A citação da sinopse no portal da Torre do Tombo de uma carta para O CONCELHO DE ALFEIZERÃO, CONFIRMAÇÃO DE UMA CARTA DE D. JOÃO II, DADA EM TORRES VEDRAS, A 21 DE AGOSTO DE 1493 E ESCRITA POR JORGE AFONSO, NA QUAL CONFIRMAVA OUTRA DE D. AFONSO V, DATADA DE SANTARÉM, 8 DE DEZEMBRO DE 1457, E ESCRITA POR ÁLVARO GIL.
Esta carta (cuja cota é: Chancelaria de D. Manuel I, liv. 40, fl. 9) é de inegável interesse, porque nos mostra, não apenas que se construíam navios ou frotas (fótias) em Alfeizerão, mas porque revela também o modo como esse labor envolvia toda a comunidade.
O resumo do documento, na dita página Web, diz-nos o seguinte:
Nesta [Carta], tendo os juizes, vereadores, procurador e homens bons do concelho de Alfeizerão, e Diogo da Silva, do conselho del-rei, e Escrivão da Puridade, recontado que de 2 anos até então se haviam aí feito 4 navios para a armada que el-rei [D'El-Rei ?], no que os moradores recebiam grande trabalho e fadiga por pousarem com eles os Senhores dos navios, e, às vezes, os seus homens que aí vinham para dar aviamento às "fótias" deles, e bem assim os carpinteiros e calafates que, nesses 2 anos, continuadamente, nunca deixaram de obrar. E assim os "fragueiros" * que vinham cortar os liames dos navios. E como os lavradores acarretavam com seus bois e carros as madeiras para eles, assim em lhes levarem mantimentos, e embora por seus jornais fossem pagos, não deixava de ser grande perda em suas fazendas. E sendo o lugar tão próximo da estrada, não podiam dar mantimentos e pousadas, como lhes convinha, aos caminhantes que por aí passavam, por causa do sobredito trabalho Pedindo o privilégio e liberdade de não serem constrangidos a levarem mantimentos a outras partes, nem servirem com suas bestas, el-rei, pela boa informação que tinha da gente desse lugar, houve por bem que, de então em diante, não fossem nisso constrangidos. Vicente Pires a fez.
* Fraga, que no comum associamos a rochas, fráguas (monte fragoso), tem aqui o significado menos disseminado de madeira, mata, brenha. António de Moraes Silva (Diccionário da Lingua Portugueza, Tomo II, Lisboa, 1813) diz que fraga significa o tosco e grosseiro da lenha que se desbasta.
Nas matas, andavam os fragueiros a cortar os liames, que não eram cabos nem cordas, noção a que de ordinário chegamos por associação de ideias, mas a madeira das curvas, com que se ligam e atam as peças do costado dos navios (António de Moraes Silva, obra citada).
O rio e o porto de ALFISARON
Jaime Cortesão, na sua obra Os factores Democráticos na Formação de Portugal (Portugália Editora, 1964) refere uma obra náutica italiana *, o Portolano de Bernardino Rizzo, onde se refere, entre outros, os portos da Pederneira (Perdarerna) e Alfeizerão (Alfisaron), descrevendo sobre este aquilo que parecia ser, nas palavras de Cortesão, uma grande atividade de construção naval. Jaime Cortesão baseara-se num estudo do sábio alemão Conrad Kretschmer (Die italienischen Portolane des Mittelahers, Berlim, 1909) e desconhecemos, ainda que suspeitemos do contrário, se chegou a consultar a obra original de Bernardino Rizzo.
O Portolano per tutti i naveganti é um roteiro náutico publicado em Veneza em 1490 por Bernardino Rizzo da Novaria, Stampador (impressor), cuja autoria é atribuída ao navegador veneziano Luigi Cadamosto, que explorou as ilhas Canárias e as costas africanas ao serviço de Portugal e do Infante D. Henrique. A obra publicada por Rizzo, encontra-se digitalizada e disponível online.
Aproveitando essas facilidades, escrutinamos o Portolano em busca da passagem que nos interessava sobre a Pederneira e Alfeizerão. Na página 39 do PDF, o portulano fala dos portos da costa portuguesa e nomeia, entre a Galiza e Lisboa (continuando depois para Sul), os lugares de Viana, Vila do Conde, Porto e Gaia (Portogallo), Aveiro, Mondego (a Figueira ou outros dos portos desse rio), Berlengas, Pederneira, Alfeizerão, Cabo Carvoeiro, Cabo da Roca e Lisboa
O "nosso" parágrafo, que transcrevemos de seguida, é este:
De madego al chavo cbarboner e uno logo a nome perdarerna e uno altro luogo a nome el fiume alfisaron chee porto de marea e qui se sano de molte nave e navili per esser di Boschi asaiCientes das nossas muitas limitações no que toca ao italiano e, sobretudo, ao italiano falado corrente no século XV, recorremos a um amigo nosso, o italiano Stefano Valente, que além de escrever ficção e ensaios **, é também glotólogo e tem realizado inumeráveis trabalhos de tradução de textos do e para o italiano.
Com a sua ajuda (que aqui, encarecidamente, agradecemos), chegamos à seguinte tradução:
Do Mondego ao Cabo Carvoeiro há um lugar de nome Pederneira e um outro lugar do nome do rio Alfeizerão, que é porto de maré e onde se sabe de muitos navios e frotas para serem carregados de madeira.Inicialmente, nave e navili sugeria-me naus e embarcações mais pequenas, como as galés. mas Stefano Valente assinala que, e cito: A palavra «navili» (agora navigli) significa «pequeno navio» mas - sobretudo em italiano antigo - assinalava especificamente um «conjunto de navios», uma frota de naus que viajavam juntas por um certo objetivo (comercial, militar etc.). Escreve o florentino Giovanni Villani (ca. 1280-1348): "Il rimanente delle galee e tutto il NAVILE de' Pisani si partirono di Sardigna" (Cronica).
Se a nossa interpretação estiver correta, o Portolano de Rizzo parece assinalar o embarque pelo porto de Alfeizerão das madeiras das matas do mosteiro, atividade económica amplamente confirmada pelas fontes documentais.
* Também folheamos um outro roteiro náutico, este francês e do ano 1590, Le Grand Routier (Le grand routier et pilotage et enseignement pour ancrer tant ès ports, havres qu'autres lieux de la mer), mas os únicos lugares costeiros do centro que são aí apontados são o porto de Paredes e as Berlengas. A obra, escrita por Pierre Garcie, dito Ferrande, lista, na página 21 os lugares de referência na costa portuguesa com as distância entre eles expressas em léguas marítimas: De Bayonne a Caminha, 4 léguas; de Caminha a Viana, 4 léguas, de Viana a Vila do Conde, 5 léguas; da Vila do Conde ao Porto em Portugal [sic], 4 léguas; do Porto a Verride [Vero de Mondego], 9 léguas; do Mondego a Paredes [Parades], 9 léguas; das Paredes às Berlengas [Berlingues], 9 léguas; das Berlengas ao Cabo da Roca [Rocque de Cyntre], 12 léguas; do Cabo da Roca ao Cabo Espichel [cap de Fichiet], 10 léguas; do Cabo Espichel ao Cabo de S. Vicente, 28 léguas.
** A única das suas obras que foi, até agora, publicada no mercado nacional, foi o romance O Espelho de Orfeu, pela Ésquilo Editora.
Obrigadíssimo, ainda uma vez, pela honra de me teres interpelado por esta pesquisa tão interessante (embora a minha modestíssima contribuição não mereça palavras tão boas).
ResponderEliminarSempre modesto, Stefano, mas o que já realizaste sobrepuja a tua modéstia. Obrigado uma vez mais, e um abraço!
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