sexta-feira, 26 de junho de 2015

O CASTELO DE D. FRAMUNDO - um "marco" na charneira de três coutos

Gravura de Joaquim Vieira Natividade, reproduzida por Eduíno Borges Garcia em 
As torres e os fachos na lagoa da Pederneira - a torre de D. Framondo, Beja, 1964
O castelo onde antes estava uma torre

     A Torre ou Castelo de D. Framundo aparece-nos nas demarcações dos forais de Alfeizerão, da Pederneira e Cela Nova.

     Já antes havíamos escrito sobre ela, usando a forma D. Framondo, que é a mais comum nos documentos (o primeiro foral de Alfeizerão ou a divisão eclesiástica de 1296), e mesmo o Fremonda do foral da Pederneira está mais próxima desta. Mas o «D. Framundo» impõe-se por representar a sua forma erudita, historiográfica; nomeadamente, Octávio da Veiga Ferreira, no relatório das escavações que aí se realizaram em finais dos anos setenta, designa-a por castelo de D. Framundo.

     O nome de castelo também não é absurdo, castelo e torre concorrem nos topónimos e textos (Quinta do Castelo, Porto do Castelo, Granja da Torre, Mata da Torre); e temos aí uma fortaleza de dimensões modestas, mas que não é uma torre, mas uma fortaleza formada por um cume de colina acastelado com uma muralha de torres de cubelo redondo.

     A ereção da fortaleza nesse monte, e não no monte mais a sul, que é de maiores dimensões, portanto, com mais aptidões defensivas; só pode ter a ver com a sua vizinhança com as águas da antiga lagoa da Pederneira – a fortaleza na margem destinar-se-ia a guardar as águas da lagoa e, simultaneamente, deveria ter o papel de tutelar um porto interior (que o foral da Cela refere).

     A sua menção na primeira carta de povoamento de Alfeizerão pode ser revisitada na transcrição feita por Carlos Casimiro de Almeida, ou no pequeno estudo que dedicamos aos seus étimos e expressões. Nesta página, focaremos a sua ocorrência nos forais da Cela e Pederneira.

Carta da Cela Nova

     A carta de povoamento do mosteiro de Alcobaça à vila da Cela, data de 1286, e foi escrita num latim periférico e arremendado. Podemos lê-la na íntegra no estudo do Professor Saul António Gomes Um Manuscrito iluminado alcobacense trecentista: o “Caderno dos Forais” do Couto [1], e a tradução das demarcações dessa carta de povoamento, foi publicada pelo mesmo investigador num fascículo do jornal Região de Cister dedicado à vila da Cela [2].  
Começam na vinha velha do Alqueidão do Valbom, a qual vinha está junto das casas desse Alqueidão, assim como divide com o Lombo Mediabi da água da Azambuja e vai pelo vale da Bouça da Granja e entesta no fim do Vale de Maceira e do fim do Vale de Maceira, assim como divide com Vestiário [«Uestiario», a Vestiaria] e vai pelo Carril ao marco posto junto do Vale que vai para a água de Girom [Giron] assim como divide com os povoadores da Póvoa do Valado, a qual água de Girom descendo vai entrar na nossa Almuinha que é chamada de Paio Rapaz [Pelagio Rapaz]. E dessa Almuinha assim como desce até à Lagoa e volta aí para o muro posto junto da dita Lagoa e daí como vai confinando com esse muro e chega à água de sob o Porto do Castelo [Portum Castelli] e vai pelo Vale do Souto Velho e sai ao Porto Velho da Lájea [Portum Uetere de Lagena ] assim como vai ao Forum e daí ao Carril que vem de Alfeizerão pelo fim da Cumieira do Souto como vem ao Cabeço Raso até ao Vale Velho da vinha de Alqueidão de Valbom e vai por aquele Vale entrar no olival e herdamento de Pação que divide com a Granja de Colmeias [3].
     As demarcações apresentadas peregrinam por vários lugares cujos nomes são hoje um mistério para nós, mas podemos arriscar algumas notas.

     Pedro Gomes Barbosa [4] identificou, como antes vimos, o castelo de D. Framundo com o Porto do Castelo [Portum Castelli] deste foral. O Porto do Castelo seria algum embarcadouro situado junto à fortaleza.

     O Vale Maceira deste foral e a localidade de Vale de Maceira da atual freguesia de Alfeizerão são lugares homónimos, mas distintos. A granja do Souto também nos surge no primeiro foral de Alfeizerão (entre outros documentos), e se aqui se menciona a cumeeira do Souto, no dito foral fala-se da ribeira sobre (um lugar mais elevado) a granja do Souto, onde existiria um marco posto.

     O Forum, por sua vez, é um topónimo que sugere ruínas centenárias, mas é preferível sermos prudentes com as palavras (moinhos quixotescos) e com os entusiasmos que elas excitam. O Porto Velho da Lájea (lajedo, conjunto de lajes – um cais de pedra?) possui uma idêntica carga semântica, sobretudo se nos lembrarmos que os troços sobreviventes de estradas romanas eram chamados caminhos velhos.

     O Carril define, não um caminho comum, mas uma estrada, um caminho de reconhecida importância por onde passam os carros, e que muitas vezes serviu de linha de demarcação e fronteira entre possessões e concelhos (o carril por onde traçaram as linhas régias, lê-se no foral da Pederneira). O relevo, as linhas de água e os caminhos e estradas, são os pontos de referência mais óbvios para a definição de limites. Este Carril que vem de Alfeizerão, aparece-nos no foral desta vila como o Carril que vai de Óbidos para a Cela.

Sobre a Pederneira

     Esta carta de foral do mosteiro à Pederneira foi outorgada pelo abade frei Estevâo Pais, e seria coeva dos forais da Cela e Alfeizerão. Escrita em “latim” como o foral da Cela, foi publicada pelo historiador Carlos Fidalgo [5], com a tradução para português da Professora Helena Henriques. Dessa tradução, citamos as demarcações do couto, a sua parte corográfica:
(…) concedemos àqueles que moram na nossa localidade da Pederneira [Petrenaria], àqueles que vão ao mar e o frequentam, uma outra herdade nossa que fica entre a nossa Granja da Torre, que se chama Fremonda, e entre uma outra Granja nossa, a da Piscaria, cujos limites são os seguintes: no princípio começa pela Mamoa que fica junto do Porto da Barca e se estende em linha reta até ao Carril, de seguida o caminho estende-se pelo cimo da serra do lado da água até à Lagoa e até à nossa Granja da Torre e, do mesmo modo, estende-se pelo próprio cimo e desce pela Panadaria até à água de Anhados e volta até ao carril por onde traçaram as linhas régias; estende-se também pelo caminho de cima da vinha da Torre e alonga-se pelo Valado desde quase junto da Lagoa até à vinha de Dormon e, de igual forma, desce pelo Carril até ao embarcadouro onde eram as linhas régias» [6].
     A carta enfatiza a posse da vila da Pederneira pelo mosteiro (a nossa localidade), dado algo incerto, e descreve o circuito dos limites da herdade que concede aos moradores.

     Esta situava-se entre a Granja da Torre e a Granja da Pescaria. A Granja da Torre, é a designação da granja do convento de Alcobaça situada junto à torre de D. Framondo, aqui chamada também Fremonda. A vinha da Torre, que o mosteiro reservava para si, aparece-nos também na carta de povoamento de Alfeizerão de 1332.

     Os limites enunciados começam na Mamoa junto ao Porto da Barca, na entrada da lagoa. A mamoa é um dos nomes usuais para os outeiros artificiais que cobriam os dólmenes megalíticos, mas aplicável a qualquer colina de feição arredondada, como uma grande mama (origem do nome). Essa mamoa poderia ser, como sugere Carlos Fidalgo, um monte constituído pelos depósitos de uma ocupação humana do período neolítico; mas também podemos associá-la, hipoteticamente, à ainda lendária Torre de Neptuno descrita nessa zona por frei Bernardo de Brito e outros autores, que havia sido espoliada das suas pedras, (usadas para lastro dos navios), mas que deveria destacar-se das dunas arenosas em volta com o soco arquitetónico que a suportava

     Outros lugares nos surgem: Panadaria, água de Anhados, vinha de Dormon. Carlos Fidalgo isolou o antigo significado de Dormon: barco veloz, nome para um navio de três mastros. Outro topónimo deste documento, Água de Anhados, pode também estar associado à navegação e aos barcos. Água de Anhados sugere-nos, e significativamente, anho, cordeiro – a sua mansidão e quietude. António Moraes da Silva (Diccionario da Lingua Portugueza, volume I, Tipografia Lacerdina, Lisboa, 1813) explica no verbete Anhoto, que anhoto ou embarcação anhota, é um barco que não segue avante por não ter remadores ou por lhe faltar o vento que o impulsiona - donde se infere com algum sentido que esta água de Anhados poderia ser uma zona da lagoa onde os barcos tinham dificuldade em progredir, por não haver ventos de feição ou estar embaraçada por sapais.





[1] Gomes, Saul António, Um Manuscrito iluminado alcobacense trecentista: o “Caderno dos Forais” do Couto”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Amadeu Coelho Dias, II Volume, páginas 335-365, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. Versão eletrónica em http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/9379/3/jacdiasvol02completo000065991.pdf, última consulta a 24 de Junho de 2015.

[2] Artigo Cela Nova, Terra de Foros e Costumes, in Comemorações dos 500 anos da outorga do forais do concelho de Alcobaça por D. Manuel I – Cela, fascículo do jornal Região de Cister.

[3] As demarcações na origem: In primis quomodo incipit in uinea ueteri de Alq[ue]ydone Vallis bone que uine est iuxta domos ipsius Alqueydonis sicut diuiditur cum Lumbo Mediabi de aqua de Azambrugia et uadit per Uallem de Bouça de Grania et ferit in finem Valis de Macenairia et de fine Vallis Macenarie quomodo diuidit cum Uestiario et uadit per Carrile ad marcum positum iuxta Uallum quod uadit ad aquam de Giron quomodo diuidit cum popula [Fl. 2]17 toribus de popula de Valado que aqua de Giron descendendo uadit intrat in Almuniam nostram que dicitur de Pelagio Rapaz et de ipsa Almunia quomodo descendit ad Lacunam et reuertitur statim ad murum positum iuxta dictam lacunam et dehinc quomodo uadit pergendo per ipsum murum et iungitur aque de subtus Portum Castelli et uadit per Ualle ad Sautum Ueterem et exit ad Portum Uetere de Lagena quomodo uadiunt ad Capud de Souerali Vinee de Sauto, deinde ad Lacum quomodo uadit ad Forum deinde ad Carile quod uenit de Alfeyzeram per finem de Comeeyra de Sauto quomodo uenit ad Caput Rasum usque ad Uallum Ueterem Vinee de Alqueydone Vallis Bone et uadit per illum Ualum ferire in oliuetum et herdamentum de Paaçãao quod diuidit cum Grangia de Colmeis.

[4] Barbosa, Pedro Gomes - Povoamento e Estrutura Agrícola na Estremadura Central – Séc. XII a 1325, Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, 1992.

[5] Fidalgo, Carlos, As Igrejas da Pederneira, do séc. XII ao séc. XVII - uma análise. Caldas Editora, Caldas da Rainha, 2012.

[6] As demarcações na origem: In nomine Domini, amen. Quoniam dies hominum breues sint et eorum gesta nisi redigantur in scriptis a memoria elabuntur et obliuio sepe impedit ne ad noticiam perueniant preteritorum, iccirco nouerint uniuersi presentis scripti seriem inscripturi21 quod nos Frater Stephanus abbas et Conuentus Monasterii Alcobacie de beneplacito et concensu nostro et concedimus presentibus qui morantur un uilla nostra de Petrenaria qui mare intrant et frequentant quedam nostram hereditatem que iacet inter Grangiam nostram de Turre que uocatur de Fremonda et inter aliam Grangiam nostram de Piscaria cuius hereditatis isti sunt termini: in primo quomodo incipit per Mamoam que est iuxta Portum de Barca et tendit directe ad Carrile deinde quomodo tendit ipsa uia per cacumen de Serra uertentibus aquis ad Lacunam et ad Grangiam nostram de Turre et quomodo tendit per ipsum cacumen et descendit per Padanariam ad aquam de Anhados et reuertitur ad Carrile per quod deportauerunt ligna domini Regis et quomodo tendit per uiam de super Uineam de Turre et tendit per Ualadum de prope Lacunam usque ad uineam de Dormon et tendit sursum ad uiam publicam super uineam de Dormon et quomodo descendit per Carrile ad Imbarcatorium ubi fuerunt ligna domini Regis.

terça-feira, 16 de junho de 2015

O círio de Alfeizerão ao santuário de Nossa Senhora da Nazaré

A Igreja e a Real Casa de Nazareth, desenho (pormenor)
publicado na revista O Occidente, de Março de 1890

1 – A procissão de Alfeizerão na crónica do padre Manuel de Brito Alão.
          Na primeira obra de Manuel de Brito Alão [1] sobre o santuário de Nossa Senhora da Nazaré (Antiguidade da sagrada imagem de Nossa S. de Nazareth : grandezas de seu sitio, casa, & jurisdição real, sita junto à villa da Pederneira, primeira edição em 1637), as procissões e círios que convergiam para o santuário são descritas no capítulo vinte e oito da obra (que começa no fólio 72), tal como o enuncia o próprio título do capítulo: Da Confraria da Villa da Pederneira & das mais procissões que à Casa de nossa Senhora de Nazareth vem à vespera, & dia de nossa Senhora das Neves a cinco de Agosto.
          Assim, a 5 de Agosto, chega ao santuário a confraria da Pederneira, e nesse mesmo dia, a procissão de Famalicão, termo da Pederneira; e na véspera e no dia, as procissões do termo de Leiria (freguesias de Souto, Marinha, Monte Redondo, Monte Real e Maceira).
          Além destas, e citando Manuel de Brito Alão:
          No mesmo dia vem em procissão a freguesia do Juncal, termo de Porto de Mós, que fica a três léguas daqui, com as suas ofertas de bolos e trigo. No mesmo dia vêm as procissões das vilas de Aljubarrota, de Cós, de Évora, da Maiorga, da Cela, de Alfeizerão e do lugar de Tornada; e cada vila entra em procissão com o vigário e capelão, com as suas ofertas e cera acesa, e com os oficiais da câmara que as governam e administram, para os quais estão particulares bancos postos junto a esta mesa, fazendo os oficiais dela os oferecimentos que convêm a tão devota gente; juntando-se muita outra de várias partes que, por não caberem nas casas de dentro, nem de fora, se espalham pelo Sítio, de forma que parece um exército muito grande armando tendas e resguardos para o Sol; e para a véspera e dia, acodem muitos mercadores de panos, sirgueiros [vendedores de tecidos de seda] e tendeiros em muita quantidade, sombreireiros, sapateiros e tratantes de todo o mais género de mercadorias que costumam vir às feiras. E vende-se tanto peixe e variedade de frutas, que se parece com a formosa e populosa Ribeira de Lisboa, e em toda a Romagem se vê tanta alegria e contentamento, que por todo o sítio há bailes [bailos], danças, músicas, violas, pandeiros e adufes; e com as mesmas festas saem e entram no Sítio e Igreja, dizendo-se nos três altares tantas missas à véspera e no dia, que as começam a dizer uma hora antes da manhã e duram até ao meio dia, ouvindo-as a Romagem pelas portas travessas e alpendres por não caberem na Igreja, sendo tão grande como vedes, e os mais das vezes se prega fora, pelo muito grande concurso de Romagem, e para se poderem dizer melhor as muitas missas que por esse tempo se estão por dizer [2].

2. A procissão e círio de Alfeizerão
          Esta obra de Manuel de Brito Alão como, certamente, outras obras e fontes, documenta a romaria ou peregrinação coletiva feita pela vila de Alfeizerão ao santuário, em procissão com offertas & cera acesa, muito propriamente, um círio da vila; e um círio “oficial”, com a presença dos seus oficiais da câmara.
          No ano de 1721, escreve Cristóvão de Sá Nogueira, ouvidor da Comarca, que a procissão de Nossa Senhora da Nazaré era uma das três procissões anuais que se organizavam em Alfeizerão, sendo as outras duas, a do Corpo de Deus e a do Anjo Custódio – segundo informação do historiador Saul António Gomes no artigo Alfeizerão, do apogeu medieval à crise setecentista (no fascículo Alfeizerão, publicado pelo semanário Região de Cister em Outubro de 2014).
          Em 1758, o vigário da vila, D. Manuel Romão de Castelo Branco, nada diz dessa procissão, referindo apenas as romarias “caseiras” ao Santo Amaro de Alfeizerão, e à Santa Quitéria (Valado).
          Mais de um século depois, José de Almeida Salazar, no manuscrito Memórias da Real Casa de N. S. da Nazareth (Sítio, 1841), volta a falar do círio de Alfeizerão, mas o que escreveu [3] é um treslado do que escrevera, duzentos anos antes, o padre Manuel de Brito Alão; pelo que ficamos sem saber qual era a real situação desse círio na época.
          Supomos que a organização deste círio ou procissão se tivesse tornado mais esporádico, ou desaparecido mesmo, no decurso do século dezanove; porque, segundo o historiador Pedro Penteado [4], é criado em Setembro de 1908 o Novo Círio de Alfeizerão ao santuário da Nazaré, organizado pelo alfeizerense Bonifácio dos Santos. Este Novo Círio tinha como caraterísticas o Trono armado, e a entrega de esmolas no cofre da Senhora.
          Sabemos que era um círio modesto porque, no tomo primeiro da Nova Carta Chorographica de Portugal, escreve, em 1909, o Marquês de Ávila e de Bolama [5]: Dos outros círios, desde o termo de Coimbra ao de Lisboa, os mais notáveis são, em ordem descendente, os de Óbidos, Caldas da Rainha, Olhalvo, Pombal, Matacão, Porto de Mós, Turcifal de Torres Vedras, e Alfeizerão.

3. O Círio da Prata Grande
          Escreve o mesmo Marquês de Ávila e de Bolama: Dos círios da Nazaré, o mais notável, atualmente, é o Círio da Prata Grande, que foi instituído por El-Rei D. João V pela fusão dos antigos círios do termo de Lisboa, chamados os círios dos saloios. O nome do círio provém da magnífica insígnia de prata que lhe foi oferecido por D. João V.
         Na ibra atrás citada de Leite de Vasconcelos, reproduz-se (página 356) uma pagela de Setembro de 1926 com o itinerário do Círio da Prata Grande. Vindo da região de Lisboa pelo Bombarral, Roliça e S. Mamede, o Círio detinha-se nas seguintes lugares: Óbidos, Senhor da Pedra, Caldas da Rainha, Tornada, Maceira [Vale de], Alfeizerão, Alcobaça, Fábricas [as fábricas de fiação de Alcobaça], Valado, Pederneira e Nazaré.
          Em cada paragem, procurava-se cativar mais fiéis para se juntarem aos peregrinos, com festa, pregação e o cantar de loas. Possuímos uma descrição (e que nos serve de exemplo) da passagem do Círio da Prata Grande pelas Caldas da Rainha, escrita por Alfredo Pinto numa obra [6] publicada em 1914: No mês de Setembro, havia a tradicional passagem dos círios para a Nazaré. Eram três, o das Caldas, o da Prata Grande e o de Óbidos. Tanto na ida como na volta, os círios davam três voltas á roda da Praça e iam ao largo da Copa, em frente da porta do hospital, cantar as Lôas [Alfredo Pinto transmite-nos algumas, na página 16] (…). Terminadas as Lôas, a música executava o hino nacional, estalavam foguetes, e o círio continuava na sua derrota [itinerário].








[1] Licenciado Manuel de Brito Alão, Abade de S. João de Campos, e Administrador dos bens, obras e culto divino da dita Casa por sua Majestade (Antiguidade…, fl, 61).

[2] 
No mesmo dia vem a Freguesia do Juncal, termo de Porto de mós em Procissão, que são daqui tres legoas, com suas offertas de bolos,& trigo. No mesmo dia vem as Procissões das Villas de Algibarrota, de Cós, d’Evora, da Maiorga, da Sella, de Alfeizarão,& do lugar de Tornada;& cada Villa entra em Procissão com o Vigairo,& Capellão, com suas offertas,& cera acesa,& com os officiais da Camara que as governaõ,& administrão,para os quaes estão particulares bancos postos junto a esta mesa, fazendolhe os officiais della os oferecimentos que convem a tão devota gente; ajuntandose outra muita de varias partes, que por não caberem nas casas de dentro, nem de fora,se espalhão pello sitio,em forma que parece hum exercito muito grande, armando tendas,& reparos pera o Sol; & pera a vespera, &dia, acodem muitos mercadores de panos, sirgueiros, &tendeiros em muita quantidade,sombreireiros,çapateiros,tratantes de todo o mais genero de mercadorias,que costumão vir às feiras,&vendese tanto peixe,&variedade de frutas,que se parece com a fermosa,&populosa Ribeira de Lisboa:& em toda a Romagem se enxerga tanta alegria,&contentamento, que em todo o sitio há bailos,danças,musicas,violas,pandeiros,&adufes;& cõ as mesmas festas saem,& entrão no sitio,& Igreja, dizendose nos tres Altares tantas Missas á vespera,&dia, que as começão a dizer huma hora ante manhaã, & durão até o meyo dia, ouvindoas a Romagem pellas portas travessas,& alpendres, por não caberem na Igreja, sendo tão grãde como vedes,& as mais das vezes se prega fóra pello muito grande concurso da Romagem, & pera se poderem dizer melhor as muitas Missas que a esse tempo se estão para dizer (…).

[3] Em excerto transcrito por J. Leite de Vasconcelos (Etnografia Portuguesa, volume II, página 360, reedição fac-simile da Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1985).

[4] Penteado, Pedro, A Senhora da Berlinda. Devoção e Aparato do Círio da Prata Grande à Virgem de Nazaré, página 35, Mar de Letras Editora, Ericeira, 1999.

[5] Antonio José de Avila e de Bolama (Marquês de), Nova Carta Chorographica de Portugal, Tomo I, Typografia da Academia Real das Sciencias, 1909.

[6] Pinto, Alfredo, Em Terras de Portugal – Recordações, Esboços, Fantasias, Livraria Ferin, Lisboa, 1914.

domingo, 7 de junho de 2015

Linhas de parentesco - algumas questões sobre os cristãos-novos

Detalhe da gravura sobre D. Fuas Roupinho,
que figura nas duas obras de Manuel de Brito Alão

1 – Laços de família
          Ao seguir os processos do Santo Ofício sobre os membros da família Brito que viveram na quinta da Cavalariça, termo da vila de Alfeizerão, surgiram-nos diversas dúvidas e interrogações pertinentes. Perante estas, achamos que a forma mais prática de as abordar era elaborar um pequeno estudo genealógico (disponível em formato PDF) onde fosse nítida a posição dos familiares indicados nesses processos do Santo Ofício, e as suas relações intrínsecas. Foi mais um quebra-cabeças do que uma tarefa simples: havia à partida a vantagem dos Processos conterem um capítulo de genealogia, e de as confissões/denunciações apontarem a relação de parentesco com os visados, mas nessas fontes existem informações contraditórias, omissões e trocas, nomes iguais que foram adotados por gerações diferentes, e diferentes apelidos usados ou conhecidos por terceiros para falar da mesma pessoa. Este arrazoado genealógico a que chegamos (depois de confrontarmos as informações de diferentes Processos [1]), tentamos que estivesse isento de erros, ainda que seja imprudente garanti-lo em absoluto.

1.1. Os parentes de Coimbra
          Os processos de Nuno de Brito Alão e Nuno da Silva, começam com as denúncias contidas nas confissões de dois primos de Coimbra, Lourenço de Sá e Madalena de Sá, religiosa no mosteiro de Semide (mosteiro de Santa Maria de Semide, em Miranda do Corvo). A relação estabelece-se com António de Figueiredo e Sousa, marido de Isabel de Brito, tia de Nuno de Brito Alão.

          Uma das irmãs de António de Figueiredo, Antónia de Figueiredo, foi casada com um homem nobre da cidade de Coimbra, Cristóvão de Sá, de quem teve Catarina de Sá. Esta Catarina de Sá foi casada duas vezes. Da primeira união, com um cristão-novo chamado Francisco da Silva (julgado e condenado à revelia pela Inquisição por não se lhe conhecer o paradeiro), nasceram os nossos Lourenço e Madalena de Sá. Da segunda união, com um fidalgo, D. João de Ataíde, teve uma filha, Maria de Figueiredo, que foi religiosa professa no mosteiro de Semide, tal como Madalena de Sá.

          Lourenço de Sá, avogado e bacharel em Leis, morador em Montemor-o-Velho, teve diversos familiares presos pela Inquisição, entre eles, os filhos. Por seu turno, o Processo de Madalena de Sá não é um exemplo ímpar nos meandros da história da Inquisição, existindo diversos casos de freiras presas por judaísmo ou heresia nos conventos da região de Coimbra (o mosteiro de Semide, o mosteiro de Nossa Senhora de Campos em Montemor-o-Velho, ou o mosteiro de Santa Maria de Celas).

          Arlindo Correia estudou, entre outros, o caso de Leonor da Silva, presa por judaísmo com outras duas irmãs de sangue, também irmãs religiosas, no mosteiro de Semide. Os detalhes do Processo são dramáticos, entrada no convento contra a sua vontade [2], acusada por outras religiosas de zombar das coisas santas da religião, negou sempre as suas culpas e acabará por ser relaxada à justiça secular e morta num Auto de Fé na cidade de Coimbra a de 4 de Maio de 1625 (Correia, Arlindo - As 5 freiras mortas pela Inquisição. Site: Página sobre a Inquisição em Portugal. Endereço: http://arlindo-correia.com/020714.html. Acesso mais recente a 04/06/2015).



1.2. Helena Aires
          A mãe de Nuno de Brito Alão, Helena Aires Correia, cristã-nova oriunda de Lisboa, esteve também presa nos cárceres da Inquisição (Processo de Helena Aires – Direção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10614). Foi casada uma primeira vez com Duarte de Araújo, da família dos Lobos da Pederneira que viviam na cidade de Tomar (Pedro Fernandes Lobo, Jerónimo Lobo…); do qual enviuvou. Da filha desse primeiro casamento, Filipa de Jesus, ela diz (e quem melhor indicado para o dizer?) que era freira no mosteiro de Santa Iria de Tomar.

          Do seu casamento com Duarte de Brito Alão, nascerão dois filhos, Nuno de Brito e António. É curioso que nos testemunhos deste processo, Duarte de Brito Alão é indicado também como Duarte Lobo (fl.9/Img,17 [3]), ou seja, ainda manteve, pelo menos em alguns círculos, o apelido de via paterna que herdara de Pedro Fernandes Lobo, diminuído depois pelo receio de perseguições ou preconceitos antissemitas.

          Helena Aires esteve dois anos presa, foi ao Auto de Fé de 2 de Abril de 1634, sendo devolvida à liberdade alguns dias depois. Nuno de Brito Alão tinha treze anos à data da sua prisão.


1.3. Os Andrade e Gamboa

          Como tive oportunidade de tratar no processo de Nuno da Silva, o filho de Nuno de Brito menciona a família dos Andrade e Gamboa da quinta de S. Bento na Cela Velha, nomeadamente, o seu parente e amigo António de Andrade, filho de Francisco de Andrade e Isabel Gouveia, e cristão-novo por ambas as vias. Na confissão de João d’Eça [4] (Processo de João d’Essa: Direção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 2592), primo de Nuno da Silva, que fora soldado infante na Província do Alentejo, menciona-se o mesmo António de Andrade no fólio 34, falando de uma estadia na quinta da Cavalariça, junto ao lugar de Famelicão:
o ditto Nuno da Sylva acrescentou que a mesma crença da Ley de Moyses tinha Antonio Andrade de Gamboa, x. novo, solteiro, que vivia de sua fazenda, filho de Francisco d’Andrade, já defunto, e de Izabel da Veiga, christãos novos, e será de dezoito annos de idade, natural da villa da Pederneira, e morador no termo da Cela, em huma quinta que chamão Cela Velha, e que isto sabia por se haver declarado com elle, porem elle confitente, neste particular não tem certeza mais alguma, porquanto com o ditto Antonio de Andrade não fallava, antes erão inimigos.
       Felgueiras Gaio (Manuel José da Costa), no seu Nobiliário de Famílias de Portugal (12º volume, Costados III e IV) faz começar o morgadio da Cela Velha com António de Andrade Gamboa, o que corresponderá ao primeiro aforamento da quinta pela família. O pai do António Andrade de Gamboa, Francisco de Andrade de Araújo Gamboa, casado com Isabel da Veiga, é bisneto desse patriarca.

       Nuno da Silva diz que António de Andrade Gamboa é seu parente por via paterna. Não conseguimos fazer positivamente a ligação entre as duas famílias. A explicação mais simples é de que o Araújo do nome da família dos Andrade e Gamboa nos remeta para os Araújos e Lobos, cristãos-novos da Pederneira ou Tomar. Entre estes, contamos com Duarte de Araújo, o primeiro marido de Helena Aires Correia, ou Guiomar de Araújo que entra na árvore genealógica dos Andrade e Gamboa, e que era filha de Diogo Lobo.

          Por ironia, sensivelmente um século depois destes Processos, um membro da família Andrade e Gamboa candidata-se a Familiar do Santo Ofício, e é aceite. Trata-se de António de Andrade Gamboa [5], neto do António de Andrade e Gamboa referido por Nuno da Silva e João d'Eça. A Inquisição deve ter feito as indagações habituais sobre os seus parentes até aos avós maternos e paternos, e não deve ter encontrado sinais de ascendência judia, porque a carta de Familiar do Santo Ofício é-lhe concedida a 25 de Junho de 1743.

          Este António de Andrade e Gamboa (os nomes António e Francisco são reincidentes nesta família) fez desenvolver a quinta da Cela Velha e reconstruir r reedificar a capela de S. Bento. O seu túmulo encontra-se dentro da capela, e a inscrição tumular exibe a data de 1776.


2 - O padre Manuel de Brito Alão e o estigma do sangue

          No estudo introdutório (muito completo) que historiador Dr. Pedro Penteado escreveu sobre Manuel de Brito Alão numa reedição moderna da primeira obra do eclesiástico [6], encontramos bastantes informações sobre a sua vida e obra, que procuraremos, com a devida vénia, transmitir com parcimónia e em traços muito gerais.


          O padre Manuel de Brito Alão, era um dos filhos de Diogo Fernandes Lobo e Isabel de Brito. Muito jovem, iniciou com denodo os seus esforços para singrar na sociedade do seu tempo. Condicionado à vida eclesiástica pela sua condição de filho segundo, foi pajem do arcebispo de Braga, D. João Afonso de Meneses, que era fruto de uma relação da sua tia Maria de Brito com o fidalgo D. Fernando de Vasconcelos. Após a morte deste seu protetor, que o deixou um pouco desamparado, ruma à universidade de Coimbra, onde se forma como bacharel em Cânones em Junho de 1594. É nomeado, antes do ano de 1611, abade simples [7] de São João de Campos, no arcebispado de Braga, e por alvará régio de Junho de 1608, Filipe II atribui-lhe por um período de cinco anos o cargo de reitor e administrador da Casa de Nossa Senhora da Nazaré, renovado por mais cinco anos em 1612. 

         Durante a sua vigência como administrador da Casa de Nossa Senhora da Nazaré, desenham-se vários focos de atrito e linhas de ruptura, nomeadamente, entre o administrador e os mordomos da confraria, e entre a Casa de Nossa Senhora da Nazaré e a Vigararia (e Beneficiados) da Pederneira, que sempre ambicionou ser titular da administração e rendimentos do florescente santuário.

          Saído da administração da Casa, Manuel de Brito Alão pretende ser nomeado vigário da Pederneira, a sua terra natal, para cujo fito obtém o apoio do abade do mosteiro de Alcobaça, o Cardeal Infante D. Fernando de Áustria. A divulgação desse intuito fez abespinhar adversários e inimigos, com o então vigário da Pederneira a acusá-lo de judaísmo perante o Arcebispo de Lisboa. A acusação gorou os seus intentos, e a situação agrava-se quando a sua irmã Isabel de Brito é presa pela Inquisição. Citado como testemunha abonatória por Isabel de Brito, o ex-administrador vê-se enredado numa teia de boatos e suspeição que colocam um término definitivo em qualquer sonho de progredir na carreira eclesiástica. Isabel de Brito é condenada pela Inquisição em 1626, e o padre Manuel de Brito Alão, já por esse tempo e nos dez anos que se seguiram, dedica-se a desenvolver em moldes literários as anotações e registos que fora fazendo durante anos sobre a vida dos romeiros e peregrinos no Sítio e os milagres do santuário de Nossa Senhora da Nazaré [8]. Os dois livros que escreveu sobre o santuário, ou os dois livros que chegaram até nós (as fontes mencionam um terceiro e mesmo um quarto livro sobre o tema, que permanecem por encontrar ou descobrir) foram: Antiguidade da sagrada imagem de Nossa S. de Nazareth : grandezas de seu sitio, casa, & jurisdiçaõ real, sita junto à villa da Pederneira (impresso em Lisboa por Pedro Crasbeeck, no ano de 1628), que será reeditado em 1684; e Prodigiosas Historias e Miracvlosos svcessos acontecidos na Casa de nossa Senhora de Nazareth (impresso em Lisboa por Lourenço Craesbeeck, no ano de 1637).

          O padre Manuel de Brito Alão teria falecido pouco depois de 1650, em provecta idade. Para ele, um abade e sacerdote cristão atacado pelos seus inimigos em nome do sangue judeu que lhe corria nas veias, deve ter sido com particular satisfação que constatou a notoriedade obtida por esses livros e a forma como eles dinamizaram as peregrinações ao santuário mariano que administrou durante dez anos.  





[1] Entre outros, folheamos os Processos de João de Figueiredo, Isabel de Brito, Guiomar de Brito, Helena Aires, Francisca de Sousa, Francisco de Brito da Costa, João d’Eça e Mariana de Figueiredo.

[2] Cito uma das passagens do Processo que foi transcrita por Arlindo Correia, referente aos artigos de contraditas:
Diz que seu irmão Marçal Nunes é inimigo dela, porque não a deixou casar com Gil Homem da Costa e em vez disso a meteu a freira contra a vontade dela. São também suas inimigas Isabel Pinta e Filipa da Fonseca irmãs de Diogo Lopes da Rosa, freira do Convento de Semide. Até folgavam por o irmão da Ré, cónego Fernão Pinto da Silva ter sido morto pela Inquisição.  Diogo Lopes da Rosa é seu inimigo porque queria casar com ela e ela não o quis.

[3] Helena Ayres. Christãa nova, mulher do ditto Duarte de Araujo, que agora he segunda vez casada com Duarte Lobo

[4] Só pela curiosidade, ao longo da sua confissão, João d’Eça relata uma reunião judaizante com João de Figueiredo no casal de Mecarca (Macarca), próximo a Famalicão.

[5] Diligência de Habilitação de António de Andrade e GamboaDireção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, António, mç. 94, doc. 1746.

[6] Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazaré, Edições Colibri/Confraria de Nossa Senhora da Nazaré, Lisboa. Além do estudo introdutório, o Dr. Pedro Penteado também fixou o texto da reedição.
A bio-bibliografia de Manuel de Brito Alão tinha já sido abordada pelo mesmo autor na obra Peregrinos da Memória – O Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, 1600-1785, edição da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1998.

[7] Manuel de Brito Alão é aí presbítero do hábito de São Pedro, como refere, entre outros, Nuno de Brito Alão no seu Processo; expressão com que se designava o clero secular que era independente das ordens monásticas, e desempenhava as suas funções (por vezes, administrativas) dentro de uma dada diocese.

[8] Os dois livros, ou os dois tomos da mesma obra, são muito mais do que isso. Além de crónicas quase etnográficas sobre a vida no santuário, trazem-nos retratos vívidos de lugares e pessoas da região ou detalhes autobiográficos sobre o autor e a sua família. A forma como discorre a partir do relato de um milagre com comentários e lições exemplares, fazem transparecer o virtuosismo que lhe seriam próprios na pregação e na oratória.

No final do segundo tomo, Manuel de Brito Alão esclarece que não narrou milagres, porquanto estes teriam de ser aprovados como tal pelas autoridades eclesiásticas; mas maravilhas atribuídas à intercessão da Virgem.


quarta-feira, 27 de maio de 2015

As "culpas" do sangue 2: Nuno da Silva, cavaleiro da Ordem de Cristo

Muitos géneros de peçonha há, mas quanto a mim, a mais refinada
 de todas é a que se faz do ódio, porque mata a alma ao seu 
dono, e juntamente o seu corpo; doença tão natural deste Reino
 como aborrecida em todos os demais, onde dos nadas dos seus naturais
 fazem muito, e nós do muito dos nossos fazemos nada: a eles basta
 terem um remendo de pano bom para fazerem a capa toda;
e se cobrem com ele, e por mais fino que seja o nosso, 
se tiver algum pequeno retalho que o não pareça. por esse
 se regulam, e o dissipam todo

(Manuel de Brito Alão, Prodigiosas histórias e 
miraculosos sucessos acontecidos na casa de 
Nossa Senhora da Nazareth, página 116, Lisboa, 1637))


O PROCESSO DE NUNO DA SILVA (Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 9079)
Processo de Nuno da Sylva, que tem hum quarto de Christão novo, cavalleiro professo de certa Ordem militar, solteiro, filho de Nuno de Britto Allão que vivia da sua fazenda, natural da villa da Pederneira, morador na quinta da Cavallariça termo da de Alfeizarão prezo nos carceres da Inquisição desta cidade de Lisboa.



















          Com a data de 21 de Junho de 1671, é emitido contra Nuno da Silva o mandado de prisão com sequestro de bens (fólio 3/Img.5) [1] e quatro dias depois, Nuno da Silva é entregue nos Estaus (Auto de Entrega, fl.4/Img./), a Agostinho Nunes, alcaide dos cárceres secretos da Santa Inquisição de Lisboa, por Antonio Pereira, Familiar do Santo Ofício da vila da Pederneira, presumivelmente, o mesmo que aí conduzirá a sua irmã Catarina dois anos mais tarde.

          As culpas de judaísmo contra Nuno da Silva (fl.6/Img.11) correm paralelas às do pai, Nuno de Brito Alão. A primeira acusação parte de Dona Madalena de Sá, religiosa professa no Mosteiro de Semide, termo da cidade de Coimbra. Madalena é filha de Francisco da Silva, prebendeiro, e de Dona Catarina de Sá, natural de Coimbra. A confissão original da religiosa, feita ainda no mosteiro, é repetida nos cárceres da Inquisição de Coimbra. Afirmou que estivera com Nuno de Brito Alão numa grade do mosteiro (a grade do parlatório) onde declararam ambos que viviam segundo a Lei de Moisés; e Nuno de Brito ter-lhe-ia confidenciado que se comunicava na mesma crença com o filho Nuno, e com um primo deles, António de Figueiredo. A prisão deste em 23 de Janeiro de 1667, e a sua confissão, reforçaria o processo. António de Figueiredo era natural do lugar do Taveiro, e morador no da Lamarosa, freguesia da vila de Tentúgal, e era primo de Nuno de Brito Alão por via paterna, essa via pela qual detinha no sangue mais de meio quarto de christão novo. Na sua confissão rememora uma reunião havida seis anos antes na Pederneira com Nuno de Brito e o seu filho Nuno da Silva, cavaleiro do hábito de Cristo; em que todos haviam declarado as suas crenças judaicas.

          Outras culpas se somariam a estas ao longo do período de encarceramento de Nuno da Silva. A já mencionada Isabel de Brito, tia segunda de Nuno da Silva, e que possui um oitavo de cristã-nova; que confessou de mãos atadas (fl.10/Img.19). João D’Eça, primo do réu e filho de Francisco de Brito, que evocou uma reunião tida com Nuno da Silva na sua casa na quinta da Cavalariça. Mais as culpas transmitidas pela confissão de Nuno de Brito Alão, seu pai, a 4 de Setembro de 1673, de Dona Mariana de Figueiredo, irmã de Isabel de Brito; e das três irmãs do réu, Catarina, Joana e Mariana.

          Com as culpas apuradas até à data, procede-se ao Termo de Inventário no dia 24 de Julho de 1671 (fl.32/Img.63), nos Estaus e casa primeira das audiências da Santa Inquisição. Perante os inquisidores, Nuno da Silva presta juramento, depondo a mão sobre os Santos Evangelhos, e apresenta o seu nome, que tinha quarto de cristão-novo e era cavaleiro do hábito de Cristo; diz quem são os pais, que era natural da vila da Pederneira e morador na dita quinta (da Cavalariça) e que tinha vinte e seis anos de idade.

          Perguntado se quer confessar as suas culpas, Nuno da Silva disse que não tinha culpas que confessar porque era e fora sempre bom, fiel, e catholico christão. Perguntado sobre os seus bens, responde, que era filho familiar e que não tinha bens alguns, nem de raiz, nem moveis, e se alimentava com o que lhe davão seus pays. O réu assinará o termo de inventário como Nunno da Sylva e Souza, nome que será abreviado para Nuno da Silva nos muitos documentos que lhe serão dados para assinar.

          Na sessão de Genealogia (fl.34/Img,67), tida no mesmo dia, e perguntado novamente se cuidara em suas culpas e as queria confessar, Nuno da Silva disse que sim, cuidara, e que não tinha culpas que confessar pertencentes a este tribunal. Pelo que se procedeu às perguntas ordinárias de genealogia:
Disse que elle (como ditto tem) se chama Nuno da Sylva, quarto de x. novo, solteiro de vinte e seis annos de idade, natural da villa da Pederneira[2] e morador na quinta da Cavallariça, termo da Villa de Alfazeirão. Que seus pays se chamão Nuno de Britto Alão, meyo x. novo que vive de sua fazenda, natural da ditta Villa da Pederneira, e Dona Maria da Sylva, x. velha, natural da Villa de Alcobaça.Que seus Avós são já todos defuntos; e os paternos se chamarão Duarte de Britto x. velho, homem nobre, não lhe sabe a qualidade, e Helena Ayres Correa, x. nova, não sabe donde erão naturaes.E os maternos se chamarão Ruy de Souza da Sylva, x. velho. que vivia de sua fazenda, natural do lugar de Picamilho, termo de Porto de Mós, e Dona Catherina de Sousa, x. velha natural de Alcobaça.Por parte de seu pay teve hum tio já defunto, que se chamou Antonio de Britto que falleceo de dez annos.Tem mais huma tia, meya Irmãa do ditto seu pay, filha da ditta sua avó Helena Ayres, e de seu primeiro marido, Duarte de Araújo, não lhe sabe a qualidade, e haja, digo he, religiosa professa no Convento de São João de Estremoz, e se chamava Maria da Assumpção. Por parte de sua May tem huma tia já defunta que se chamava Dona Barbara de Souza, que foi religiosa professa no convento de Cós.Elle Declarante teve dous Irmaõs e seis Irmãas, a saber, Henrique que falleceo de cinco annos, Antonio que falleceo de peito, duas de nome de Helena que fallecerão de pouca idade, Dona Catherina da Sylva, Dona Bernarda da Sylva, Dona Joanna da Sylva e Dona Marianna da Sylva, e esta que he a mais moça será de doze annos de idade, e todas as quatro são solteiras.Elle Declarante he solteiro (como ditto tem) e não tem filhos alguns.He Christão baptizado, e o foi na Igreja de S. André da Villa de Cellas pelo padre Manoel Henriques, e foi seu padrinho Antonio de Britto Freyre.Não é crismado.
          Examinada a sua instrução cristã, falha ao recitar os mandamentos da Santa Madre Igreja. Declara que sabe ler e escrever e tem princípios de Latim, e que nunca saiu do reino, e nele esteve nas cidades de Lisboa e Coimbra, e nas vilas da Pederneira, Alcobaça e Estremoz. Não foi preso nem penitenciado pelo Santo Ofício, e de seus parentes o foram a sua avó Helena Aires e, de presente, estava o seu pai, Nuno de Brito Alão.

          É novamente admoestado no final da sessão para que confesse as suas culpas, ao que responde da forma costumada que não tinha culpas para confessar.

          A 28 de Julho de 1671 (fl.36v./Img.71), Nuno da Silva comparece perante os inquisidores para uma sessão In Genere, onde lhe são feitas perguntas de ordem geral. Começam pela pergunta reincidente se tinha culpas para confessar, com a resposta habitual de Nuno da Silva, a que se seguem as (muitas) perguntas padronizadas sobre as suas atitudes contra a igreja católica ou em observância de ritos e costumes judaicos, a que Nuno da Silva responde sempre em negação. A sessão é coroada com uma admoestação mais elaborada com uma nova pergunta sobre as suas culpas. Como a resposta não fosse diferente, é mandado de volta para os cárceres.

          Decorrido perto de um ano (os inquisidores não se apressam, é o tempo de reclusão e as suas experiências no cárcere que desgastam e vergam os réus), a 22 de Junho de 1672, desenrola-se a sessão In Specie (fl.39v./Img.77), onde Nuno da Silva é confrontado com perguntas específicas sobre as acusações que lhe foram feitas. As perguntas são “específicas” mas completamente vagas e sem detalhes, como já aludimos quando escrevemos sobre o processo de Nuno de Brito Alão. Não há datas, e não há nomes nem lugares: Perguntado em que lugar se achou do ultimo perdão geral a esta parte, e em que companhia de pessoas de sua nação, onde entre praticas se declararão, elle Reo, e as pessoas da ditta companhia, que crião e vivião na ley de Moysés. As perguntas sucedem-se, cada uma vinculada a uma situação ou evento narrado pelas denúncias de outros réus. E a todas, Nuno da Silva responde sempre de forma negativa (Disse que não passou tal). Os inquisidores advertem-no que aquela será a última admoestação antes de ser pronunciado contra ele o libelo de justiça, e incitam-no a confessar as suas culpas, mas Nuno da Silva mantém a mesma posição.

          É redigido o libelo de justiça, que em sucessivos artigos se propõe provar a culpabilidade do réu, demonstrar que ele é um herege apóstata da Santa Fé Católica, negativo, impenitente e pertinaz, e que será declarado como tal, incorrendo na sentença de excomunhão maior, confisco dos seus bens para o Fisco e Camara Real, e as mais penas em Direito estabelecidas, além da sua relaxação à justiça secular.

          Chamado Nuno da Silva a pronunciar-se sobre o documento que lhe é lido, e perguntado se é verdade o que consta do dito libelo e em cada um dos seus artigos, Nuno da Silva responde, de uma forma não isenta de coragem, que concorda ser verdadeiro que é cristão batizado e que já mais de uma vez fora admoestado naquela Mesa, e o mais contestava por negação.

          Perguntado se tem defesa a apresentar e se quer estar com um Procurador para esse efeito, Nuno da Silva responde afirmativamente, e é-lhe sugerido como Procurador o licenciado Francisco Soares Nogueira; que Nuno da Silva aceita, e o licenciado presta juramento nessa função no dia 17 de Agosto de 1672.

          A Defeza é apresentada (a partir do fl.49/Img.97), expondo que provará que o réu foi criado e doutrinado na Lei de Jesus Cristo, e que cumpria os preceitos da Igreja Romana. E nomeia diversas pessoas para o provar - o padre António de Sousa Coelho, Reitor da Casa de Nossa Senhora da Nazaré, António Pereira da Costa, Comissário das Madeiras d’El Rei na vila da Pederneira; e várias pessoas que moravam ou viviam de sua fazenda em quintas da região, como a quinta da Chiqueda ou a quinta de Nossa Senhora da Ajuda, junto a Alcobaça. Estas testemunhas são ouvidas em diligência por um sacerdote cristão-velho juramentado, o Padre Mestre Frei Francisco de São Tomás, regente dos autos no convento da Batalha. A publicação desses depoimentos implica uma nova admoestação ao réu, o mesmo acontecendo com a publicação de novas provas de justiça surgidas entretanto contra ele, que Nuno da Silva nega como falsas. Os inquisidores perguntam-lhe se tem contraditas a apresentar, e se quer estar com o seu Procurador para o fazer, e Nuno da Silva diz que sim.

          Os artigos das contraditas são apresentados (fl.62/Img.123), com Nuno da Silva tentando a um tempo acertar em quem o acusou, e apresentar aos inquisidores motivos plausíveis para essa pessoa o odiar a ponto de cometer perjúrio com mão sobre os Santos Evangelhos. Apresenta contraditas contra António de Figueiredo e os seus filhos (João, Luís e Mariana), Isabel de Brito e o seu sobrinho António Gomes Lobo, Lourenço de Sá e Cristóvão de Abreu. As testemunhas apresentadas pelo réu são ouvidas em cada um dos artigos das contraditas, e também são ouvidos alguns dos visados, como é o caso de António de Figueiredo, que a Inquisição de Coimbra interpela sobre Nuno da Silva na forma vaga e nebulosa que é apanágio dos inquisidores. Da mesma proveniência, a Inquisição de Coimbra, chega ao processo uma averiguação feita no convento de Semide sobre o caráter e a idoneidade moral da religiosa Dona Madalena de Sá, cujas declarações haviam, na raiz dos processos, implicado em práticas de judaísmo Nuno da Silva e o pai.

          A 11 de Setembro de 1673, Nuno da Silva requer à Mesa mais uma reunião com o seu Procurador, Francisco Soares Nogueira. Nesta, elaboram mais artigos de contraditas que o Procurador entrega aos inquisidores nesse mesmo dia (fl.74v./Img.207). Os visados, com as histórias apensas de quezílias e inimizades criadas com o réu, são António Correia de Almeida, António de Paiva (?), Pedro Armando Coelho, e D. Isabel Loba.

          Surgem mais provas de justiça contra Nuno da Silva, em cuja leitura e publicação, Nuno da Silva é admoestado a confessar as suas culpas e, perguntado sobre o que tinha a dizer sobre as provas, respondeu que tudo era falso.

          A 6 de Outubro, os inquisidores convocam Nuno da Silva e dizem-lhe que, em virtude dos novos artigos de contraditas apresentados pelo seu Procurador, ele teria de nomear novas testemunhas para se poder estudar esses artigos. As testemunhas são apontadas em seguida: José (Joseph) Caldeira, escrivão e morador em Montemor-o-Velho; o padre Manuel Nunes, de Famalicão, termo da Pederneira; e Luísa Monteira, criada da casa (quinta da Cavalariça). Em outros naipes de testemunhas apareciam o padre António de Sousa; Filipa de Sousa, padre Manuel Rebelo, padre Pedro Luís, uma Maria da Costa da Pederneira; Tomé de Simas, alferes dos Auxiliares e morador em Vila Franca; uma família da Pederneira composta por Manuel Dias, estalajadeiro, a mulher e um seu cunhado que era almocreve; além de uma mulher viúva chamada Filipa Rodrigues.

          Contrapondo a este esgatanhar de Nuno da Silva pela credibilidade e por um fim favorável do processo, aparecem novas provas de justiça, que são lidas e publicadas, com Nuno da Silva a sofrer mais uma admoestação em forma por não querer admitir a verdade e confessar as suas culpas. Nessa admoestação, Nuno da Silva diz que não tem nada para confessar, mas que deseja apresentar mais contraditas à Mesa pelo que pretendia reunir-se novamente com o seu Procurador para esse efeito, mas o que surge em seguida são (ainda) mais provas de justiça contra si. Declaradas estas como falsas pelo réu, lê-se no final desta última publicação de provas uma humilde solicitação do Procurador Francisco Soares Nogueira (fl.117/Img.233) que prefigura o que depois se seguirá. Concedendo que o réu Nuno da Silva, ainda que recordando na memória todos os atos de sua vida não se acha compreendido em nenhuma das culpas referidas na acusação e, por isso, se acha impossibilitado de procurar remédio na confissão (das culpas); o Procurador, fiado na sua inocência, mas mais ainda na circunspeção[3] dos Inquisidores, implora a ajuda do tribunal e afiança que espera dele uma sentença benigna para o réu, pelo crime da heresia que não cometeo.

          Depois destas alegações finais, o processo, os autos, são declarados conclusos a 13 de Novembro de 1673, e é lavrada a sentença (fl.120/Img.239) em que Nuno da Silva é condenado (convicto) pelo crime de heresia e apostasia e se determina que seja entregue à justiça secular, com confisco de bens, avisado que fica de incorrer na sentença de excomunhão maior [4].
Aos 27 dias desse mês, Nuno da Silva é notificado da sentença (Auto de Notificação: fl.121/Img.241), participando-se que o seu processo fora visto em Mesa por pessoas doutas, de sã consiençia, e tementes a Deos, e que ele fora julgado e condenado no crime de heresia e apostasia – Pelo que a admoestação com muita claridade da parte de Christo Senhor Nosso abrisse os olhos da Alma, e pondoos em Sua Salvação, dezencarregasse sua consiençia confessando inteiramente suas culpas. E por dizer, que assim o queria fazer foi mandado recolher a seu Carcere, para depois ser ouvido.

          Já condenado, Nuno da Silva irá desenrolar nesse mesmo dia a sua confissão para tentar minorar a gravidade das penas que reservam para si. A confissão/denúncia forma um pequeno rosário de reuniões de cristãos judaizantes em que participara Nuno da Silva, nas quais eles haviam declarado a sua crença judaica e as cerimónias que cumpriam em sua observância.

          Doze anos antes, na Pederneira, em casa da sua tia segunda Isabel de Brito, com a participação da irmã dela, Dona Mariana de Figueiredo, as duas irmãs lhe ministraram o ensino da Lei de Moisés, e despois [Nuno da Silva] continuou na ditta crença, fazendo por guarda della as dittas cerimonias todas as vezes que lhe foi possivel, thé esta manhã que allumiado de Deos nosso Senhor se resolveo a confessar suas culpas, e de as haver commettido está muito arrependido, pede perdão, e que com elle se uze de misericordia.

          Onze anos e oito meses atrás, também na casa de Isabel de Brito, achou-se lá com ela, e Isabel Loba, cristã nova nascida na vila da Cela, sobrinha de Isabel de Brito e filha de António Gomes Lobo, com o próprio António Gomes Lobo e António de Figueiredo, primo do réu.

          Dez anos antes, na Lamarosa, termo de Coimbra, achou-se lá em casa de António de Figueiredo e na presença deste e dos seus três filhos, João, Luís e Francisco de Figueiredo; Custódio de Abreu, meio-irmão do anfitrião; o primo deste, Manuel Pereira, e Lourenço de Sá, ouvidor da Casa de Aveiro.

          Oito anos antes, na quinta da Cavalariça, encontrou-se aí com João de Figueiredo, e com dois homens de Montemor-o-Velho que, não conseguindo indicar pelo nome, que não tem presente, menciona os seus cargos e descreve os seus traços físicos com uma minúcia policial – além de lembrar os nomes de terceiros mencionados por estes nas suas conversas.

          Sete anos antes, na Pederneira, na casa de seu pai, estivera com este e com as três irmãs mais velhas, Catarina, Bernarda e Joana da Silva.

          Na declaração seguinte, Nuno da Silva menciona os Andrades da Quinta de S. Bento, na Cela Velha. A família dos Andrades ou Andrade e Gamboa, possui uma respeitável árvore genealógica recenseada [5], mas este processo do Santo Ofício é o primeiro documento que encontramos que expõe claramente as raízes judaicas desta família, que possuía uma presença antiga na vila da Pederneira, e estreitos laços com outras famílias de cristãos-novos da mesma vila, como os Britos e os Lobos:
Disse mais que haverá seis annos e meyo na Quinta da Sella Velha, termo da Villa da Sella, meya legoa da mesma villa, e huma da de Pederneira, em caza de Antonio de Andrade, x. novo por ambas as vias, não sabe em quanta parte, solteiro, de vinte e oito annos, filho de Francisco de Andrade, que vivia de sua fazenda, parente delle confitente não sabe em que grao, e de Izabel da Veiga, se achou com elle, e com a ditta Izabel da Veiga, a qual he agora cazada segunda vez com Antonio Coelho, x. novo por via do Pay, não sabe se em todo, ou em parte, e com o mesmo Antonio Coelho, e com duas filhas destes, solteiras, a saber, Catherina da Veiga, de vinte annos, e Ana [?] de dezenove pouco mais ou menos, porque lhe não sabe a idade ao certo, e com Jeronima Luis, irmã da ditta Izabel da Veiga, viuva de Manoel da Costa, x. velho, que vivia de sua fazenda, e com Brittes da Nazareth filha destes, solteira, de vinte e quatro, ou vinte e cinco annos de idade, e com Manoel d’Almada, irmão do ditto Antonio Coelho, que vivia de sua fazenda, viuvo de huma x. velha cujo nome lhe não lembra, todos naturaes da Pederneira, excepto Antonio Coelho, e Manoel de Almada, que são naturaes de Alfeizarão, aonde he morador o mesmo Manoel d’Almada, e ditto Antonio Coelho, sua molher e filhas na cidade de Leiria, aonde he meirinho da Correição, e o ditto Antonio de Andrade vivia na ditta sua quinta, e Jeronima Luis, a sua filha, na ditta villa da Pederneira, e estando todos nove na ditta quinta, aonde se ajuntarão a ouvir missa [certamente na capela de S. Bento, que ainda aí existe] por ser dia santo, e todos jantarão nella,e despois de terem comido, entre outras praticas se derão conta e declararão, elle confitente, e os dittos Antonio de Andrade, Izabel da Veiga, Antonio Coelho, Catherina da Veiga, Marianna, Jeronima Luis, Brittes da Nazareth e Manoel d’Almada, que crião e vivião na Ley de Moyses para Salvação de suas Almas, e por guarda dellas fazião as dittas ceremonias. Com as dittas pessoas não passou mais, excepto, com Antonio de Andrade, com o qual tem despois semelhante declaração na quinta da Cavallariça de seu Pay, não lhe lembra quanto tempo ha.
          Outras confissões e outras pessoas mais. Na Pederneira, em casa de Francisco de Brito, com este e os filhos João D’Eça, Maria Josefa e Inês Baioa; com a meia-irmã do primeiro, Dona Guiomar de Brito, Isabel de Brito, Isabel Loba e Mariana de Figueiredo. Também na Pederneira, no escritório de Agostinho Coelho, escrivão, se achou com ele e outros cristãos-novos – António Correia, Marcos Tavares, e Francisco de Almeida, homem do mar.

          Nuno da Silva é ouvido na sessão de Crença (fl.130v./Img.260) sobre as suas crenças e devoções e a apostasia da religião católica, e declara o que dissera na confissão, que as irmãs Isabel de Brito e Mariana de Figueiredo o haviam levado para a religião de Moisés, e que persistira nesse erro até à manhã da confissão, em que se apartara della por ser Deus servido de o allumiar.

          A 28 de Novembro, é submetido a uma nova sessão In Specie, em que o interrogam sobre as acusações que existem contra si no processo. Às perguntas feitas, já não contesta como falsas, mas que não he lembrado de tal. Termina a sessão com mais confissão, falando de uma reunião sobre a Lei de Moisés tida na quinta das Cavalariças com as quatro irmãs.

          No mesmo dia é lavrada a Sentença final, na qual lhe atribuem cárcere e hábito penitencial perpétuo sem remissão, abjuração dos erros no Auto Público de Fé, e degredo por cinco anos para o estado do Brasil (fl140/Img279); sentença repetida de forma mais extensa e completa um pouco mais à frente (fólios 142 a 144),

          Nuno da Silva vai ao Auto de Fé que decorreu no Terreiro do Paço no Domingo, dia 10 de Dezembro de 1673 (no mesmo dia que as irmãs).

          O Termo de Ida e Penitencias, fixa as suas penas e conclui o processo (fl.148./Img.295). Publicado a 8 de Janeiro de 1674, discrimina as penitências espirituais a que fica obrigado, e o que se conthem na Carta que lhe será dada, e vá cumprir os cinco annos para o Brazil em que foi condenado, ele assistirá na Igreja que for sua freguesia todos os Domingos e dias Santos, á missa da terra, e pregação quando a houver, com seu habito penitencial que sempre trará sobre suas vestiduras. O que tudo elle comprometteo cumprir sob o cargo do juramento dos Santos Evangelhos.





[1] Mandado de prisão (ficheiro PDF).

[2] Contrariando o que declara o próprio Nuno da Silva, e o que sobre ele testemunham outros familiares, a irmã mais nova, Mariana, afirma que ele nascera na vila da Cela, o que faz algum sentido se atendermos que é na mesma vila que ele é batizado.

[3] Circunspeção é uma palavra rica de sentido que soemos usar numa aceção muito limitada - o de falar ou agir com ponderação e reservas. A palavra remete-nos para o círculo, ser circunspeto é examinar algo atentamente, de todos os ângulos possíveis, como se descrevêssemos um círculo em volta.

[4] Sentença, em formato PDF (original e transcrição).

[5] Memórias da Vila da Cela, de Iva Delgado e Frederico Delgado, edição da Camara Municipal de Alcobaça e Junta de Freguesia da Cela, ano de 1986. Esta obra transcreve, entre outros, o manuscrito de 1828: Memórias sobre a villa da Cela, de António Carlos de Andrade.

Os autores são a filha e o neto de Maria Iva de Andrade Delgado (ou Maria Iva Theriaga Leitão Tavares de Andrade), recentemente desaparecida, da descendência dos Andrades e viúva de Humberto Delgado, o General Sem Medo


Ruínas do Palácio dos Estaus da Santa Inquisição, após o incêndio de 1836