes: a coisa que mais detesto são os falsos heróis. Mas ninguém, ninguém faria mais! E tu conheces como estávamos cansados...A seguir, abateram ou manietaram tudo à força de número. Vi junto de mim, ali ao pé, oficiais alemães, pistola em punho, atirando sobre os poucos que tentavam salvar-se. Eu próprio estive envolvido. Atirei sobre um. Resisti. Furtei-me. O nevoeiro, o fumo da pólvora, a poeira levantada no ar eram tão densos, que pude escapar com duas ordenanças. Todo o meu terror era cair prisioneiro. Antes morrer, morrer mil vezes!

     As detonações, e os alemães, aproximam-se de Saint-Venant, e os portugueses são evacuados. Cortesão e alguns camaradas, debilitados como ele, recuam, a pé, como podem, e conseguem chegar a Ambleteuse, em cujo hospital ficam a recuperar.

     A Batalha de La Lys é o cerrar do pano para o C.E.P. Os dados estatísticos são impressionantes: 398 mortos, 4626 feridos, 1932 desaparecidos e 6585 prisioneiros (os números divergem). Depois dessa data ainda há militares portugueses a combater em França, mas de uma forma quase espontânea, autónoma, reorganizam-se, juntam-se aos Aliados e perseguem a vitória final. Jaime Cortesão dá notícia de alguns desses grupos de soldados que lutam à revelia do Estado português, que não os vê com bons olhos, ele próprio, quando regressa, ainda convalescente, é olhado com suspeição e preso por razões políticas.



Reconstituição  cartográfica da Batalha de La Lys
(Ilustração Portuguesa, edição semanal do jornal O Século, n.º 790. de 9 de Abril de 1921)

     Quando a guerra termina, a 11 de Novembro de 1918, os alemães ainda têm em seu poder 6767 prisioneiros portugueses que são libertados; 233 haviam já morrido em cativeiro. A forma como haviam sido tratados era, e continua a ser, de alguma forma, um tema delicado, incómodo, suprimido (como o desaire da Batalha de La Lys). Ainda que já existam publicados relatos, e cartas de prisioneiros portugueses, e se tenham realizado estudos sobre eles, como a oportuna tese de Maria José Monteiro de Oliveira.


[Leituras complementares:

Carlos OLAVO, Jornal d'um prisioneiro de guerra na Alemanha, Guimarães e C.ª Editores, Lisboa, 1919.
Tese de Maria José Monteiro de OLIVEIRA, Deste triste viver - Memórias dos prisioneiros de guerra portugueses na primeira Guerra Mundial, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Setembro de 2011]


Prisioneiros portugueses em Karlsruhe
(Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 647, 15 de Julho de 1918)

Os nossos prisioneiros
 (Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 650, 5 de agosto de 1918)

Os nossos prisioneiros
 (Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 650, 5 de agosto de 1918)
O desembarque dos prisioneiros portugueses repatriados pelo Northwestern Miller
(Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 676, 3 de Fevereiro de 1919)
O desembarque dos prisioneiros portugueses repatriados pelo cruzador inglês Helenus
 (Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 677, 10 de Fevereiro de 1919)

Cemitério na Rue de Bois, onde repousa grande número de portugueses
 (Ilustração Portugueza, Edição semanal do jornal O SÉCULO, II Série, n.º 646, 8 de Julho de 1918)
O glorioso sono... (gravura de Menezes Ferreira)

Uma nota sobre as fontes:

- Os dados estatísticos sobre a Grande Guerra e a Batalha de La Lys baseiam-se na tese de mestrado em História Contemporânea, já referida, de Henrique Manuel Gomes da Cruz: Portugal na Grande Guerra: a construção do «mito» de La Lys na imprensa escrita entre 1918 e 1940, FCSH - Universidade Nova de Lisboa, Março de 2014. Outras estatísticas distintas podem ser encontradas nos trabalhos de Nuno Severiano Teixeira ou Maria José Monteiro de Oliveira.

- As narrativas primárias sobre a Grande Guerra (Cortesão, Augusto Casimiro, Menezes Ferreira,  António Joaquim Henriques) podem ser acedidas através da hiperligação contida no título. Estamos conscientes de que são descrições subjetivas, pessoais e literárias, do conflito, com todas as limitações e imperfeições que possam conter. Mas assumimos o risco. São experiências pessoais, escritas ou vividas debaixo de fogo, mais autênticas (julgo) do que algumas "leituras" modernas do que se passou e sofreu na Front.

- A Ilustração Portuguesa e o Portugal na Guerra podem ser acedidas através da Hemeroteca Digital da Câmara Municipal de Lisboa, onde se podem consultar outros títulos da época, como O Século, A Capital, ou a República.

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