quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

O caminho das madeiras do Pinhal Real e as Vigias da costa: anotações periféricas

 

Figura 1: Facho desenhado na costa portuguesa entre Salir do Porto e o Cabo Mondego
(de um mapa do holandês Nicolas Jansz Vooght no Atlas 
La Nueva, y Grande Relumbrante Antorcha de la Mar...”, Amesterdão, Johannes van Keulen, 1700)


            No ano de 1766, uma exposição elaborada pelo sargento-mor das ordenanças dos Coutos de Alcobaça, António Manuel Brazão das Neves, equaciona o estado em que se encontravam as estradas dos Coutos, nomeadamente, a que permitia o transporte de madeiras do Pinhal Real até à enseada de S. Martinho do Porto para serem embarcadas para o Arsenal Real em Lisboa; segundo ele, os trabalhos de construção e manutenção dessas estradas/Calçadas poderia beneficiar com a supressão do sistema de vigia da costa nos antigos moldes por já não se justificar nessa data, e assim se libertar para os ditos trabalhos as ordenanças cativas dessa tarefa.

        Transcrevemos essa carta do sargento-mor (Doc. 2), sobre a qual alinharemos algumas observações. Em alguns artigos por nós consultados o nome do sargento-mor figura como António Maria Brazão das Neves, lapso natural devido ao desenho fluido e equívoco das abreviaturas, mas o seu nome aparece escrito integralmente, por exemplo, no alvará de 1748 em que é nomeado como sargento-mor dos Coutos (Doc. 1).

            Na transcrição desenvolvemos as abreviaturas menos claras, marcando a mudança de folha com a sua indicação entre traços oblíquos; por opção própria, no transporte de uma folha para a seguinte apresentamos como palavras inteiras as que se encontravam divididas.

 

As Calçadas

            As estradas da comarca de Alcobaça foram objecto de repetidas críticas à sua fragilidade e insuficiência – ou não existiam ou, quando isso sucedia, não eram beneficiadas com os trabalhos de manutenção exigidos, degradando-se com rapidez. Para o período cronológico em apenso, o século XVIII, será suficiente mencionarmos dois documentos transcritos por Pedro Penteado (Penteado, 2008). No mais antigo, de 14 de Dezembro de 1756, por decreto do D. José I, ordenava-se a construção de uma calçada entre a Barquinha (hoje ”Ponte da Barca”) e Famalicão; e em sintonia era exigido às Câmaras das vilas da Pederneira, Cela, Alfeizerão e S. Martinho que obrigassem as pessoas que possuíam fazendas nesses distritos para que «logo e sem demora alguma abram vallas, ou aquedutos, pelos quaes devem ter sahída as ágoas». O outro documento, datado de 5 de Junho de 1765, traduz uma representação da Câmara da Pederneira ao rei na qual se assinala que, apesar da Provisão anterior para que as Câmaras das vilas da Pederneira, Cela, Alfeizerão e S. Martinho participassem da factura e conservação da calçada entre a Barquinha e Famalicão para «o necessário e precizo transporte de madeiras dos Pinhaes de V. Magestade para o porto de S. Martinho», a realidade era que a obra não fora concluída e que a maior parte dela se arruinara por completo; solicitando a Câmara da Pederneira que se tomassem medidas para que as obras inadiáveis se realizassem.

            O sargento-mor Brazão das Neves, na carta que aqui transcrevemos, retorna ao tema em datas coincidentes e apresenta as suas propostas para solucionar o problema. Recorda o estado lastimável das estradas e da ponte na Barquinha, em madeira e pouco segura, defendendo que para a construção de uma nova ponte e da calçada entre as vilas da Pederneira e S. Martinho do Porto deveriam concorrer estas vilas e as de Alfeizerão e (lugar do) Carvalhal Benfeito, enquanto as restantes vilas dos Coutos, mais interiores, deveriam participar na construção da calçada entre Évora de Alcobaça e a Maiorga. Para que isso fosse conseguido, o sargento-mor, além das ordenanças libertas dos seus deveres na vigilância da costa, sugeria que se estipulassem dois dias de trabalho por cada morador dos concelhos e que a superintendência do trabalho fosse confiada a pessoa de honra e desinteresse; os concelhos, entre eles, realizariam vistorias semestrais ao estado das estradas, para que fosse operada a sua manutenção e necessários reparos.

            As obras de “factura” e manutenção da estrada entre a Pederneira e S. Martinho do Porto (¹), foram efectivadas, mas longe do que pareceria desejável. Em 1787, nas suas respostas ao Inquérito sobre a agricultura da Academia Real das Ciências, Frei Manuel de Figueiredo indica que na comarca poucos caminhos são calcetados e que no termo de Alfeizerão as estradas planas ou baixas «no Inverno estão cheias de atoleiros invadiáveis», acrescentando que «presentemente, não há quem impulse os povos para os consertos das estradas» (Maduro; 2013:340). Ainda antes do final do século, em 1794, William Beckford testemunha a insegura experiência de travessia da ponte das barcas, sem parapeitos laterais, semelhante às pontes arruinadas das vizinhanças de Alcobaça (Penteado, 2008; Beckford, 1835:166-167).

            O transporte de madeira do Pinhal do Rei para S. Martinho do Porto, para a construção aí de embarcações e para ser embarcada para o Arsenal Real da Marinha em Lisboa continuaria a ser feito em condições algo precárias em carroças de tracção animal por estradas nem sempre nas melhores condições e só na segunda metade do século XIX a situação evoluiria com o chamado Caminho-de-ferro americano entre Pedreanes e S. Martinho, com vagões puxados por animais que rolavam sobre carris, inicialmente de madeira, levando para este porto as madeiras do Pinhal do Rei, e transportando no sentido inverso areia e calcário para a produção de vidro na Marinha Grande (in “O comboio americano”, artigo de J. M. Gonçalves).

            Se as propostas do sargento-mor Brazão das Neves não tiveram o impacto que este decerto esperaria, num ponto é nítido o seu contributo. Frei Manuel de Figueiredo, nas mesmas respostas sobre a agricultura da comarca, na sua nota 5.ª, explica que o rei D. José, atendendo às súplicas que lhe haviam sido dirigidas, consagra por dez anos o dito real d’água à construção de estradas e liberta os povos de concorrerem às três vigias dos fachos da Marinha (sugestão do sargento-mor, o seu mais fiel vassalo), colocando sob a alçada do Corregedor da comarca a coordenação dos trabalhos e a gestão dos dinheiros envolvidos (Maduro, 2013:352).

Figura 2: O Forte e o Facho, imagens fraccionais de um mapa da Baía
("Planta do Porto de S. Martinho e Plano de Restauração do mesmo: por L. G. de Carvalho, Tenente 
Coronel do E. C. de Engenheiros, 1815" (A.H.M.O.P., D-41-B - Folha XVIII)

Os três Fachos

            A exposição do sargento-mor Brazão das Neves, na sua parte introdutória, contém algumas informações preciosas sobre o sistema de vigilância da costa à aproximação de invasores ou corsários, alicerçado em três fachos ou pontos de vigia: S. Martinho do Porto, Cela e Vestiaria. Qualquer coisa de suspeito que fosse avistado na costa era comunicado por sinais de luzes ou fumo a partir de S. Martinho, repetidos nas vigias da Cela e da Vestiaria para que a companhia das ordenanças de Alcobaça se pusesse em campo para se opor ao perigo; a vigilância era feita por dois homens em cada um desses Fachos, de 1 de Maio a 31 de Outubro e durante 24 horas seguidas. As ordenanças de Alcobaça não eram o único meio de defesa, ao sinal dos Fachos, as populações vizinhas, com os sinos das suas igrejas a tocar a rebate, ordenariam a sua própria defesa com os combatentes que conseguissem reunir – é o que se depreende de informação do padre Luís Cardoso sobre Alfeizerão no primeiro tomo do Dicionário Geográfico: «Não se fazem Soldados nesta terra, por ser vissinha de S. Martinho, porto de mar, com Forte, aonde acodem quando há rebate; e por essa razão se não obrigarão os Auxiliares a continuar o presídio das Praças do Alentejo nas guerras passadas» (Cardoso, 1747:278). Esta isenção dos habitantes da freguesia de Alfeizerão não teria mais do que quarenta anos – nos anos de 1691, 1702 e 1706 ainda figura nos assentos de óbito da freguesia a morte de naturais da terra como soldados nas praças do Alentejo, nomeadamente em Évora, Estremoz e Campo Maior (²).

            O Facho de S. Martinho, escreve o sargento-mor, situava-se numa serra próxima ao mar, e ainda hoje persiste na toponímia o promontório do Facho, já muito delapidado pela erosão. O traço do edifício aí onde se postavam os dois vigias aparece desenhado em alguns mapas. Marino Miguel Franzini escreve em 1812: «o cabeço septentrional aonde apparecem as ruinas de huma casa, he denominado o Faxo; com cujo nome ficou pelo costume que havia de accender alli fogos, que servião de signal para o reconhecimento do porto» (Franzini, 1812:42).           O forte de S. Martinho, também descrito por Brazão das Neves, com casas no seu perímetro, deveria situar-se nas proximidades do actual farol. Em 1721, nas respostas ao inquérito da Acacemia Real de História Portuguesa, escrevia o prior António Cerveira e Souto: «E tem esta dita Villa hum forte que fica na ponta da Barra para defeza della, mas muito mal fabricado ou guarnecido por  falta de artilharia com que se podem defender a dita Barra e as embarcasoins que se recolhem a esta Bahia, muitas vezes acosados dos inimigose o dito forte está pella parte do mar quazi arruinado» (Cf. Coutinho, 2021:5).

       Num roteiro publicado em Madrid em 1789, Vicente Tofino de San Miguel descreve nesse promontório uma “torre velha” que, por ser fronteira a uma ermida (a capela de Santa Ana) não se confunde com a casa em que se erguia o Facho; lendo-se aí: «na entrada da barra se vê na ponta da Banda de bombordo uma torre velha, e da banda do Sueste está uma ermida, entrai ao longo da terra da banda do Norte e não vades muito dentro, porque de baixa-mar não há mais de 2 braças» (Tofiño de San Miguel, 1789). Ironicamente, o forte de S. Martinho foi reconstruído por inimigos da Coroa já que os invasores franceses ocuparam-no, pelo menos, desde 19 de Dezembro de 1807 e sob as ordens de famigerado general Thomiéres fez-se obras nesse forte e no forte da Nazaré (fortaleza de S. Miguel), assim como se construiu de raiz um forte de madeira em S. Gião, guarnecido com peças de artilharia (Neves, 1810:327); os três fortes comunicavam entre si por sinais telegráficos e a guarnição deste forte e a do forte de S. Martinho era idêntica: vinte e poucos homens e «duas peças de grande calibre»; em Julho de 1808, cercado o forte da Nazaré por populares, a guarnição dos fortes de S. Gião e S. Martinho abandona-os e junta-se ao exército de Thomiéres (Neves, 1811:23-25).

            A localização dos Fachos da Cela e da Vestiaria, permanece ainda (julgamos) por determinar, sendo no entanto de assinalar que Facho ocorre na toponímia na esfera dessas localidades, caso do lugar do Facho, dois quilómetros e meio a sudoeste da Cela e, dentro da Vestiaria, a rua Facho dos Poços. Sobre o primeiro, o topónimo coaduna-se com a informação do cronista Frei Manuel de Figueiredo que, falando do caminho do Vimeiro para a Cela, narra que «nada há memorável neste caminho mais que os vestígios da casa do facho, aonde assistiam vigias contínuas para acenderem o farol no caso de serem atacadas as Costas pelos inimigos da Coroa ou da Religião» (Leroux, 2020:157). A existência desses dois fachos parece ser bastante antiga, visto que Manuel Vieira Natividade escreve que já no foral da Cela se impunha aos seus moradores que mantivessem os fachos da Cela e Vestiaria (Natividade, 1960:66).

            Na sua exposição, assevera o sargento-mor Brazão das Neves que o regimento que instituíra as três vigias ou fachos remontava a 245 anos atrás, o que, se tomarmos como charneira o ano de 1766, data da missiva de Francisco Nuno Leitão que anexa a exposição do sargento-mor, temos como resultado o ano de 1521, o último ano do reinado de D. Manuel.

            Brazão das Neves defende a supressão das três vigias ou, pelo menos a transposição do facho de S. Martinho para dentro do seu forte, com as conveniências que aponta e por uma questão de precaução. Não vê utilidade na manutenção deste sistema de vigia e elabora: 245 anos antes os portos da Pederneira, Pataias e S. Martinho encontravam-se aptos para o desembarque, mas no momento em que escreve, fazê-lo era dificultoso até para os pescadores (recorde-se as recomendações de Tofiño de San Miguel), sendo improvável que o tentassem inimigos ou piratas, e argumenta que nesses 245 anos só havia memória de um desembarque de mouros na praia da Pederneira, sem grandes danos a lamentar.

            Sobre o assoreamento e ruína desses portos e ancoradouros na costa (a começar pelo porto de Alfeizerão, um dos primeiros a “cair por terra”) e o natural expediente dos corsários em atacar as suas presas em mar aberto, podemos incorporar uma narrativa concordante do cronista Manuel de Brito Alão: «uma embarcação sua [de corsários] que após umas caravelas nossas, entrou naquele porto de São Martinho que está defronte de nós, e se embaraçou, em forma que não pôde sair, e acudindo logo a gente das vilas circunvizinhas, a tomaram e, entre algumas coisas que lhe acharam do que tinham roubado, foi um cálice de prata e ornamentos de uma Igreja, que Deus parece não permitiu os profanassem os inimigos da nossa Santa Fé Católica» (Alão, 1628:f. 83v).

            Os Fachos e torres deste trecho da costa é um tema de tal forma amplo que se pode considerar sem grande exagero que é quase nada o que sabemos de certo, apesar dos válidos contributos de diferentes investigadores (Manuel Vieira Natividade, Eduíno Borges Garcia, Carlos Fidalgo e outros). A somar aos muitos sítios apontados na orla da antiga lagoa da Pederneira, a enseada mais a sul também constitui um tema em aberto com estruturas militares ou defensivas como o castelo de Alfeizerão, o forte de S. Martinho e a torre de Salir do Porto. Os três Fachos ou Vigias podem ser apenas uma parcela historiada e “activa” de um conjunto de estruturas que, para não termos uma visão deficitária do seu papel, seria porventura necessário abordar de uma forma integrada e multidisciplinar com o recurso à toponímia (/etnografia), à História e à arqueologia.


Fontes:

ALÃO, Manuel de Brito - Antiguidade da sagrada imagem de Nossa S. de Nazareth: grandezas de seu sitio, casa, & jurisdiçaõ real, sita junto à villa da Pederneira..., Lisboa, Pedro Crasbeeck Impressor del Rey, 1628.

BECKFORD, William - Recollections of an excursion to the monasteries of Alcobaça and Batalha / by the author of "Vathek". - London : Richard Bentley... publisher, : printed by Samuel Bentley, 1835.

CARDOSO, Luís - Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas, Lisboa : na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, Tomo I, 1747.

COUTINHO, J. L.- O Inquérito de 1721 da Academia Real de História Portuguesa no bispado de Leiria, Maio de 2021, texto eletrónico acessível em: https://www.academia.edu/48936341/O_Inqu%C3%A9rito_de_1721_da_Academia_Real_de_Hist%C3%B3ria_Portuguesa_no_bispado_de_Leiria

FRANZINI, Marino Miguel – Roteiro das Costas de Portugal ou Instruções náuticas para intelligencia e uso da carta reduzida da mesma costa, e dos planos particulares dos seus principaes portos, Lisboa, Impressão Regia, 1813

GONÇALVES, J. M. – “O comboio americano”, artigo de 11 de Fevereiro de 2014, acedido em http://opinhaldorei.blogspot.com/2014/02/o-comboio-americano.html. Consulta mais recente a 25 de Janeiro de 2022

LEROUX, Gérard - Frei Manuel de Figueiredo – Memórias de várias vilas e terras dos Coutos de Alcobaça (1780-1781), Alcobaça, edição do jornal “O Alcoa”, 2020.

MADURO, António Valério - O Inquérito Agrícola da Academia Real de Ciências de 1787. O caso da comarca de Alcobaça, in Mosteiros Cistercienses. História, Arte, Espiritualidade e Património, 3, 2013, p. 319-354

NATIVIDADE, Manuel Vieira – Mosteiro e Coutos de Alcobaça. Alguns Capítulos Extraídos dos Manuscritos Inéditos do Autor e Publicados no Centenário do seu Nascimento, Alcobaça, Tipografia Alcobacense, 1960

NEVES, José Acúrcio das - História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomo I, capítulo 25, impresso na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, Lisboa, 1810

NEVES, José Acúrcio das – História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomo IV, Capítulos 29 e 33, impresso na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, Lisboa, 1811

PENTEADO, Pedro - Novos documentos para a História do Caminho Real entre a Pederneira e S. Martinho do Porto no Século XVIII, 2008, versão electrónica em https://www.slideshare.net/ppenteado/novos-documentos-para-a-histria-do-caminho-real-presentation?fbclid=IwAR2_iwLnOnuUIg1QN8d6v7xpXfrGuEiqFS1KnT2uc4U2fBCzunMtCMPh3k8. Consulta mais recente a 25 de Janeiro de 2022

TOFIÑO DE SAN MIGUEL, Vicente - Derrotero de las costas de España en el Océano Atlántico, y de las Islas Azores ó Terceras, para inteligencia y uso de las cartas esféricas presentadas al Rey ..., Madrid, por la viuda de Ibarra, Hijos y Compañía, 1789

 

APÊNDICE DOCUMENTAL

 

Doc. 1

1748, Agosto, 28, Lisboa – Alvará de nomeação de António Manuel Brazão das Neves como Sargento mor das ordenanças dos Coutos de Alcobaça, com o soldo de 80 mil réis

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 39, f.46v

 

António Manuel Brazão das Neves

Houve S. Magestade por bem, tendo Respeito a haver feito ao dito Antonio Manuel Brazão das Neves do posto de Sargento Mor da ordenança dos Coutos de Alcobaça por Patente de 22 de Julho de 1748, Há por bem que elle tenha e haja o soldo de Outenta mil rs assentados e pagos no Almoxarifado de Leiria assim como o havia de acontecer [?] nos que principiara a vencer do dia sucessivo ao que desistira do posto que antes ocupava. E mediante de que lhe foi passado Alvara a 28 de Agosto de 1748

 

Doc. 2

1766, Maio, 18, Alcobaça - Ofício de Francisco Nuno Leitão para Miguel de Arriaga Brum da Silveira, remetendo a exposição do sargento-mor das Ordenanças dos coutos de Alcobaça, António Manuel Brazão das Neves.

Arquivo Histórico Militar (AHM), Código de referência: PT/AHM/DIV/1/08/03/18

 

[Folha 1]

 

Sr. Miguel de Arriaga

            Meu Amigo e Senhor muito da minha veneração. Em hum dos correios passados recebi huma carta de V. S.a  [Vossa Senhoria], em resposta de huma que lhe escrevi; e com ella inviava a V. S.a huma conta do Sargento-Mor destes coutos. Agora remetto outra do mesmo, aberta, para que V. S.a tenha a bondade de a ver, e dar com brevidade ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Sr. Conde de Oeiras. O que o dito Sargento Mór expõem hé pura verdade, e tãobem hé certo que o mesmo procede o mais zelozo do Real Serviço, e o mais independente.

            Ficarei a V. S.a obrigado pela resposta de huma e outra, para socego do mesmo Sargento-Mór, que não descança na duvida de ser, ou não, bem aceita a sua reprezentação. Logre V. S.a saude perfeita, e todas as felicidades, que lhe deseja quem he.

De V. S.a

Amigo e vassalo ____

Francisco Nunes Leitão

                                                                                              Alcobaça, i8 de Mayo de 1766

[Folha 2]

                                                           Senhor

                        Reprezenta a Vossa Magestade o Sargento Mor das Ordenanças dos Coutos de Alcobaça o grave detrimento que padecendo as mesmas em todo o tempo do Verão a Vigia dos fachos das Villas de S. Martinho, Cella, e lugar da Vestearia.

                        Entrão as Vigias em o primeiro de Mayo, e finalizão no ultimo de Outubro, e Vigião em cada hum dos fachos dous homens 24 horas irremissivelmente.

                        Distão dos fachos da Vila da Cella e lugar da Vestearia, duas e trez legoas para o interior da terra do de S. Martinho, que se acha situado em huã Serra, próxima ao Mar, e deste hade receber o da Cella os signais que fizer, repetindo-os para se comunicarem ao da Vestearia, e por elles se fazer avizo ás Companhias da Ordenança, tocando-se a rebate para se opporem a qualquer invazão do inimigo, ou pirata.

                        Tem /[Folha 3]/ o Regimento que ordena estes fachos 245 anos, e se no seu principio parecerão precizos para a guarda dos povos, por se acharem os portos de S. Martinho, Pederneyra e Patayas praticáveis para o dezembarque, hoje [a]té para os pescadores nacionais se experimenta dificultozo, e para o inimigo ou pirata, bem ponderado o receyo de darem á Costa por ser desconhecida e brava, e o respeito que a todos faz a terra aldeã para se invadir sem segurança, tendo [a]demais a objecção de dous fortes, hum na Serra de S. Martinho e outro no Sítio de N. Sra. de Nazaré, artilhado e guarnecido de soldados, que ainda que se considerem pello inimigo ou pirata incapazes para a sua offença, sempre os deve, reputar suficientes para a nossa defeza, se figura huã total impossibilidade; pella qual ou se suspende o valor ou se não rezolve o mais ardente e bárbaro atrevimento.

                        Este juízo comprova a larga experiência de 245 anos em que /[folha 4]/ só consta por tradição vir huã lancha de Mouros á praya da Pederneyra, e não se atrevendo a escallar a villa, se retirarão apressados, levando alguãs redes e couzas de pouco vallor que se acharão nas barracas da praya.

                        Para se acautellar segundo dezembarque, justo parece se conserve a Vigia de S. Martinho, mas no forte, não só pello respeito que faz ao inimigo vello guarnecido, mas para conservação das Cazas do mesmo [forte] que, fechadas, é irreparável a sua ruína, destacando todos os mezes dous soldados e hum Cabo no tempo do Verão do forte de N. Sra. de Nazareth, que sem algum préstimo ou exercício militar, vencem fardas, pão e soldo, impondo a estes e aos que se achão de guarnição no dito forte de Nazaré o preceyto de vigiarem e do que virem suspeytoso fazerem prompto /[folha 5]/ avizo ás Companhias da Ordenança mais próximas para se porem em defeza, abolindo-se os ditos fachos ou pello prejuízo dos povos, ou porque delles não rezulta, segundo parece, a mais leve conveniência, com o ónus porém de dar cada hum, que he obrigado á sobredita vigia, dous dias de trabalho, para o que todos se offerecem sendo perguntados por mim, na erecção de huã Calçada da vila de Evora té a da Mayorga, por ser invadiável no tempo do Inverno, e pouco capaz no Verão, sem embargo de ter concorrido a incomparável grandeza de Vossa Magestade com o subsídio do Real d’ágoa da vila de Alcobaça por tempo de des annos, que são findos sem que do referido producto se seguise a utilidade das Calçadas, por se exhaurir huã boa parte em extorções, culpável omissão dos Provedores, nem o zello, nem a obrigação comovêo para o exame das calçadas, e sua  /[folha6]/ despeza, ficando as mesmas com pouca diferença no primeiro estado, como experimentou a Rainha, minha Senhora, na digressão de Nazaré e Alcobaça, sendo preciza huã considerável despeza para romper estradas por diversas fazendas, cortando olivais e vinhas, que se pagarão da Real fazenda por preços excessivos, de cujos caminhos apenas se conservão hoje os primeiros vestígios e o nome de Calçadas da Sra. Rainha, ficando sempre existindo a mesma dificuldade no giro dos Nacionaes e passageyros, de tal sorte que distando a vila de Evora huã pequena legoa da de Alcobaça, em tempo de Inverno ou ficão incomunicáveis, ou para o serem se fazem caminhos pellos pomares, vinhas e terras de pam, com grave prejuízo de seos donos, e os que ignorão este Meyo, ainda que odiozo, por ser nocivo, ou não passão, ou se precipitão com evidente risco, /[folha 7]/de sorte que muitos o tem não só experimentado nos géneros que conduzem por negocio para diversas feyras, mas na vida vendo-se no ultimo extremo metidos em atoleyros.

                        E outra da vila da Pederneyra té a vila de S. Martinho, nas partes em que for preciza para com facilidade se conduzirem as madeiras do pinhal Real de Leiria para o Arzenal, concorrendo para esta as vilas da Pederneyra, S. Martinho, Alfeizerão e Carvalhal benfeito, e para a de Evora té a Maiorga as outras vilas destes Coutos, e findas as sobreditas Calçadas, concorrerem todas as Vilas para a erecção de huã ponte no rio da Barquinha próximo á Pederneira, por ser a que existe de madeira com pouca segurança, além do prejuízo que experimenta a Real fazenda de Vossa Magestade de poucos em poucos annos nas Madeyras do referido pinhal, conduções e fábrica da mesma /[folha 8]/ ponte.

                        Quando seja do Real agrado de Vossa Magestade a prezente representação, a que me condúz o zello do bem comum, e não algum prezente ou futuro interesse, seria justo concorrerem todos os moradores sem excessão por ser comum o beneficio das Calçadas e ponte, com os dous dias de trabalho para a sua erecção ou operando ou satisfazendo a dinheyro pello estado da terra, cometendo-se a administração das ditas Calçadas a pessoa que dezempenhe com honra, dezinteresse, e cuydado o seu ministério e fundos; impor ás Camaras das Vilas de Evora, Alcobaça e Maiorga a vigoroza obrigação cada huã no seu destricto da conservação da mesma Calçada, fazendo cada huã vestoria todos os seis mezes em acto de Camara /[folha 9]/ na Calçada pertencente a diversa Villa, como por exemplo, a Camara da Villa de Evora na pertencente ao destricto da Villa de Alcobaça, esta no destricto da de Evora, a Camara da Villa de Cós na da Maiorga, e a Villa de S. Martinho, por ser a mais interessada, na Calçada da Villa té a Pederneira, de que se passarão certidões, asignadas por todos os Officiais da Camara, descrevendo nellas o estado das dita Calçada, sem algum emolumento, assim das Vestorias, como das referidas certidões, que se aprezentarão pello Procurador do Conselho ao Provedor da Camara para por ellas examinar o estado das ditas Calçadas, que achando nellas alguã ruína por omissão das ditas Camaras, a mande logo reparar á custa dos Officiais das mesmas, cobrando de cada hum executivamente /[folha 10]/ por um rateio, o que na verdade lhe pertencer, perguntando-se na rezidencia do dito Provedor se satisfez ou não á referida obrigação, ou ser o mesmo obrigado a mostrar na referida rezidencia certidões das ditas Camaras de que não faltou a ellas.

                        Bem visto que no descuido cessará o bem comum da dita Calçada, e se fará mais sensível o discomodo [descómodo] no desperdício do tempo e do trabalho.

                        Mercê Guarde a V. Magestade, Senhor

                                               O mais fiel vassallo

                                               O Sargento mor

                                   António Manuel Brazão das Neves

 


) Um pequeno troço do antigo Caminho Real entre a Pederneira e S. Martinho subsiste ainda a norte da Ponte da Barca com uma extensão comprovada de 245 metros, classificado como Sítio de Interesse Municipal. O lugar em si e a sua componente paisagística e de observação da natureza, reiteram os seus motivos de interesse.

(²) Arquivo Distrital de Leiria, IV/24/C/11, Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1666-1747 (numeração dos fólios ilegível)


quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Ainda os cativos dos corsários

Figura 1: Golfo e cidade de Tunes, com a fortaleza de Tunes e a fortaleza de La Goleta
(in Civitates orbis terrarum
¹)

Dos portugueses capturados pelos corsários mouros nas nossas costas, os mais confiados num eventual resgate e regresso à pátria seriam aqueles que tinham algo de seu ou eram filhos de algo, o que lhes conferia alguma vantagem prévia nas negociações e acordos com os corsários; os restantes, ainda que pudessem beneficiar de um resgate coletivo orquestrado pelos piedosos religiosos que o tinham por missão e causa, estavam sempre mais subordinados à sorte e ao acaso, como de comum acontece aos menos privilegiados. Se o processo de Manuel Teixeira, nascido em S. Martinho do Porto numa família de pescadores, ilustra o caso de um homem que soube virar a sorte a seu favor como quem maneja a vela de um barco para beneficiar do rumo do vento - convertendo-se ao islamismo e trabalhando ao lado dos seus captores até surgir a possibilidade de se evadir para a Europa - também existe documentado o testemunho de uma dúzia de cativos que conseguiu evadir-se do porto de Tunes e regressar à Europa pelo seu próprio engenho e sorte, entre esses evadidos contava-se um natural da Pederneira e outro do Porto de S. Martinho, respetivamente, Pêro Fernandes e António Coresma. 

Este Pêro Fernandes é distinto do "corsário" de Alfeizerão com o mesmo nome, cuja história paralela é contada no processo da Inquisição transcrito por Casimiro de Almeida; de outra feição, Coresma ou Quaresma é um apelido que ocorre por esta época nos assentos paroquiais de Alfeizerão e S. Martinho do Porto, como memorável exemplo o padre António Dinis Quaresma que foi padre-cura na igreja de S. Martinho, nascido em Alfeizerão de João Franco Quaresma e Margarida Carvalha Loba, e que à data da sua Diligência de Habilitação para Familiar do Santo Ofício (1676-77)², era Reitor na Real Igreja de Nossa Senhora da Nazaré. O pai, segundo os testemunhos discordantes dessa Diligência de Habilitação, era natural de Alfeizerão ou da Pederneira (onde terá desempenhado o cargo de tabelião na vila), mas as suas raízes familiares, e do apelido, encontravam-se em Peniche; a mãe, era natural do lugar de Meca, termo de Alenquer

A proeza da fuga do porto de Tunes³ é contada por Manuel de Brito Alão, administrador e cronista da Real Casa de Nossa Senhora da Nazaré no capítulo 66 da sua obra «Prodigiosas histórias e miraculosos sucessos acontecidos na Casa de Nossa Senhora de Nazaré» (Lisboa : por Lourenço Craesbeeck, 1637, fl. 126v):


Capítulo LXVI (Como sairão dous cativos de terra de Mouros, por intercessão da Senhora de Nazareth)

(Entram na igreja, dois cativos, com muita gente da vila da Pederneira, por dela ser natural um deles)

      Feita oração, se ergueram os cativos, e o Sacerdote os chamou e depois de lhes dar os parabéns pela sua liberdade e vinda, lhes pediu que contassem o sucesso da sua soltura & livramento. Ao que respondeu o mais velho, chamado Pêro Fernandes, natural da vila da Pederneira: notório é este povo, como há catorze anos quando eu e o meu companheiro partimos desta vila, ainda que ele, chamado António Quaresma Coresma»], há nove. Ele e eu fomos tomados nas embarcações em que partimos de nossa pátria, ao tempo em que dela saímos, por mouriscos e Turcos, e por várias vezes vendidos de uns para outros, e para vários lugares e cidades; e ultimamente para o porto de Tunes, para remarmos numa galé, em que eu, o meu companheiro e outros cristãos, muito andávamos tratando entre nós, com muito segredo, o modo como poderíamos fugir e vermo-nos livres de tão áspero cativeiro como tínhamos passado aí. E assentamos que, na barquinha da mesma galé, fugíssemos doze pessoas, que nela, apertadamente, podíamos caber; e porque fosse véspera de Santiago desse ano de mil seiscentos e trinta, por ser padroeiro de Espanha, e encomendamo-nos à Nossa Senhora da Nazaré, particularmente eu e o meu companheiro, por ser nossa padroeira, para que nos livrasse do cativeiro e do notável perigo de nossas vidas (no qual nos pusemos na tentada fuga). Aquela noite, dormindo os mouros e Turcos, tivemos ordem e lugar para nos soltarmos dos ferros em que estávamos presos a correntes, e merendamos sem sermos sentidos na barquinha com algum biscoito que pudemos guardar das nossas rações, e pouca água; cortamos o cabo que estava preso à galé, e encomendando-nos à Senhora da Nazaré, saímos pelo rio abaixo, o qual é muito estreito, e sendo sentidos pelos guardas que de uma e outra parte andam toda a noite vigiando, fazendo nesta um grande luar, nos começaram a atirar com arcabuzes e pedras, acordando as gentes que por aquelas partes se agasalhavam, vindo a perseguir-nos com grande gritaria e alarido, sem chegarem a nós, nem fazerem dano algum. 

      «Entramos no mar e com uma velazinha rota que tínhamos, e remos que trazíamos, chegamos brevemente à ilha da Sardenha, atravessando todo aquele mar com muito risco de nos perdermos e sermos outra vez tomados, que são oitenta e cinco léguas; tendo e crendo que, por intercessão da Virgem Senhora da Nazaré, fomos libertados, e nessa ilha recebidos por todos com grande gosto. E daí, embarcamos num navio para Leão [«Lionne», golfo de Leão], atravessando aquele golfão, passamos por muitas partes muito perigosas, por andarem nelas ordinariamente mouros e Turcos; sem, em toda a viagem, nem nos mais caminhos que fizemos, nos acontecer coisa que contrariasse o nosso intento e liberdade, com o que, [com] louvores a Deus, chegamos a esta santa Casa, eu e o meu companheiro, que é natural do Porto de S. Martinho, que aqui está defronte.

 

Figura 2: o rio «muito estreito» entre o Golfo de Tunes e o mar, fortemente defendido
pela fortaleza otomana de La Goleta com as suas peças de artilharia
(Detalhe da gravura anterior)

¹ BRAUN, Georg e HOGENBERG, Frans - CIVITATES ORBIS TERRARUM: LIBER PRIMUS: LIBER SECUNDUS: LIBER TERTIUS, Livro II, Publ.: Coloniae Agripinae : Excudebat Bertramus, post 1576-1606.

² Diligência de Habilitação de António Dinis Quaresma (Padre) - ANTT, Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, António, mç. 19, doc. 590, f. 45r-45v

³ «GOLETA E TUNES: Quatro legoas ao Sueste de Porto Farina está a ponta, ou Cabo de Carthago, e legoa e meia ao Su-sueste desta ponta fica a Goleta dentro do golfo de Tunes. Este golfo he de forma quasi redonda, tem 10, ou 12 milhas de largo, ou de diametro, a sua boca olha para les-nordeste; os navios dão fundo diante de Goleta, a qual foi huma Fortaleza muito celebre, mas hoje está quasi toda arruinada, e só se conserva hum baluarte, onde os Turcos tem 30 Janízaros e 10 peças de artilharia para guarda do porto. A altura do Pólo da Goleta são 36 graus, 20 minutos; observada muitas vezes por D. João de Castro, Fidalgo Portuguez, que depois foi Vice-Rei da Índia, na jornada que fez a Tunes com o Infante Dom Luís em companhia do Emperador Carlos V. Por detrás da Goleta vai hum lago de 12 milhas de comprido, onde não podem entrar mais do que barcas, no fim do qual fica a Cidade de Tunes» (PIMENTEL, Manoel - Arte de Navegar... e Roteiro das viagens e costas maritimas de Guiné, Angola, Brazil, Indias, e Ilhas Occidentaes, e Orientaes, p. 590, Lisboa, na Typografia de Antonio Rodrigues Galhardo, 1819)

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Há mouro na costa: sobre piratas e cativos


 

Os “renegados” piratas

            Durante séculos, corsários turcos e argelinos assediaram as nossas costas, quer as povoações costeiras, quer os barcos que encontravam no caminho, destruíam, pilhavam bens e faziam prisioneiros. Destes, alguns eram resgatados e voltavam à pátria, outros morriam em cativeiro, outros ainda, os chamados “renegados”, iludiam a má-fortuna e convertiam-se ao islamismo e tornavam-se corsários ao lado dos seus antigos senhores.

            Em Alfeizerão temos a notícia de um desses piratas, Pedro Fernandes da Costa, que raptado pelos piratas em Peniche, é levado para Argel, onde se converte e se torna pirata, casando-se aí com uma mulher turca chamada Jasmina, sendo-lhe confiado um barco para capitanear. Depois de o seu barco encalhar na Ericeira, é feito prisioneiro e conduzido aos Estaus, em Lisboa, onde é julgado e readquire a liberdade. Esta história novelesca é desenvolvida num processo da Inquisição que Carlos Casimiro de Almeida teve o mérito de transcrever e dar a conhecer. Em S. Martinho do Porto, encontramos Manuel Teixeira (mais cozinheiro que pirata, poderíamos dizer) que, raptado quando andava na faina da pesca com familiares seus, foi feito escravo e converteu-se ao islamismo, tendo perseverado durante quinze anos até conseguir regressar a Portugal. O pai era pescador em S. Martinho e natural das Beiras (Ílhavo?) e a mãe, Catarina Clemente, era natural de Famalicão.

 

Alguns dos que pereceram em Argel

            Nos livros paroquiais das terras próximas ao mar, também se encontra o triste registo dos que pereceram em Argel depois de para aí terem sido levados pelos seus captores. Transcrevemos esses assentos dos livros paroquiais de Alfeizerão e S. Martinho do Porto, os dois últimos assentos, mais desenvolvidos, falam-nos de dois mareantes de S. Martinho capturados no mesmo ataque pirata ao navio em que viajavam, o primeiro deles falece no designado Hospital Espanhol de Argel.

 

Em o mês de Outubro de seis sentos setenta e seis annos fis nesta igreja de São João Baptista da villa de Alfizarão os officios pella alma de Vicente Rodrigues que faleceo catiuo em Argel, cazado que foi com Isabel Ribeiro desta villa, era ut supra.

O Vigario Antão Carreira [1]

 

Em os uinte e seis dias do mês de Setembro de mil e seis sentos setenta e noue annos, fis os officios pella alma de Domingos Luis, morador que foi em esta Villa de Sam Martinho e foi cazado com Maria Clementa, por auer noua serta [certa] em como morreo em Argel aonde estaua cativo. Feci dia o dia [sic] ut supra.

Manuel Pinto de Abreu [2]

 

Em os doze dias do mês de Maio de mil e seis sentos e outenta e sete annos, fis dous ofícios pella alma de Manoel Pereira Freire por pobre, por auer nouas sertas morrera em Argel aonde estaua cativo e ser morador nesta villa e freguesia de Sam Martinho, de que fis este asento, dia, mês, era ut supra.

Manuel Pinto de Abreu [3]

 

Em os vinte e quatro dias do mês de Junho de mil e seis centos e setenta e sinco annos chegou noua certa que era falecido Gaspar Farto, mareante e morador que foi em esta villa, o qual imbarcando na Pederneira em hum nauio que sua Alteza naquella Ribeira mandou fazer, vindo acompanhado de huma fragata de guerra que o comboiava, sendo defronte de Berlenga, os Turcos queimarão a fragata e capturarão o nauio que leuarão a Argel com trinta e sinco pessoas desta villa e da Pedarneira, entre os quais hia o dito Gaspar Farto que faleceo no Hospital que os Reis de Castela sustentão naquella infame terra* para nelle se curarem os pobres e afleitos captiuos. Este, dizem faleceo com todos os sacramentos e esta sepultado no Cemeterio do mesmo Hospital. Deos lhe de sua Gloria e a todos nos, sua Graça. Feci dicto die ut supra.

Antonio Deniz Coresma [4]

* Hospital Espanhol, ou Hospital Real da Puríssima Conceição dos Padres Calçados da Santíssima Trindade da Província de Castela.

 

Em os trinta dias do mês de Setembro de mil e seis centos e setenta e seis annos fis os officios pella alma de Manoel Rodrigues, morador que foi em esta villa e mestre de hum nauio de Sua Alteza que os mouros capturarão quando se queimou a fragata chamada Piedade que [o] comboiava da Pederneira carregado de madeira para o mesmo ____  [?], e por desgraça susedeo no anno de seis centos e setenta e quatro no mês de Setembro; de prezente ueio noua certa o dito Manoel Rodrigues captiuo falecera e se dis fes testamento que athe agora não ueio. Deos o tenha em sua Gloria e a todos nos conserve em sua Graça. Feci dicto die ut supra.

Antonio Deniz Coresma [5]

 


[1] Arquivo Distrital de Leiria, IV/24/C/11, Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1666-1747, número de folha não legível

[2] ADL, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, número de folha não legível

[3] ADL, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, número de folha não legível

[4] ADL, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, número de folha não legível

[5] ADL, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, número de folha não legível

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

A Alcaidaria-mor do castelo e vila de Alfeizerão: um ofício perpétuo

 


Introdução:

            As duas alcaidarias-mores dos Coutos de Alcobaça, a do coração da abadia e a de Alfeizerão, andaram sempre, segundo o cronista frei Manuel dos Santos «em pessoas de antigua & conhecida nobreza»; o mesmo cronista ressalva que os alcaides eram escolhidos e apresentados pelos Abades de Alcobaça, a quem rendiam preito e homenagem com ostentação e pompa como se de um monarca se tratasse («ao estilo da Real Casa de Bragança»), ressalvando que eram titulares do cargo em vida da pessoa e não mais e não o passam (passariam) aos seus herdeiros; na vila de Alcobaça, o Abade «apresenta um Alcaide mor da villa e seu castello, he officio perpetuo mas nam hereditário, com vinte mil reis de ordenado (…) na vila de Alfeizaram apresenta hum Alcaide mor da Villa & seu Castello, tem de ordenado doze mil reis» (Santos, 1710:429-430). Ainda assim, num jogo de influências decerto concertado com a abadia, não era incomum que um filho sucedesse ao pai na propriedade do cargo, havendo no que toca a Alfeizerão, três exemplos assinaláveis, os Silva da Fonseca, onde quatro gerações sucessivas foram alcaides de Alfeizerão, mais tarde, em meados do século XVIII, quatro pessoas da família Freitas e Sampaio detiveram esse mesmo cargo transitando o cargo de pai para filho e deste para os irmãos; e, finalmente, no canto do cisne da Abadia de Alcobaça, quando José Teixeira Coelho e o seu filho foram alcaides-mores de Alfeizerão nas primeiras décadas do século XIX. A transição podia ocorrer após a morte do alcaide em exercício – caso, por exemplo, de Silvério Salvado de Morais – ou em vida, quando o alcaide renunciava ao seu cargo, sendo substituído por um filho ou familiar próximo apresentado pelo D. Abade.

 

1 – Os Silva da Fonseca Salvado

            Silvério Salvado de Morais era alcaide-mor de Alfeizerão em 1625, sucedendo-lhe o seu filho Silvério da Silva da Fonseca, e mantendo-se o cargo na posse da família na pessoa do neto, Pedro da Silva da Fonseca Salvado e do seu bisneto, Silvério da Silva da Fonseca Salvado.

            Silvério Salvado de Morais, era filho de António Salvado Lobo Moniz e Leonor de Morais Pimentel e contrai casamento com Micaela da Silva da Fonseca (Gaio, 1940:24). Morador em Alcobaça e Cavaleiro da Ordem de Cristo, no ano de 1627 habilita-se a Familiar do Santo Ofício[1], e na abertura do processo é referido o seu cargo de “Alcaide mor de Alfizarão”. Este processo da Inquisição encontra-se infelizmente em muito mau estado de conservação e ilegíveis a maior parte das suas folhas. Não obstante, na diligência realizada na cidade da Guarda sobre a ascendência e pureza de sangue de Micaela da Silva, indica-se que os seus pais são Francisco da Silva e Maria do Amaral, todos naturais da cidade da Guarda e residentes no lugar do Seixo Amarelo, termo da Guarda, e que o seu tio paterno é Pedro da Silva Sampaio[2], que foi Inquisidor do Santo Ofício em Lisboa. Em data posterior a este processo, a 6 de Setembro de 1632, Pedro da Silva Sampaio é nomeado bispo de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, iniciando o seu (conturbado) trabalho nessa diocese a partir de 19 de Maio de 1634.

            Silvério da Silva da Fonseca, plausivelmente por óbito de Silvério Salvado de Morais, terá sido nomeado alcaide-mor de Alfeizerão na sua menoridade, com a sua mãe por tutora. Numa memória manuscrita sobre Alfeizerão devida à pena de António José Sarmento, publicada por Tito Larcher (Larcher, 1907:226) nos alvores do século XX, pode-se ler que inicialmente foi o tio-avô do alcaide, o futuro Bispo da Baía, Pedro da Silva Sampaio, quem tomou posse do castelo, mas uma provisão do abade confiou a título provisório o castelo e alcaidaria de Alfeizerão a Francisco da Silva, avô materno de Silvério da Silva. Fidalgo da Casa Real, Silvério da Silva da Fonseca contrai casamento com Maria Teresa de Ayala e Toledo, de cuja união nasce Pedro da Silva da Fonseca Salvado, também alcaide-mor de Alfeizerão. Da união deste com Ângela Maria de Portugal, nasce Silvério da Silva da Fonseca Salvado, o último membro desta família a deter o cargo de alcaide-mor da vila e castelo de Alfeizerão. Do seu casamento com D. Joana Maria de Távora Pereira, nascem quatro filhos; após a morte da mulher, torna-se sacerdote do hábito de S. Pedro.

            A descendência desta família continuará na vila e em Alcobaça, Fidalgos da Casa Real e senhores da Casa de Alcobaça, possuíram em Alfeizerão vastas terrenos agrícolas reunidos numa Quinta cujo nome se vai ajustando ao do patriarca (Quinta de Pêro da Silva, Quinta de Francisco Manuel…), mas que de forma menos inconstante era designada por Quinta do Fidalgo. Um registo singular, num tempo em que era alcaide Silvério da Silva da Fonseca, é o que consta do assento de baptismo a 10 de Julho de 1695 de uma menina de nome Joana Baptista, filha de António Ribeiro e Maria Nunes de Alfeizerão, no qual se menciona que os padrinhos, António Caria e Domingos Dias, eram moradores na “Quinta do Alcaide-mor[3].

 

2. Os Freitas e Sampaio

            É Bernardo de Freitas e Sampaio, o primeiro membro desta antiga família a exercer o cargo de alcaide-mor de Alfeizerão, apresentado em 1695, renuncia em 1738, sendo substituído pelo seu filho primogénito João Carlos de Freitas e Sampaio, apresentado nesse mesmo ano. Em 1765, é o seu segundo filho, António Félix da Silva Barradas, quem se torna alcaide-mor e quatro anos mais tarde, cabe a vez de assumir o cargo o terceiro filho de Bernardo de Freitas, José Joaquim de Freitas e Sampaio[4]. Todos eles, tal como o quarto filho de Bernardo de Freitas e Sampaio, Manuel Cândido de Freitas e Sampaio, receberam Foro de Cavaleiro Fidalgo, por mercê de D. João V no mês de Junho de 1743 (vide Apêndice Documental 1), nesses alvarás também se indica a sua naturalidade – Bernardo de Freitas e Sampaio nascera em Castelo de Vide, enquanto os filhos nascem na Batalha, à excepção do benjamim, Manuel Cândido de Freitas e Sampaio, natural da freguesia (hoje desaparecida) do Arrabalde da Ponte, subúrbio da cidade de Leiria. No Nobiliário de Felgueiras Gaio (Gaio, 1939:194), destes quatro apenas se refere o primeiro filho de Bernardo de Freitas e Sampaio, indicando em compensação duas filhas, Dona Joana e Dona Maria, e um filho que foi frade bernardo, Frei Francisco da Conceição.

            Bernardo de Freitas e Sampaio era filho de Cosme de Freitas e Sampaio. Na Diligência de Habilitação para a Ordem de Cristo do irmão de Bernardo, Xavier de Freitas e Sampaio[5], com data de 7 de Novembro de 1689, é esmiuçada a ascendência deles até aos avós: com a sua origem em Castelo de Vide, o pai era o capitão Cosme de Freitas e Sampaio, natural da freguesia de Nossa Senhora dos Mártires da cidade de Lisboa e a mãe Brites Álvares, natural de Castelo de Vide e baptizada na igreja matriz de Santa Maria; neto pela parte paterna de Francisco de Freitas e Sampaio, natural da freguesia de S. Miguel de Varziela, concelho de Felgueiras e comarca de Guimarães; e de Maria Carvalha, da cidade de Lisboa; pelo lado materno eram seus avós Francisco Fernandes Abelho e Catarina Dias Francisca, de Castelo de Vide, e baptizados na mesma igreja matriz de Santa Maria.

            O capitão Cosme de Freitas e Sampaio, “foi despachado para a Índia com Foro de Fidalgo” (Gaio, idem) e pelos seus serviços é recompensado com um posto de Juiz da Alfândega de Diu e uma pensão de trinta mil réis na comenda de Nossa Senhora da Devesa da Ordem de Cristo – o alvará que estabelece essa mercê (vide Apêndice Documental 2) evoca um tempo e uma atmosfera que Emilio Salgari não desdenharia conhecer. Seguindo ainda Felgueiras Gaio, Cosme de Freitas e Sampaio, “tornando para o Reyno servio nas guerras da Aclamação com posto de Capitam de cavallos. Cazou em Castelo de Vide com Brites Alvarez”. Entre os irmãos de Cosme de Freitas, tios de Bernardo de Freitas e Sampaio, contava-se Luís de Freitas e Sampaio, Frei António, que foi religioso bernardo e o Dr. Frei Francisco de Sampaio (Gaio, 1939:194), que foi Abade Geral no Mosteiro de Alcobaça no triénio de 1693 a 1696. É na vigência abacial de Frei Francisco de Sampaio que é apresentado o seu sobrinho Bernardo de Freitas e Sampaio como alcaide-mor de Alfeizerão.

            Bernardo de Freitas e Sampaio contrai matrimónio com Josefa Maria da Silva Barradas, da Batalha, em 1675, filha de Tomás Leite de Sousa da vila da Batalha e de Marcelina da Silva Barradas, de Leiria. O filho primogénito e segundo alcaide-mor de Alfeizerão na família, é João Carlos de Freitas e Sampaio, que deteve o cargo durante vinte e sete anos.

            O irmão, António Félix da Silva Barradas, alcaide-mor de 1765 a 1769, recolhe os sobrenomes da sua ascendência materna. Já de posse do seu título de Cavaleiro Fidalgo da Casa Real, pretende ser Familiar do Santo Ofício, em processo que corre no ano de 1745[6]. Nele se declara natural e morador na vila da Batalha, filho do Alcaide Mor de Alfeizerão Bernardo de Freitas e Sampaio (ipsis verbis) e casado com D. Maria Antónia de Amaral, natural da cidade de Leiria. É apontada a filiação dele e da esposa, para a cuidadosa averiguação por parte do Santo Ofício. As informações recolhidas e os inquéritos realizados sobre a limpeza de sangue e exemplaridade de costumes nada encontram de comprometedor e é-lhe concedida a carta de Familiar do Santo Ofício a 26 de Fevereiro de 1745. Ao mesmo processo está anexada a Diligência de Habilitação do seu irmão João Carlos de Freitas e Sampaio, “sargento mor [e] Alcaide mor da Villa de Alfeizaram” (f. 17r), no desenrolar de testemunhos e certidões, é indicado que, por esses anos (1743-1744), Bernardo de Freitas e Sampaio é residente no lugar do Carvalhal de Óbidos desde doze anos àquela data, ao passo que a diligência em Castelo de Vide apura a data em que foi baptizado, 8 de Agosto de 1675 (f. 41r). Sobre João Carlos de Freitas e Sampaio, os inquéritos desenvolvidos em Leiria, Cortes e Batalha desenterram uma inconveniência do seu passado a que o Comissário do Santo Ofício não dá qualquer importância no seu Sumário da Diligência: o ele ter “desonestado” uma criada da vila da Batalha, que teve dele um filho que foi enjeitado, circulando uma história idêntica no lugar de Cortes (f. 17r, 20r).

            O terceiro filho de Bernardo de Freitas e Sampaio e alcaide-mor desde 1769, José Joaquim de Freitas e Sampaio, era ainda alcaide-mor do castelo e vila de Alfeizerão em 1792, ano em que dirige um requerimento à rainha[7] (vide a petição inicial do Requerimento no Apêndice documental 3) para que lhe nomeie um juiz privativo para o ajudar a administrar os bens da sua casa, uma vez que o pai, Bernardo de Freitas e Sampaio, havia falecido cerca de dois anos antes e ao entrar na posse dos Morgados da casa dos seus pais dispersos pelos termos da cidade de Leiria, Batalha, Óbidos e cidade de Lisboa, os achara muito destruídos e dissipados. Em resposta, a rainha, por Portaria da Coroa de 28 de Junho de 1792 atendeu favoravelmente a esse pedido, nomeando um Juiz Privativo para a administração dos bens do requerente.

 

 3 – Uma consideração intercalar sobre os alcaides

            Uma questão que emerge deste tema é o das atribuições e residência do alcaide-mor em funções, se Silvério da Silva da Fonseca, por exemplo, poderia ter uma morada acessória em Alfeizerão na sua Quinta, o mesmo não se passará com os filhos de Bernardo de Freitas e Sampaio, com residência declarada na vila da Batalha. Afigura-se plausível que fosse um recurso comum a existência do chamado “alcaide pequeno”, configurado na documentação do Mosteiro e tratado pelos seus cronistas e escribas, um alcaide interino, residente na vila, que fizesse cumprir a lei e punisse os infractores. Nas vilas dos Coutos, sabemos que em Alcobaça e Alfeizerão os alcaides pequenos eram apresentados ou escolhidos pelo alcaide-mor em funções, em Aljubarrota e na Maiorga eram eleitos nos pelouros dos oficiais da Câmara da vila, enquanto nas vilas da Cela, Pederneira e Évora era o próprio Mosteiro que os apresentava[8]. Na realidade, o dito alcaide pequeno não era mais do que o alcaide da vila, nas duas vilas que possuíam castelo e alcaidaria-mor, eles poderiam ter porventura uma função acrescida de representação do respectivo alcaide-mor.

            Em Alfeizerão, temos notícia de dois alcaides da vila em períodos coincidentes com a existência de alcaides-mores nomeados e renumerados pelo Mosteiro.

            No assento de baptismo de um exposto de nome Francisco, com a data de 27 de Agosto de 1706, o padrinho foi “Manuel Pereira, alcaide desta vila[9], alcaide mencionado uma vez mais no baptismo do seu próprio filho a 21 de Fevereiro de 1707[10].

            Sessenta anos mais tarde, a 19 de Novembro de 1767, no baptizado de André, filho de Manuel Gomes Zanga e Maria Pinto da freguesia das Caldas, o padrinho escolhido é “João Pereira, alcaide actual desta vila[11]. Este alcaide João Pereira, vamos reencontrá-lo numa outra fonte documental concordante: no lançamento da Décima dos prédios urbanos da vila de Alfeizerão respeitante ao ano de 1763, o alcaide João Pereira surge como residente na Rua Direita da vila de Alfeizerão, em casas térreas que arrendara ao seu proprietário, Gregório Gomes, sapateiro da vila[12].

 

4. Um final queirosiano

            O penúltimo Alcaide-mor de Alfeizerão parece ter sido José Teixeira Coelho Vieira de Queirós, casado com Margarida Miguelina Máxima de Oliveira, apresentado como alcaide de Alfeizerão numa data que não pudemos precisar. Por desistência que fez do cargo, foi nomeado o seu filho, António Teixeira Coelho Vieira de Queirós, cujo Preito de Homenagem se realizou a 16 de Abril de 1825 (Livro de Privilégios…, op. cit., f. 7v). Esta família era possuidora da Quinta da Gandra ou Casa da Gandra, propriedade extensa situada no lugar do mesmo nome, na freguesia de Guilhufe, Penafiel, à cabeça da qual José Teixeira Coelho sucedera ao seu pai, o capitão Joaquim José Vieira de Queirós, falecido em 1813 (Arquivo Municipal de Penafiel[13], pp. 34 e 447). Nos tempos conturbados que então se viviam, de guerra civil e absolutismo miguelista, ambos defenderam D. Miguel no confronto das armas. No ano de 1829, a 23 de Julho desse ano, António Teixeira de Queirós é mencionado no periódico oficial entre os Realistas como Tenente da 6ª Companhia do Regimento de Milícias de Penafiel (Gazeta de Lisboa, nº 172, p. 710, 23 de Julho de 1829, Lisboa, Imp. Régia), enquanto o pai, também militar, comandaria os Realistas da cidade.

                Um outro periódico, O Ecco – Jornal Critico, Litterario, e Politico (n.º 197, de 20 de Junho de 1837, Lisboa, Tipografia de A. I. S. de Bulhões), elucida-nos sobre o que lhes sucedeu após a queda de D. Miguel, arrolando-os na «Lista dos Realistas perseguidos em Penafiel, moradores na terra ou vizinhos»: «50 - Joze Teixeira Coelho Vieira de Queiroz, Cavaleiro de Christo, Alcaide Mór d’Alfeizarão e Governador Militar de Penafiel em 1828, preso em Penafiel, aonde deu dinheiro para ser solto, e lhe comerão o dinheiro sem o soltar, até que remettido para o Porto, lá foi solto. – 51 - Antonio Teixeira Coelho, Cav. de Ch., Alcaide Mór d’Alfeizarão e Capitão Mór de Bemviver [sic], culpado e perseguido desde 1834 até 1837 sem que elle offendesse um só liberal no tempo de D. Miguel».

                Dissipados os ventos de guerra, os documentos atestam a presença de ambos na Casa da Gandra, a propriedade da família, já na segunda metade do século XIX[14].

 

Fontes

GAIO, Felgueiras - Nobiliário de famílias de Portugal, Tomo Décimo Quarto, edição de Agostinho de Azevedo Meirelles e Domingos de Araújo Affonso, Braga, 1939

GAIO, Felgueiras - Nobiliário de famílias de Portugal, Tomo Vigésimo Primeiro, edição de Agostinho de Azevedo Meirelles e Domingos de Araújo Affonso, Braga, 1940

LARCHER, Tito Benvenuto de Sousa - Dicionário Biográfico, Corográfico e Histórico do Distrito de Leiria, p. 224-228, Leiria, 1907.

SANTOS, Frei Manuel dos  - Alcobaca illustrada : noticias, e historia dos mosteyros, & Monges insignes Cistercienses da Congragaçam de Santa Maria de Alcobaça da Ordem de S. Bernardo nestes Reynos de Portugal, & Algarves, Parte I, Coimbra, 1710.


Apêndice Documental

 

1. Foro de Cavaleiro fidalgo, atribuído por mercê de D. João V a Bernardo de Freitas Sampaio e aos seus filhos, nomeadamente, Manuel Cândido de Freitas Sampaio, António Félix da Silva Barradas, João Carlos de Freitas Sampaio e José Joaquim de Freitas e Sampaio.

ANTT, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 34, f.109r-110r

 

[f. 109r]

<Manuel Candido de Freitas e São Payo, natural do Arrabalde da Ponte, subúrbio da Cidade de Leyria, filho de Bernardo de Freytas de S. Payo, Cavalleiro fidalgo da Caza e neto de Cosme de Freytas de S. Payo>

Houve S. Magestade por bem fazer mercê ao dito Manuel Candido de Freytas e S. Payo de o tomar por escudeiro fidalgo com 700 rs de moradia por mez e juntamente o acrescenta logo a Cavaleiro fidalgo de Sua Caza com 300 rs mais em sua moradia, alem do que por este tem de Escudeiro fidalgo por que daqui em diante tenha e haja mil rs de moradia por mez de Cavaleiro fidalgo e hum alqueire de cevada por dia, pago segundo ordenança e he o foro e moradia que pelo dito seu pae lhe pertence. E o Alvara foi feito a 18 de Junho de 1743

 

<Antonio Felix da Silva Barradas, natural da vila da Batalha, Comarca de Leiria, filho de Bernardo de Ferytas de S. Payo, Cavaleiro fidalgo da Caza e neto de Cosme de Freytas e S. Payo>

Houve S. Magestade por bem fazer mercê ao dito Antonio Felix da Silva Barradas de o tomar por escudeiro fidalgo com 700 rs de moradia por mez e juntamente o acrescenta logo a Cavaleiro fidalgo de Sua Caza com 300 rs mais em sua moradia, alem do que por este tem de Escudeiro fidalgo por que daqui em diante tenha e haja mil rs de moradia por mez de Cavaleiro fidalgo e hum alqueire de cevada por dia, pago segundo ordenança e he o foro e moradia que pelo dito seu pae lhe pertence. E o Alvara foi feito a 18 de Junho de 1743

 

[f. 109v]

<Bernardo de Freytas de S. Payo, natural da vila de Castelo de Vide, filho de Cosme de Ferytas de S. Payo, Cavaleiro fidalgo da Caza>

Houve S. Magestade por bem fazer mercê ao dito Bernardo de Freytas de S. Payo de o tomar por escudeiro fidalgo com 700 rs de moradia por mez e juntamente o acrescenta logo a Cavaleiro fidalgo de Sua Caza com 300 rs mais em sua moradia, alem do que por este tem de Escudeiro fidalgo por que daqui em diante tenha e haja mil rs de moradia por mez de Cavaleiro fidalgo e hum alqueire de cevada por dia, pago segundo ordenança e he o foro e moradia que pelo dito seu pae lhe pertence. E o Alvara foi feito a 15 de Junho de 1743

 

<João Carlos de Freytas de S. Payo, natural da vila da Batalha, Comarca da Cidade de Leiria, filho de Bernardo de Freytas de S. Payo, Cavaleiro fidalgo da Caza e neto de Cosme de Freytas e S. Payo>

Houve S. Magestade por bem fazer mercê ao dito João Carlos de Freytas e S. Payo de o tomar por escudeiro fidalgo de sua Caza com 700 rs de moradia por mez e juntamente o acrescenta logo a Cavaleiro fidalgo della com 300 rs mais em sua moradia, alem do que por este tem de Escudeiro fidalgo por que daqui em diante tenha e haja mil rs de moradia por mez de Cavaleiro fidalgo e hum alqueire de cevada por dia, pago segundo ordenança e he o foro e moradia que pelo dito seu pae lhe pertence. E o Alvara foi feito a 16 de Junho de 1743

 

[f. 110r)

<Joze Joaquim de Freytas e S. Payo, natural da vila da Batalha, Comarca de Leiria, filho de Bernardo de Ferytas e S. Payo, Cavaleiro fidalgo da Caza e neto de Cosme de Freytas e S. Payo>

Houve S. Magestade por bem fazer mercê ao dito Joze Joaquim de Freytas e S. Payo e de o tomar por escudeiro fidalgo com 700 rs de moradia por mez e juntamente o acrescenta logo a Cavaleiro fidalgo de Sua Caza com 300 rs mais em sua moradia, alem do que por este tem de Escudeiro fidalgo por que daqui em diante tenha e haja mil rs de moradia por mez de Cavaleiro fidalgo e hum alqueire de cevada por dia, pago segundo ordenança e he o foro e moradia que pelo dito seu pae lhe pertence. E o Alvara foi feito a 16 de Junho de 1743

 

2. Mercê a Cosme de Freitas de Sampaio do cargo de Juiz da Alfândega de Diu com pensão de 30.000 réis na comenda de Nossa Senhora da Devesa da Ordem de Cristo

ANTT, Registo Geral de Mercês, liv. 3, f. 393v-394r

 

[f. 393v] Eu, ElRey faço saber que tendo respeito aos seruiços de Cosme Gonçalvez Carnide feitos nos lugares de Mazagão desde o anno de 611 até o de 623 em 6 armadas da India e 2 da Costa em que comprio com sua obrigação e perdendoçe ultimamente na Costa de França o anno de 626 da nau com gramde risco se saluou a nado cuja acção ficou pertencendo por Sentença do Juízo das Justificaçoens a Cosme de Freitas de Sampayo e assim a acção dos seruiços de seu tio Gonçallo de Freitas de Sampayo, o qual morreo afogado embarcandoçe de Goa o anno de 627 para Oromus [Ormuz] em companhia do general Nuno Alvarez Botelho, soçobrou com hum temporal o seu galleão, e otrosim lhe pertencerem os seruiços que otro seu tio por nome João de Freitas de Sampayo fez nas fronteiras do Minho desde Agosto de 642 athé o de 46, achandoçe em algumas ocazioens de guerra que naquelle tempo se lhes ofreçerão, e paçando no ultimo anno a Alemtejo, se achar na facção do forte de Tellena em satisfação de tudo e do que o mesmo Cosme de Freitas obrou na armada da Barra desta cidade no ano de 1650, embarcar no galleão [f. 394r] almirante em o anno de 651, hir para a India nas Naos da monção de Março; Hey por bem delle fazer mercê do cargo de Juiz da Alfandega de Dio por 3 annos na vagante dos providos antes de 14 de Dezembro de 651 em que o Conselho Ultramarino o consultou segunda ves com obrigação de seruir primeiro na India 4 annos nas couzas que o VizoRey daquelle Estado lhe ordenar, e assim lhe faço mercê de 30 Rs [30$000 réis] de penção na comenda de N. Sra. da Deueza da Ordem de Xhristo e della administradora a Condeça da Palma que deo seu beneplaçito para se poder pensionar a comenda referida nos 30 Rs, os quais Cosme de Freitas gozará com o habito da mesma ordem que lhe tenho mandado lançar logo na India, tendoçe embarcado para ella na monção de Março do anno paçado de 651 como tinha obrigação e para sua guarda e minha lembrança lhe mandei paçar o presente aluara, que lhe farei inteiramente comprir e guardar como se nelle contem pello que toca somente a penção de 30 Rs em a comenda da referida e ualera como carta posto que seu effeito haja de durar mais de hum anno sem embargo de qualquer prouisão ou regimento em contrario e se comprirá sendo paçado pella chancelaria da ordem. Nicolao de Carvalho a fez em Lixboa a 8 de Março de 1652. Francisco Pereira de Castro a fez escreuer. // Rey //

 

3. Requerimento de Joaquim José de Freitas e Sampaio, Fidalgo da Casa Real, Alcaide-mor do castelo e vila de Alfeizerão, solicitando a nomeação de um juiz privativo para administração dos bens da sua casa”.

(DGA/TT, Ministério do Reino, mç. 776, proc. 53).

 

Diz Joaquim Jozé de Freytas e Sampaio, Cavaleiro Fidalgo de V.a Magestade e Alcaide Mór do Castello e villa de Alfeizerão, legitimo subsussor [sic] e Administrador dos Morgados da Caza de seys Pays, citos [sitos] nos termos da cidade de Leyria, Batalha, Obidos e cidade de Lisboa, que emtrando na posse dos mesmos vínculos a menos de dois anos, por falecimento de seu pay, os achou muito distruidos, com varias propriedades arruinadas, muitos juros distratados, muitos foros de trigo vendidos e outras propriedades nulamente aforadas, e athe as existentes muito damnificadas; e porque não tem forças para a sua restauração pelas muitas demandas que já tem e outras que de grande necessidade perciza mover, como bom administrador, para fazer inteirar, ratificar os ditos vínculos. E vossa Magestade pella sua Real Sobrania e piadade, tem em similhantes termos concedido a outras pessoas a merce de hum Juiz Privativo para todas suas couzas; Graça que não desmerese o Suplicante para conservação da sua nobreza e caza e benefício das Respublica. E com atenção a que os litígios daquellas mesmas terra hande vir ordinariamente findar a esta Corte. E igualmente com atenção ao que V.a Magestade pelo Conselho das suas Terras e Estados, já foi servida nomiarlhe para Juis Privativo de todas as Causas as mesmas Terras respectivas presentes e futuras ao Dezembargador Ouvidor Geral das mesmas Terras, como consta do documento junto, cujas Cauzas ficarão paradas pella extinção da Ouvidoria Geral pella Ley de 19 de Junho de 1790 e pella Ley de 7 de Janeiro do prezente anno, se mandam, não estando sentenciadas, distribuir aos Corregedores do Civel da Corte, que asim ficam substituindo o lugar do dito Ouvidor Geral, Juis Privativo que era do Suplicante. Commetendose ao £. 29 da mesma Ley ao Regio Tribunal do Dezembargo do Passo o poder deferir os requerimentos das partes pelo seu expediente, ou por consulta a Real prezensa, parecendo necessário.

E por não estarem ainda distribuídas as Cauzas do Suplicante, requereo este ao Regio Tribunal do Dezembargo do Passo de V.a Magestade, tudo o mencionado [f. 1v] lhe saio o despacho seguinte = escusado por este modo = e como não tem outro senão requerer emediatamente a Vossa Magestade.

 

Pede a V.a Magestade lhe conceda a graça de lhe nomiar para Juis Privativo de todas as cauzas e dependencias da Caza do Suplicante, prezentes e futuras, hum dos quatro Corregedores do Civel da Corte, que as julgue em huma so instancia com adjuntos nomiados pello Conde Regedor, e que o mesmo Juis Privativo nomeie Escrivão, ou mandar passar Avizo para o Dezembargador do Passo consultar a V.a Magestade sobre o requerimento do Suplicante.



[1] Diligências de Habilitação para o cargo de Familiar do Santo Ofício de Silvério Salvado de Morais, casado com Micaela da Silva”, ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Silvério, mç. 1, doc. 1

[2]  Apesar da coincidência de apelidos, não descortinamos nenhum elo genealógico entre esta figura e Bernardo de Freitas e Sampaio, adiante tratado com mais pormenor

[3] ADL - Arquivo Distrital de Leiria, IV/24/B/30, Registos de batismo da freguesia de Alfeizerão: 1678-1696, f. 68r

[4] "Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças, Igrejas deste Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça", ANTT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 92, f. 7 r

[5] “Diligência de Habilitação para a Ordem de Cristo de Xavier de Freitas e Sampaio” (ANTT, Mesa da Consciência e Ordens, Habilitações para a Ordem de Cristo, Letra X, mç. 1, n.º 3)

[6]Diligência de Habilitação de António Félix da Silva Barradas” (ANTT, Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, António, mç. 97, doc. 1759)

[7]Requerimento de Joaquim José de Freitas e Sampaio, Fidalgo da Casa Real, Alcaide-mor do castelo e vila de Alfeizerão, solicitando a nomeação de um juiz privativo para administração dos bens da sua casa” (DGA/TT, Ministério do Reino, mç. 776, proc. 53). Fólios não numerados.

[8] "Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças, Igrejas deste Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça", ANTT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 92, f. 8 r

[9] ADL, IV/24/B/31, Registos de batismo da freguesia de Alfeizerão: 1697-1737, fl. 47r

[10] Idem, f. 50v

[11] ADL, IV/24/B/32, Registos de batismo da freguesia de Alfeizerão: 1737-1771, f. 66r

[12] Arquivo Histórico do Tribunal de Contas, DP 463.3 – Prédios, maneios e juros da comarca de Leiria – Alfeizerão e Termo – 1763, f. 5v

[13] ARQUIVO MUNICIPAL DE PENAFIEL,  Inventário do Acervo Documental do Morgado da Aveleda, Câmara Municipal de Penafiel, Penafiel, 2011. PDF disponível em https://www.cm-penafiel.pt/wp-content/uploads/2016/10/Inventario_Morgado_Aveleda1.pdf

[14] Idem, p. 637,1029