segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Os portos da Lagoa de Salir - um pequeno périplo

Um patacho, ilustração hodierna de Artur Guimarães
para uma obra de Fernando Celestino Braga (Agenda do Marinheiro..., Porto, 1942-1949)
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Uma ressalva

     A extensa laguna que constituía uma expressão exponencial da atual baía de S. Martinho, e que alguns denominam, com considerável generosidade de mar interior (como Adolfo Loureiro, em 1909), abrigou três portos distintos, Salir, S. Martinho e Alfeizerão. É comum, na historiografia e nos estudos geológicos, encontrarmos o termo Lagoa de Alfeizerão, mesmo porque ele nos remete de imediato para os tempos históricos menos recentes em que a Alfeizerão era permitido ter porto, salinas e estaleiros. Da nossa parte optamos pela denominação Lagoa de Salir, e essa opção tem um motivo que consideramos pertinente: Salir era o nome que figurava nas cartas-portulano dos séculos XV a XVII (traremos aqui algumas, a título de exemplo), nome onde é lícito encontrarmos o complexo portuário da lagoa, com as três vilas e a população dos seus concelhos. Estamos certos de que não é a vila de Salir que surge representada nesses mapas, apesar da sua história riquíssima [1], mas a laguna amurada de penhascos que formava um espaço de segurança e refúgio do mar aberto para os barcos e embarcações que demandavam os seus portos onde as rotas se articulavam e o comércio se estabelecia. 

     Elucidado esse ponto, tentaremos aqui aportar mais alguns elementos sobre esses portos, num esquisso superficial que serve de preâmbulo a um estudo em curso sobre o perfil da Lagoa de Salir em alguns (poucos) documentos cartográficos.

Os portos de Salir e Alfeizerão

     Os portos de Salir e Alfeizerão era os dois portos mais próximos na laguna, mas com algumas diferenças cruciais. Salir, mais exterior, quase como um porto oceânico, beneficiava de uma barra, um cais, numa reentrância (um “dente”) da Lagoa na foz conjunta dos rios de Tornada e Alfeizerão. Alfeizerão, por seu turno, era um porto de maré (v. o Portolano de Bernardino Rizzo), mais interior, onde o leito do(s) rio(s) e os canais que dele partiam serviam de fundeadouro abrigado para os barcos. Estes canais teriam também alguns cais onde carregar e descarregar as mercadorias, mas os homens de então teriam de saber usar sabiamente a cadência das marés para alcançar pontos mais interiores no vale, para explorar o ouro branco das salinas, e para trazer para águas abertas os barcos negros saídos dos seus estaleiros.

     Existe um texto cativo de qualquer estudo sobre o porto de Alfeizerão, que foi escrito pelo cronista Fr. Francisco Brandão (1601-1680) e repetido milhentas vezes depois disso, mas nós julgamos útil repeti-lo uma vez mais. Escreve o religioso:
     As barras do Reyno vemos ir padecendo grandes dannos com as areas dos rios que nellas desaguão, & sendo materia de tanta consideração, não se lhe aplica o remedio que já em outros tempos tiverão. O rio de Alfeiserão, quatro legoas distante do lugar de Paredes para o Sul, era capaz em tempo del Rey Dom Manoel de oitenta navios de alto bordo, por informação que o Infante Cardeal Dom Afonso (Abbade então de Alcobaça) de cujo destricto são estes portos, mandou fazer, & no tempo que isto escrevemos tem tão pouco fundo, que apenas nada nelle hum barco, & até o mesmo porto, & baya de Selir, onde fenece, recolhe muito poucos navios, & dos menor porte (BRANDÃO, Frei Francisco, Quinta Parte da Monarquia Lusitana, Livro XVI, capítulo LI, impresso na Oficina de Paulo Craesbeeck, Lisboa, 1650).
     Por outras palavras, no princípio do século XVI (D. Manuel I morre em 1521) no espaço flúvio-marítimo do porto de Alfeizerão, caberiam, se necessário, 80 navios [2]. O texto é claro. Existiam então a área e a profundidade adequadas, mas pouco mais de um século depois, a situação é diferente e crítica, e no mesmo espaço nada apenas um barco, enquanto mais abaixo, na foz, o porto de Salir mantém-se ativo, apesar de albergar menos navios e dos de menor calado. São dois portos lagunares, ainda que o de Alfeizerão esteja alojado num meio fluvial, logo, mais vulnerável ao assoreamento e às alterações hidrográficas.

     Sobre Alfeizerão, sabemos assim que o porto ainda era próspero no tempo de D. Manuel e que decaiu sem remissão pelos finais dessa centúria. Data do ano de 1616, as primeiras instruções do rei D. João IV ao Juiz de Fora de Óbidos para mandar abrir o rio de Alfeizerão. Em 1650, o mesmo rei fixa uma contribuição (uma finta) aos interessados para a abertura e conservação do rio (Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças, Igrejas deste Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, Direção Geral de Arquivos/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 92); obras que não correram a contento, porque D. Pedro II, por alvará régio de 10 de Julho de 1685, ordena ao Corregedor da Comarca que promova a abertura do rio da Mota, ou rio chamado da Matta (Direção Geral de Arquivos/TT, Chancelaria de D. Pedro II, liv, 23, fl. 178). O texto do alvará atende apenas às vantagens agrícolas dessa obra (sementeiras e juncais) - os estaleiros e o porto eram já coisas do passado:

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     O porto de Salir, embora em declínio, manteve alguma da sua vitalidade e teve uma segunda vida com a alfândega construída no sopé do promontório (a dita alfândega velha) entre a vila e a Fonte de S. Romeu, e que nos surge representada em cartas topográficas do século XVIII. Uma vez que o porto de Salir não desapareceu, é prudente não vincularmos de imediato esta alfândega (edifício) à alfândega de Salir do foral manuelino de Salir da Foz ou de um documento de 1578 (e de outros subsequentes) mencionado, entre outros, por Fernando Castelo-Branco (Os Portos da enseada de S. Martinho e o seu tráfego através dos tempos), porque podem aludir simplesmente à Barra de Salir, da mesma forma que, na outra banda da Concha, a alfândega de S. Martinho é também mencionada em documentos (Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças, Igrejas deste Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça). Não temos indícios seguros da data em que foi construída a alfândega no promontório (século XVII?), mas sabemos que em 1890 esta alfândega ainda operava, existindo aí em permanência dois guardas-fiscais para cobrar o imposto pelo pescado (OLIVEIRA E SOUSA, João António Saldanha de, em São Martinho do Porto – Coisas novas em jornais velhos, artigo no jornal O Alcoa, de Alcobaça, nº 46, p.6).

     Os mapas do século XVII, portugueses inclusive, continuam a assinalar a Barra de Salir; e na Descripção dos portos marítimos do reino de Portugal, de João Teixeira (informação de Fernando Castelo-Branco, obra citada, p. 168), do ano de 1648, encontra-se escrito que: A barra da Pederneira é para caravelas, e mais ao sul, pouco mais de duas léguas está Selir, com barra do mesmo fundo. O padre António Carvalho da Costa (Corografia Portugueza…) escreve nos primeiros anos do século XVIII que a vila é abundante de peixe e marisco por ter porto de mar; e o padre Baptista de Castro, em obra publicada em 1762 (Mappa de Portugal Antigo e Moderno), menciona a barra de Salir quando fala das caravelas e patachos (pequeno navio de guerra com dois mastros) que se abrigavam na enseada, permitindo pensar, com algumas reservas, que aí aportavam [3].

     Uma dúvida cronológica permeia o que os textos contam sobre os portos de Salir e Alfeizerão. Numa sentença publicada em Lisboa no ano de 1559 (referência de Fernando Castelo-Branco obra citada, páginas 265-266) declara-se que os navios (já) não podiam ir aos ditos lugares de Selir e Alfeizerão. Pela precocidade da data (o porto de Salir é mencionado ulteriormente), julgamos que este documento reflete alguma situação desfavorável, mas temporária, na navegabilidade junto à barra de Salir, debelada pelos homens ou pelos elementos. Quando ao porto de Alfeizerão, é lícito pensar que esta data poderá constituir uma data extrema inicial para a oclusão do rio a montante da foz, e para o completo abandono do porto.

O porto de S. Martinho

     Tem.se escrito muito sobre o porto de S. Martinho, e sobre o tema deixamos aqui apenas um singelo apontamento genérico. Sobrevaloriza-se um pouco o seu papel inicial como porto de pesca, no entanto, existem indícios seguros de que o seu porto e os seus estaleiros foram coevos dos que existiam nas duas outras vilas da lagoa, apesar dos recenseamentos do século XVI (1527 e 1537) indicarem que S. Martinho possuía uma população quantitativamente modesta. O foral manuelino de S. Martinho do Porto (Direção Geral de Arquivos/TT, Forais Novos: Estremadura, fl. 134), consagra um parágrafo aos pescadores da terra e à sua barca ou batel, com o qual não pagariam dízimo do pescado obtido desde que fosse pera seu mantimento; mas no fim do documento, estabelece-se discretamente que a portagem se regulava pelo foral da Pederneira, indicação clara do funcionamento do seu porto. Adolfo Loureiro regista expressamente a existência de um arsenal militar em S. Martinho no reinado de D. Manuel I: E, como tudo dependia principalmente das forças navais, [D. Manuel I] pôs todos os seus cuidados no aumento e melhoramento da nossa marinha de guerra, aperfeiçoando a construção dos navios, criando uma cadeira de astronomia na Universidade de Coimbra, estabelecendo fábricas de armas e de pólvora, e levantando arsenais em Lisboa, Porto e S. Martinho, além de outros para navios de comércio em Aveiro e Viana (LOUREIRO, Adolpho, Os portos marítimos de Portugal e ilhas adjacentes, volume I, página 19, Imprensa Nacional, Lisboa, 1904). 

     E o mesmo autor escreve sobre o comércio de pescado e sal: Por morte de D. Pedro I o país estava florescente e era um Estado justamente considerado pela sua agricultura, pelo seu comércio marítimo e pelas suas pescarias, em que se incluíam a das baleias, e a dos corais do Algarve. Nos portos de Viana, de Vila do Conde, de Aveiro, de S. Martinho e do Algarve estacionavam sempre muitas embarcações que levavam à Galiza, a Biscaia e aos portos do Mediterrâneo, o sal e os produtos da pesca.

     No ano de 1374, a rainha D. Leonor, nora de D. Pedro I, recebe queixas do Abade alcobacense Dom Frei Martinbo de que o Mosteiro sofria embargos no seu direito de cobrar dízima dos produtos que entravam no porto do lugar de S. Martinho. A Carta de D. Leonor Teles [4] acolhe favoravelmente as queixas do Abade de Alcobaça: (...) E eu, vendo que me pediam e porque sou certa que o dito Mosteiro é feitura de Reis, e deles e das Rainhas que antes de mim foram recebeu muitas mercês, e o meu talante é de lhe acrescentar em elas quanto puder, e querendo fazer graça e mercê à honra do Filho de Deus e de Santa Maria, sua Mãe. Tenho por bem e mando que o dito Mosteiro haja as ditas dízimas e direitos dos navios que aportarem da banda do dito Porto de São Martinho e não outro nenhum em minha vida, ficando aguardado, aos Reis e Rainhas que depois de mim vierem, e ao dito Mosteiro, todo o seu direito em razão da dita posse e propriedade das dízimas e direitos do dito Porto, para os haverem aqueles cujos forem de direito. Pelo que Mando que lhos alceis logo o dito embargo e não lho ponhais daqui em diante. E, se lhes alguma coisa por ele tendes tomado, entregai-lho logo. À vista do que, outra coisa não façais.

     Os direitos que o mosteiro detinha sobre o pescado e as mercadorias que entravam pelo porto de S. Martinho  surgem em sentenças régias e em documentos alcobacenses cuidadosamente registados no dito Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças… Aí, escreve-se, inclusive, e à letra que esses produtos entravam pela foz de S. Martinho.

     Este é um dado importante que muitos estudos negligenciam: S. Martinho possuía um rio navegável que desaguava próximo ao sopé do outeiro onde o povoado se desenvolveu, e que constituiu o núcleo inicial do seu porto e dos seus estaleiros e salinas [5]. Para a dita foz confluíam diferentes cursos de água, com realce para o rio da Amieira (depois canalizado para o rio de Alfeizerão). O achado na várzea de Alfeizerão, em Vale Paraíso, de uma caverna de nau (normanda?) que foi datada dos séculos X/XI pelo método de radiocarbono [6], é uma prova arqueológica de que esse rio era navegável até pontos mais interiores nos alvores da nacionalidade. 

     A vida desse rio e o seu declínio com o assoreamento do seu leito deverá, julgamos, ter acompanhado o da foz em Salir, porque o assoreamento da própria enseada acentua-se bastante no século XVII e seguinte. Uma obra de 1607 existente na Torre do Tombo, Plantas das Fortalezas da Costa Portuguesa entre Vila Nova de Mil Fontes e as Berlengas, e um Mapa de Todas (Direção Geral de Arquivos/TT, Casa de Cadaval, nº 28), informa-nos que a barra de S. Martinho não tem fundo mais do que para caravellaz (…) Todos os Rios desta costa que desagoão no occeano de Verão tem mt. pouca ou nenhuã sahida para elle por estarem as Foz delles areadas.

     Provavelmente, o seu porto poderá ter assumido com o assoreamento uma outra estratégia, com os barcos de maior porte fundeados na enseada, e as suas mercadorias transbordadas de e para a barra no rio. É o que "vemos" numa gravura (Imagem 3) do Porto de São Martinho - Pº de S. Martín - que integra a Descripción de España y de las costas y puertos de sus Reinos, do geógrafo Pedro Teixeira, que ficou terminada em 1614 [7]. Esta iluminura da obra retrata a lagoa num ângulo este-oeste. Vemos S. Martin alcandorado no seu outeiro primigénio e Silir na margem oposta, com o seu casario disperso pelas terras sobranceiras às águas. Os barcos representados estão fundeados nas águas mais fundas (mais escuras) da lagoa, e a foz do rio abre-se diante deles. Não há muitos detalhes, nem de cais ou estaleiros; vêem-se dois homens a caminhar para o rio, talvez para pescar, e um outro (almocreve?) que se afasta dele com a sua alimária carregada. A foz parece mais afastada de S. Martinho daquilo que julgamos provável; e o seu curso escoa as águas das terras baixas do vale cuja bacia aparece pintada com nitidez. Reencontraremos esse rio em alguns trabalhos cartográficos dos séculos XVI e XVII.

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        Pouco mais de um século depois destes dois testemunhos, Vicente Tofino de San Miguel, num roteiro publicado em Madrid no ano de 1789 (Derrotero de las costas de Espanha en el Océano Atlântico y de las islas Azores ó Terceras para inteligência y uso de las cartas esféricas), diz que a baía de Salir era boa para patachos; enquanto numa outra obra do mesmo período (ver bibliografia), cerca de 1760, Manuel Pimentel descreve os cuidados que se tinha de ter com uma embarcação na mesma baía:
     Querendo surgir em Salir [Silir] está a barra com o farilhão da Berlenga, Leste, Oeste e há 4 léguas na travessa e como estais na entrada da barra se vê na ponta da Banda de bombordo uma torre velha, e da banda do Sueste está uma ermida [Santa Ana], entrai ao longo da terra da banda do Norte [do lado de S. Martinho], e não vades muito dentro, porque de baixa-mar não há mais de 2 braças.





[1]  Uma breve nota sobre o porto de Salir. Veríssimo Serrão conta que o Infante D. Pedro, regente do reino, concedeu a 6 de Maio de 1446 uma carta de segurança, por tempo de dois anos, a galegos e demais estrangeiros que fossem comerciar ao porto de Salir (SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, vol. II, Editorial Verbo, Lisboa, 1980).

     Uma outra notícia, deveras curiosa, precede esta em dois séculos. O Marquês de Ávila e Bolama, no tomo I (página 44) da sua Nova Carta Corográfica de Portugal (Typografia da Academia Real das Sciencias, 1909), divulga um documento alemão (publicado no Monumenta Germanie Historica - Scriptorum, Tomo XXIII, edição de 1874) que trata da viagem da armada que se dirigia à Terra Santa em cruzada, no ano de 1217, e que era formada por 112 navios.. Depois de fazerem escala em Tui e no Porto, eis que, segundo o documento: Quando amanheceu, como procurássemos segunda vez, por nos ser favorável o vento, continuar viagem, mas víssemos frustrados os nossos desejos, entramos no porto de Salir [Portum Silere], onde em granja próxima encontramos o Abade de Alcobaça. da Ordem Cisterciense. O qual nos deu muitas informações sobre a situação da terra, e as dificuldades que assinalam os seus portos.

     O original encontra-se em latim: Mane autem facto ventis suadentibus iterum iter attemptantes sed voto fraudati, portum Silere intravimus, ubi in grangia portui proxima Abbatem de Alcubax ordinis Cisterciensis invenimus. A quo de situ terrae et portuum difficultate multa audivimus...

[
[3] O texto, um tanto dúbio, é este: Selir, pequeno porto. Verdadeiramente esta barra pertence à vila de S. Martinho, e está entre duas serras de grandes penhascos, por onde entra um braço de mar, que pela parte da terra faz uma enseada que terá meia légua de circuito, onde se abrigam caravelas e patachos (CASTRO, Pe. João Bautista de, Mappa de Portugal antigo e moderno, Tomo I, Tipografia do Panorama, Lisboa, 1870).

[4] A Carta da Rainha Dona Leonor Teles foi publicada por Francisco da Fonseca Benevides no Tomo I da sua obra Rainhas de Portugal (Academia Real das Ciências, Lisboa, 1878). João António de Saldanha Oliveira e Sousa transcreveu-a depois num dos seus artigos sobre S. Martinho do Porto ( jornal O Alcoa, de 27/2/1947), atualizando a grafia e a pontuação.

[5] Existem algumas notícias das salinas de S. Martinho. Uma delas, preservada no Livro de Privilégios (sob o título Privilégios e Mercês Reais) diz respeito a uma mercê de Filipe III de 28 de Fevereiro de 1635, que permite ao mosteiro embarcar 200 moios de sal que eram, grosso modo, provenientes da dízima (!) sobre as salinas de S. Martinho.

[6] Teremos oportunidade de falar com mais detença desse achado e das sondagens levadas a cabo no local.

[7] O Atlas de Pedro Teixeira permaneceu esquecido numa Biblioteca de Viena (Hofbibliothek)  até ser descoberto no ano de 2000 por dois historiadores de arte espanhóis, Fernando Marías e Felipe Pereda, e foi publicada pela editora Nerea de San Sebastián em 2002 com o título El Atlas del Rey Planeta: la Descripción de España y de las costas y puertos de sus reinos. Esta obra ambicionou compendiar toda a costa da Península com os seus portos e as suas cidades mais importantes, e o cosmógrafo Pedro Teixeira, para a levar a bom termo, liderou uma equipa de cosmógrafos e historiadores espanhóis reunida por Filipe IV (Filipe III de Portugal) em Guipúzcoa no ano de 1622. É um documento valiosíssimo pelas suas informações históricas e iconográficas. Nascido em Lisboa no seio de uma família de geógrafos, Pedro Teixeira desenvolveu a sua carreira em Espanha ao longo de quatro décadas, vindo a falecer em Madrid em 1662. Uma das suas obras mais referidas é a Topografia de Madrid, um Atlas topográfico de vinte folhas publicado em 1656.



Fontes:

ÁVILA E BOLAMA, Marquês de, Nova Carta Corográfica de Portugal, Tomo I, Typografia da Academia Real das Sciencias, 1909.

CASTELO-BRANCO, Fernando, Os Portos da Enseada de S. Martinho e o seu tráfego através dos tempos, Separata dos Anais da Academia Portuguesa de História, II Série, Volume XXIII, tomo I, Lisboa, 1975.

CASTRO, Pe. António Carvalho da, Corografia Portugueza e Descripçam Topográfica do Famoso Reyno de Portugal, Tomo Terceiro, Capítulo VI, Oficina Real Deslandesiana, Lisboa, 1712. Versão eletrónica em https://books.google.pt/books?id=JTQBAAAAQAAJ&hl=pt-PT&source=gbs_navlinks_s

CASTRO, Pe. João Bautista de, Mappa de Portugal antigo e moderno, Tomo I, Tipografia do Panorama, Lisboa, 1870. Versão eletrónica em https://books.google.pt/books?id=dcgvAAAAYAAJ&dq=jo%C3%A3o+bautista+de+castro&hl=pt-PT&source=gbs_navlinks_s

Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças, Igrejas deste Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, Direção Geral de Arquivos/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 92.

LOUREIRO, Adolpho, Os portos marítimos de Portugal e ilhas adjacentes, volume I, Imprensa Nacional, Lisboa, 1904.

PIMENTEL, Manoel, Arte de navegar, em que se ensinão as regras praticas, e os modos de cartear, e de graduar a balestilha por via de numeros, e muitos problemas uteis á navegação, : e roteiro das viagens, e costas maritimas de Guiné, Angola, Brazil, Indias, e Ilhas Occidentaes, e Orientaes, novamente emendado, e accrescentadas muitas derrotas, página 525, Oficina de Miguel Manescal da Costa, Lisboa, 1762. Versão eletrónica em https://archive.org/details/artedenavegaremq01pime




José Eduardo Lopes
2015
(Contato: joseduardol@gmail.com)

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Notas avulsas sobre os barcos e o porto de Alfeizerão - 2

Luís Pires - Arribou a Portugal
Detalhe da Memória das Armadas que de Porrugal passaram à India

Alfeizerão e o mar – os navios

     Na carta régia de 1493 cujo resumo aqui transcrevemos, mencionava-se a construção em Alfeizerão de quatro navios no espaço de quatro anos, navios que se destinavam à armada D’El Rei. Esta carta régia surge em confirmação de outra de teor semelhante de D. Afonso V, dada quase quarenta anos antes.

     O que documentos como este nos transmitem sobre Alfeizerão, é que existia aí uma intensa construção naval, iniciada pelo menos no século XIV, já que D. Afonso IV mandara construir aí as suas galés (GONÇALVES, Iria; e SILVA, Manuela Santos, São Martinho do Porto e a Lagoa de Alfeizerão na Idade Média, in A Baía de S. Martinho do Porto – Aspectos Geográficos e Históricos, Edições Colibri/Associação de Defesa do Ambiente de São Martinho do Porto, Lisboa, 2005). Segundo estas autoras, foi nos séculos XV e XVI que os estaleiros de Alfeizerão laboraram no seu máximo, e acrescentam: A atividade do estaleiro envolvia toda a população. Havia trabalho para todos, desde os que se aplicavam diretamente na construção do barco, aos que aprontavam e transportavam para o local os materiais a empregar, sobretudo a madeira; aos que vendiam, confecionavam e acarretavam os alimentos e tudo o mais que o viver quotidiano necessita; aos que se viam obrigados a alojar os armadores, por vezes grandes potentados, que se faziam acompanhar de grandes séquitos e se demoravam bem mais tempo do que os locais desejariam.

     Nestas empreitadas de construção de navios, alguns seriam construídos aí de fio a pavio com os homens, materiais e meios que aí existiam, noutros, o barco era posto de pé com os arrais, calafates e carpinteiros enviados para o local, tal como sucedeu com as galés mandadas construir por D. Afonso IV. O foral da vizinha Salir da Foz serve-nos, uma vez mais, como referência, agora, para perceber como se articulava essa atividade: E assy se pagará dos navyos que homeens de fora hy comprarem e tirarem dizima da vallia que custou. E assy se pagará do navyo que se hy fizer per homens de fora e se tirar. Do qual se descontará tanta parte da dizima quanta teverem pago de portagem da madeyra, ferro e cousas que se pera ho fazimento delle trouxerem. E da madeyra outra que nom seja lavrada de torno, se levara por carga a dous Reaes. E por carretada a quatro Reaes (L. F. Carvalho DIAS, v. Bibliografia).

     Os dados transmitidos por esse foral são enriquecidos por um documento de 1478 publicado por Laranjo Coelho (v. Bibliog.) que nos fala precisamente de um requerimento ao rei D. Afonso V feito pelos carpinteiros dos estaleiros da Pederneira, Salir e Alfeizerão:
Faço saber a quantos este meu alvara virem que os carpinteiros das vilas da Pederneira, Salir e Alfeizeram sse agravaram a mym dizendo que ora novamente sam constrangidos que paguem sisa das empreitadas que tomam dalgumas pessoas pera lhe fazerem navyos de toda a sorte segundo se com eles concertam pera lhos darem acabados: a saber : brancos no estaleiro e pretos na aguoa o que nunca atee ora pagaram. Pedindo me que nello lhe ouvesse remedio e visto em seu rreuquerimento. A mym apraz que posto que seja achado que per direito eles deuem de pagar tal sisa, que eles seiam della escusados e rreleuados daqui em diante em quamto minha mercee for e nesto se nam emtenda algum direito seo acerca dello teueram os rrendeiros que foram o anno passado de myl e quatroçentos e setenta e sete anos e este presente de satenta e oyto. E porem mando a todollos meus ofiçiaaes e pessoas a que o conhecimento desto pertencer que nam costramgam nem mandem constranger os ditos carpinteiros pella dita sisa daqui em diante em quanto mjnha mercee for como dito he nem lhe façam nem conssentam por elle fazer nem huum nojo nem sem rrezam porque assij ho ey por bem ficando aos sobre ditos rrendeiros rresguardado sseu direito pela guisa sobre dita sem outra duvjda nem embarguo alguum. Ffeito em a mjnha Çidade de Lisboa a dous dias do mês de Janeiro. Johan da Fonsseca a fez anno de mjll e quatroçentos e satenta e oyto anos
(Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Estremadura, liv 7º, fl. 109)
     A distinção entre navios brancos e navios negros merece uma anotação, que já se infere do texto. Os dois termos indicam o estado em que a empreitada era dada como concluída, em função da encomenda que lhe dera origem. Navios brancos, designava o barco depois de construído, com as suas cobertas e costados pregados; o navio negro, o barco pronto a ser colocado na água: depois de isoladas uma ou duas vezes com estopa todas as fendas no tabuado, o barco era chamuscado, e dava-se algumas demãos de breu, dai o termo «negro». Isto constituía a fase de calafetagem do navio e é descrita com minúcia no Ars Nautica, ou Livro da Fábrica das Naus, tratado escrito em latim pelo padre Fernando Oliveira e publicado em 1580. Servimo-nos do estudo sobre esse tratado realizado por Filipe Vieira de CASTRO (O Livro da Fábrica das Naus no contexto da construção naval oceânica do século XVI, documento eletrónico disponível em:http://nautarch.tamu.edu/shiplab/00-pdf/Castro%202010%20-%20Fernando%20Oliveira%20491-522.pdf, consulta mais recente a 24/09/2015).

     Um dos temas recorrentes sobre os estaleiros que laboravam na Lagoa de Salir é a feitura das naus que o malogrado rei D. Sebastião levou para o Norte de África. É repetido, autor após autor, que a maior parte delas foi construída em São Martinho do Porto, enquanto a Dra. Paula Lourenço (São Martinho do Porto na Época Moderna, v. Bibliog.) regista a seguinte reflexão: é plausível que a maior parte das naus de guerra, que partiram para a Índia e tantas outras que acompanharam D. Sebastião a terras do Norte de África, em 1578, tenham sido construídas em Alfeizerão e na Pederneira.

     Fernando Castelo-Branco, num trabalho histórico incontornável sobre a enseada de S. Martinho (Os Portos da Enseada de S. Martinho e o seu tráfego através dos tempos), relativiza essa tradição, que parece apoiada em autores novecentistas, contrapondo uma outra fonte, o historiador José Maria de Queirós Veloso, que escreveu em 1935 que as embarcações da expedição de D. Sebastião haviam sido requisitadas em portos do reino, ou fretadas no estrangeiro.

     Algo de semelhante encontramos nós na Crónica D’El-Rei D. Sebastião, escrita em finais do século XVI por Fr. Bernardo da Cruz (o destaque no texto é nosso):
(...) e o porto cheio de naus, umas d'armada d'El-Rei, outras de fidalgos particulares que faziam prestes pera suas pessoas, gente e mantimentos, outra grande quantidade de caravelas e barcos, para cavalos, palha e lenha, excepto outras muitas embarcações que El-Rei tinha mandado aparelhar aos portos do Algarve, para passar a gente d'Alentejo, de que era coronel Francisco de Távora, com outros muitos fidalgos e homens honrados, que lá mandavam aviar suas embarcações, por dali estarem mais acomodados a seu modo. Da mesma maneira, no porto de Aveiro e outras partes do reino, estavam navios aviando-se com gente e munições, os quais se haviam de ajuntar em África debaixo da bandeira de Dom Diogo de Sousa.
(Fr. Bernardo da Cruz, Chronica D'El-Rei D. Sebastião, 1585?, reeditado pela Biblioteca de Clássicos Portugueses, Volume II, página 27, Lisboa, 1903)
 Alfeizerão e o mar – os nautas

     Na suposição de que esses documentos existam, inéditos ou por estudar, são escassos os documentos publicados sobre o porto de Alfeizerão (a mesma lacuna para os primeiros séculos do porto medieval de São Martinho), mas o pouco que existe permite determinar que se encontrava ligado por um comércio de cabotagem a Lisboa e à Galiza, e que a madeira e o sal eram os principais produtos que por ele saíam. A circunstância do porto figurar nos roteiros publicados em Itália é uma indicação mais ou menos segura de que constituía uma escala para os barcos estrangeiros que comerciavam na nossa costa. Refiro-me concretamente ao Portolano per tutti i naveganti de Bernardino Rizzo (1490), que recentemente aqui tratei, e a um outro do ano de 1578 do geógrafo italiano Giovanni Lorenzo d’Anania.

     A Doutora Iria Gonçalves (O Património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV), assinala a entrada em Alfeizerão de consideráveis quantidades de ferro, que era encaminhado para o Mosteiro. João Afonso, alcaide de Alfeizerão, registou a entrada de setenta quintais de ferro num período de quatro anos (1436 a 1440). Havendo incertezas sobre a proveniência desse metal, como sublinha a investigadora, pesa grandemente a possibilidade dele ter entrado pelo porto de Alfeizerão.

     Sobre o sal, há uma referência registada em Alcobaça – a de que, no ano de 1443, Garcia Pires, de Alfeizerão, ficou por fiador de Afonso de Panjam, para pagar por ele a dízima de um navio de sal que carregou em Alfeizerão (Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças, Igrejas deste Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, Direção Geral de Arquivos/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 92).). António José Sarmento que menciona o mesmo documento, diz que o mercador era oriundo de Baiona, porto da Galiza.

     No respeitante à saída de madeira por esse porto, para além da referência no Portolano de Bernardino Rizzo, temos duas formosas indicações documentais, ambas do reinado de D. Fernando,
.
     Segundo Gama Barros (História da Administração Pública em Portugal…, volume X), o Foral da Portagem de Lisboa, de 5 de Outubro de 1377 integrava uma pauta das mercadorias do reino sobre as quais o Estado cobrava direitos de entrada e saída pelo porto de Lisboa, indicando-se a sua proveniência e natureza. Entre elas, regista-se, e a citação não é fortuita, que D’Alcaçar [Alcácer do Sal], pela foz, traziam mel, azeite, coiros vaccaris, cera, sebo e unto, trigo e outros cereais, farinha, peles de coelho, cordovão, baldreosas, badanas, vinho e sal. E sobre as madeiras, que Alcobaça, Alfeizerão, Leiria e Torres Vedras mandavam madeiras.

     A segunda referência às madeiras de Alfeizerão, é assim enquadrada por Virgínia Rau (Estudos sobre a História do Sal Português, página 114):
Por essa época, uma intensa cabotagem ligava os portos de Setúbal, Alcácer e Lisboa, andando continuadamente os seus respectivos baixéis e pinaças a acarretar pão de Alcácer, porto de saída dos campos cerealíferos do Alentejo, até à capital; como os oficiais del-rei tomassem «estes naujos tãães pera hirem per madeira a Alfeizerõ e pera hirem a outros lugares», reclamou a cidade de Lisboa, invocando a míngua de pão, e D. Fernando, por carta de 28 de Dezembro de 1380, houve por bem ordenar que tais navios não fossem tomados nem embargados para qualquer coisa enquanto andassem no transporte do pão.
     Esta carta de 28 de Dezembro de 1380, do rei D. Fernando para o Corregedor de Lisboa, Diogo Gil, encontra-se no acervo do Arquivo Municipal de Lisboa, foi digitalizada pela instituição e pode ser acedida online


Bibliografia:

BARROS, Henrique da Gama, História da Administração Pública em Portugal, Tomo X, capítulo IV, 2ª edição, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa.

CASTELO-BRANCO, Fernando, Os Portos da Enseada de S. Martinho e o seu tráfego através dos tempos, Separata dos Anais da Academia Portuguesa de História, II Série, Volume XXIII, tomo I, Lisboa, 1975.

COELHO, Possidónio Mateus Laranjo, A Pederneira – Apontamentos para a História dos seus mareantes, pescadores, calafates e das suas construções navais nos séculos XV a XVII, Separata do volume XXV de O Archeologo Português, Imprensa Nacional de Lisboa, 1924.

DIAS, Luís Fernando Carvalho, Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve: conforme o exemplar do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tomo 3 - Estremadura, edição do autor, Beja, 1962.

GONÇALVES, Iria, O Património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV, Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, 1989.

GONÇALVES, Iria; e SILVA, Manuela Santos, São Martinho do Porto e a Lagoa de Alfeizerão na Idade Média, in A Baía de S. Martinho do Porto – Aspectos Geográficos e Históricos, Edições Colibri/Associação de Defesa do Ambiente de São Martinho do Porto, Lisboa, 2005.

LOURENÇO, Paula, São Martinho do Porto na Época Moderna, in A Baía de S. Martinho do Porto – Aspectos Geográficos e Históricos, Edições Colibri/Associação de Defesa do Ambiente de São Martinho do Porto, Lisboa, 2005.


RAU, Virgínia, Estudos sobre a História do Sal Português, página 114, Editorial Presença, Lisboa, 1984

Simão de Pina - perdido com a tormenta
Detalhe da Memória das Armadas que de Porrugal passaram à India

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Notas avulsas sobre os barcos e o porto de Alfeizerão - 1


 Portos flúvio-marítimos, progressivamente assoreados, na dependência do movimento das marés, da inconstância dos ventos e da frequência das travessias e das nortadas, não só educaram a atenção e as qualidades observadoras dos nautas, mas certamente concorreram para afinar e fixar o tipo da caravela, filiado no carib ou caravo dos árabes, mais apropriado a rios de pequeno fundo e de velame mais apto a colher variedades de ventos, ainda os mais escassos .
(Cortesão, Jaime, Os Descobrimentos Portugueses,volume I, Arcádia Editora, Lisboa, 1979).

Abstracto

     A atual enseada de S. Martinho do Porto, que prossegue o seu assoreamento e agonia num declínio de séculos apenas sustido (temporariamente) por dragagens, foi o cenário de uma antiga e vasta lagoa interior cujo perímetro navegável era acrescentado pela embocadura larga e funda da foz conjunta dos rios de Alfeizerão e Tornada, que a convertia num ancoradouro privilegiado para barcos de comércio e pesca. Abrindo para sul a Lagoa, esse esteiro largo deve ter-se prolongado em tempos anteriores à nacionalidade até à linha de colinas a sudeste de Alfeizerão, em cujas margens os romanos mantiveram um povoado (cidade?) cujas ruínas remanescentes se dispersavam pela zona conhecida como Ramalheiras.

     Nos primeiros tempos da nacionalidade, esse esteiro encontrar-se-ia certamente muito reduzido, mas com uma área e uma fundura suficientes para suportar a existência aí, até princípios do século XVII, de um duplo porto – o porto realengo de Salir e o porto alcobacense de Alfeizerão. Desse esteiro partiriam valas ou canais para o trânsito de naus e a construção naval [1], havendo a tradição literária de que uma dessas valas chegaria ao castelo ou à vila de Alfeizerão. Já em 1747, escrevia o padre Luís Cardoso no seu Dicionário Geográfico, que Alfeizerão foi porto de mar antigamente, de que ainda junto da vila existem vestígios de cais.

     Desse complexo portuário, os documentos indicam que o porto mais importante na lagoa era indubitavelmente o porto de Salir, que funcionava como um verdadeiro terminus oceânico para o comércio interno e externo, tendo o de Alfeizerão um papel quase subordinado a este, ainda que servindo ao mosteiro como um dos seus acessos vitais ao mar e ao comércio marítimo. Note-se que, tirando as marinhas de sal, os forais de Alfeizerão são típicos de uma comunidade rural - não existem disposições em letra de lei sobre o porto ou a construção de navios, parecendo serem suficientes as que se encontravam consagradas nos forais de Salir (mais adiante, veremos até que ponto) ou S. Martinho do Porto.

     O tempo de vida do porto de Alfeizerão findou antes de 1650, data em que por ordem régia se procede à abertura do rio de Alfeizerão. Alfeizerão manterá as marinhas de sal por mais de um século para além desta data, sendo ainda indicadas pelo pároco de Alfeizerão em 1758 (terão sobrevivido às grandes cheias de 1774, que revolveram e evisceraram as terras do vale?); enquanto o porto de Salir terá uma vida mais prolongada com o embarque e descarga de mercadorias na dita alfândega, por cuja posse terçarão requerimentos, sentenças e recursos o mosteiro de Alcobaça e o donatário da vila de Salir (primeiro, Afonso de Lencastre em finais do século XVI, depois o seu filho, Diniz de Lencastre). No século XVII, no entanto, a grande referência portuária na baía, era já e continuaria a ser o porto de São Martinho, que assumiu a importância comercial e náutica que era comum às três vilas portuárias. Não é, pois, de admirar, que o porto de São Martinho seja o único mencionado nas duas obras de Manuel de Brito Alão, que foi administrador e cronista da cercana Real Casa de Nossa Senhora da Nazaré no primeiro quartel do século XVII.

Alcobaça e o mar - generalidades

     Alfeizerão possuiu salinas, pelo menos, desde o século XIII, existindo referências expressas à extração de sal nos seus forais de 1332, 1442 e 1514. Esta atividade irá merecer-nos um texto dedicado, mas importa lembrar isso porque o Mosteiro de Alcobaça possuía inicialmente apenas três portos (Pederneira, Alfeizerão e S. Martinho), e o sal foi um dos primeiros produtos que o mosteiro exportou por um ou mais desses portos.

     A primeira referência a esse comércio chega-nos de uma obra religiosa, Os Milagres de S. Vicente dados a público em Lisboa por Mestre Estêvão, chantre da Sé Ulissiponense, obra hagiográfica em latim do primeiro quartel do século XIII que os especialistas julgam remontar ao século anterior. Um dos milagres atribuídos ao santo consiste no facto de um navio de Alcobaça ter escapado de naufrágio em perigo semelhante. Com efeito, o D. Abade que preside à comunidade dos monges, mandara encher um navio de carga com sal, que em Alcobaça há em abundância, e levá-lo para outro porto onde se compra mais caro (a transcrição desse milagre, traduzido do latim, é reproduzida em nota [2]).

     Este barco de Alcobaça (nauis Alkobacie), é um sinal claro de um comércio realizado pelo mosteiro de Alcobaça já nos seus primeiros tempos de vida, mosteiro que a partir de 8 de Junho de 1294 é autorizado por carta régia de D. Dinis a vender fora do país o seu vinho e o seu sal (se já não o fazia antes):
Dom Dinis pela graça de Deos Rey de Portugal, & do Algrave; a todos los Alcaides, & Almoxarifes, & a todolos outros, que guardam os portos do meu regno, saude. Sabede, que como quer eu eu defendesse que ninhuma couza non tirassem de minha terra pera fora de meu regno, por fazer merce ao Abbade, & convento do meu mosteyro Dalcobaça, mãdo que elles, ou aqueles a que elles o venderem,possam tirar da minha terra pera hu quizerem sem embargo ninhum, seu vinho, & seu sal: porque vos mando que lhis lo leixedes ende tirar como ditto he; & non nos embarguedes per rezão da dita defeza. Un al non façades, se nam a vos me tornaria eu per ende. E esse Abbade & Convento, ou outrem por elles tenha ende esta minha carta. Dada em Lisboa 8.dias de Junho, el Rey o mandou, Ayres Martins a fez, era 1332. 
(Frei Manuel dos Santos, Alcobaca Illustrada Noticias, E Historia Dos Mosteyros, & Monges insignes Cistercienses da Congregacam de Santa Maria de Alcobaca da Ordem de S. Bernardo nestes Reynos de Portugal, & Algarves, Primeira Parte, impresso na Oficina de Bento Seco Ferreira, Coimbra, 1710).
     O mesmo rei concedeu ao mosteiro por mercê do ano de 1284 que os homens moradores na povoação de S. Martinho de Salir (homines moratores in populam de sancto martino de sillir) pudessem ter três barcas de pescar sem pagarem quaisquer direitos à coroa (Direção Geral de Arquivos/TT, Chancelaria de D. Dinis, Livro 1, fl. 94); e três anos mais tarde, resgatou para a coroa a vila de Salir do Porto, comprando a três irmãos - Gonçalo, Estevão e Elvira Martins - os direitos em terra e no mar que detinham sobre ela (Iria Gonçalves e Manuela Santos Silva, obra citada) e, logo depois, estando alojado(s) em Alfeysarã, faz mercê à rainha D. Isabel dos direitos sobre os produtos que entravam no porto de Salir (Carta de 9 de Junho de 1287, que reproduzimos aqui). Salir do Porto será, a partir daí e com raras exceções, o porto das rainhas.

Alfeizerão e o mar – competências e cargos


     Ao ser nomeado um meirinho dos homens do mar para as vilas de Salir, Alfeizerão, Paredes e Pederneira, criou-se um litígio entre a coroa e o Mosteiro de Alcobaça no reinado de D. Afonso V, mas esse conflito tem a virtude de nos indicar os tipos de embarcações que então existiam nessas vilas portuárias: navjos, barcas, caravellas, batees (baixéis). O documento foi transcrito na íntegra e publicado por João Martins da Silva Marques (Descobrimentos Portugueses, volume I, Edição do Instituto para a Alta Cultura, Lisboa, 1949), mas reproduzimos o resumo que dele fez o cronista cisterciense Fr. Fortunato de S. Boaventura (Historia Chronologica e Crítica da Real Abbadia de Alcobaça, Impressão Régia, Lisboa, 1827):
     Em tempo del Rei D. Afonso V, o Almirante de Portugal mandou passar carta a Gil Afonso, por que o fazia Meirinho dos homens do mar da Pederneira, Paredes, Salir e Alfeizerão [da pedreneira e das paredes e de selljr e de alfeizeiram], para que ele pudesse dar os navios, barcas e caravelas {e baixéis] para o serviço del Rei, e pudesse prender os homens que não obedecessem. A isto se opôs o Abbade de Alcobaça dizendo que o Rei fundador do Mosteiro lhe dera toda a jurisdição cível e crime com mero e mixto império reservando pera si a alçada, em o qual tempo não havia Almirante nem muito tempo depois, e El Rei D. Dinis que fizera almirante nem os outros Reis seguintes se entremeterão nesta jurisdição, tanto que havendo seis anos que o Almirante posera na Pederneira hum Acensiannes por Juiz dos arraes e peitais deste Logo, houvera sobre isso tanta contenda que El Rei mandou que o dito Juiz não usasse de tal officio; e outrosi alegava o Abbade que em tempo del Rei D. Duarte, queixando-selhe o Abbade D. Estevão de Aguiar de ter passado huma carta a Gabriel Annes, criado do Infante D. Henrique, porque o fazia Alcaide dos Pescadores e homens do mar dos Lugares da Pederneira e Paredes, o dito Rei revogou seu mandado e conservou ao Mosteiro em seus privilégios: o que visto e outras cousas que se alegaram, ElRei D. Afonso deu sentença pelo Mosteiro em Lisboa a seis de Agosto de 1460. ElRei o mandou por Nuno Gonçalves, Doutor em Leys, Cavalleiro de sua Caza do seu Desembargo e Juiz de seus Feitos.
     No porto de Salir, o oficial que procedia à cobrança da dízima do pescado ou à portagem pelos produtos entrados ou saídos na barra era, segundo o foral manuelino da vila, o oficial da alfândega, sujeito ao almoxarife de Óbidos. Do lado de Alfeizerão, deveria existir um oficial com idênticas atribuições, mas subordinado ao alcaide-mor de Alfeizerão. Para o século XV existem diversos documentos que retratam o alcaide-mor de Alfeizerão nas suas funções de cobrador da dízima pelo peixe que se pescava na lagoa ou era pescado fora dela pelos pescadores que moravam nas suas margens, assinalando-se aqui o registo excecional (ou de uma pescaria excecional) de uma dízima cobrada no ano de 1440 pelo alcaide de Alfeizerão, João Afonso, a pescadores de S. Martinho no montante de cinco milheiros de sardinha (Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças, Igrejas deste Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça). Esse ofício de cobrança das dízimas do peixe podia ser emprazado pelo mosteiro, como o foi no ano de 1461 à pessoa de Diogo Botelho da Silveira (Livro dos Privilégios…), que foi também alcaide-mor de Alfeizerão.

     Ordinariamente, e isso é nítido nos forais da Pederneira e de Salir do Porto, incidiam sobre os pescados uma dízima velha e uma dízima nova, a primeira tributação revertia para a igreja de que os pescadores eram fregueses, e a segunda para o rei ou para o donatário da terra; tendo esta última sido fixada no reinado de D. João I (pelo contrato dos mareantes que se indica no foral de Salir). Esta situação permite compreender que o vigário de Alfeizerão e S. Martinho tivesse direito à dízima do peixe salgado que entrava em S. Martinho (em rigor, a dízima velha), com alguns exemplos que se podem apontar para os séculos XVI e XVII (Livro dos Privilégios…).

     No foral manuelino da vila de Salir, retoma-se o foral concedido pela rainha D. Leonor (Foral do lugar de Sellir da Foz pella Rainha Dona Lianor), introduzindo algumas modificações e salvaguardas num segundo diploma, o Foral de Sellir da Foz. No primeiro, estão exaradas as condições especiais de que beneficiava o porto de Alfeizerão e os restantes lugares do Mosteiro. Reproduzimos esse trecho do foral da transcrição integral realizada por Fernando Luís Carvalho Dias:
     E por quanto as cousas que vaão do dito lugar de Sellir aportar em Alfeyzerão e na terra do mosteiro dalcobaça se nom guardam as leis e determinações nestes casos seguintes. Ouvemos por bem de nom somente as mandarmos poer no próprio foral da Ordem […de Alcobaça – alguma adenda ao foral de Alfeizerão?] mas aInda neste lugar as decrarar por que a todos fosse sabido da maneira que Se ham de cumprir.
     Primeyramente decraramos que de quaes quer mercadorias e cousas que vierem per terra ou per aguaa da terra do dito moesteiro pera se averem de dembarcar e carregar pera fora da barra no dito porto de Sellir nom se pagará nenhum direito na dita terra da ordem por respeito da sacada e sayda e passagem de foz ou de barra. Nem menos levarão seus ofiçiaaes dos navyos nenhum dinheiro nem direito dos despachos das ditas cousas por lhe nom pertencer. Por quanto ho direito da entrada e sayda da dita barra hé em Sollidum apropriada aos direitos de Sellir.
     E somente se paguarão das ditas mercadorias e cousas que assy da dita terra da hordem vierem pera o dito porto aquelle preço somente que a cada huma das ditas cousas for imposto na dita terra de portagem de compra e venda per seu foral novamente per nós feyto. E isto comprandosse na dita terra. Por que vindo de fora e passando pera qual quer terra sua ainda que embarquem per aguoa pera vir ao dito Lugar de Sellir, nom se paguará nenhum direito de nenhuma sorte.
     E assy decraramos que de quaes quer mercadorias e cousas que sayrem do dito lugar de Sellir pero ho dito lugar dalfeyzeram ou pera quall quer outro lugar da dita ordem se nom leve mais outra dizima nem portagem nem passagem nem outro nenhum direito por assy sayrem em sua terra assy per aguoa como per terra de nenhuuma sorte e calidade que as mercadorias possam seer. Sallvo daquelas que em sua terra se venderem. Das quaes se pagará somente  aquelle direito de portagem que pollo foral de tal lugar hy mandarmos especificadamente pagar.
 
     (Foral do lugar de Sellir da Foz pella Rainha Dona Lianor , in DIAS, Luís Fernando Carvalho Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve: conforme o exemplar do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tomo 3 - Estremadura, edição do autor, Beja, 1962).
     Este foral de Salir parece indicar a existência de uma cópia (desaparecida) destas disposições apensa ao foral de Alfeizerão, e presumivelmente ao exemplar que era conservado, por norma, no concelho. Em todo o caso, as queixas a Fernão de Pina pelas situações dúbias deste foral de D. Leonor levam à redação do mencionado Foral de Sellir da Foz, do qual também respigamos uma parte:
     E por quanto os moradores e pescadores de sallir e dos outros lugares se agravam que sendo todollos direitos Reaaes daquella emtrada do mar de sallir e lá se pagar delles seu direito assy Aa entrada como aa saida que tambem lhos Requeriam outra vez quando vinham aportar em alfeizaram com as cousas de que assy Já pagaram seu direito. E por tanto decraramos que de quaaes quer mercadorias e cousas de que se pagar ho direito por emtrada em sallir que nom paguem mais outro direito em alfeizaram as pessoas que ho tal direito pagarem por via de sacada em terra do moesteiro ou emtrada.    
     Porem se as venderem no dito lugar dalfeizaram ou em alguum outro lugar do dito moesteiro pagaram dellas ho direito da venda da portagem segundo ho que das taaes cousas se mandar pagar portagem per este foral sem mais outra emnovaçam nem acreçentamento posto que doutra maneira se ora requeresse ou levasse ho que avemos por bem que se mais nom faça.
 
(Foral de Sellir da Foz, in DIAS, Luís Fernando Carvalho Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve: conforme o exemplar do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tomo 3 - Estremadura, edição do autor, Beja, 1962).





Adendas:

[1] 
A lagoa de Alfeizerão adentrava-se até à vila que lhe dava o nome, desdobrava-se em braços, até próximo da granja da Mota, para outras direções mais. À volta dessa lagoa, hoje reduzida à concha de S. Martinho, desenvolveu-se um complexo portuário da maior importância, representada pelas três povoações em análise. Por elas se escoavam e aí se faziam chegar produtos, aí se pescava, se extraía sal, se construíam embarcações. (GONÇALVES, Iria; e SILVA, Manuela Santos, São Martinho do Porto e a Lagoa de Alfeizerão na Idade Média, in A Baía de S. Martinho do Porto – Aspectos Geográficos e Históricos, Edições Colibri/Associação de Defesa do Ambiente de São Martinho do Porto, Lisboa, 2005)

[2] 
Milagres de S. Vicente dados a público em Lisboa por Mestre Estêvão, chantre da Sé Ulissiponense

Há-de atribuir-se certamente aos merecimentos do glorioso mártir o facto de um navio de Alcobaça ter escapado de naufrágio em perigo semelhante. Com efeito, o D. Abade que preside à comunidade dos monges, mandara encher um navio de carga com sal, que em Alcobaça há em abundância, e levá-lo para outro porto onde se compra mais caro. Saíra, pois, o navio com vento favorável, mas enganoso, do porto, e quando singra no alto, um pouco longe da terra, de repente, sobrevêm uma forte ventania contrária à posição das velas e num turbilhão atinge e envolve de tal modo o navio que com a corrente temerosa das ondas o navio é atirado para os buracos dos rochedos e para os sítios de onde ninguém sairia porque cairia a pique. E então que os homens de religião que ali se encontravam, aterrados com o perigo iminente, erguem em uníssono um clamor e dirigem preces incessantes a S. Vicente e soltam altos brados para que os livre da morte que os espera. Como por encanto, ao acabarem a oração, a borrasca passa, o vento converte-se em brisa agradabilíssima e o navio dirige-se com toda a tranquilidade para o porto em que o bem-aventurado Vicente é venerado. Logo que se sentem livres de tanto perigo apressam-se a ir à presença do santo mártir e aí rendem múltiplas graças pela libertação do perigo e dão a conhecer ao povo, em palavras que traduzem a sua gratidão, como haviam ficado livres de uma morte iminente por seus méritos.
(Reproduzido de: S. Vicente de Lisboa e seus milagres medievais, de NASCIMENTO, Aires Augusto, e GOMES, Saúl António, Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1985. Versão eletrónica em: http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/15163/1/V01501-073-159.pdf)


sábado, 19 de setembro de 2015

A construção de barcos em Alfeizerão - uma citação e uma pesquisa



     A citação da sinopse no portal da Torre do Tombo de uma carta para O CONCELHO DE ALFEIZERÃO, CONFIRMAÇÃO DE UMA CARTA DE D. JOÃO II, DADA EM TORRES VEDRAS, A 21 DE AGOSTO DE 1493 E ESCRITA POR JORGE AFONSO, NA QUAL CONFIRMAVA OUTRA DE D. AFONSO V, DATADA DE SANTARÉM, 8 DE DEZEMBRO DE 1457, E ESCRITA POR ÁLVARO GIL.

     Esta carta (cuja cota é: Chancelaria de D. Manuel I, liv. 40, fl. 9) é de inegável interesse, porque nos mostra, não apenas que se construíam navios ou frotas (fótias) em Alfeizerão, mas porque revela também o modo como esse labor envolvia toda a comunidade.

     O resumo do documento, na dita página Web, diz-nos o seguinte:

     Nesta [Carta], tendo os juizes, vereadores, procurador e homens bons do concelho de Alfeizerão, e Diogo da Silva, do conselho del-rei, e Escrivão da Puridade, recontado que de 2 anos até então se haviam aí feito 4 navios para a armada que el-rei [D'El-Rei ?], no que os moradores recebiam grande trabalho e fadiga por pousarem com eles os Senhores dos navios, e, às vezes, os seus homens que aí vinham para dar aviamento às "fótias" deles, e bem assim os carpinteiros e calafates que, nesses 2 anos, continuadamente, nunca deixaram de obrar. E assim os "fragueiros" * que vinham cortar os liames dos navios. E como os lavradores acarretavam com seus bois e carros as madeiras para eles, assim em lhes levarem mantimentos, e embora por seus jornais fossem pagos, não deixava de ser grande perda em suas fazendas. E sendo o lugar tão próximo da estrada, não podiam dar mantimentos e pousadas, como lhes convinha, aos caminhantes que por aí passavam, por causa do sobredito trabalho Pedindo o privilégio e liberdade de não serem constrangidos a levarem mantimentos a outras partes, nem servirem com suas bestas, el-rei, pela boa informação que tinha da gente desse lugar, houve por bem que, de então em diante, não fossem nisso constrangidos. Vicente Pires a fez.


     * Fraga, que no comum associamos a rochas, fráguas (monte fragoso), tem aqui o significado menos disseminado de madeira, mata, brenha. António de Moraes Silva (Diccionário da Lingua Portugueza, Tomo II, Lisboa, 1813) diz que fraga significa o tosco e grosseiro da lenha que se desbasta.
     Nas matas, andavam os fragueiros a cortar os liames, que não eram cabos nem cordas, noção a que de ordinário chegamos por associação de ideias, mas a madeira das curvas, com que se ligam e atam as peças do costado dos navios (António de Moraes Silva, obra citada).


O rio e o porto de ALFISARON

     Jaime Cortesão, na sua obra Os factores Democráticos na Formação de Portugal (Portugália Editora, 1964) refere uma obra náutica italiana *, o Portolano de Bernardino Rizzo, onde se refere, entre outros, os portos da Pederneira (Perdarerna) e Alfeizerão (Alfisaron), descrevendo sobre este aquilo que parecia ser, nas palavras de Cortesão, uma grande atividade de construção naval. Jaime Cortesão baseara-se num estudo do sábio alemão Conrad Kretschmer (Die italienischen Portolane des Mittelahers, Berlim, 1909) e desconhecemos, ainda que suspeitemos do contrário, se chegou a consultar a obra original de Bernardino Rizzo.

     O Portolano per tutti i naveganti é um roteiro náutico publicado em Veneza em 1490 por Bernardino Rizzo da Novaria, Stampador (impressor), cuja autoria é atribuída ao navegador veneziano Luigi Cadamosto, que explorou as ilhas Canárias e as costas africanas ao serviço de Portugal e do Infante D. Henrique. A obra publicada por Rizzo, encontra-se digitalizada e disponível online.

     Aproveitando essas facilidades, escrutinamos o Portolano em busca da passagem que nos interessava sobre a Pederneira e Alfeizerão. Na página 39 do PDF, o portulano fala dos portos da costa portuguesa e nomeia, entre a Galiza e Lisboa (continuando depois para Sul), os lugares de Viana, Vila do Conde, Porto e Gaia (Portogallo), Aveiro, Mondego (a Figueira ou outros dos portos desse rio), Berlengas, Pederneira, Alfeizerão, Cabo Carvoeiro, Cabo da Roca e Lisboa

O "nosso" parágrafo, que transcrevemos de seguida, é este:


De madego al chavo cbarboner e uno logo a nome perdarerna e uno altro luogo a nome el fiume alfisaron chee porto de marea e qui se sano de molte nave e navili per esser di Boschi asai
     Cientes das nossas muitas limitações no que toca ao italiano e, sobretudo, ao italiano falado corrente no século XV, recorremos a um amigo nosso, o italiano Stefano Valente, que além de escrever ficção e ensaios **, é também glotólogo e tem realizado inumeráveis trabalhos de tradução de textos do e para o italiano.

     Com a sua ajuda (que aqui, encarecidamente, agradecemos), chegamos à seguinte tradução:
Do Mondego ao Cabo Carvoeiro há um lugar de nome Pederneira e um outro lugar do nome do rio Alfeizerão, que é porto de maré e onde se sabe de muitos navios e frotas para serem carregados de madeira.
     Inicialmente, nave e navili sugeria-me naus e embarcações mais pequenas, como as galés. mas Stefano Valente assinala que, e cito: A palavra «navili» (agora navigli) significa «pequeno navio» mas - sobretudo em italiano antigo - assinalava especificamente um «conjunto de navios», uma frota de naus que viajavam juntas por um certo objetivo (comercial, militar etc.). Escreve o florentino Giovanni Villani (ca. 1280-1348): "Il rimanente delle galee e tutto il NAVILE de' Pisani si partirono di Sardigna" (Cronica).

     Se a nossa interpretação estiver correta, o Portolano de Rizzo parece assinalar o embarque pelo porto de Alfeizerão das madeiras das matas do mosteiro, atividade económica amplamente confirmada pelas fontes documentais.





*   Também folheamos um outro roteiro náutico, este francês e do ano 1590, Le Grand Routier (Le grand routier et pilotage et enseignement pour ancrer tant ès ports, havres qu'autres lieux de la mer), mas os únicos lugares costeiros do centro que são aí apontados são o porto de Paredes e as Berlengas. A obra, escrita por Pierre Garcie, dito Ferrande, lista, na página 21 os lugares de referência na costa portuguesa com as distância entre eles expressas em léguas marítimas: De Bayonne a Caminha, 4 léguas; de Caminha a Viana, 4 léguas, de Viana a Vila do Conde, 5 léguas; da Vila do Conde ao Porto em Portugal [sic], 4 léguas; do Porto a Verride [Vero de Mondego], 9 léguas; do Mondego a Paredes [Parades], 9 léguas; das Paredes às Berlengas [Berlingues], 9 léguas; das Berlengas ao Cabo da Roca [Rocque de Cyntre], 12 léguas; do Cabo da Roca ao Cabo Espichel [cap de Fichiet], 10 léguas; do Cabo Espichel ao Cabo de S. Vicente, 28 léguas.

** A única das suas obras que foi, até agora, publicada no mercado nacional, foi o romance O Espelho de Orfeu, pela Ésquilo Editora.


domingo, 30 de agosto de 2015

O dinossauro de Alfeizerão

Um Dacentrurus armatus, o primo forte do dinossauro encontrado em Alfeizerão


1 - Mundo Jurássico

     A zona de Alfeizerão inscreve-se no bordo da Bacia Lusitaniana, numa região delimitada a norte pela falha da Nazaré, e a sul pela falha de Torres Vedras, e e que é caraterizada pela designada Depressão ou Diapiro de Caldas da Rainha, uma dobra associada a uma falha que se traduziu pela intrusão de uma camada geológica mais antiga (as Margas da Dagorda) - esse diapirismo acentuou-se no período Jurássico com a formação de sub-bacias.
Os afloramentos da unidade de Margas da Dagorda, mais resistente que os materiais envolventes, constituem os relevos destacados na baixa de Alfeizerão. Um destes relevos é constituído pelo local de implantação do castelo. A transição abrupta da zona baixa para as encostas a nascente, as quais correspondem ao bordo leste do Diapiro de Caldas da Rainha, é feita por uma falha que coloca em contato duas unidades com diferente natureza e idade. A primeira, constituída pelas Margas da Dagorda, de cor arroxeada, visível nos taludes da autoestrada, contata com a segunda, formada por um complexo estratificado de grés e margas do Jurássico Superior.
(INÁCIO, Ana, Uma região de contrastes, artigo no fascículo Alfeizerão, do jornal Região de Cister, ano de 2014).
     Alfeizerão ocupa o fundo do Diapiro de Caldas da Rainha, assentando numa planície aluvial relativamente recente; e as suas colinas a oriente preservam estratos geológicos do Mesozóico, com conchas fósseis e vestígios de plantas e animais.

Um mapa geológico da região, onde o cinza-claro corresponde ao Jurássico Superior, o cinza-escuro ao Triásico Superior e Jurássico Inferior, e o branco a rochas de outros períodos geológicos. Nota-se a oposição das duas unidades geológicas distintas na linha de colinas a nascente de Alfeizerão. Mapa retirado, com a devida vénia, do estudo Natural to anthropogenic forcing in the Holocene evolution of three coastal lagoons (Caldas da Rainha valley, western Portugal) , de J.L. DINIS, , V. HENRIQUES , M.C. FREITAS , C. ANDRADE , P. COSTA, documento eletrónico de 13 de Março de 2006, disponível no endereço: https://estudogeral.sib.uc.pt/jspui/bitstream/10316/3937/1/file6547c54cc10c481d8b9ee880521d3e73.pdf


2 - Paul Choffat

     Paul Choffat, nascido na Suíça em 1849, foi instado pelo seu pai a seguir uma profissão fiável e segura, pelo que começou por se empregar numa casa bancária com dezanove anos; e a prosperidade alcançada nessa carreira, aliada a uma paixão crescente pela ciência, impeliram-no a seguir em Zurique o curso de Química e de Ciências Naturais, que concluiu com distinção, numa altura em que já se entregava a estudos em paleontologia, sendo depois nomeado professor agregado de paleontologia animal na Universidade e Escola Politécnica Federal de Zurique. Trabalhou com os maiores geólogos do seu tempo, notabilizando-se no estudo dos estratos jurássicos do Jura francês. Em 1878, em Paris, no decorrer dos trabalhos do Congresso Internacional de Geologia, Choffat foi convidado a trabalhar em Portugal por Carlos Ribeiro, distinto geólogo e diretor da Secção dos Trabalhos Geológicos de Portugal, organismo que antecedeu os Serviços Geológicos de Portugal. Choffat chega ao nosso país nesse mesmo ano, para um período de tempo de trabalho que estimava em três meses, mas os seus estudos e trabalhos no nosso país estenderam-se por quatro décadas, publicando inúmeros trabalhos científicos de geologia e cartografia geológica.

3 - Os achados na mina de carvão

     Em 1908, Paul Choffat desloca-se a Alfeizerão para explorar os vestígios de fósseis postos a descoberto numa mina de carvão próxima da vila. A localização da mina é descrita desta forma: A mina encontra-se a cerca de quilómetro e meio a Este da igreja de Alfeizerão, e a sua entrada abre-se numa ravina que emerge da planície imediatamente a sul da curva que marca o início da estrada que sobe para Alcobaça.

     Indaguei sobre essa mina, e o Carlos Casimiro de Almeida deu-me as indicações para a sua localização, adiantando, no entanto, que a boca ou entrada da mina ainda era nítida há quarenta ou cinquenta anos, mas que já não existiam traços visíveis da sua existência. Segui essas indicações numa deslocação ao lugar. Quem saia de Alfeizerão na direção da A8 pela estrada nacional 242, encontrará antes da rotunda uma saída à direita que passa por baixo do viaduto e descreve um U antes de começar a subir para a Cadarroeira. Essa estrada alcatroada, que surge nos mapas como Caminho do Vale do Moinho, tem à esquerda, ainda cá em baixo, um caminho largo em terra que sobe para os lados do Casal Pardo (um belo passeio, por sinal), e era na encosta a montante desse caminho que as pessoas de Alfeizerão se lembravam da existência da boca da mina. A vegetação cobre a encosta quase por completo, tornando extremamente difícil averiguar da sobrevivência dessa entrada.

     Paul Choffat realizou no local um corte transversal que expôs as seguintes camadas geológicas: no topo, uma camada de areia do período Kimmeridgiano, seguindo-se a esta uma camada do Jurássico com carvão fóssil ou lignito e diversos ossos de um mesmo dinossauro, encontrados junto a um ovo de dinossauro; depois, uma camada de argilas com vestígios vegetais (de fetos e coníferas) e, por fim, uma camada de calcário do Lusitaniano com crinóides e ouriços-do-mar.

     O dinossauro encontrado era um Dacentrurus lennieri (que no tempo de Choffat ainda se designava pelo nome de Omosaurus lennieri) um dinossauro herbívoro da família dos estegossauros (Ordem: Ornitischia, Infraordem: Stegosauria) de corpo resguardado por placas e aguilhões. Os Dacentrurus subdividiam-se em dois tipos diferentes, este, o Lennieri, grácil e de menores dimensões, e o Dacentrurus armatus, maior e mais robusto.

     Os ossos fósseis encontrados na mina, que se supõe pertencerem ao mesmo indivíduo, eram formados por duas vértebras dorsais, seis vértebras da cauda, e diversos fragmentos das costelas.

     O ovo de dinossauro, ou metade de um ovo de dinossauro, encontrado junto a estes ossos fossilizados, tornaram célebre este trabalho de Choffat porque, em princípio, estaríamos perante o primeiro exemplo de um ovo de dinossauro encontrado no nosso país. Os progressos da paleontologia determinaram, no entanto, que fora retirado da mina, não um ovo, mas um pseudo-fóssil, uma formação rochosa de origem não-orgânica que conseguiu enganar o experiente geólogo suíço (segundo Karl Hirsch, referido por E. G. CRESPO, em Dinossauros do Jurássico Médio e Superior Português, publicação eletrónica disponível no endereço http://www.arca.museus.ul.pt/ArcaSite/obj/pubsZoo/MNHNL-0001293-MB-DOC-web.PDF, consultado pela última vez em 30 de Agosto de 2015).

4 - Algumas achegas

     Os dados que aqui trouxemos sobre o dinossauro de Alfeizerão foram colhidos na obra de referência sobre dinossauros no nosso país, escrita por LAPPARENT, A. F. de, e G. ZBYSZEWSKI (Les dinosauriens du Portugal. Mémoires des Services Géologiques du Portugal, nouvelle série, 2:1-63, 1957).

     A mesma obra assinala o achado de três vértebras quebradas de Megalosaurus insignis na parte superior de uma arriba marinha a nordeste de Salir do Porto, na superfície de um banco calcário cortado por pequenas falhas. O Megalosaurus insignis era um dinossauro carnívoro de grandes dimensões do período Jurássico Médio. Um achado a juntar aos iconofósseis (pegadas de dinossauro) que enxameiam as rochas da serra do Bouro.

     Na mesma obra ficamos a saber que, da espécie de dinossauro encontrada em Alfeizerão, o Dacentrurus lennieri, foram descobertos exemplares no Jurássico Superior da Atalaia (Lourinhã), S. Bernardino (Peniche), Murteiras (Foz do Arelho), Praia da Areia Branca, Maceira e Pombal; enquanto o Dacentrurus armatus foi exumado no Baleal, Murteiras (Foz do Arelho), Lourinhã e Sesimbra. 

     Galton, referido por E. G. Crespo (obra citada, página 52), defende que nunca existiu um tipo Dacentrurus lennieri, e o que se classifica como tal são indivíduos jovens (logo mais pequenos e leves) do Dacentrurus armatus.