quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Notas avulsas sobre os barcos e o porto de Alfeizerão - 2

Luís Pires - Arribou a Portugal
Detalhe da Memória das Armadas que de Porrugal passaram à India

Alfeizerão e o mar – os navios

     Na carta régia de 1493 cujo resumo aqui transcrevemos, mencionava-se a construção em Alfeizerão de quatro navios no espaço de quatro anos, navios que se destinavam à armada D’El Rei. Esta carta régia surge em confirmação de outra de teor semelhante de D. Afonso V, dada quase quarenta anos antes.

     O que documentos como este nos transmitem sobre Alfeizerão, é que existia aí uma intensa construção naval, iniciada pelo menos no século XIV, já que D. Afonso IV mandara construir aí as suas galés (GONÇALVES, Iria; e SILVA, Manuela Santos, São Martinho do Porto e a Lagoa de Alfeizerão na Idade Média, in A Baía de S. Martinho do Porto – Aspectos Geográficos e Históricos, Edições Colibri/Associação de Defesa do Ambiente de São Martinho do Porto, Lisboa, 2005). Segundo estas autoras, foi nos séculos XV e XVI que os estaleiros de Alfeizerão laboraram no seu máximo, e acrescentam: A atividade do estaleiro envolvia toda a população. Havia trabalho para todos, desde os que se aplicavam diretamente na construção do barco, aos que aprontavam e transportavam para o local os materiais a empregar, sobretudo a madeira; aos que vendiam, confecionavam e acarretavam os alimentos e tudo o mais que o viver quotidiano necessita; aos que se viam obrigados a alojar os armadores, por vezes grandes potentados, que se faziam acompanhar de grandes séquitos e se demoravam bem mais tempo do que os locais desejariam.

     Nestas empreitadas de construção de navios, alguns seriam construídos aí de fio a pavio com os homens, materiais e meios que aí existiam, noutros, o barco era posto de pé com os arrais, calafates e carpinteiros enviados para o local, tal como sucedeu com as galés mandadas construir por D. Afonso IV. O foral da vizinha Salir da Foz serve-nos, uma vez mais, como referência, agora, para perceber como se articulava essa atividade: E assy se pagará dos navyos que homeens de fora hy comprarem e tirarem dizima da vallia que custou. E assy se pagará do navyo que se hy fizer per homens de fora e se tirar. Do qual se descontará tanta parte da dizima quanta teverem pago de portagem da madeyra, ferro e cousas que se pera ho fazimento delle trouxerem. E da madeyra outra que nom seja lavrada de torno, se levara por carga a dous Reaes. E por carretada a quatro Reaes (L. F. Carvalho DIAS, v. Bibliografia).

     Os dados transmitidos por esse foral são enriquecidos por um documento de 1478 publicado por Laranjo Coelho (v. Bibliog.) que nos fala precisamente de um requerimento ao rei D. Afonso V feito pelos carpinteiros dos estaleiros da Pederneira, Salir e Alfeizerão:
Faço saber a quantos este meu alvara virem que os carpinteiros das vilas da Pederneira, Salir e Alfeizeram sse agravaram a mym dizendo que ora novamente sam constrangidos que paguem sisa das empreitadas que tomam dalgumas pessoas pera lhe fazerem navyos de toda a sorte segundo se com eles concertam pera lhos darem acabados: a saber : brancos no estaleiro e pretos na aguoa o que nunca atee ora pagaram. Pedindo me que nello lhe ouvesse remedio e visto em seu rreuquerimento. A mym apraz que posto que seja achado que per direito eles deuem de pagar tal sisa, que eles seiam della escusados e rreleuados daqui em diante em quamto minha mercee for e nesto se nam emtenda algum direito seo acerca dello teueram os rrendeiros que foram o anno passado de myl e quatroçentos e setenta e sete anos e este presente de satenta e oyto. E porem mando a todollos meus ofiçiaaes e pessoas a que o conhecimento desto pertencer que nam costramgam nem mandem constranger os ditos carpinteiros pella dita sisa daqui em diante em quanto mjnha mercee for como dito he nem lhe façam nem conssentam por elle fazer nem huum nojo nem sem rrezam porque assij ho ey por bem ficando aos sobre ditos rrendeiros rresguardado sseu direito pela guisa sobre dita sem outra duvjda nem embarguo alguum. Ffeito em a mjnha Çidade de Lisboa a dous dias do mês de Janeiro. Johan da Fonsseca a fez anno de mjll e quatroçentos e satenta e oyto anos
(Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Estremadura, liv 7º, fl. 109)
     A distinção entre navios brancos e navios negros merece uma anotação, que já se infere do texto. Os dois termos indicam o estado em que a empreitada era dada como concluída, em função da encomenda que lhe dera origem. Navios brancos, designava o barco depois de construído, com as suas cobertas e costados pregados; o navio negro, o barco pronto a ser colocado na água: depois de isoladas uma ou duas vezes com estopa todas as fendas no tabuado, o barco era chamuscado, e dava-se algumas demãos de breu, dai o termo «negro». Isto constituía a fase de calafetagem do navio e é descrita com minúcia no Ars Nautica, ou Livro da Fábrica das Naus, tratado escrito em latim pelo padre Fernando Oliveira e publicado em 1580. Servimo-nos do estudo sobre esse tratado realizado por Filipe Vieira de CASTRO (O Livro da Fábrica das Naus no contexto da construção naval oceânica do século XVI, documento eletrónico disponível em:http://nautarch.tamu.edu/shiplab/00-pdf/Castro%202010%20-%20Fernando%20Oliveira%20491-522.pdf, consulta mais recente a 24/09/2015).

     Um dos temas recorrentes sobre os estaleiros que laboravam na Lagoa de Salir é a feitura das naus que o malogrado rei D. Sebastião levou para o Norte de África. É repetido, autor após autor, que a maior parte delas foi construída em São Martinho do Porto, enquanto a Dra. Paula Lourenço (São Martinho do Porto na Época Moderna, v. Bibliog.) regista a seguinte reflexão: é plausível que a maior parte das naus de guerra, que partiram para a Índia e tantas outras que acompanharam D. Sebastião a terras do Norte de África, em 1578, tenham sido construídas em Alfeizerão e na Pederneira.

     Fernando Castelo-Branco, num trabalho histórico incontornável sobre a enseada de S. Martinho (Os Portos da Enseada de S. Martinho e o seu tráfego através dos tempos), relativiza essa tradição, que parece apoiada em autores novecentistas, contrapondo uma outra fonte, o historiador José Maria de Queirós Veloso, que escreveu em 1935 que as embarcações da expedição de D. Sebastião haviam sido requisitadas em portos do reino, ou fretadas no estrangeiro.

     Algo de semelhante encontramos nós na Crónica D’El-Rei D. Sebastião, escrita em finais do século XVI por Fr. Bernardo da Cruz (o destaque no texto é nosso):
(...) e o porto cheio de naus, umas d'armada d'El-Rei, outras de fidalgos particulares que faziam prestes pera suas pessoas, gente e mantimentos, outra grande quantidade de caravelas e barcos, para cavalos, palha e lenha, excepto outras muitas embarcações que El-Rei tinha mandado aparelhar aos portos do Algarve, para passar a gente d'Alentejo, de que era coronel Francisco de Távora, com outros muitos fidalgos e homens honrados, que lá mandavam aviar suas embarcações, por dali estarem mais acomodados a seu modo. Da mesma maneira, no porto de Aveiro e outras partes do reino, estavam navios aviando-se com gente e munições, os quais se haviam de ajuntar em África debaixo da bandeira de Dom Diogo de Sousa.
(Fr. Bernardo da Cruz, Chronica D'El-Rei D. Sebastião, 1585?, reeditado pela Biblioteca de Clássicos Portugueses, Volume II, página 27, Lisboa, 1903)
 Alfeizerão e o mar – os nautas

     Na suposição de que esses documentos existam, inéditos ou por estudar, são escassos os documentos publicados sobre o porto de Alfeizerão (a mesma lacuna para os primeiros séculos do porto medieval de São Martinho), mas o pouco que existe permite determinar que se encontrava ligado por um comércio de cabotagem a Lisboa e à Galiza, e que a madeira e o sal eram os principais produtos que por ele saíam. A circunstância do porto figurar nos roteiros publicados em Itália é uma indicação mais ou menos segura de que constituía uma escala para os barcos estrangeiros que comerciavam na nossa costa. Refiro-me concretamente ao Portolano per tutti i naveganti de Bernardino Rizzo (1490), que recentemente aqui tratei, e a um outro do ano de 1578 do geógrafo italiano Giovanni Lorenzo d’Anania.

     A Doutora Iria Gonçalves (O Património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV), assinala a entrada em Alfeizerão de consideráveis quantidades de ferro, que era encaminhado para o Mosteiro. João Afonso, alcaide de Alfeizerão, registou a entrada de setenta quintais de ferro num período de quatro anos (1436 a 1440). Havendo incertezas sobre a proveniência desse metal, como sublinha a investigadora, pesa grandemente a possibilidade dele ter entrado pelo porto de Alfeizerão.

     Sobre o sal, há uma referência registada em Alcobaça – a de que, no ano de 1443, Garcia Pires, de Alfeizerão, ficou por fiador de Afonso de Panjam, para pagar por ele a dízima de um navio de sal que carregou em Alfeizerão (Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças, Igrejas deste Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, Direção Geral de Arquivos/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 92).). António José Sarmento que menciona o mesmo documento, diz que o mercador era oriundo de Baiona, porto da Galiza.

     No respeitante à saída de madeira por esse porto, para além da referência no Portolano de Bernardino Rizzo, temos duas formosas indicações documentais, ambas do reinado de D. Fernando,
.
     Segundo Gama Barros (História da Administração Pública em Portugal…, volume X), o Foral da Portagem de Lisboa, de 5 de Outubro de 1377 integrava uma pauta das mercadorias do reino sobre as quais o Estado cobrava direitos de entrada e saída pelo porto de Lisboa, indicando-se a sua proveniência e natureza. Entre elas, regista-se, e a citação não é fortuita, que D’Alcaçar [Alcácer do Sal], pela foz, traziam mel, azeite, coiros vaccaris, cera, sebo e unto, trigo e outros cereais, farinha, peles de coelho, cordovão, baldreosas, badanas, vinho e sal. E sobre as madeiras, que Alcobaça, Alfeizerão, Leiria e Torres Vedras mandavam madeiras.

     A segunda referência às madeiras de Alfeizerão, é assim enquadrada por Virgínia Rau (Estudos sobre a História do Sal Português, página 114):
Por essa época, uma intensa cabotagem ligava os portos de Setúbal, Alcácer e Lisboa, andando continuadamente os seus respectivos baixéis e pinaças a acarretar pão de Alcácer, porto de saída dos campos cerealíferos do Alentejo, até à capital; como os oficiais del-rei tomassem «estes naujos tãães pera hirem per madeira a Alfeizerõ e pera hirem a outros lugares», reclamou a cidade de Lisboa, invocando a míngua de pão, e D. Fernando, por carta de 28 de Dezembro de 1380, houve por bem ordenar que tais navios não fossem tomados nem embargados para qualquer coisa enquanto andassem no transporte do pão.
     Esta carta de 28 de Dezembro de 1380, do rei D. Fernando para o Corregedor de Lisboa, Diogo Gil, encontra-se no acervo do Arquivo Municipal de Lisboa, foi digitalizada pela instituição e pode ser acedida online


Bibliografia:

BARROS, Henrique da Gama, História da Administração Pública em Portugal, Tomo X, capítulo IV, 2ª edição, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa.

CASTELO-BRANCO, Fernando, Os Portos da Enseada de S. Martinho e o seu tráfego através dos tempos, Separata dos Anais da Academia Portuguesa de História, II Série, Volume XXIII, tomo I, Lisboa, 1975.

COELHO, Possidónio Mateus Laranjo, A Pederneira – Apontamentos para a História dos seus mareantes, pescadores, calafates e das suas construções navais nos séculos XV a XVII, Separata do volume XXV de O Archeologo Português, Imprensa Nacional de Lisboa, 1924.

DIAS, Luís Fernando Carvalho, Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve: conforme o exemplar do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tomo 3 - Estremadura, edição do autor, Beja, 1962.

GONÇALVES, Iria, O Património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV, Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, 1989.

GONÇALVES, Iria; e SILVA, Manuela Santos, São Martinho do Porto e a Lagoa de Alfeizerão na Idade Média, in A Baía de S. Martinho do Porto – Aspectos Geográficos e Históricos, Edições Colibri/Associação de Defesa do Ambiente de São Martinho do Porto, Lisboa, 2005.

LOURENÇO, Paula, São Martinho do Porto na Época Moderna, in A Baía de S. Martinho do Porto – Aspectos Geográficos e Históricos, Edições Colibri/Associação de Defesa do Ambiente de São Martinho do Porto, Lisboa, 2005.


RAU, Virgínia, Estudos sobre a História do Sal Português, página 114, Editorial Presença, Lisboa, 1984

Simão de Pina - perdido com a tormenta
Detalhe da Memória das Armadas que de Porrugal passaram à India

Sem comentários:

Enviar um comentário