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Detalhe da gravura sobre D. Fuas Roupinho, que figura nas duas obras de Manuel de Brito Alão |
1 – Laços de família
Ao seguir os processos do Santo Ofício sobre os membros da
família Brito que viveram na quinta
da Cavalariça, termo da vila de Alfeizerão, surgiram-nos diversas dúvidas e
interrogações pertinentes. Perante estas, achamos que a forma mais prática de as
abordar era elaborar um pequeno estudo
genealógico (disponível em
formato PDF) onde
fosse nítida a posição dos familiares indicados nesses processos do Santo
Ofício, e as suas relações intrínsecas. Foi mais um quebra-cabeças do que uma
tarefa simples: havia à partida a vantagem dos Processos conterem um capítulo
de genealogia, e de as
confissões/denunciações apontarem a relação de parentesco com os visados, mas
nessas fontes existem informações contraditórias, omissões e trocas, nomes
iguais que foram adotados por gerações diferentes, e diferentes apelidos usados
ou conhecidos por terceiros para falar da mesma pessoa. Este arrazoado
genealógico a que chegamos (depois de confrontarmos as informações de
diferentes Processos [1]),
tentamos que estivesse isento de erros, ainda que seja imprudente garanti-lo em
absoluto.
1.1. Os parentes de Coimbra
Os processos de Nuno de Brito Alão e Nuno da Silva, começam com
as denúncias contidas nas confissões de dois primos de Coimbra, Lourenço de Sá e Madalena
de Sá, religiosa no mosteiro de Semide (mosteiro de Santa Maria de Semide, em
Miranda do Corvo). A relação estabelece-se com António de Figueiredo e Sousa,
marido de Isabel de Brito, tia de Nuno de Brito Alão.
Uma das irmãs de António de Figueiredo, Antónia de Figueiredo,
foi casada com um homem nobre da cidade de Coimbra, Cristóvão de Sá, de quem
teve Catarina de Sá. Esta Catarina de Sá foi casada duas vezes. Da primeira
união, com um cristão-novo chamado Francisco da Silva (julgado e condenado à
revelia pela Inquisição por não se lhe conhecer o paradeiro), nasceram os nossos
Lourenço e Madalena de Sá. Da segunda união, com um fidalgo, D. João de Ataíde,
teve uma filha, Maria de Figueiredo, que foi religiosa professa no mosteiro de
Semide, tal como Madalena de Sá.
Lourenço de Sá, avogado e bacharel em Leis, morador em
Montemor-o-Velho, teve diversos familiares presos pela Inquisição, entre eles,
os filhos. Por seu turno, o Processo de Madalena de Sá não é um exemplo ímpar
nos meandros da história da Inquisição, existindo diversos casos de freiras
presas por judaísmo ou heresia nos conventos da região de Coimbra (o mosteiro
de Semide, o mosteiro de Nossa Senhora de Campos em Montemor-o-Velho, ou o
mosteiro de Santa Maria de Celas).
Arlindo Correia estudou, entre outros, o caso de Leonor da Silva,
presa por judaísmo com outras duas irmãs de sangue, também irmãs religiosas, no
mosteiro de Semide. Os detalhes do Processo são dramáticos, entrada no convento
contra a sua vontade [2],
acusada por outras religiosas de zombar das coisas santas da religião, negou
sempre as suas culpas e acabará por ser relaxada à justiça secular e morta num
Auto de Fé na cidade de Coimbra a de 4 de Maio de 1625 (Correia, Arlindo - As 5 freiras mortas pela Inquisição.
Site: Página sobre a Inquisição em Portugal. Endereço: http://arlindo-correia.com/020714.html.
Acesso mais recente a 04/06/2015).
1.2. Helena Aires
A mãe de Nuno de Brito Alão, Helena Aires Correia, cristã-nova
oriunda de Lisboa, esteve também presa nos cárceres da Inquisição (Processo de
Helena Aires – Direção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,
proc. 10614). Foi casada uma primeira vez com Duarte de Araújo, da família dos
Lobos da Pederneira que viviam na cidade de Tomar (Pedro Fernandes Lobo,
Jerónimo Lobo…); do qual enviuvou. Da filha desse primeiro casamento, Filipa de
Jesus, ela diz (e quem melhor indicado para o dizer?) que era freira no
mosteiro de Santa Iria de Tomar.
Do seu casamento com Duarte de
Brito Alão, nascerão dois filhos, Nuno de Brito e António. É curioso que nos
testemunhos deste processo, Duarte de Brito Alão é indicado também como Duarte Lobo (fl.9/Img,17 [3]), ou seja, ainda manteve, pelo menos em alguns
círculos, o apelido de via paterna que herdara de Pedro Fernandes Lobo,
diminuído depois pelo receio de perseguições ou preconceitos antissemitas.
Helena Aires esteve dois anos
presa, foi ao Auto de Fé de 2 de Abril de 1634, sendo devolvida à liberdade
alguns dias depois. Nuno de Brito Alão tinha treze anos à data da sua prisão.
1.3.
Os Andrade e Gamboa
Como tive oportunidade de tratar no
processo de Nuno da Silva, o filho de Nuno de Brito menciona a família dos
Andrade e Gamboa da quinta de S. Bento na Cela Velha, nomeadamente, o seu
parente e amigo António de Andrade, filho de Francisco de Andrade e Isabel
Gouveia, e cristão-novo por ambas as vias. Na confissão de João d’Eça [4]
(Processo de João d’Essa: Direção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição
de Lisboa, proc. 2592), primo de Nuno da Silva, que fora soldado infante na
Província do Alentejo, menciona-se o mesmo António de Andrade no fólio 34, falando
de uma estadia na quinta da Cavalariça, junto ao lugar de Famelicão:
o ditto Nuno da Sylva acrescentou
que a mesma crença da Ley de Moyses tinha Antonio Andrade de Gamboa, x. novo,
solteiro, que vivia de sua fazenda, filho de Francisco d’Andrade, já defunto, e
de Izabel da Veiga, christãos novos, e será de dezoito annos de idade, natural
da villa da Pederneira, e morador no termo da Cela, em huma quinta que chamão
Cela Velha, e que isto sabia por se haver declarado com elle, porem elle
confitente, neste particular não tem certeza mais alguma, porquanto com o ditto
Antonio de Andrade não fallava, antes erão inimigos.
Felgueiras Gaio (Manuel José da Costa), no seu Nobiliário de Famílias de Portugal (12º volume, Costados III e IV) faz
começar o morgadio da Cela Velha com António de Andrade Gamboa, o que
corresponderá ao primeiro aforamento da quinta pela família. O pai do António
Andrade de Gamboa, Francisco de Andrade de Araújo Gamboa, casado com Isabel da
Veiga, é bisneto desse patriarca.
Nuno da Silva diz que António de Andrade Gamboa é seu parente por via
paterna. Não conseguimos fazer positivamente a ligação entre as duas famílias.
A explicação mais simples é de que o Araújo do nome da família dos Andrade e
Gamboa nos remeta para os Araújos e Lobos, cristãos-novos da Pederneira ou
Tomar. Entre estes, contamos com Duarte de Araújo, o primeiro marido de Helena
Aires Correia, ou Guiomar de Araújo que entra na árvore genealógica dos Andrade
e Gamboa, e que era filha de Diogo Lobo.
Por ironia, sensivelmente um século depois destes Processos, um membro da família
Andrade e Gamboa candidata-se a Familiar do Santo Ofício, e é aceite. Trata-se
de António de Andrade Gamboa [5],
neto do António de Andrade e Gamboa referido por Nuno da Silva e João d'Eça. A
Inquisição deve ter feito as indagações habituais sobre os seus parentes até
aos avós maternos e paternos, e não deve ter encontrado sinais de ascendência judia, porque a carta
de Familiar do Santo Ofício é-lhe concedida a 25 de Junho de 1743.
Este António de Andrade e Gamboa (os nomes António e Francisco
são reincidentes nesta família) fez desenvolver a quinta da Cela Velha e reconstruir r reedificar a capela de S. Bento. O seu túmulo encontra-se
dentro da capela, e a inscrição tumular exibe a data de 1776.
2 - O padre Manuel de Brito Alão
e o estigma do sangue
No estudo introdutório (muito completo) que historiador Dr. Pedro
Penteado escreveu sobre Manuel de Brito Alão numa reedição moderna da primeira
obra do eclesiástico [6],
encontramos bastantes informações sobre a sua vida e obra, que procuraremos, com
a devida vénia, transmitir com parcimónia e em traços muito gerais.
O padre
Manuel de Brito Alão, era um dos filhos de Diogo Fernandes Lobo e Isabel de
Brito. Muito jovem, iniciou com denodo os seus esforços para singrar na sociedade
do seu tempo. Condicionado à vida eclesiástica pela sua condição de filho
segundo, foi pajem do arcebispo de Braga, D. João Afonso de Meneses, que era fruto
de uma relação da sua tia Maria de Brito com o fidalgo D. Fernando de
Vasconcelos. Após a morte deste seu protetor, que o deixou um pouco desamparado,
ruma à universidade de Coimbra, onde se forma como bacharel em Cânones em Junho de 1594. É nomeado, antes do ano de 1611, abade simples [7] de
São João de Campos, no arcebispado de Braga, e por alvará régio de Junho de 1608,
Filipe II atribui-lhe por um período de cinco anos o cargo de reitor e administrador
da Casa de Nossa Senhora da Nazaré, renovado por mais cinco anos em 1612.
Durante a sua vigência como administrador da Casa de Nossa Senhora da Nazaré,
desenham-se vários focos de atrito e linhas de ruptura, nomeadamente, entre o
administrador e os mordomos da confraria, e entre a Casa de Nossa Senhora da
Nazaré e a Vigararia (e Beneficiados) da Pederneira, que sempre ambicionou ser
titular da administração e rendimentos do florescente santuário.
Saído da
administração da Casa, Manuel de Brito Alão pretende ser nomeado vigário da
Pederneira, a sua terra natal, para cujo fito obtém o apoio do abade do
mosteiro de Alcobaça, o Cardeal Infante D. Fernando de Áustria. A divulgação
desse intuito fez abespinhar adversários e inimigos, com o então vigário da
Pederneira a acusá-lo de judaísmo perante o Arcebispo de Lisboa. A acusação gorou
os seus intentos, e a situação agrava-se quando a sua irmã Isabel de Brito é
presa pela Inquisição. Citado como testemunha abonatória por Isabel de Brito, o
ex-administrador vê-se enredado numa teia de boatos e suspeição que colocam um
término definitivo em qualquer sonho de progredir na carreira eclesiástica.
Isabel de Brito é condenada pela Inquisição em 1626, e o padre Manuel de Brito
Alão, já por esse tempo e nos dez anos que se seguiram, dedica-se a desenvolver
em moldes literários as anotações e registos que fora fazendo durante anos
sobre a vida dos romeiros e peregrinos no Sítio e os milagres do santuário de
Nossa Senhora da Nazaré [8].
Os dois livros que escreveu sobre o santuário, ou os dois livros que chegaram
até nós (as fontes mencionam um terceiro e mesmo um quarto livro sobre o tema,
que permanecem por encontrar ou descobrir) foram: Antiguidade da sagrada imagem de Nossa S. de Nazareth : grandezas de
seu sitio, casa, & jurisdiçaõ real, sita junto à villa da Pederneira
(impresso em Lisboa por Pedro Crasbeeck, no ano de 1628), que será reeditado em 1684; e Prodigiosas
Historias e Miracvlosos svcessos acontecidos na Casa de nossa Senhora de
Nazareth (impresso em Lisboa por Lourenço Craesbeeck, no ano de 1637).
O padre
Manuel de Brito Alão teria falecido pouco depois de 1650, em provecta idade.
Para ele, um abade e sacerdote cristão atacado pelos seus inimigos em nome do
sangue judeu que lhe corria nas veias, deve ter sido com particular satisfação
que constatou a notoriedade obtida por esses livros e a forma como eles
dinamizaram as peregrinações ao santuário mariano que administrou durante dez anos.