sexta-feira, 26 de junho de 2015

O CASTELO DE D. FRAMUNDO - um "marco" na charneira de três coutos

Gravura de Joaquim Vieira Natividade, reproduzida por Eduíno Borges Garcia em 
As torres e os fachos na lagoa da Pederneira - a torre de D. Framondo, Beja, 1964
O castelo onde antes estava uma torre

     A Torre ou Castelo de D. Framundo aparece-nos nas demarcações dos forais de Alfeizerão, da Pederneira e Cela Nova.

     Já antes havíamos escrito sobre ela, usando a forma D. Framondo, que é a mais comum nos documentos (o primeiro foral de Alfeizerão ou a divisão eclesiástica de 1296), e mesmo o Fremonda do foral da Pederneira está mais próxima desta. Mas o «D. Framundo» impõe-se por representar a sua forma erudita, historiográfica; nomeadamente, Octávio da Veiga Ferreira, no relatório das escavações que aí se realizaram em finais dos anos setenta, designa-a por castelo de D. Framundo.

     O nome de castelo também não é absurdo, castelo e torre concorrem nos topónimos e textos (Quinta do Castelo, Porto do Castelo, Granja da Torre, Mata da Torre); e temos aí uma fortaleza de dimensões modestas, mas que não é uma torre, mas uma fortaleza formada por um cume de colina acastelado com uma muralha de torres de cubelo redondo.

     A ereção da fortaleza nesse monte, e não no monte mais a sul, que é de maiores dimensões, portanto, com mais aptidões defensivas; só pode ter a ver com a sua vizinhança com as águas da antiga lagoa da Pederneira – a fortaleza na margem destinar-se-ia a guardar as águas da lagoa e, simultaneamente, deveria ter o papel de tutelar um porto interior (que o foral da Cela refere).

     A sua menção na primeira carta de povoamento de Alfeizerão pode ser revisitada na transcrição feita por Carlos Casimiro de Almeida, ou no pequeno estudo que dedicamos aos seus étimos e expressões. Nesta página, focaremos a sua ocorrência nos forais da Cela e Pederneira.

Carta da Cela Nova

     A carta de povoamento do mosteiro de Alcobaça à vila da Cela, data de 1286, e foi escrita num latim periférico e arremendado. Podemos lê-la na íntegra no estudo do Professor Saul António Gomes Um Manuscrito iluminado alcobacense trecentista: o “Caderno dos Forais” do Couto [1], e a tradução das demarcações dessa carta de povoamento, foi publicada pelo mesmo investigador num fascículo do jornal Região de Cister dedicado à vila da Cela [2].  
Começam na vinha velha do Alqueidão do Valbom, a qual vinha está junto das casas desse Alqueidão, assim como divide com o Lombo Mediabi da água da Azambuja e vai pelo vale da Bouça da Granja e entesta no fim do Vale de Maceira e do fim do Vale de Maceira, assim como divide com Vestiário [«Uestiario», a Vestiaria] e vai pelo Carril ao marco posto junto do Vale que vai para a água de Girom [Giron] assim como divide com os povoadores da Póvoa do Valado, a qual água de Girom descendo vai entrar na nossa Almuinha que é chamada de Paio Rapaz [Pelagio Rapaz]. E dessa Almuinha assim como desce até à Lagoa e volta aí para o muro posto junto da dita Lagoa e daí como vai confinando com esse muro e chega à água de sob o Porto do Castelo [Portum Castelli] e vai pelo Vale do Souto Velho e sai ao Porto Velho da Lájea [Portum Uetere de Lagena ] assim como vai ao Forum e daí ao Carril que vem de Alfeizerão pelo fim da Cumieira do Souto como vem ao Cabeço Raso até ao Vale Velho da vinha de Alqueidão de Valbom e vai por aquele Vale entrar no olival e herdamento de Pação que divide com a Granja de Colmeias [3].
     As demarcações apresentadas peregrinam por vários lugares cujos nomes são hoje um mistério para nós, mas podemos arriscar algumas notas.

     Pedro Gomes Barbosa [4] identificou, como antes vimos, o castelo de D. Framundo com o Porto do Castelo [Portum Castelli] deste foral. O Porto do Castelo seria algum embarcadouro situado junto à fortaleza.

     O Vale Maceira deste foral e a localidade de Vale de Maceira da atual freguesia de Alfeizerão são lugares homónimos, mas distintos. A granja do Souto também nos surge no primeiro foral de Alfeizerão (entre outros documentos), e se aqui se menciona a cumeeira do Souto, no dito foral fala-se da ribeira sobre (um lugar mais elevado) a granja do Souto, onde existiria um marco posto.

     O Forum, por sua vez, é um topónimo que sugere ruínas centenárias, mas é preferível sermos prudentes com as palavras (moinhos quixotescos) e com os entusiasmos que elas excitam. O Porto Velho da Lájea (lajedo, conjunto de lajes – um cais de pedra?) possui uma idêntica carga semântica, sobretudo se nos lembrarmos que os troços sobreviventes de estradas romanas eram chamados caminhos velhos.

     O Carril define, não um caminho comum, mas uma estrada, um caminho de reconhecida importância por onde passam os carros, e que muitas vezes serviu de linha de demarcação e fronteira entre possessões e concelhos (o carril por onde traçaram as linhas régias, lê-se no foral da Pederneira). O relevo, as linhas de água e os caminhos e estradas, são os pontos de referência mais óbvios para a definição de limites. Este Carril que vem de Alfeizerão, aparece-nos no foral desta vila como o Carril que vai de Óbidos para a Cela.

Sobre a Pederneira

     Esta carta de foral do mosteiro à Pederneira foi outorgada pelo abade frei Estevâo Pais, e seria coeva dos forais da Cela e Alfeizerão. Escrita em “latim” como o foral da Cela, foi publicada pelo historiador Carlos Fidalgo [5], com a tradução para português da Professora Helena Henriques. Dessa tradução, citamos as demarcações do couto, a sua parte corográfica:
(…) concedemos àqueles que moram na nossa localidade da Pederneira [Petrenaria], àqueles que vão ao mar e o frequentam, uma outra herdade nossa que fica entre a nossa Granja da Torre, que se chama Fremonda, e entre uma outra Granja nossa, a da Piscaria, cujos limites são os seguintes: no princípio começa pela Mamoa que fica junto do Porto da Barca e se estende em linha reta até ao Carril, de seguida o caminho estende-se pelo cimo da serra do lado da água até à Lagoa e até à nossa Granja da Torre e, do mesmo modo, estende-se pelo próprio cimo e desce pela Panadaria até à água de Anhados e volta até ao carril por onde traçaram as linhas régias; estende-se também pelo caminho de cima da vinha da Torre e alonga-se pelo Valado desde quase junto da Lagoa até à vinha de Dormon e, de igual forma, desce pelo Carril até ao embarcadouro onde eram as linhas régias» [6].
     A carta enfatiza a posse da vila da Pederneira pelo mosteiro (a nossa localidade), dado algo incerto, e descreve o circuito dos limites da herdade que concede aos moradores.

     Esta situava-se entre a Granja da Torre e a Granja da Pescaria. A Granja da Torre, é a designação da granja do convento de Alcobaça situada junto à torre de D. Framondo, aqui chamada também Fremonda. A vinha da Torre, que o mosteiro reservava para si, aparece-nos também na carta de povoamento de Alfeizerão de 1332.

     Os limites enunciados começam na Mamoa junto ao Porto da Barca, na entrada da lagoa. A mamoa é um dos nomes usuais para os outeiros artificiais que cobriam os dólmenes megalíticos, mas aplicável a qualquer colina de feição arredondada, como uma grande mama (origem do nome). Essa mamoa poderia ser, como sugere Carlos Fidalgo, um monte constituído pelos depósitos de uma ocupação humana do período neolítico; mas também podemos associá-la, hipoteticamente, à ainda lendária Torre de Neptuno descrita nessa zona por frei Bernardo de Brito e outros autores, que havia sido espoliada das suas pedras, (usadas para lastro dos navios), mas que deveria destacar-se das dunas arenosas em volta com o soco arquitetónico que a suportava

     Outros lugares nos surgem: Panadaria, água de Anhados, vinha de Dormon. Carlos Fidalgo isolou o antigo significado de Dormon: barco veloz, nome para um navio de três mastros. Outro topónimo deste documento, Água de Anhados, pode também estar associado à navegação e aos barcos. Água de Anhados sugere-nos, e significativamente, anho, cordeiro – a sua mansidão e quietude. António Moraes da Silva (Diccionario da Lingua Portugueza, volume I, Tipografia Lacerdina, Lisboa, 1813) explica no verbete Anhoto, que anhoto ou embarcação anhota, é um barco que não segue avante por não ter remadores ou por lhe faltar o vento que o impulsiona - donde se infere com algum sentido que esta água de Anhados poderia ser uma zona da lagoa onde os barcos tinham dificuldade em progredir, por não haver ventos de feição ou estar embaraçada por sapais.





[1] Gomes, Saul António, Um Manuscrito iluminado alcobacense trecentista: o “Caderno dos Forais” do Couto”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Amadeu Coelho Dias, II Volume, páginas 335-365, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. Versão eletrónica em http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/9379/3/jacdiasvol02completo000065991.pdf, última consulta a 24 de Junho de 2015.

[2] Artigo Cela Nova, Terra de Foros e Costumes, in Comemorações dos 500 anos da outorga do forais do concelho de Alcobaça por D. Manuel I – Cela, fascículo do jornal Região de Cister.

[3] As demarcações na origem: In primis quomodo incipit in uinea ueteri de Alq[ue]ydone Vallis bone que uine est iuxta domos ipsius Alqueydonis sicut diuiditur cum Lumbo Mediabi de aqua de Azambrugia et uadit per Uallem de Bouça de Grania et ferit in finem Valis de Macenairia et de fine Vallis Macenarie quomodo diuidit cum Uestiario et uadit per Carrile ad marcum positum iuxta Uallum quod uadit ad aquam de Giron quomodo diuidit cum popula [Fl. 2]17 toribus de popula de Valado que aqua de Giron descendendo uadit intrat in Almuniam nostram que dicitur de Pelagio Rapaz et de ipsa Almunia quomodo descendit ad Lacunam et reuertitur statim ad murum positum iuxta dictam lacunam et dehinc quomodo uadit pergendo per ipsum murum et iungitur aque de subtus Portum Castelli et uadit per Ualle ad Sautum Ueterem et exit ad Portum Uetere de Lagena quomodo uadiunt ad Capud de Souerali Vinee de Sauto, deinde ad Lacum quomodo uadit ad Forum deinde ad Carile quod uenit de Alfeyzeram per finem de Comeeyra de Sauto quomodo uenit ad Caput Rasum usque ad Uallum Ueterem Vinee de Alqueydone Vallis Bone et uadit per illum Ualum ferire in oliuetum et herdamentum de Paaçãao quod diuidit cum Grangia de Colmeis.

[4] Barbosa, Pedro Gomes - Povoamento e Estrutura Agrícola na Estremadura Central – Séc. XII a 1325, Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, 1992.

[5] Fidalgo, Carlos, As Igrejas da Pederneira, do séc. XII ao séc. XVII - uma análise. Caldas Editora, Caldas da Rainha, 2012.

[6] As demarcações na origem: In nomine Domini, amen. Quoniam dies hominum breues sint et eorum gesta nisi redigantur in scriptis a memoria elabuntur et obliuio sepe impedit ne ad noticiam perueniant preteritorum, iccirco nouerint uniuersi presentis scripti seriem inscripturi21 quod nos Frater Stephanus abbas et Conuentus Monasterii Alcobacie de beneplacito et concensu nostro et concedimus presentibus qui morantur un uilla nostra de Petrenaria qui mare intrant et frequentant quedam nostram hereditatem que iacet inter Grangiam nostram de Turre que uocatur de Fremonda et inter aliam Grangiam nostram de Piscaria cuius hereditatis isti sunt termini: in primo quomodo incipit per Mamoam que est iuxta Portum de Barca et tendit directe ad Carrile deinde quomodo tendit ipsa uia per cacumen de Serra uertentibus aquis ad Lacunam et ad Grangiam nostram de Turre et quomodo tendit per ipsum cacumen et descendit per Padanariam ad aquam de Anhados et reuertitur ad Carrile per quod deportauerunt ligna domini Regis et quomodo tendit per uiam de super Uineam de Turre et tendit per Ualadum de prope Lacunam usque ad uineam de Dormon et tendit sursum ad uiam publicam super uineam de Dormon et quomodo descendit per Carrile ad Imbarcatorium ubi fuerunt ligna domini Regis.

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