Figura 1: Golfo e cidade de Tunes, com a fortaleza de Tunes e a fortaleza de La Goleta (in Civitates orbis terrarum¹) |
Dos
portugueses capturados pelos corsários mouros nas nossas costas, os mais
confiados num eventual resgate e regresso à pátria seriam aqueles que tinham
algo de seu ou eram filhos de algo, o que lhes conferia alguma vantagem prévia
nas negociações e acordos com os corsários; os restantes, ainda que pudessem
beneficiar de um resgate coletivo orquestrado pelos piedosos religiosos que o
tinham por missão e causa, estavam sempre mais subordinados à sorte e ao acaso,
como de comum acontece aos menos privilegiados. Se o processo de Manuel
Teixeira, nascido em S. Martinho do Porto numa família de pescadores, ilustra o
caso de um homem que soube virar a sorte a seu favor como quem maneja a vela de
um barco para beneficiar do rumo do vento - convertendo-se ao islamismo e
trabalhando ao lado dos seus captores até surgir a possibilidade de se evadir
para a Europa - também existe documentado o testemunho de uma dúzia de cativos
que conseguiu evadir-se do porto de Tunes e regressar à Europa pelo seu próprio
engenho e sorte, entre esses evadidos contava-se um natural da Pederneira e
outro do Porto de S. Martinho, respetivamente, Pêro Fernandes e António
Coresma.
Este Pêro Fernandes é distinto do "corsário" de
Alfeizerão com o mesmo nome, cuja história paralela é contada no processo da
Inquisição transcrito por Casimiro de Almeida; de outra feição, Coresma ou
Quaresma é um apelido que ocorre por esta época nos assentos paroquiais de
Alfeizerão e S. Martinho do Porto, como memorável exemplo o padre António Dinis
Quaresma que foi padre-cura na igreja de S. Martinho, nascido em Alfeizerão de
João Franco Quaresma e Margarida Carvalha Loba, e que à data da sua Diligência
de Habilitação para Familiar do Santo Ofício (1676-77)², era Reitor na
Real Igreja de Nossa Senhora da Nazaré. O pai, segundo os testemunhos discordantes dessa
Diligência de Habilitação, era natural de Alfeizerão ou da Pederneira (onde terá desempenhado o cargo de tabelião na vila), mas as suas raízes familiares, e do
apelido, encontravam-se em Peniche; a mãe, era natural do lugar de Meca,
termo de Alenquer
A proeza da fuga do porto de Tunes³ é contada por Manuel de
Brito Alão, administrador e cronista da Real Casa de Nossa Senhora da Nazaré no
capítulo 66 da sua obra «Prodigiosas histórias e miraculosos sucessos
acontecidos na Casa de Nossa Senhora de Nazaré» (Lisboa : por Lourenço
Craesbeeck, 1637, fl. 126v):
Capítulo LXVI (Como sairão dous cativos de terra de Mouros, por intercessão da Senhora de Nazareth)
(Entram na igreja, dois cativos, com muita gente da vila da Pederneira, por dela ser natural um deles)
Feita oração, se ergueram os cativos, e o Sacerdote os chamou e depois de lhes dar os parabéns pela sua liberdade e vinda, lhes pediu que contassem o sucesso da sua soltura & livramento. Ao que respondeu o mais velho, chamado Pêro Fernandes, natural da vila da Pederneira: notório é este povo, como há catorze anos quando eu e o meu companheiro partimos desta vila, ainda que ele, chamado António Quaresma [«Coresma»], há nove. Ele e eu fomos tomados nas embarcações em que partimos de nossa pátria, ao tempo em que dela saímos, por mouriscos e Turcos, e por várias vezes vendidos de uns para outros, e para vários lugares e cidades; e ultimamente para o porto de Tunes, para remarmos numa galé, em que eu, o meu companheiro e outros cristãos, muito andávamos tratando entre nós, com muito segredo, o modo como poderíamos fugir e vermo-nos livres de tão áspero cativeiro como tínhamos passado aí. E assentamos que, na barquinha da mesma galé, fugíssemos doze pessoas, que nela, apertadamente, podíamos caber; e porque fosse véspera de Santiago desse ano de mil seiscentos e trinta, por ser padroeiro de Espanha, e encomendamo-nos à Nossa Senhora da Nazaré, particularmente eu e o meu companheiro, por ser nossa padroeira, para que nos livrasse do cativeiro e do notável perigo de nossas vidas (no qual nos pusemos na tentada fuga). Aquela noite, dormindo os mouros e Turcos, tivemos ordem e lugar para nos soltarmos dos ferros em que estávamos presos a correntes, e merendamos sem sermos sentidos na barquinha com algum biscoito que pudemos guardar das nossas rações, e pouca água; cortamos o cabo que estava preso à galé, e encomendando-nos à Senhora da Nazaré, saímos pelo rio abaixo, o qual é muito estreito, e sendo sentidos pelos guardas que de uma e outra parte andam toda a noite vigiando, fazendo nesta um grande luar, nos começaram a atirar com arcabuzes e pedras, acordando as gentes que por aquelas partes se agasalhavam, vindo a perseguir-nos com grande gritaria e alarido, sem chegarem a nós, nem fazerem dano algum.
«Entramos no mar e com uma velazinha rota que tínhamos, e remos que trazíamos, chegamos brevemente à ilha da Sardenha, atravessando todo aquele mar com muito risco de nos perdermos e sermos outra vez tomados, que são oitenta e cinco léguas; tendo e crendo que, por intercessão da Virgem Senhora da Nazaré, fomos libertados, e nessa ilha recebidos por todos com grande gosto. E daí, embarcamos num navio para Leão [«Lionne», golfo de Leão], atravessando aquele golfão, passamos por muitas partes muito perigosas, por andarem nelas ordinariamente mouros e Turcos; sem, em toda a viagem, nem nos mais caminhos que fizemos, nos acontecer coisa que contrariasse o nosso intento e liberdade, com o que, [com] louvores a Deus, chegamos a esta santa Casa, eu e o meu companheiro, que é natural do Porto de S. Martinho, que aqui está defronte.
Figura 2: o rio «muito estreito» entre o Golfo de Tunes e o mar, fortemente defendido pela fortaleza otomana de La Goleta com as suas peças de artilharia (Detalhe da gravura anterior) |
¹ BRAUN, Georg e HOGENBERG, Frans - CIVITATES ORBIS TERRARUM: LIBER PRIMUS: LIBER SECUNDUS: LIBER TERTIUS, Livro II, Publ.: Coloniae Agripinae : Excudebat Bertramus, post 1576-1606.
² Diligência de Habilitação de António Dinis Quaresma (Padre) - ANTT, Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, António, mç. 19, doc. 590, f. 45r-45v
³ «GOLETA E TUNES: Quatro legoas ao Sueste de Porto Farina está a ponta, ou Cabo de Carthago, e legoa e meia ao Su-sueste desta ponta fica a Goleta dentro do golfo de Tunes. Este golfo he de forma quasi redonda, tem 10, ou 12 milhas de largo, ou de diametro, a sua boca olha para les-nordeste; os navios dão fundo diante de Goleta, a qual foi huma Fortaleza muito celebre, mas hoje está quasi toda arruinada, e só se conserva hum baluarte, onde os Turcos tem 30 Janízaros e 10 peças de artilharia para guarda do porto. A altura do Pólo da Goleta são 36 graus, 20 minutos; observada muitas vezes por D. João de Castro, Fidalgo Portuguez, que depois foi Vice-Rei da Índia, na jornada que fez a Tunes com o Infante Dom Luís em companhia do Emperador Carlos V. Por detrás da Goleta vai hum lago de 12 milhas de comprido, onde não podem entrar mais do que barcas, no fim do qual fica a Cidade de Tunes» (PIMENTEL, Manoel - Arte de Navegar... e Roteiro das viagens e costas maritimas de Guiné, Angola, Brazil, Indias, e Ilhas Occidentaes, e Orientaes, p. 590, Lisboa, na Typografia de Antonio Rodrigues Galhardo, 1819)
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