quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O TOPÓNIMO "ALFEIZERÃO" - por Carlos Casimiro de Almeida

A ideia de que a palavra Alfeizerão «significa caniço ou canavial miudo» foi expressa nos finais do séc. XVIII por Fr. João de Sousa, no seu livro Vestigios da Lingua Arabica em Portugal ou Lexicon Etymologico das palavras e nomes portuguezes que tem origem arabica. Cristão novo nascido em Damasco, veio para Lisboa com 16 ou 20 anos. «Interprete de S. Magestade para a Lingua Arabica», membro da Academia das Ciências, professor de árabe, tradutor dos Documentos Arábicos» […] da Torre do Tombo, parece pois muito bem qualificado para a expressar.
No decurso do séc. XX outros autores reforçaram esta ideia, dizendo «cana, junco, bambu», mas indicando um étimo algo diferente: «al-khaizuran», e não o  anterior «Alcheizaran».
Parecia assim reforçada a certeza da etimologia árabe e do sentido vegetal do topónimo. Mas eis que em finais do século, em rompimento com a teoria dominante, Oliveira Marques (especialista do Islamismo em Portugal) indica, categoricamente, novo étimo para a palavra Alfeizerão: «al-hazeray». Sem no entanto referir quer o valor  semântico quer a fonte, e sem aludir à versão antiga.
Também a realização escrita do nome tem conhecido formas variadas, algumas fazendo supor multiplicidade sonora: «alfeysarã» (1287 - em letra de imprensa, o primeiro documento conhecido em que o topónimo aparece) ; «alfeizeram» (foral de 1332, documento manuscrito ; «Alfeizarão (alfeizarom) » (1422); «Alfeizeram» (1514); «Alfejzaraõ»  (1515 - talvez o primeiro documento que o refere como vila) ; «Allfeyzyram» (1516 - Trovas a uma Mula, no Cancioneiro Geral, porém o manuscrito era do século anterior) ; «Alfeizirão» (1537, 1685, 1698) ; «Alfaceiraõ» (1758 - registado pela mão do próprio pároco) ; mas «Alfeizerão» (1863 – documento local). Sem esquecer «Alfeizarão» (alheio aos naturais), no azulejo da parede exterior da igreja, lado sul, e numa casa particular que haverá uns 100 anos assinalava a entrada leste da vila. Desde ponto até aos outeiros era oficialmente o Casal (ou Casais) do Vale da Cela (com exceção do Casal  de Fonte Figueira ou «Moinho»).
Por fim «Alfazeirão», tendência de forasteiros hoje muito ouvida.
Em Alfeizerão - Apontamentos para a sua História (págs.31 e 36), manifestei certa dificuldade em aceitar o campo semântico vegetal: para os povos aqui chegados por mar, haveria características mais sugestivas para o nome do local. Batizar os sítios de acordo ou com a geografia ou com a posse é uma tendência natural dos povos: Monte Gordo, Carrascas, Junqueira, Casal do Aguiar… E parecendo-me que à chegada do Islão a característica mais relevante seriam as duas aberturas pelas quais a lagoa de então comunicava com o mar, interrogo-me quanto ao significado do topónimo e deixo antever a hipótese de não ter origem árabe. Não me parecia que pudesse estar coberta de vegetação pantanosa essa  insulated eminence notada pelo viajante inglês (Beckford), que muito mais se destacava das águas à chegada dos islamitas… Ou de gente mais antiga, antiquíssima:

Há três milénios a área era propícia à fixação humana, mais ainda que a generalidade da Estremadura, rica em achados «de proveniência estranha à região». A existência de um bom porto de abrigo era condição excecionalmente favorável, pela existência da lagoa marinha, decerto rica em alimento fácil: bivalves, peixe, moluscos…  
Num recente estudo desta zona, Moisés Espírito Santo aponta novas possibilidades para o topónimo Alfeizerão (talvez na senda de Herculano, que na Introdução à História de Portugal diz que «o erudito Bochart foi o primeiro que indicou as muitas origens fenícias que se encontram nas designações corográficas da Península». As designações latinas Hispania, Lusitania, Tagus, Olisippo teriam origem fenícia.) :
«Tendo em conta [escreve Espírito Santo] as estruturas antigas do local e partindo do princípio de que estas é que deram o nome à povoação» (e há boas razões para partir desse princípio) – propõe o quadro seguinte:

 hzr aw [gazerao > fazerao] - «castelo, reduto ou mansão .  do mar»
 hsr aw [gaserao]                   - «área cercada, pátio .  do mar».
«Ou precedidos de alu (mansão, quinta, vila, palácio, castelo). Podemos também substituir  o aw (mar) por an (forte, poderoso): “reduto ou castelo do poderoso, cerca do poderoso”. Podia ter todas estas significações em simultâneo porque são expressões homófonas e sinónimas.»
Assegura que «a povoação é anterior à ocupação mourisca» e reprova a tese dos «letrados [que] dizem que é de “origem árabe” (por causa do Al-) ». Refere nomeadamente «J. P. Machado [que] diz que a palavra vem de al-khaizeran [...] sem dizer em que dicionário tal termo se encontra, tanto mais que havia vários dialectos entre os mouros que conheceram a Península».

A tese de Espírito Santo para Alfeizerão encaixa bem no que se conhece das práticas fenícia (estabelecendo feitorias comerciais em locais favoráveis da costa) e cartaginesa (alianças com os lusitanos contra Roma), e apresenta notória semelhança gráfica (os sistemas orientais de escrita não usavam vogais) com a de Oliveira Marques. Mas parece desconhecer que J. P. Machado repete autores anteriores:  o já referido Fr. João de Sousa e Fr. Jozé de Santo António Moura, que em 1830 reedita o livro daquele, «augmentado e annotado», sem nada corrigir no que concerne a Alfeizerão.

E conclui Espírito Santo que «as estruturas antigas do local» seriam assim anteriores à presença muçulmana (e mesmo à romana), sendo lusitano o seu nome (ele não tem dúvidas de que os lusitanos falavam «dialectos fenícios-púnicos», o que não surpreende).
Para esta nova teoria do significado da palavra, Espírito Santo teve em conta a transcrição que «uma autora» (sic) faz de um «documento antigo, mas posterior ao desaparecimento do porto» – em que essa autora lê que Alfeizerão «pelo lado do mar está cercada de paus».

Que documento? De que autor? Não diz. Aparentemente será a Corografia Portuguesa (1706-1712) do Pe. Carvalho da Costa. Mas nessa passagem (que eu mesmo transcrevo no meu livro antes citado) o que se deve ler é pauis,[1] de acordo com o contexto geográfico e temporal e com informações que outros autores nos deixaram: com efeito, a partir do séc. XVII o que restava da lagoa eram pântanos, cuja secagem parece ter tido início no tempo de D. Pedro II:

a)   - Em 1685 o Abade de Alcobaça e Silvério da Silva da Fonseca (com «outros moradores do Logar do Chão da Parada») requerem ao rei autorização para abrirem o rio da «Matta [decerto lapso: lógico seria  Mota], o qual, pela falta de abertura, havia annos lhe[s] fazia muita perda nas quintas e mais fazendas que possuiam no termo da Villa de Alfeizirão».
Parece tratar-se do rio de Tornada;

b)   - Em 1698 Pedro da Silva da Fonseca [notar a continuidade dos apelidos, a que depois se juntará Frois] solicita ao rei que seja servido «conceder Provisão aos moradores da Villa de Alfeizirão, para que vós […], Provedor da Commarca de Leiria, fizesseis abrir, no Campo da dita Villa, um Rio, a que chamavam o Valeto, e outras mais Vallas, pertencentes a elle». E «o reparo de outro Rio, que ia pelo mesmo campo».
Trata-se certamente do rio a que no reinado seguinte (de D. João V) os moradores «chamam rio grande», segundo o Pe. Luís Cardoso.

Aquela leitura errónea fragiliza a tese de Espírito Santo:
«O “cerco de paus” [diz ele] era a continuidade da antiga defesa contra o mar, que deu o nome à povoação: reduto do mar» –  diz. E,  referindo-se aos vestígios do castelo, acrescenta que «podem ver-se as ruínas dum forte ou palácio [que] pode ser medieval, mas também ter sido construído sobre outro precedente» – concluindo que esta «estrutura encontrava-se rodeada de paliçadas de madeira batidas pela maré-cheia».
Ora parece pouco provável que houvesse motivo, na Antiguidade como na Idade Média, para tal defesa contra o mar, um marete interior mais ou menos dócil. Embora comunicando com o oceano pela barra de S. Martinho e pela atual foz do Alcoa, a ondulação seria decerto suave – e águas tranquilas não fazem supor a necessidade de uma paliçada defensiva. Por outro lado, a ter existido, espantaria que século e meio depois do recuo das águas ainda houvesse sinais dela!  Com efeito, no início do séc. XVIII as águas tinham recuado aproxima-damente até ao ponto atual, restando desse suposto mar bravio uns insignificantes pauis insalubres.
Mas o erro original que em parte apoia a tese da nova etimologia não nos deve levar à rejeição imediata da proposta. O sentido dos étimos nela sugeridos parece bem adequado ao contexto histórico e geográfico: defesa, reduto, área cercada, pátio do mar – a lagoa seria isto mesmo! Muito menos será de rejeitar a hipótese de no morro terem os fenícios erguido alguma construção: castelo, forte, entreposto comercial. (E porque não mais tarde os romanos?)…
A concha de S. Martinho «constitui o último vestígio de um remoto golfo, com as suas ínsuas e canais, que se estendiam pelas terras baixas até Alfeizerão e provavelmente comunicavam também com a bacia de Óbidos. Ainda no séc. XI e XII a sua extensão era considerável»:[2] segundo Tito Larcher «fazia um lago que chegava à Torre de D. Framconde [sic]  e Valado» dos Frades.
À chegada dos fundadores (ou reconstrutores) do castelo, toda a zona  envolvente do morro (com exceção do nascente-nordeste) constituía uma extensão aquática (salgada) navegável e assim continuou por séculos, o que é comprovado pelo resto de um barco viking  encontrado (cerca de 1970) na ribeira da Amieira. Submetida ao método de datação pelo rádiocarbono, a peça encontrada (que parece ter sido destruída) revelou ser «datada dos séculos X/XI» (auge do domínio árabo-mouro).
A pantanização do local é pois vários séculos posterior à ocupação árabe: à chegada, a extensão de juncos, bunhos e caniços não seria tão impressionante que obrigasse os recém-chegados a darem ao local designação de flora pantanosa. Teoricamente, os sentidos semânticos apontados por Espírito Santo parecem mais adequados, valendo como boa hipótese que o futuro não pode enjeitar.
      Escreve Vieira Natividade (Alcobaça d´Outros Tempos, p47), reportando-se aos finais do séc. XVI, que «os vastos campos do Valado, Maiorga, Cós e Alfeizerão eram pauis onde apenas se levantavam bunhos e juncais», estando fora de dúvidas que «Alfeizerão foi porto de mar até meados do séc. XVI  – altura em que foi invadido pelas areias». Sendo a lagoa de águas salgadas, ainda assim é possível que nas suas margens crescesse esse tipo de caniços dos campos que chegou até nós. Mas isso é banal, não seria o seu traço distintivo, a sua imagem de marca. Que base teriam então os recém-chegados, uns bons oito séculos antes, para darem ao local um nome significando canavial miúdo, caniço, junco, bambu? Parece mais razoável que, tendo eles mesmos edificado/reedificado sobre o morro uma identificação do local, lhe tenham também dado nome: algo como castelo do mar…

Em jeito de conclusão:

Não obstante os créditos do frade arabista (em quem se baseiam os arabistas posteriores), admito ad absurdum que as circunstâncias do local no seu tempo o tivessem condicionado na explicação que nos deixou para o topónimo. Considerando o progresso das Ciências (Linguística incluída) quanto ao método, aos meios e ao rigor; e não pondo em causa (evidentemente) a autoridade de Oliveira Marques nem a de Espírito Santo (apesar dos reparos que a este faço) – parece ser de considerar a sua tese sobre as possíveis etimologias do topónimo. A escavação científica do morro do castelo poderá fazer luz sobre a origem de Alfeizerão – e talvez do seu nome.

Carlos Casimiro de Almeida
Alfeizerão, Julho/2011.



[1]  No original (1706) está escrito paùs, assim, com acento (grave) na última sílaba.
[2] Guia de Portugal II, p606. Tanto este como Tito Larcher escrevem 1815: é lapso.






Nota: o presente artigo é um de três que integravam o desdobrável "Alfeizerão - 3 mergulhos na História", elaborado por Carlos Casimiro de Almeida para a efeméride do Vigésimo Aniversário da reelevação de Alfeizerão a vila.
Reproduzido do original com a anuência do autor.
José Eduardo Lopes
20/10/2014

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