quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O FORAL DE 1332 - TRANSCRIÇÃO E NOTAS, por Carlos Casimiro de Almeida

E
n nome de deus amen.[1]
Sabham quantos e∫ta carta virem que nós, ffrey Johane, abbade, e o Cõvento do Monesteiro d alcobaça. Damos a vós, probadores, e a todos vo∫∫os ∫∫oçe∫∫ores, as no∫∫as herdades de∫∫e logo do alfeyzeram, da mota e da torre de fremõdo, como ∫∫on devi∫ados e demarcados per as devi∫ões que ∫∫e ∫∫eguem:
primeyramente como parte pela almoynha velha que ffoy da mouraria cõ barrãtes[2] e dali pelo valado carro e dy aa cruz de Johã d outeyro, pela carreyra, daí a augua dos mo∫queyros,[3] pela vena da angra; e di ∫∫ay∫∫e pelo arneiro de gõçalo e di pel encuberta ao marco que ∫∫ée no cume[4] ao marco de barva torta; e dy ao valado do pumar que ∫∫é no cume, como vay por e∫∫e valado aa eyra do barreyro que ffez gil rroiz[5] — e di como ∫∫e vay ao vi∫o ao marco que ∫∫ée na cabeça de ∫ob´la ca∫a de Leonardo; e dy ao marco que ∫∫ee na cabeça de çima d ouival [sic] de rrecobal, pelo caminho velho, e di a huum marco que ∫∫ee aperto en humma cabeça antre o caminho velho de charnaaes e o caminho d obidos que vay pera a çella; e di derivanmte como trave∫∫a o caminho da Cella e vai∫∫e aá rribeyra de ∫∫o a Grãja do ∫outo, hu ∫∫ee marco po∫to, e dy ao porto do pinheyro e di como parte adiãte cõ o termho da Cella e vay∫∫e aa varzea redõda. De∫i como parte cõ o termho da Cavalariça, que fica pera nós, e cõ a vinha da torre, a qual ffica por do termho do alfeyzerã.
Os quaaes pobradores devedes ∫eer Cento e nõ meos. Damos a vós as ditas terras ∫o taaes preitos e cõdicoes: que vós lavredes e ffruiteviguedes as ditas herdades bem e fielmente; e rrõpades e chãtedes vinhas e olivaaes; e ffaçades ∫alinhas de ∫al; e que dedes a nós e ao dito no∫∫o Monesteiro, en cada huum ano pera todo ∫empre, a quarta parte de todolos bens fruitos e renovu com que des hi der; e outro∫∫i do ∫al en paz e en ∫alvo ∫alvãdo; que das vinhas olivaaes e pomares que ffezerdes de novo devedes dar a quarta parte em paz e en ∫alno [sic]. o vinho no lagar e a tinta e as olivas colheitas na eyra. E devedes dar de cada ca∫aria ∫enhos alqueires de trigo na eira que ∫eja recebedoyro por fogaça, e ∫enhas galinhas por dia de O Sã Miguel; e todolos outros moradores que nõ ouverem herdade dem senhas galinhas polas moradas. E vós devedes vingar e∫∫as herdades de pos tres anos compridos, e ante nõ, Morãdoas cõtinoadamente per vós ou per outrem e lavrãdo e rõpendo cõtinoadameente; e o que a∫∫i nõ fezer que ∫∫eja dos ∫obreditos abbade e Cõvento de lha tolher nos dereitos tres anos. E vós nõ devedes vender e∫∫as herdades nem parte delas e ∫∫e as que∫erdes vender fazerdelo ∫aber ao que por nós morar no dito logo do alfeyzeram. e ∫∫e hy por nós nõ morar; nenguum nõ sejades teudo de vyrdes ∫obre∫to anos mays de∫ ali adeãte; vendedeo aa tal pe∫oa que faça anos o no∫∫o fforo e pague os ditos no∫∫os dereitos. E ∫∫seo a∫∫i nõ ffezer a venda nõ valha.
E por que nós nõ podemos e∫aifar palha pera nós quãdo hy formos, e pera e∫∫es que morarem no ca∫telo pera nõ reçeberdes deles nojo, cada huum lavrador deve dar huuma carrega de palha na eyra. e ∫∫e lha nõ demãdarem na eira nõ lhe ∫∫ejã de poys teudos. E todos os que viverem per almocravaria devem nos ffazer ∫∫enhas careiras cada ano cada huum cõ ∫∫a be∫ta.
E rreteemos pera nós o ca∫telo do alfeyzerã, cõ ∫as moradas e entradas e ∫aidas, a∫∫i como ãtre nós e vós; e a vinha que chãmã de pero neto, e a orta, a∫∫i como ∫ta ∫∫arrada . E rretemos pera nós todalas ∫∫ainhas ffeytas cõ ∫∫as entradas ∫∫aidas e perteenças. E rreteemos pera nós moynhos e azenhas, ffeytas e por ffazer, pi∫ões, Lagares de vinho e d azeite, fornos, rrelegos, açougues, portageens, moordomado, alcaidaria; e todolos outros ∫∫enhorios e dereitos[6] rreaaes, per qual gui∫a, quaisquer que sejã; tã bem do mar e do rrio como da terra. E o rrelego ∫eja pelo co∫tume de Santaren.
E vós devedes dar, bem e fielmentte, cõpridam~te, as dezimas e as premicias aa Egreja; todos vós devedes a aleger vo∫o alvazil por dia de Sã Miguel e pre∫entardelo a nós e nós juramentalo e cõfirmalo; e o alcayde ∫∫eja vezinho; e damos vos medidas e foro de Sãtarem en todalas outras cou∫as.
E vós devedes logo abrir a varzea da mota, tã bem aberta de meios come as ∫ergentes[7] de cõtra os mõtes e mãteelas pera ∫empre a vo∫∫a cu∫ta. E devedes meter guardadores jurados que guardem os paães, as vinhas e as abertas, e põerdes pena sobrelos danadores. Danos que ∫∫e fezerem ãtre nós e vós corregem∫∫e de vezino a vezinho, ∫egundo co∫tume de Sãtaren.
E vós devedes trabalhar logo per tal gui∫a que façades ca∫as e moradas, de gui∫a que ata Natal primeiro que vem, ou ãte ∫e ãte poderdes, cada huum ∫eja hi rre∫idente pera rrõper lavrar e ffrutivigar, de gui∫a que pare∫ca nõ mengua [pã] per cada huu. E ∫∫e alguum de vós ou de vossos ∫∫oçe∫∫ores, per negregença nõ qui∫er [?] proveitar na ∫∫a ca∫aria, ou a nõ fruytvigar, ou a de∫emparar, ou nõ rrõper, ou nõ chãtar vinhas e olivaaes, ou nõ fezer as ditas ∫aynhas, ou nõ pagar a nós os no∫∫os dereytos e foros ∫obreditos, ou nõ guardar e cõprir todalas cõdições de∫ta carta e cada huuma delas — nós vos po∫∫amos con∫trenger por todo a∫∫y como for dereyto.
E vós devedes dar dos lagares, ata Sã cibraão, tres ∫∫oldos do dia e da noyte, e dali adeãte cinquo ∫∫oldos; outro∫∫y do dia e da noyte, ainda ainda [sic] que sejades mays ajuntados en huum. E nós vos devemos fazer lagares ∫egundo cõpreze ao logar; e ∫∫e os nã fezermos devedes nolo defrõtar que os façamos, ata tres vezes, e de cada vez aver huum mes de∫paço; e dali a deãte ∫∫e os nõ fezermos faça∫∫e o que for dereyto.
E vós devedes ∫∫eer boos va∫∫alos e leaaes aa ordim. E vós devedes ameter acolher o pã [d, riscado] todolos de vo∫∫a ca∫a; e ∫∫e me∫ter for alguuns obreyros, meterdelos e pagam∫∫e do mõte ãte que ∫∫e parta. E outorgamo∫ com que po∫∫ades ∫emear ∫enhas teeigas de çevada, pera vo∫∫as be∫tas e pera vo∫∫os boys, e ∫∫e dela venderdes ou colherdes darddes a nós o vo∫∫o [?] quarto. Outro∫∫i das favas e ervilhas, çebolas, alhos e fruyta, po∫∫ades comer en verde ∫em maa maliçia; e das que colherdes, ou en rre∫tar, des ou vendardes, dardes en de a nós o quarto; e os no∫∫os gaados e os vo∫∫os devem paçer as hervas e bever as aguas de∫∫uum, de gui∫a que nõ façã dano. E nós devemos tapar o no∫∫o pomar de gui∫a que pare∫ca que he bem tapado e ∫∫e o a∫∫i nõ taparmos os gaados que hy entrarem nõ ∫∫ejã teudos a corregimento.
E nós, ∫∫obreditos cento pobradores e lavradores, por nós e por todos no∫∫os ∫∫oçe∫∫ores e∫ta carta e todalas condições dela e cada huuma delas louvamos e outorgamos. En te∫temunhos das quaes cou∫as, nós, ∫obreditos abbade e Cõvento, mãdamos en de fazer duas cartas: huuma que ffica rregi∫trada no livro da no∫∫a notaria e e∫ta que damos a vós, ∫∫elada do ∫∫elo de nós, ∫obredito abbade. E nós, Cõvento, por que de co∫tume de no∫∫a ordim, ∫∫elo nõ avemos opponimento[8] do ∫∫elo do dito no∫∫o abbade, en esta carta louvamos e outorgamos.
Dada en alcobaça. Vyte e huum dia d outubro. Era de mil ccc e ∫etenta anos» — e portanto 1332.


________________________________________

[1] Esclarece o historiador e meu amigo Valentino Viegas, da Torre do Tombo, que deve tratar-se do registo aqui existente, como era costume, visto o documento não apresentar assinaturas. Estas constariam, sim, das cartas originais: a que foi dada aos moradores e a que ficou no Mosteiro.
Para uma mais fácil leitura e melhor compreensão, procedi a algumas alterações ligeiras.
[2] Deve corresponder ao ponto onde está o marco divisório das freguesias de Alfeizerão e Salir de Matos, junto à ponte sobre o rio de Tornada.
Os campos em frente, excluindo a Mota, seriam salinas, razão por que não se referem os limites a poente.
[3] «Augua dos Mosqueiros» e «angra» devem ser a mesma coisa: tratar-se-á do salgueiral que as águas de Inverno deixavam alagado até à Primavera — a que a meio do século XX chamávamos a Mata do Padre.
[4] Espanta que a denominação Barba Torta venha de tão longe! Mas não é fácil interpretar a alusão que se lhe faz no âmbito das demarcações.
[5] Será uma abreviatura: num documento de 1440 que transcreve o foral de 1422, parece ler-se Domingues. Mais natural porém seria Rodrigues.
[6] Segue-se palavra que não consegui entender.
[7] A palavra tem relação com o verbo latino servir: poderá significar vala de escoamento, sarjeta,  mas também serventia —  termo muito usual na área, no sentido de caminho de acesso a certos campos.
[8]Dificuldades de leitura devidas ao estado de conservação da carta (particularmente a humidade, que, embebendo o pergaminho, misturou caracteres do rosto e do verso da folha) suscitaram-me e obrigaram a pequenos cortes. Sem prejuízo para a compreensão.

Carlos Casimiro de Almeida


_________________________________________________________________________________


Nota: a transcrição deste foral foi publicada - e era inédita - por Casimiro de Almeida na sua monografia Alfeizerão - Apontamentos para a sua História, do ano de 1995, com edição da Junta de Freguesia de Alfeizerão. Propus ao autor reproduzi-la aqui, para estar disponível em formato eletrónico para leitura ou estudo por parte dos interessados.
José Lopes





segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O CASTELO E O ENGENHEIRO – um arrazoado sobre um desenho icónico do castelo de Alfeizerão


Fig. 1 - Desenho, retocado, do castelo de Alfeizerão

(in O Archeologo Português, vol. VIII, n.º 4, p. 92, Janeiro de 1903, edição do Museu Ethnologico Português, Lisboa, Imprensa Nacional, 1903)


Resumo:
            O castelo de Alfeizerão possui esta imagem icónica, que é o desenho feito no século XVIII pelo sargento-mor de infantaria José António Monteiro de Carvalho. Desde o virar do século XIX até aos nossos dias, esse desenho foi repetido sucessivamente em monografias e obras de arqueologia, e reproduzido em painéis de azulejo e gravuras, condescendendo-se por vezes em lembrar que data do século XVIII, ou a detalhar que o seu autor era o dito Monteiro de Carvalho e que foi desenhado para obsequiar a rainha D. Maria I. 
Ao invés do que se poderia supor pela “legenda” que acompanha o desenho, um desenho algo majestoso criado para agradar uma rainha, este não é mais do que uma miniatura que adorna a cercadura de uma carta geográfica da Estremadura oferecida à rainha numa data imprecisa, balizada pela sua ascensão ao trono em 1777 e a morte de Monteiro de Carvalho em 1780.
Para enquadrar a realização e as condições em que surgiu a Carta Geográfica da Estremadura e este desenho do castelo em particular, alinhavaremos alguns ténues apontamentos biográficos sobre a figura do seu criador.

Engenheiro e artista
José António Monteiro de Carvalho foi militar e engenheiro e dele possuímos numerosos elementos biográficos reunidos por Sousa Viterbo. Foi um estudante brilhante na Academia de Fortificações e na Aula de Esfera (classe pública de matemáticas) do Colégio de Santo Antão, e em virtude dos seus progressos é nomeado pelo Conselho de Guerra no ano de 1751 como Ajudante de Infantaria com exercício de engenharia para a província de Trás-os-Montes (VITERBO, 1904, p. 175).
Sobre o seu contexto familiar, Viterbo transcreve documentos que nos indicam a sua ascendência até aos avós, sendo que os pais dele, Francisco Monteiro Rebelo e Isabel Maria, eram naturais, ele de Lisboa, da freguesia de Nossa Senhora dos Anjos, e ela do Vilar, Cadaval e também nos informa que contraiu matrimónio com Maria Rosa Joaquina, natural e baptizada na freguesia de Nossa Senhora do Socorro, em Lisboa (VITERBO, 1922, p. 389). Por um outro autor, Volkmar Machado, é-nos dito que uma irmã de Monteiro de Carvalho, Joana Inácia, ou Joana do Salitre, por ai residir, foi uma pintora lisboeta de muito renome nesse tempo, distinguindo-se como retratista e pintora de painéis de cariz religioso, e sobre a sua produção artística, considera Volkmar Machado: «O seu estilo, sem ser bom, é tolerável, atendendo ao seu sexo» (MACHADO, 1922, p. 106).
Monteiro de Carvalho é nomeado, juntamente com outras personalidades, para constituir por três anos o governo da instituída Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, preenchendo os cargos políticos da Companhia, que compreendiam um Provedor, doze Deputados e um Secretário. O diploma é assinado por Sebastião José de Carvalho e Melo e foi publicado no Porto a 31 de Agosto de 1756 (SILVA, 1830, pp. 426-441).
Mas é em Lisboa, e com o terramoto de 1755, que se notabiliza como engenheiro. Logo em Dezembro de 1755, é Monteiro de Carvalho quem inicia o inventário (o tombo) das praças, ruas e edifícios públicos e a medição da cidade, bairro a bairro, uma descrição que servirá de base ao quimérico e grandioso «Plano para a Reedificação da Cidade de Lisboa», exarado em Decreto com a data de 29 de Novembro de 1755, e que um diploma posterior com o mesmo título, publicado a 12 de Junho de 1758, esmiuçará rua a rua, praça a praça (SILVA, 1830, p 757). O conjunto dessas plantas delineadas por ele chegou até nós sob a forma do «Livro das Plantas das Freguesias de Lisboa», num total de 36, assinadas pelo engenheiro e onde se descreve as paróquias de Lisboa com os seus limites e confrontações (DGA/TT, Códices e documentos de proveniência desconhecida, n.º 153).
Para fazer cumprir o Plano, foi instituída uma Inspecção Geral do Plano que deveria levar os particulares a seguirem-no, obrigando-os a urbanizar os seus lotes de acordo com as pretendidas especificações. Para tal, são nomeados os Inspectores de Bairro e Monteiro de Carvalho, como Inspector de Obras, assume uma função conectora entre eles e fica encarregue de sanar conflitos entre os proprietários de terrenos, sendo o homem no terreno que melhor representava a vontade e os interesses da Inspecção Geral (RIJO, s/d). Entre demolições e construções, o plano titubeia e quase não progride.
Gustavo de Matos Sequeira, falando do sonho pombalino da nova capital, escreve: “O marquês, porém, não conseguiu ver iniciado sequer esse estupendo enxadrezado de ruas que ia até às fortificações de Campolide, valorizando-lhe uns terrenos que possuía para lá da Cruz das Almas e do Arco do Carvalhão. Foram-se as ruas traçando aos poucos e as Reais Obras não tinham remédio senão ir cedendo a pouco e pouco, abdicando do plano original e transigindo com as necessidades urgentes de construção e com o capricho dos proprietários. O tenente-coronel José António Monteiro de Carvalho – o “bota-abaixo” – além de ter sido encarregado das demolições que lhe granjearam a alcunha, foi também encarregado de executar o plano a que me refiro. Naturalmente, porque viu a quási impossibilidade de tal execução, elaborou um projecto seu que, ao que parece foi, em parte, aceite e aprovado porque em alguns locais da cidade se lhe deu realização (SEQUEIRA, 1917, pp. 481-482). Noutro tomo da mesma obra, o autor aquilata da forma seguinte a alcunha de “bota-abaixo”: «Pior do que o abalo propriamente dito foi o incêndio que, durante cinco noites e cinco dias, lavrou na cidade; e creio que pior do que isso tudo foi o sargento-mor José António Monteiro de Carvalho – o famigerado Bota-Abaixo – que, à picareta e à bala razourou toda a Baixa. O Paço da Ribeira foi metralhado; os camartelos pombalinos acabaram com o resto» (SEQUEIRA, 1916, p. 39). Na mesma obra e na página precedente, Gustavo de Matos Sequeira reconhece como um «trabalho ingrato» a função de Monteiro de Carvalho como «dirigente técnico das numerosas demolições» que tinham de ser feitas na capital.
Por alvará de 21 de Dezembro de 1760, Monteiro de Carvalho é nomeado «Arquitecto das obras do Conselho da Fazenda Real», cargo deixado em aberto pelo óbito do anterior detentor, o capitão Eugénio dos Santos de Carvalho (VITERBO, 1904, p. 176). Nessa qualidade, prossegue com a reedificação de Lisboa mas de uma forma menos draconiana, focado em cada uma das suas freguesias e atendendo aos interesses dos proprietários dos terrenos e imóveis. Essa linha de acção é bem acolhida quando intenta construir em terreno chão ou onde existem prédios muito arruinados, mas encontra séria resistência onde já existem imóveis erguidos ou em bom estado de conservação. Com o tempo, esse projecto acaba também por ser abandonado da mesma forma que o plano original (SEQUEIRA, 1916, p. 159). Do que ainda conseguiu construir em Lisboa, seguindo ou à revelia de um plano-mestre, fez uma relação manuscrita, compulsada por Gustavo de Matos Sequeira e que se intitulava: «Relação das Propriedades de casas edificadas pelo Plano Pombalino» (SEQUEIRA, 1916, p.15).
Uma das muitas realizações que foram confiadas a Monteiro de Carvalho foi a construção do novo hospital de Lisboa, que substituiria o Hospital Real de Todos os Santos destruído em Novembro de 1755, obra gizada para aproveitar o edifício do Colégio de Santo Antão que a Coroa havia confiscado aos jesuítas. Num diploma assinado pelo então Conde de Oeiras e datado de 27 de Setembro de 1769, se decreta que «Que a referida obra se faça de jornal com todos os materiaes por conta do dito Hospital. Que o Sargento mór de Infanteria com exercício de Engenheiro José Monteiro de Carvalho seja o Director dela. Que de acordo com elle se nomeye hum Mestre Pedreiro e outro Carpinteiro para debaixo das ordens do mesmo Sargento mor dirigirem os Artífices de seus respectivos officios» (Viterbo, 1922, pp. 388-389). O novo hospital aí nascido seria baptizado de S. José em homenagem ao monarca.
Tirando Lisboa e o que por lá fez, Monteiro de Carvalho parece ter viajado um pouco por todo o país, conhecendo-se-lhe plantas de localidades e fortificações disseminadas pelo território, da província de Trás-os-Montes ao Alentejo. No entanto, uma das suas obras mais surpreendentes, porque inesperada, é um livro com um título dilatado, o «Diccionario portuguez das plantas, arbustos, matas, arvores, animaes quadrupedes, e reptis, aves, peixes, mariscos, insectos, gomas, metaes, pedras, terras, mineraes, &c. : que a Divina Omnipotencia creou no globo terraqueo para utilidade dos viventes» (MONTEIRO DE CARVALHO, 1765). A obra, de valor científico duvidoso, é uma amálgama de descrições (algumas fantasistas) e definições que deve ter colhido de fontes várias, e na qual é legítimo supor que tenha acrescentado algo de seu, retirado da sua própria observação das «cousas naturaes» do país. Mas a obra serve um propósito claro: lisonjear e agradar ao marquês de Pombal, a quem o livro é expressamente dedicado: «por muitas razões, sendo a mais principal huma, que he a de não parecer ingrato; porque como tenho a inestimável honra de criado seu, seria sacrilégio da obrigação, e delicto contra o agradecimento deixar de o consagrar a V. EXCELENCIA, maiormente tendo recebido incomparáveis benefícios da sua generosa mão, sempre grande em favorecer». E a dedicatória prossegue no mesmo tom antes de colocar o seu nome sob a frase: «Seu mais humilde, fiel e obediente servo». Um pouco mais adiante, no prólogo, alude às suas andanças pelas províncias do reino: «porém, o que pudemos averiguar com certeza, e experiências certas nos annos que neste exercício nos occupámos, examinando particularmente pelas Províncias deste Reino aquellas cousas naturaes, de que ha maior conhecimento, he o que por hora se publica (…)».
Com a morte de D. José I em 1777 e a demissão do Marquês de Pombal, o seu sucessor, o terceiro Marquês de Angeja (D. Pedro José de Noronha Camões de Albuquerque Moniz e Sousa), ordena a suspensão das obras públicas de reconstrução de Lisboa, que prosseguem depois disso em função da vontade (e do capital) dos privados. O próprio Marquês de Angeja assume o cargo de Inspector geral das Obras Públicas e do plano de reedificação da cidade.
Foi nos seus três últimos anos de vida, entre a morte de D. José e o seu próprio óbito, que Monteiro de Carvalho elaborou três das quatro Cartas Geográficas que chegaram até nós.

As Cartas Geográficas  
Conhecem-se quatro cartas geográficas elaboradas por Monteiro de Carvalho para oferecer ao (à) monarca, certamente, com o mesmo propósito adulador que presidiu á feitura do referido “Diccionario…”. No conjunto, cobrem todo o território nacional, à excepção do “Reyno do Algarve” (talvez a morte do engenheiro tenha abortado esse projecto algarvio, se porventura existiu).
Todas as quatro cartas apresentam o mesmo modelo: uma mapa da província a preto e branco onde o oriente, lugar onde o sol nasce, está colocado no topo do mapa, ocupado pelo medalhão da dedicatória. A emoldurar o mapa, está desenhado uma cercadura com medalhões com plantas e desenhos de fortificações e lugares da província tratada na Carta Geographica. As Cartas foram desenhadas em papel envernizado e coladas sobre tela.
Cronologicamente, só temos uma certeza: a primeira de todas é a CARTA GEOGRAPHICA DA PROVINCIA DE ENTRE DOURO MINHO E TRAS OS MONTES, porque foi a única dedicada a D. José. A data desta carta é incerta, podendo recair em qualquer dos anos do reinado de D. José, entre 1750 e 1777, mais rigorosamente a partir de 1751, quando Monteiro de Carvalho troca Lisboa por paragens transmontanas, e presumivelmente antes de 1774, data em que D. Mariana Vitória assume a regência por incapacidade do rei. O estado de conservação dessa carta não é muito bom e encontra-se esgarçada (intencionalmente?) no sítio onde estaria escrito o nome do soberano. Todas as outras cartas são dedicadas á rainha D. Maria I, que subiu ao trono em 1777.
Se obedeceram a um plano artístico estruturado, à primeira devem ter sucedido a Carta Geographica da Província da Beira,Carta Geographica da Provincia da Estremadura e a Carta Geographica da Provincia do Alentejo. Pela qualidade artística, ou cuidado na sua concepção, a observação das cartas apoia a ordem que supusemos para elas. Na primeira carta, dedicada a D. José I, as plantas das fortalezas e praças apresenta o melhor nível de detalhe. Na Carta da Província da Beira, a primeira oferecida à rainha, além das plantas, encontramos desenhos (com alguma qualidade e intenção paisagística) dos castelos e das casas na sua envolvência, como acontece com os da Covilhã ou Celorico da Beira (“Serolico”). Na Carta da Província da Estremadura, as fortalezas desenhadas são mais sumárias em detalhe, e um traço, por vezes contínuo, perfila o monte onde se ergue a fortaleza, ou o vale atravessado pelo Aqueduto das Águas Livres. Na última Carta, a da província do Alentejo, só se vêem plantas de fortalezas e praças fortificadas, algumas, como a de Marvão, extremamente pobres artisticamente (mesmo falando de arquitectura).
     Monteiro de Carvalho é sobretudo um arquitecto, não alardeia grandes virtudes de gravador de paisagens - as paredes das casas e castelos não apresentam textura nem detalhes ínfimos, mas aparecem lisas; e ele desenha a forma das casas nas encostas pelo seu contorno e ângulos, como as desenharia um mero observador sem grande propensão para as artes. Nas plantas arquitectónicas, o risco da sua profissão, mostra-se seguro, com a tranquilizadora exactidão que qualquer pessoa pode extrair da geometria. Os desenhos, como as plantas, sugerem uma colecção de esboços e exercícios arquitectónicos reunida pelo engenheiro durante as suas viagens pelas províncias do país. São, ao todo, sessenta e sete medalhões decorados, em que ele teria usado esses esboços e exercícios para valorizar os mapas das províncias, realizados ou finalizados, à excepção do primeiro, nos seus derradeiros três anos de vida.
    
A Carta Geográfica da Estremadura
Esta Carta Geográfica tem as dimensões de 133 por 95 centímetros. Ao topo, lê-se na dedicatória central da cercadura: “Carta Geographica da Provincia da Estremadura que A S. Magestade Fidelissima e Augustissima Senhora D. Maria I Raynha de Portugal oferece o Sargento Mor Engenheiro Jozé Monteiro de Carvalho”.
     Visualizando a nossa região com mais detalha, vemos que “Alfeizirão” está mais deslocado para norte, distorção que encontramos igualmente em alguns mapas setecentistas e que pode ser devido a uma posicionamento viário da vila, à sua situação na estrada real que ligava a Pederneira (“Pedreneira”) ás Caldas. Enquanto as vilas na orla de lagoas e enseadas, ou na margem dos rios, são representadas mais fielmente no mapa, as vilas interiores (e Alfeizerão já o era nesta época) tendem a aparecer incorrectamente figuradas.
Partindo da dedicatória, a cercadura artística do mapa exibe nos 16 medalhões decorados, plantas ou desenhos de castelos ou fortalezas da Província e, como excepção, o desenho do aqueduto das Águas Livres. Entre os castelos, temos os dois castelos dos coutos de Alcobaça:

Fig. 2 - Os castelos de Alcobaça e Alfeizerão
na Carta Geográfica da Província da Estremadura

Este é o tal desenho do castelo de Alfeizerão (“Alfeizirão”) que foi oferecido á rainha D. Maria I. Comparando-o com as diversas reproduções que dele conhecemos (n’O Archeologo Português, no Mosteiro e Coutos de Alcobaçade Manuel Vieira Natividade, e outras obras), é notório que algumas pequenas alterações foram introduzidas nas cópias realizadas: corrigiu-se o traçado da torre da direita, eliminando a sobreposição do motivo vegetal da moldura do medalhão e melhorou-se o realismo da alvenaria das muralhas e torres, desenhando-se nelas a malha das pedras que as formariam. Outra diferença curiosa é a vegetação que espreita e desponta pelo castelo, que no original de Monteiro de Carvalho está muito bem desenhada, e nas cópias reduz-se, por vezes, a novelos de traços confusos e nervosos. O aprimoramento do desenho original, também acrescentou arbustos e ervas, e até uma árvore, no morro do castelo, para abolir a sua monotonia.

Fig. 3: Detalhe do castelo de Alfeizerão na mesma Carta Geográfica

Algumas dúvidas subsistem em relação a este desenho. Se foi realizado antes ou depois do Grande Terramoto de 1755 (a carta geográfica é, como vimos, posterior) e se estamos em presença de um desenho realista, presencial, do castelo, realizado por Monteiro de Carvalho, ou se ele foi composto a partir de uma descrição, ou de um esboço riscado por terceiros. As Memórias Paroquiais de 1758 (DGA/ANTT, Memórias paroquiais, vol. 2, nº 53, p. 465 a 472) narram que «teve o ditto castello muita ruina, e cahio muita parte,  mas sempre lhe ficaram bastantes torres ilezas».
 Sobre as dúvidas apontadas, apenas podemos formular uma opinião, e na nossa opinião, o desenho do castelo de Alfeizerão (como o do castelo de Alcobaça), é um esboço feito no local, antes do grande terramoto. E falamos de esboço porque é isso que temos pela frente, uma silhueta, um desenho do contorno e volume das torres e panos de muralha, com o sombreado nas áreas indispensáveis e os sucintos apontamentos da vegetação e dos relevos do monte onde o castelo se ergue. E corremos o risco de supor que ele é anterior ao Terramoto de 1755 pelo aspecto intacto da fortificação, onde não se vislumbram traços de que nele tenha caído “muita parte”. Em suma, Monteiro de Carvalho, teria usado aqui um esboço anterior a 1755, desenhado por si, à semelhança dos outros sessenta e seis desenhos e plantas que empregou na criação das cartas geográficas.
Se olharmos a questão numa linha cronológica, temos de ter presente que o rei D. José I morre no ano de 1777 e com a subida ao trono de D. Maria I e a demissão imediata do Marquês de Pombal gera-se no reino um clima de antagonismo para com os familiares e os homens da confiança do Marquês. José Monteiro de Carvalho, que o tinha como amo e mecenas, teria sentido um receio natural de ser arrastado nessa maré-vazante pombalina, e no espaço de três anos, e com economia de meios, compõe as três cartas geográficas que dedica à rainha D. Maria I. Usa a mesma técnica e a mesma cercadura em todas elas, e ocupou os medalhões com plantas ou desenhos reproduzidos de esboços prévios (e isto continua a ser uma conjectura). Muitos dos desenhos de fortificações são também pálidos esboços, como o do castelo de Alfeizerão, mas cumprem o que se pretende deles. Alguma inexactidão nas plantas ou nos mapas, ou alguma ausência de perfeccionismo artístico na execução dos desenhos, não seriam relevantes a ponto de comprometer o valor artístico daquela oferta à rainha, com cujo favor e graça contaria o engenheiro para se suster de cair em desgraça política. O que conseguiu, mesmo considerando que não viveu muito mais tempo do que o rei que serviu durante quase toda a sua vida.
Apesar das mudanças políticas e da instabilidade latente que se seguiu à queda do Marquês de Pombal – do qual se considerava o mais humilde, fiel e obediente servo -  Monteiro de Carvalho logrou permanecer à frente das obras públicas do reino como «Arquitecto do Conselho da Fazenda», cargo que desempenhará até ao ano da sua morte. A confirmação desse facto vem-nos de um documento do dia 17 de Maio de 1780, um alvará de D. Maria I para nomear um novo Arquitecto das Obras do Conselho da Fazenda: «Eu, a Rainha, faço saber aos que este alvará virem, que eu hey por bem nomear a Joaquim de Oliveira para architecto das obras do Conselho da Fazenda, de cuja incumbência se achava encarregado o sargento mor de infantaria com exercício de engenheiro José Monteiro de Carvalho, já falecido (…)» (VITERBO; 1922, p. 220).




BIBLIOGRAFIA:

MACHADO, Cyrillo Volkmar – Collecção de Memorias relativas ás vidas dos pintores e escultores, architetos e gravadores portuguezes e dos estrangeiros que estiverão em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922.

MONTEIRO DE CARVALHO, José - Diccionario portuguez das plantas, arbustos, matas, arvores, animaes quadrupedes, e reptis, aves, peixes, mariscos, insectos, gomas, metaes, pedras, terras, mineraes, &c. : que a Divina Omnipotencia creou no globo terraqueo para utilidade dos viventes, Lisboa, Oficina de Miguel Manescal da Costa, Impressor do Santo Ofício, 1765.

RIJO, Delminda, e MOREIRA, Francisco, (s.d.) - A Freguesia de Santa Cruz do Castelo nas Décimas de 1776, publicação do Gabinete de Estudos Olisiponenses da CML, In http://geo.cm-lisboa.pt/fileadmin/GEO/Imagens/GEO/Demografia_historica/SantaCruzCastelonasDecimas.pdf, acedido em 2 de Janeiro de 2014 em http://geo.cm-lisboa.pt/.

SEQUEIRA, Gustavo de Matos - Depois do Terremoto – Subsídios para a História dos Bairros Ocidentais de Lisboa, vol. I, edição da Academia de Ciências de Lisboa, Lisboa, 1916..

SEQUEIRA, Gustavo de Matos - Depois do Terremoto – Subsídios para a História dos Bairros Ocidentais de Lisboa, vol. II, edição da Academia de Ciências de Lisboa, Lisboa, 1917.

SILVA, António Delgado da - Colleção da Legislação Portugueza, desde a ultima compilação das ordenações – Legislação de 1750 a 1762, Volume I, Tipografia Maigrense, Lisboa, 1830.

VITERBO, Sousa (coordenação de) – Diccionario histórico e documental dos architectos, engenheiros e constructores portuguezes ou a serviço de Portugal, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1904.

VITERBO, Sousa (coordenação de) – Diccionario histórico e documental dos architectos, engenheiros e constructores portuguezes ou a serviço de Portugal, vol. III, Lisboa, Imprensa Nacional, 1922.


MATERIAL CARTOGRÁFICO:
- CARTA GEOGRAPHICA DA PROVINCIA DE ENTRE DOURO MINHO E TRAS OS MONTES DEDICADO A MAGESTADE FIDELISSIMA E SEMPRE AUGUSTA DE EL REY DE PORTUGAL E DOS ALGARVES DOM [ ...]NOSSO SENHOR POR JOZEPH MONTEIRO DE CARVALHO, SARGENTO MOR DE INFATARIA COM EXERCÍCIO DE ENGENHEIRO (BNP, cota D-158-R).

- CARTA GEOGRAPHICA DA PROVINCIA DA BEIRA OFERECIDA A S. MAGESTADE FIDELISSIMA E AUGUSTISSIMA SENHORA D. MARIA I RAYNHA DE PORTUGAL / PELO SARGENTO MOR DE INFANTARIA COM EXERCICIO DE ENGENHEIRO JOZÉ MONTEIRO DE CARVALHO (BNP, cota D-159-R).

- CARTA GEOGRAPHICA DA PROVINCIA DA ESTREMADURA QUE A S. MAGESTADE FIDELISSIMA E AUGUSTISSIMA SENHORA D. MARIA I RAYNHA DE PORTUGAL OFERECE O SARGENTO MOR ENGENHEIRO JOZÉ MONTEIRO DE CARVALHO (BNP, cota D-156-R).

- CARTA GEOGRAFICA DA PROVINCIA DO ALENTEJO QUE A S. MAGESTADE FIDELISSIMA E AUGUSTISSIMA SENHORA D. MARIA I E RAYNHA DE PORTUGAL OFERECE O SARGENTO MOR ENGENHEIRO JOZÉ MONTEIRO DE CARVALHO (BNP, cota D-157-R).

sábado, 25 de outubro de 2014

Grafias do Olhar 1: RAMALHO ORTIGÃO

                A estrada a S. Martinho e a Alcobaça, é simplesmente maravilhosa de paisagem; e nada vi jamais para lhe antepor como tranquila, risonha e pacífica expressão da natureza rústica e da vida rural. Na grande planície, em torno dos pingues campos de Alfeizerão, a pequena baía de S. Martinho do Porto parece embeber-se e penetrar na poética doçura do solo, com a voluptuosidade dum beijo aquático dado à campina pelo oceano. Para o lado oposto do caminho até á cordilheira que vem de Sintra, e cujo perfil violáceo se esbate ao longe nas transparências do céu, é o largo e majestoso vale salpicado de casais alvejantes, entre as vastas searas ondulosas e os densos bosques de pinheiros sobre consecutivos e suaves cômoros virentes de vegetação brava, cobertos de fetos, de giestas e de urze, desabrochando á beira da estrada em flores que se não vêem ao longe, bebidas pela grande massa verde-negra, e são as estrelas doiradas do tojo, os turbantes azuis das alcachofras, e as pontas prateadas das moitas do travisco, sobre que caem em regaçadas do valado, os cachos das madressilvas.


(Ramalho Ortigão, citado por Raul Proença no volume II do “Guia de Portugal”, página 603, edição original de 1927, reedição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991).

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O TOPÓNIMO "ALFEIZERÃO" - por Carlos Casimiro de Almeida

A ideia de que a palavra Alfeizerão «significa caniço ou canavial miudo» foi expressa nos finais do séc. XVIII por Fr. João de Sousa, no seu livro Vestigios da Lingua Arabica em Portugal ou Lexicon Etymologico das palavras e nomes portuguezes que tem origem arabica. Cristão novo nascido em Damasco, veio para Lisboa com 16 ou 20 anos. «Interprete de S. Magestade para a Lingua Arabica», membro da Academia das Ciências, professor de árabe, tradutor dos Documentos Arábicos» […] da Torre do Tombo, parece pois muito bem qualificado para a expressar.
No decurso do séc. XX outros autores reforçaram esta ideia, dizendo «cana, junco, bambu», mas indicando um étimo algo diferente: «al-khaizuran», e não o  anterior «Alcheizaran».
Parecia assim reforçada a certeza da etimologia árabe e do sentido vegetal do topónimo. Mas eis que em finais do século, em rompimento com a teoria dominante, Oliveira Marques (especialista do Islamismo em Portugal) indica, categoricamente, novo étimo para a palavra Alfeizerão: «al-hazeray». Sem no entanto referir quer o valor  semântico quer a fonte, e sem aludir à versão antiga.
Também a realização escrita do nome tem conhecido formas variadas, algumas fazendo supor multiplicidade sonora: «alfeysarã» (1287 - em letra de imprensa, o primeiro documento conhecido em que o topónimo aparece) ; «alfeizeram» (foral de 1332, documento manuscrito ; «Alfeizarão (alfeizarom) » (1422); «Alfeizeram» (1514); «Alfejzaraõ»  (1515 - talvez o primeiro documento que o refere como vila) ; «Allfeyzyram» (1516 - Trovas a uma Mula, no Cancioneiro Geral, porém o manuscrito era do século anterior) ; «Alfeizirão» (1537, 1685, 1698) ; «Alfaceiraõ» (1758 - registado pela mão do próprio pároco) ; mas «Alfeizerão» (1863 – documento local). Sem esquecer «Alfeizarão» (alheio aos naturais), no azulejo da parede exterior da igreja, lado sul, e numa casa particular que haverá uns 100 anos assinalava a entrada leste da vila. Desde ponto até aos outeiros era oficialmente o Casal (ou Casais) do Vale da Cela (com exceção do Casal  de Fonte Figueira ou «Moinho»).
Por fim «Alfazeirão», tendência de forasteiros hoje muito ouvida.
Em Alfeizerão - Apontamentos para a sua História (págs.31 e 36), manifestei certa dificuldade em aceitar o campo semântico vegetal: para os povos aqui chegados por mar, haveria características mais sugestivas para o nome do local. Batizar os sítios de acordo ou com a geografia ou com a posse é uma tendência natural dos povos: Monte Gordo, Carrascas, Junqueira, Casal do Aguiar… E parecendo-me que à chegada do Islão a característica mais relevante seriam as duas aberturas pelas quais a lagoa de então comunicava com o mar, interrogo-me quanto ao significado do topónimo e deixo antever a hipótese de não ter origem árabe. Não me parecia que pudesse estar coberta de vegetação pantanosa essa  insulated eminence notada pelo viajante inglês (Beckford), que muito mais se destacava das águas à chegada dos islamitas… Ou de gente mais antiga, antiquíssima:

Há três milénios a área era propícia à fixação humana, mais ainda que a generalidade da Estremadura, rica em achados «de proveniência estranha à região». A existência de um bom porto de abrigo era condição excecionalmente favorável, pela existência da lagoa marinha, decerto rica em alimento fácil: bivalves, peixe, moluscos…  
Num recente estudo desta zona, Moisés Espírito Santo aponta novas possibilidades para o topónimo Alfeizerão (talvez na senda de Herculano, que na Introdução à História de Portugal diz que «o erudito Bochart foi o primeiro que indicou as muitas origens fenícias que se encontram nas designações corográficas da Península». As designações latinas Hispania, Lusitania, Tagus, Olisippo teriam origem fenícia.) :
«Tendo em conta [escreve Espírito Santo] as estruturas antigas do local e partindo do princípio de que estas é que deram o nome à povoação» (e há boas razões para partir desse princípio) – propõe o quadro seguinte:

 hzr aw [gazerao > fazerao] - «castelo, reduto ou mansão .  do mar»
 hsr aw [gaserao]                   - «área cercada, pátio .  do mar».
«Ou precedidos de alu (mansão, quinta, vila, palácio, castelo). Podemos também substituir  o aw (mar) por an (forte, poderoso): “reduto ou castelo do poderoso, cerca do poderoso”. Podia ter todas estas significações em simultâneo porque são expressões homófonas e sinónimas.»
Assegura que «a povoação é anterior à ocupação mourisca» e reprova a tese dos «letrados [que] dizem que é de “origem árabe” (por causa do Al-) ». Refere nomeadamente «J. P. Machado [que] diz que a palavra vem de al-khaizeran [...] sem dizer em que dicionário tal termo se encontra, tanto mais que havia vários dialectos entre os mouros que conheceram a Península».

A tese de Espírito Santo para Alfeizerão encaixa bem no que se conhece das práticas fenícia (estabelecendo feitorias comerciais em locais favoráveis da costa) e cartaginesa (alianças com os lusitanos contra Roma), e apresenta notória semelhança gráfica (os sistemas orientais de escrita não usavam vogais) com a de Oliveira Marques. Mas parece desconhecer que J. P. Machado repete autores anteriores:  o já referido Fr. João de Sousa e Fr. Jozé de Santo António Moura, que em 1830 reedita o livro daquele, «augmentado e annotado», sem nada corrigir no que concerne a Alfeizerão.

E conclui Espírito Santo que «as estruturas antigas do local» seriam assim anteriores à presença muçulmana (e mesmo à romana), sendo lusitano o seu nome (ele não tem dúvidas de que os lusitanos falavam «dialectos fenícios-púnicos», o que não surpreende).
Para esta nova teoria do significado da palavra, Espírito Santo teve em conta a transcrição que «uma autora» (sic) faz de um «documento antigo, mas posterior ao desaparecimento do porto» – em que essa autora lê que Alfeizerão «pelo lado do mar está cercada de paus».

Que documento? De que autor? Não diz. Aparentemente será a Corografia Portuguesa (1706-1712) do Pe. Carvalho da Costa. Mas nessa passagem (que eu mesmo transcrevo no meu livro antes citado) o que se deve ler é pauis,[1] de acordo com o contexto geográfico e temporal e com informações que outros autores nos deixaram: com efeito, a partir do séc. XVII o que restava da lagoa eram pântanos, cuja secagem parece ter tido início no tempo de D. Pedro II:

a)   - Em 1685 o Abade de Alcobaça e Silvério da Silva da Fonseca (com «outros moradores do Logar do Chão da Parada») requerem ao rei autorização para abrirem o rio da «Matta [decerto lapso: lógico seria  Mota], o qual, pela falta de abertura, havia annos lhe[s] fazia muita perda nas quintas e mais fazendas que possuiam no termo da Villa de Alfeizirão».
Parece tratar-se do rio de Tornada;

b)   - Em 1698 Pedro da Silva da Fonseca [notar a continuidade dos apelidos, a que depois se juntará Frois] solicita ao rei que seja servido «conceder Provisão aos moradores da Villa de Alfeizirão, para que vós […], Provedor da Commarca de Leiria, fizesseis abrir, no Campo da dita Villa, um Rio, a que chamavam o Valeto, e outras mais Vallas, pertencentes a elle». E «o reparo de outro Rio, que ia pelo mesmo campo».
Trata-se certamente do rio a que no reinado seguinte (de D. João V) os moradores «chamam rio grande», segundo o Pe. Luís Cardoso.

Aquela leitura errónea fragiliza a tese de Espírito Santo:
«O “cerco de paus” [diz ele] era a continuidade da antiga defesa contra o mar, que deu o nome à povoação: reduto do mar» –  diz. E,  referindo-se aos vestígios do castelo, acrescenta que «podem ver-se as ruínas dum forte ou palácio [que] pode ser medieval, mas também ter sido construído sobre outro precedente» – concluindo que esta «estrutura encontrava-se rodeada de paliçadas de madeira batidas pela maré-cheia».
Ora parece pouco provável que houvesse motivo, na Antiguidade como na Idade Média, para tal defesa contra o mar, um marete interior mais ou menos dócil. Embora comunicando com o oceano pela barra de S. Martinho e pela atual foz do Alcoa, a ondulação seria decerto suave – e águas tranquilas não fazem supor a necessidade de uma paliçada defensiva. Por outro lado, a ter existido, espantaria que século e meio depois do recuo das águas ainda houvesse sinais dela!  Com efeito, no início do séc. XVIII as águas tinham recuado aproxima-damente até ao ponto atual, restando desse suposto mar bravio uns insignificantes pauis insalubres.
Mas o erro original que em parte apoia a tese da nova etimologia não nos deve levar à rejeição imediata da proposta. O sentido dos étimos nela sugeridos parece bem adequado ao contexto histórico e geográfico: defesa, reduto, área cercada, pátio do mar – a lagoa seria isto mesmo! Muito menos será de rejeitar a hipótese de no morro terem os fenícios erguido alguma construção: castelo, forte, entreposto comercial. (E porque não mais tarde os romanos?)…
A concha de S. Martinho «constitui o último vestígio de um remoto golfo, com as suas ínsuas e canais, que se estendiam pelas terras baixas até Alfeizerão e provavelmente comunicavam também com a bacia de Óbidos. Ainda no séc. XI e XII a sua extensão era considerável»:[2] segundo Tito Larcher «fazia um lago que chegava à Torre de D. Framconde [sic]  e Valado» dos Frades.
À chegada dos fundadores (ou reconstrutores) do castelo, toda a zona  envolvente do morro (com exceção do nascente-nordeste) constituía uma extensão aquática (salgada) navegável e assim continuou por séculos, o que é comprovado pelo resto de um barco viking  encontrado (cerca de 1970) na ribeira da Amieira. Submetida ao método de datação pelo rádiocarbono, a peça encontrada (que parece ter sido destruída) revelou ser «datada dos séculos X/XI» (auge do domínio árabo-mouro).
A pantanização do local é pois vários séculos posterior à ocupação árabe: à chegada, a extensão de juncos, bunhos e caniços não seria tão impressionante que obrigasse os recém-chegados a darem ao local designação de flora pantanosa. Teoricamente, os sentidos semânticos apontados por Espírito Santo parecem mais adequados, valendo como boa hipótese que o futuro não pode enjeitar.
      Escreve Vieira Natividade (Alcobaça d´Outros Tempos, p47), reportando-se aos finais do séc. XVI, que «os vastos campos do Valado, Maiorga, Cós e Alfeizerão eram pauis onde apenas se levantavam bunhos e juncais», estando fora de dúvidas que «Alfeizerão foi porto de mar até meados do séc. XVI  – altura em que foi invadido pelas areias». Sendo a lagoa de águas salgadas, ainda assim é possível que nas suas margens crescesse esse tipo de caniços dos campos que chegou até nós. Mas isso é banal, não seria o seu traço distintivo, a sua imagem de marca. Que base teriam então os recém-chegados, uns bons oito séculos antes, para darem ao local um nome significando canavial miúdo, caniço, junco, bambu? Parece mais razoável que, tendo eles mesmos edificado/reedificado sobre o morro uma identificação do local, lhe tenham também dado nome: algo como castelo do mar…

Em jeito de conclusão:

Não obstante os créditos do frade arabista (em quem se baseiam os arabistas posteriores), admito ad absurdum que as circunstâncias do local no seu tempo o tivessem condicionado na explicação que nos deixou para o topónimo. Considerando o progresso das Ciências (Linguística incluída) quanto ao método, aos meios e ao rigor; e não pondo em causa (evidentemente) a autoridade de Oliveira Marques nem a de Espírito Santo (apesar dos reparos que a este faço) – parece ser de considerar a sua tese sobre as possíveis etimologias do topónimo. A escavação científica do morro do castelo poderá fazer luz sobre a origem de Alfeizerão – e talvez do seu nome.

Carlos Casimiro de Almeida
Alfeizerão, Julho/2011.



[1]  No original (1706) está escrito paùs, assim, com acento (grave) na última sílaba.
[2] Guia de Portugal II, p606. Tanto este como Tito Larcher escrevem 1815: é lapso.






Nota: o presente artigo é um de três que integravam o desdobrável "Alfeizerão - 3 mergulhos na História", elaborado por Carlos Casimiro de Almeida para a efeméride do Vigésimo Aniversário da reelevação de Alfeizerão a vila.
Reproduzido do original com a anuência do autor.
José Eduardo Lopes
20/10/2014