sábado, 23 de maio de 2015

As "culpas" do sangue: as filhas de Nuno de Brito Alão

1 – FRONTISPÍCIO 

          Os processos das filhas de Nuno de Brito Alão possuem muitas características comuns que nos levam a considerá-los em conjunto. As três são presas em datas próximas e são reconciliadas no mesmo Auto de Fé, realizado no Terreiro do Paço a 10 de Dezembro de 1673. Documentos como a Sentença ou o Termo de Ida e penitencias, apenas divergem no nome da ré e numa ou outra palavra menos dócil à cópia. O que diferencia os processos é o modo como cada uma delas recebeu o ensino da Lei de Moisés, e como justificaram o abandono da religião católica ao serem interrogadas sobre isso na sessão de Crença – as suas estratégias de sobrevivência, no fundo.
          O processo do irmão, Nuno da Silva, é distinto destes (e será tratado subsequentemente), por ter negado durante três anos as suas culpas de judaísmo e só ter chegado à confissão depois de ser sumariamente condenado pela inquisição, o que foi levado em conta pelos inquisidores na hora de lhe atribuírem uma sentença.
          As três irmãs (nome estelar) são Catarina da Silva (ou Catarina da Silva e Sousa), a mais velha, Joana da Silva, e Mariana da Silva (ou Mariana de Jesus ou Mariana de Brito) – em todas elas, é o apelido da mãe, uma cristã-velha nascida em Alcobaça, que prevalece.
          No processo de Nuno da Silva, na sessão de Genealogia, ele evoca a história da sua família, intimamente próxima ao infortúnio e à dor:
Ele declarante teve dous Irmaos e seis Irmãas, a saber, Henrique, que falleceo de cinco annos, Antonio que falleceo de peito, duas de nome de Helena que fallecerão de pouca idade, Dona Catherina da Sylva, Dona Bernarda da Sylva, Dona Joanna da Sylva, e Dona Marianna da Sylva, e esta que he a mais moça será de doze annos de idade, e todas as quatro são solteiras.
          Bernarda da Silva faleceu também em Maio de 1673, com dezanove anos – falleceo solteira, referirão laconicamente as irmãs nos seus depoimentos. O seu nome aparece ao lado do nome de Catarina da Silva quando o promotor inventaria as culpas para pedir aos inquisidores um mandado de prisão contra elas e, curiosamente, isto ocorre numa data em que Bernarda da Silva já tinha morrido. Isto terá sucedido porque o Santo Ofício ainda não possuía a informação documentada sobre o seu óbito, ou porque, por bizarro que pareça, não era insólito e podia acontecer a Inquisição acusar e condenar por heresia pessoas já falecidas, o que neste caso, talvez não tenha chegado a acontecer (e estamos a ironizar) por Bernarda da Silva não possuir bens próprios (fazendas) para serem sequestrados [1].
          Para não nos alongarmos no apontamento sobre cada um dos processos, colocamos em anexo (formato PDF), indicado nas notas de rodapé, três documentos ilustrativos, a saber, a Sentença de Catarina da Silva (original e transcrição), a Abjuração em Forma da mesma (o documento impresso que se lia no Auto de Fé) e o Termo de Ida e penitencias (original e transcrição) da irmã caçula, Mariana.

2 – CATARINA DA SILVA


Processo de Dona Catherina da Sylva, e Souza
parte de x. nova, solteira, filha de Nuno de Britto Alão
natural da villa da Pederneira, e moradora na Quinta
da Cavallariça, termo da Villa de Alfeizerão
 (Processo de Catarina da Silva, Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 769).

           O mandado de prisão contra Catarina da Silva e Bernarda da Silva é emitido a 8 de Agosto de 1673 (fólio15/Img29), e Catarina da Silva chega aos Estaus a 28 de Agosto de 1673, conduzida por um Familiar do Santo Ofício da vila da Pederneira, António Pereira da Costa. Como chegassem tarde da noite, e a porta do pátio estivesse já fechada, Catarina foi confiada a Manuel Martins, taberneiro da Inquisição e alcaide do cárcere da penitência que, no dia seguinte, a entregou ao alcaide dos cárceres da Inquisição, Agostinho Nunes (fl.6/Img11).
          A denúncia inicial que a incrimina e a Bernarda da Silva, foi proferida por Isabel de Brito, prima direita do seu pai (a sua mãe homónima, era irmã de Duarte de Brito, avô paterno das jovens). Isabel de Brito, depois de quatro anos em que negou as suas culpas de judaísmo, iniciou a sua confissão de mãos atadas [2], dizendo das duas irmãs, que havia estado com elas na sua casa da Pederneira, juntamente com Francisco de Sousa, filho do seu sobrinho António de Figueiredo, e que estando os quatro reunidos, haviam declarado que criam e viviam na Lei de Moisés. A outra culpa contra Catarina da Silva e as três irmãs, nasce das declarações de Inês Maria, filha de Francisco de Brito da Costa: quatro anos antes, na casa do pai na Pederneira, achou-se com elas, e todas declararam a sua crença na religião de Moisés, e nas cerimónias realizadas em sua observância.
          No dia seguinte, 29 de Agosto, Catarina faz saber à Mesa dos inquisidores que desejava confessar as culpas de judaísmo que tinha cometido. É recebida em audiência, estando aí presentes Pedro Mexia de Magalhães, do Conselho Geral do Santo Ofício, e o inquisidor Bento de Beja de Noronha. Catarina prestou juramento, e disse chamar-se Dona Catherina da Sylva, solteira de vinte e oito annos de idade, natural da villa da Pederneira e moradora na quinta da Cavallariça, termo da villa de Alfeizarão. Por ser menor, foi chamado à Mesa o alcaide dos cárceres, Agostinho Nunes, e perguntado se aceitava ser curador da dita ré menor para a ajudar e aconselhar, ao que este aceitou a curadoria da jovem.
          Inicia-se então, formalmente, a confissão (fl.18/Img35). Catarina declarou que doze ou treze anos antes, na Pederneira, na casa do seu pai, Nuno de Brito, se achou ali com ele, com o seu próprio irmão, Nuno da Silva, com Dona Mariana de Figueiredo e com a irmã desta, Isabel de Brito; e estando todos os cinco, «lhe disse o ditto seu pay Nuno de Britto que cresse e vivesse na Ley de Moyses, porque era sã e boa e verdadeira para a salvação da alma, e não a de Christo Senhor Nosso, e por sua observancia, vestisse camisa lavada à sexta feira, e no mesmo dia jejuasse na forma ordinaria comendo ao jantar, e noite, e deixasse de comer carne de porco, lebre, coelho epeixe de pelle, porque elle ditto seu Pay assim o fazia, e cria e vivia na ditta Ley, com o ditto intento, e os dittos seu Irmão Nuno da Sylva, e parentas Dona Marianna de Figueiredo, e Dona Izabel de Britto aprovarão o ditto ensino, e disserão a ella confitente que fisesse o que lhe dizia o ditto seu Pay, declarando que também crião e vivião na ditta Ley de Moyses com o ditto intento de salvarem suas almas, e por sua guarda fazião as dittas cerimonias; e persuadida ella confitente do ditto ensino, parecendolhe que o ditto seu pay plo ser [por sê-lo] a encaminhava bem, e lhe dizia o que mais lhe convinha, se apartou logo alli da Fè de Christo Senhor Nosso, e se passou à Ley de Moyses, crendo e esperando salvarse nella,e assim o declarou ao ditto seu Pay, e mais pessoas (…)».
          Confessou mais Catarina, narrando que estivera na Pederneira, em casa de Francisco de Brito, na companhia deste, e dos seus três filhos (João D’Eça, Josefa D’Eça e Inês Baioa) e estando todos os cinco, acordaram que partilhavam a mesma crença e práticas.
          A 2 de Setembro, em nova audiência (fl.21v./Img42), Catarina prossegue com as mais culpas de judaísmo de que é lembrada, narrando que dez anos e um mês antes, na Pederneira, na casa de António Gomes, marido de Francisca de Figueiredo, cristã-nova, se achou aí com Isabel Loba, filha deles, e um primo desta, António de Figueiredo, que vivia na Lamarosa, Coimbra, mas viera em romaria à Nossa Senhora da Nazaré com os seus dois filhos, João e Luís, e ficaram alojados na casa de Isabel Loba – e estando todos os cinco reunidos, Catarina ouviu deles que também seguiam a mesma religião proscrita.
          Na sessão de Genealogia de 11 de Setembro de 1673 (fl. 24/Img 47), Catarina diz que os pais são moradores na quinta da Cavalariça, termo de Alfeizerão, e indica os parentes de que se recorda das duas vias, a relação entre eles e se são ou não cristãos-novos. Declara que sabe ler e escrever e que é cristã batizada, e foi batizada na igreja matriz da Pederneira pelo padre Vicente Nunes, tendo como padrinho Manuel Gomes Pereira.
          Lembra, em jeito de confissão, que passara a crer na Lei de Moisés em casa do seu pai, Nuno de Brito, e que nesse ensino e comunicação de seu pai se achava tambem prezente sua irmãa Dona Bernarda da Sylva que falleceo em Mayo passado. Mas adianta que continuara na ditta crença [Lei de Moisés] fazendo as dittas cerimonias athe o dia antecedente a sua confissão em que se apartara della.
          Na sessão de Crença (fl.27v./Img53), de 22 de Setembro, reafirma o mesmo por outras palavras: Disse que a ditta crença lhe durou the confessar suas culpas nesta Meza, e então se apartou della por ser Deos servido de a allumiar.
          Catarina da Silva apresentará ainda mais confissões: a 25 de Setembro (fl.30/Img59) lembra a crença proferida na religião mosaica por seu pai, irmão e irmãs na quinta da Cavalariça, seis ou sete anos antes; e, já no epílogo do processo, uma reunião semelhante havida na casa de Francisco de Brito, na Pederneira, na qual esteve com Dona Guiomar de Brito, meia-irmã dele, e Joana da Silva.
          Na Sentença (fl.37/Img73) [3], é declarado que Catarina da Silva é recebida ao grémio da Santa Madre Igreja, sob condição de abjurar os seus heréticos erros no Auto de Fé, de se instruir nos mistérios da fé e cumprir as penas espirituais estipuladas, com cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores. No processo consta a sua Abjuração em Forma [4], que a acompanha ao Auto de Fé; e na publicação da sentença, descreve-se esse Auto Público de Fé:
Publicada foi a sentença assima e atras escritta á Ree Dona Catherina da Sylva contheuda nestes autos no Auto publico da Feé, que se celebrou no terreiro do Paço desta Cidade Domingo dez do mez de Dezembro de mil seis centos settenta e tres annos, em prezença de suas Altezas, dos Senhores do Conselho geral, os Senhores Inquisidores, Deputados e mais Ministros do Santo Officio, o Nuncio Apostolico, alguns Bispos, muitos Religiosos, o Cabido, e muitas outras pessoas da Nobreza, e povo. Do que fiz este termo por mandado dos dittos Senhores Inquisidores. Manoel Martins Cerqueira o escrevi.
          No Termo de Ida e penitências (fl.42/Img.83), transparece a condescendência dos inquisidores para com esta jovem que confessou com presteza, mostrou-se arrependida e implorou misericórdia, decidindo eles que ela podia ir em paz para onde quisesse, desde que não saísse do reino sem licença da Mesa, e cumprisse o que prometera na sua abjuração em forma e na Carta que lhe fora entregue (as irmãs beneficiarão da mesma atitude e penas).

3 - JOANA DA SILVA
Processo de Dona Joanna da Sylva, 4º parte
de x. nova, solteira, filha de Nuno de Britto Alão
que foi Capitão da Ordenança, natural da Villa da
Pederneira, e moradora na Quinta da Cavallariça
termo da Villa de Alfazeirão
          (Processo de Joana da Silva, Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10732).

          Em resposta ao mandado de prisão decretado pela Inquisição a 8 de Agosto, e do qual também constava a sua irmã Mariana, Joana da Silva é conduzida aos Estaus e entregue nas portas dos cárceres a 8 de Novembro de 1673 (fl.6/Img.11).
          A primeira Culpa indiciada no processo partiu do processo da sua parenta Inês Maria, de dezoito anos, filha de Francisco de Brito da Costa, que a incrimina como um dos participantes na reunião de cristãos judaizantes em casa de Francisco de Brito, onde também estiveram presentes as irmãs Catarina, Bernarda e Mariana da Silva. A segunda Culpa procede do processo da sua irmã mais velha, Catarina, e reporta-se à reunião familiar tida na quinta da Cavalariça, onde a família morava, e onde Nuno de Brito desenvolveu o ensino da Lei de Moisés. A terceira Culpa é aduzida por Mariana da Silva, que narra uma conversa tida entre as duas irmãs na quinta da Cavalariça, onde ambas confessaram que crião e vivião na Ley de Moyses.
          Na sessão do Termo de Inventário (fl.17/Img.33), realizada a dez de Novembro, à pergunta se possuía bens de raiz ou móveis, Joana declara que não possuía bens alguns porque era filha familiar e se sustentava com o que lhe davão seus Pays, em cujo poder estava (o mesmo declararam os irmãos).
          No mesmo dia e fazendo saber que queria confessar as suas culpas, e por ser menor, é chamado também o alcaide dos cárceres, Agostinho Nunes, que é convidado a exercer, e aceita, a curadoria da jovem (Termo de Curador, fl. 19/Img37).
          Na Confissão, havida diante do inquisidor Bento de Beja de Noronha, revela que a sua iniciação nas práticas de judaísmo se devera à sua prima Isabel de Brito [5]. Parecendolhe que a ditta Dona Izabel por ser sua parenta e amiga a encaminhava bem, e lhe disse o que mais lhe convinha se apartasse logo alli da Fé de Christo Senhor Nosso de que tinha bastante noticia e instrucção, e se passasse à crença da Ley de Moyses e assim o declarou à ditta Dona Izabel, dizendolhe que na ditta Ley de Moysés ficava crendo com o ditto intento, e por sua observancia faria as dittas ceremonias, como com effeito fez até agora, que alumiada pelo Spirito Santo concluio que hia errada, e se resolveo a confessar suas culpas e a deixallas, e de as haver commettido está muito arrependida [e] pede perdão, e que com ella se uze de misericordia.
          A misericórdia era uma moeda de troca e, para a merecer, Joana (como Catarina e Mariana), talvez instruída em casa da sua mãe antes da prisão, denuncia outros parentes, quase todos incriminados anteriormente pela Inquisição. Diz que, em casa de Dona Isabel de Brito na Pederneira se achara com ela e com a irmã dela, Mariana de Figueiredo, numa reunião de cristãos judaizantes; e que em casa dos seus pais, na Pederneira, se achou numa reunião semelhante com Nuno de Brito Alão, e os seus próprios irmãos, Nuno da Silva, Catarina, Bernarda e Mariana. Numa outra reunião, havida em casa do parente Francisco de Brito, implica este e os seus filhos – João D’Eça, Inês Josefa e Josefa Maria – nas mesmas crenças e cerimónias. Dois meses depois destas confissões, a 3 de Janeiro de 1674, Joana fará uma nova denúncia: a de Dona Guiomar de Brito, filha de António de Brito que se encontrava então acompanhada pela sua própria irmã Catarina.
          Na sessão de Genealogia (fl.23v./Img.46), Joana da Silva pormenoriza que os seus avós maternos se chamarão Ruy da Sylva e Souza, que fazia viagens á India, e Dona Catherina de Sousa, xx. Velhos [cristãos velhos], naturais e moradores da dita villa de Alcobaça, e que da parte da sua mãe teve uma tia, já defunta, Bárbara da Silva, que fora religiosa professa no mosteiro cisterciense de Cós. Sobre si mesma, declara que fora batizada na vila da Pederneira e que o seu padrinho de batismo se chamava Manuel Gomes, não era crismada, não sabia ler nem escrever, e não sahio fora deste Reyno, nem da ditta villa da Pederneira e quinta da Cavalariça.
          O processo de Joana da Silva é considerado concluso a 17 de Novembro de 1673. A Mesa dos Inquisidores promulga a sua sentença, e Joana da Silva integra o Auto de Fé de 10 de Dezembro de 1673. A 10 de Janeiro de 1674, é publicado o seu Termo de Ida e penitencias (fl. 37/Img.73) onde é levantada a pena de cárcere, e se estipula as penas e obrigações espirituais que teria de cumprir depois de libertada.

4 – MARIANA DA SILVA
Processo de Dona Marianna da Sylva, que
tem hum quarto de Christaã nova, solteira,
filha de Nuno de Britto Alão, que vivia
de sua fazenda, natural da villa da Pe
derneira, moradora na quinta da Caval-
lariça, termo da de Alfeizarão, preza
nos carceres da Inquisição desta cidade de
Lisboa
          (Processo de Mariana de Jesus, ou Mariana da Silva e Sousa, Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 72)

          Mariana da Silva, é entregue nos Estaus de Lisboa no mesmo dia da sua irmã Joana. Elas são presas com sequestro de bens, em obediência a um mandado (fl.19/Img. 37) que, ordenando a sua prisão por haver culpas bastantes, ressalva que se mandou que se esperasse mais provas (as subtilezas do Santo Ofício).
          As suas culpas de judaísmo possuem as mesmas fontes: Inês Maria, filha de Francisco de Brito da Costa (fl.9/Img.17), e a sua irmã Catarina da Silva; às quais se juntará depois o depoimento de Joana da Silva.
          A Mesa pedirá os assentos de batismo das três irmãs, que são adicionados ao processo de Mariana da Silva (fl.22/Img.43):
Treslado dos açentos do L.º dos bautizados desta villa da Pederneira dos anos de 630. té o prezente.    
Aos dous de fevereyro de 647. bautizei Caterina f.ª de Nuno de Brito, e de Dona M.ª s.m. foram Manoel Gomes Pereira e Maria do Souto.O Vigairo V.te Nunes [Vicente Nunes][Na margem está anotado 26, i.e., a idade, 26 anos] 
Aos 24. dias de junho de 1633. annos Baptizei a Joanna fª de Nuno de brito e de sua molher Dona Maria, forão padrinhos o capitão Manuel Gomes Prª [Pereira] e dona Mariana, e pera que conste fis este acento dia mês era ut sup [ut supra: como acima]. O pe. Fr.o Carv. Da Sylva [Francisco Carvalho da Silva][na margem, a idade: 20 an.] 
Aos 7 de Junho de 1655. Baptizei a Mariana, f.ª de Nuno de brito alam e de sua molher D. Maria, forão padrinhos Inácio Ferreira, m.or [morador] em Tomar e soror Mª dasunção, freira professa no mosteiro de S. João destremos [Estremoz]; E assentei neste livro por hum escrito que mandou em que pedia fizesse esta lembrãça e pª que conste fos este açento dia mês era ut sup. O pe. Fr.co Carvª da Sylva.
[na margem: 18 annos]
          A 10 de Novembro de 1673, no mesmo dia de Joana, e depois de outorgada a curadoria de Agostinho Nunes, alcaide dos cárceres, a menor Mariana da Silva inicia a sua confissão (fl.27/Img.53), que prossegue no dia 11:
Disse que haverá tres ou quatro annos na quinta da Cavalariça, legoa e meya da villa de Alfeizerão, e huma da Pederneira, em caza de seus Pays, se achou com Branca, a Bruxa de alcunha, não sabe se era x. nova, agora defunta, dizia ser das partes da ditta villa de Alfeizerão, acostumava vir muitas vezes pedir esmolla á ditta caza, e estando ambas sós, conversando, lhe ensinou a ditta Branca que vivesse na Ley de Moysés, que era boa para a salvação da Alma, que seria rica e teria muita ventura, e por sua guarda rezasse hum terço de Padre Nossos sem lhe declarar a quem os havia de offerecer, e jejuasse hum dia á Raynha Esther, estando em todo elle sem comer, nem beber senão á noite, porque ella assim o fazia, cria e vivia na ditta Lei com o ditto intento, e persuadida ella confitente do ditto ensino por ser rapariga, e lhe parecer que seria bom o que a ditta molher lhe ensinou, ficou dalli por diante crendo e vivendo na ditta Ley, esperando Salvarse nella e ser rica, e ter ventura, como ella lhe disse, declarou á ditta Branca que faria o que ella lhe dizia, como fez, e a ditta crença lhe durou athe Domingo passado, e então a deixou por entender que não devia ser boa, por occazião de ver que tinhão prezo a seu Pay e a outras pessoas, e ainda que vivendo na ditta ley o tempo que tem declarado, nunca se apartou da Fee de Christo Senhor Nosso antes a praticava sempre em seu coração, encomendandosse a Jesus Christo, e aos Santos, e fazendo as mais obras de Christã, entendendo que não era pecado crer na ditta Ley de Moysés, e só despois que vio prender a seu Pay começou a duvidar, despois no tempo em que tem ditto acabou de conhecer que não era boa e da culpa se há que acommetteo, está muito arrependida, pede perdão e que se uze com ella de misericordia. Com a ditta molher não [se] passou mais.
          Confessadas as suas culpas de judaísmo, indica as pessoas com quem partilhava essas crenças e práticas. Josefa e Inês, filhas de Francisco de Brito, escrivão, com quem se achou em reunião três anos antes nas casas que os seus pais tinham na vila da Pederneira, quando Mariana aí se encontrava com a sua mãe por ocasião de uma romaria à Nossa Senhora (Nazaré). Um ano antes, se achara com a sua irmã Catarina, e haviam falado na sua crença na Lei de Moisés quando se encontravam na quinta da Cavalariça, na casa de seus pais. Três anos e meio antes, nas Caldas, achou-se com o seu pai Nuno de Brito, em cazas em que estavão pouzados, e deram-se conta e declararam que criam e viviam na Lei de Moisés. A quinta da Cavalariça, morada da jovem, foi o cenário esperado para conversas sobre crenças e ritos judaicos tidas com Nuno da Silva (irmão della confitente, natural da villa da Sella e morador na dita Quinta), Joana da Silva, Francisco de Brito e o seu filho João D’Eça; e Bernarda da Silva.
          Na Genealogia (fl.35/Img.69), Mariana diz que se chamava Mariana de Jesus ou Silva, e que tinha de quinze para dezasseis anos (dado que contradiz a informação do padre Francisco Carvalho da Silva), e que fora batizada na Igreja matriz da Pederneira pelo padre João Lopes Velho, tendo o alcaide Inácio Ferreira como padrinho de batismo. Diz também que sabe ler e escrever, e que nunca saíra do reino, e nele estivera nas Caldas oito meses, na vila da Pederneira e na quinta da Cavalariça.
          Na sessão de Crença (fl.38v./Img.76), afirma que a crença na lei de Moisés lhe durou the [até] cinco dias antes de sua Confissão (como tem ditto) e então a deixou por ser Deos servido de a alumiar por meyo de sua prizão.
          A Sentença e o Termo de Ida e Penitencias [6] de Mariana da Silva, são idênticas às das irmãs mais velhas, ficando Mariana livre do cárcere, podendo ir para onde quisesse, desde que não se ausentasse do reino sem licença da Inquisição.
          O desfecho destes processos sugere-nos a imagem de uma família parcialmente reconstituída depois da perseguição que a devastou. A casa de Maria da Silva, a mãe, na Pederneira, as jovens filhas de regresso do sombrio cárcere, e Nuno de Brito Alão (um homem doente e em suma miséria) devolvido ao seu lar e à sua família por particular benevolência do Santo Ofício. Apenas Nuno da Silva terá um destino diverso, imposto pela pena de degredo.







[1] Regimento da Inquisição do ano de 1613, Título XXVII:
Achando os Inquisidores informações bastantes de testemunhas, por onde pareça que algumas pessoas podem ser convencidas de heresia, e se achar serem falecidas, por informação bastante, e serem christãos baptizados (a qual informação de testemunhas se tirará a requerimento do Promotor) os Inquisidores mandarão ao dito Promotor, que os accuse, a fim de serem declarados por herejes, e apóstatas, e que seus corpos e ossos sejam desenterrados, e lançados das Igrejas, e cemiterios ecclesiasticos, e condemnada sua memoria e fama, declarando suas fazendas a quem devem pertencer, segundo a Bulla da Santa Inquisição.

[2] Não é uma expressão figurada, mas parte de um estratagema de terror psicológico dos inquisidores: notificaram Isabel de Brito que estava condenada («convencida») por crime de heresia e iria ser relaxada à justiça secular e compareceria no Auto de Fé do Domingo seguinte, 21 de Junho de 1671, para ouvir a sua sentença. E logo ali lhe ataram as mãos. Com as mãos atadas e sendo ouvida em confissão por um padre da Companhia de Jesus, Isabel de Brito convenceu-se que iria ser queimada no Auto de Fé e confessa as suas culpas (Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10092, fólio 109). No final da confissão, escreve o notário: e sendolhe lida esta sua confissão, e por ela ouvida, e entendida, disse estava escritta na verdade. E por a Ree estar de mãos atadas, de seu consentimento assinei  eu Notario por ella com o ditto senhor Inquisidor. Filipe Barbosa o escrevi.
Isabel de Brito foi sentenciada a cinco anos de degredo no estado do Brasil, tendo que envergar um hábito penitencial perpétuo com insígnias de fogo. Estas, acrescidas à costumada cruz amarela do sambenito, expunham a resistência da condenada em confessar as suas culpas.

[3] Sentença, na íntegra, com a respetiva transcrição: SENTENÇA (ficheiro PDF).

[5] A severidade demonstrada pela Inquisição para com Isabel de Brito e Nuno de Brito Alão, tinha muito a ver com o facto de terem sido acusados de ensinarem e difundirem a herética religião mosaica, e serem causadores da apostasia em fiéis católicos.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

O tormento de um homem: o processo de Nuno de Brito Alão

(citação recolhida numa obra crítica de Manuel Borges Carneiro:
Appendice sobre as operações da Santa Inquisição portugueza, 
ou Parte II. do discurso sobre a magia e mais superstiçoes desmascaradas, Lisboa, 1820)


NOTA PRELIMINAR

          A família de Nuno de Brito Alão, os Brito ou Brito Alão, constituiu uma família de cristãos-novos da vila da Pederneira, com laços de sangue com outras famílias de origem judaica da mesma vila, como é o caso dos Lobos ou dos Andrades. Não insistiremos por ora neste ponto, porque ele será aflorado na secção Genealogia deste processo e porque a ele voltaremos num outro artigo. Podemos, no entanto, adiantar que Nuno de Brito Alão é sobrinho de Manuel de Brito Alão (este foi, inclusive, seu padrinho de crisma), que foi administrador da Real Casa de Nossa Senhora da Nazaré, e aclamado autor do livro que sublimou as peregrinações ao santuário mariano da Nazaré: Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazareth, de 1628.

          A família de Nuno de Brito Alão sofreu uma verdadeira perseguição por parte da Inquisição durante perto de um século com um primeiro ciclo de processos que levou, por exemplo, ao encarceramento de Isabel de Brito, irmã do dito Manuel de Brito Alão por volta de 1620 e, que recrudescerá quarenta anos mais tarde com uma nova onda de prisões e denúncias que teve o seu início na região de Coimbra, com primos de Nuno de Brito Alão, e que acabará por conduzir este e os filhos aos Estaus, os temíveis cárceres da Inquisição de Lisboa. Apenas Maria da Silva e Sousa, a esposa de Nuno de Brito Alão, escapou à prisão, por ser cristã velha e por não ter sido implicada em práticas de judaísmo pelos intervenientes nos processos.

          Ser cristão-novo, ter sangue judeu, significava nesses tempos, possuir uma espada de Dâmocles permanentemente suspensa sobre a cabeça. A qualquer momento (às vezes por denúncias vagas movidas por invejas, inimizade ou cobiças de terceiros), esse sangue convertia-se num estigma, e os incriminados podiam perder tudo - mal-grado o papel que desempenhassem na sua comunidade ou a sua participação (fosse ou não por cumprimento do mundo) nos ritos da Santa Madre Igreja: Nuno de Brito Alão era membro de diversas confrarias religiosas da Pederneira e Nazaré; o filho, Nuno da Silva, era cavaleiro da Ordem de Cristo, e mesmo o improvável Manuel de Brito Alão não se salvou de ser alvo de suspeição e (inconsequentes) rumores maliciosos de práticas judaicas.

          Sempre que se fala desta família, sobretudo a propósito do célebre Manuel de Brito Alão, é comum mencionar-se a antiguidade de ambos os nomes de família; os Britos, e os Alões ou Alloens (como no Nobiliário de Famílias de Portugal, a obra de referência de Felgueiras Gaio). Mas preferia referir uma informação veiculada por Meyer Kayserling na sua História dos Judeus em Portugal (editora Perspetiva, São Paulo, Brasil, 2009), que nos diz que o apelido Brito era um apelido comum e popular entre os judeus sefarditas porque a raiz da palavra, B-R-T significava aliança, pacto - e a circuncisão ou aliança da circuncisão, por exemplo, símbolo do pacto sagrado entre Deus e o povo escolhido, denominava-se Brit milá (ברית מילה, em hebraico). Devido à prisão de familiares de Nuno de Brito Alão, ambos os apelidos, Brito e Alão, encontravam-se comprometidos e sob suspeita aos olhos da comunidade, motivo que explica a razão pela qual os filhos de Nuno de Brito Alão e Maria da Silva (para iludir futuras acusações e perseguições) foram batizados com o apelido cristão-velho de Maria da Silva. O que não adiantou muito, devido ao curso dos acontecimentos.

          O processo de Nuno de Brito Alão (Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 9078) encontra-se digitalizado pela Torre do Tombo, e quando aludirmos a uma página específica desse processo, associaremos ao fólio do processo original, o número da página digitalizada com as letras Img (de imagem).


O PROCESSO DE NUNO DE BRITO ALÃO




1 - A prisão e as culpas

          A 16 de Junho de 1670, a Inquisição decreta a prisão de Nuno de Brito Alão por culpas de judaísmo, prisão com sequestro de bens, ou seja, confisco de tudo o que possuía de seu. Nascido e criado na vila da Pederneira, Nuno de Brito Alão fora capitão de ordenança e, na data em que se inicia o seu processo, vivia de sua fazenda na Quinta da Cavalariça, termo de Alfeizerão. É um Familiar do Santo Ofício da cidade de Leiria, Inácio Ribeiro, quem o conduz das Caldas da Rainha, onde ele se encontrava em tratamento, para o Tribunal da Santa Inquisição de Lisboa, entregando-o ao alcaide dos cárceres dos Estaus, Agostinho Nunes de seu nome (Auto de Entrega).

          A denúncia original derivava da confissão de judaísmo de dois cristãos-novos. primos de Nuno de Brito Alão: Lourenço de Sá, bacharel em Leis e morador em Montemor-o-Velho (preso a 30 de Dezembro de 1665), e a confissão da sua irmã, Dona Madalena de Sá (prisão a 5 de Março de 1666), que era religiosa professa no mosteiro de Semide, em Coimbra. A prisão destes dois irmãos deve ter resultado da confissão ou confissões de outros alegados cripto-judeus, mas este documento não nos elucida quem terá sido. O pai de Lourenço de Sá, Francisco da Silva, fora antes disso acusado e condenado por judaísmo pela Inquisição mas, como não o tivessem conseguido prender ou capturar, foi queimado em efígie num auto-de-fé na cidade de Coimbra. Estes dois irmãos confessam as suas culpas de judaísmo (crença na Lei de Moisés e cerimónias judaicas...), associando a essas culpas Nuno de Brito Alão, o seu filho Nuno da Silva e um primo do primeiro, António de Figueiredo de Sousa, que é preso pouco depois em Coimbra, a 23 de Janeiro de 1667.

          As culpas contra Nuno de Brito Alão iriam acumular-se a partir daqui com as denúncias de outros implicados, presos também nas Inquisições de Lisboa ou Coimbra: António de Figueiredo, D. Isabel Loba, Cristóvão de Sá (filho de Lourenço de Sá), D. Isabel de Brito, João d'Eça e Maria de Brito, primos de Nuno de Brito Alão. Numa segunda fase do processo, três anos decorridos sobre a sua entrada nos Estaus, a culpa de Nuno de Brito Alão seria agravada pelas confissões das três filhas: Mariana da Silva e Sousa, Catarina da Silva, e Joana da Silva.

2 - Inventário e Genealogia

          A 9 de Julho de 1670, Nuno de Brito Alão, natural da Pederneira e morador na quinta da Cavalariça. a uma légua e termo da vila de Alfeizerão, é chamado à Mesa dos inquisidores, para uma audiência presidida pelo inquisidor João de Castilho. Prestou juramento sobre os Santos Evangelhos, em que pôs mão, disse o nome e a idade (53 anos) e foi-lhe perguntado se cuidou em suas culpas e as quer confessar nesta Meza, para descargo de sua consciençia, salvação de sua Alma e bom despacho de sua cauza?! Nuno de Brito respondeu que não tinha culpas que confessar. Perante a sua resposta, iniciou-se a indagação sobre os seus bens, ou inventário (fólio 40, Img 78):
Perguntado se tem alguns bens, assim de raiz como moveis, ouro, prata ou dinheiro, dividas ativas ou passivas, acções ou pertenções. 
Disse que tinha hum juro no Almoxarifado das Cizas da Cidade de Leiria de cento, trinta e nove mil, e trezentos e sessenta reis, essas estão a dever os dous quartéis que se acabarão de vencer por São João proximo passado [sic - termo contratual].
Que nos Coutos de Alcobaça termo de Alfeizerão tinha huma quinta que se chama da Cavallariça, que consta de cazas, terras de pão e vinha, e tudo paga de foro ao convento de Alcobaça doze tostões cada anno, elle está a dever do dito foro o anno que acabou pelo natal proximo passado, e este que vai correndo. Outrosy à mulher de António Fernandes Baião, moradora em Evora, coutos de Alcobaça, tinha epotecado metade da ditta quinta por mil cruzados lhe havia dado a [à] razão de juro de seis e quatro por cento, e a bem do principal lhe está a dever os redittos de quatro anos, como constará das quitações que bacharem. E a dita metade da quinta tinha obrigado a António de Britto Freire, morador em Cós, por outros mil cruzados que lhe havia dado a Razão de juro de seis e quatro por cento, e lhe está a dever o anno que acabou em Janeiro próximo passado, e desta divida se lhe há de rebater as decimas que o ditto home lhe não descontou do juro de todos os annos que lhe pagou.  
Item mais, na villa de Pederneira, na rua da Praça tinha humas cazas em que de prezente mora o Padre António de Sousa, Reitor de Nossa Senhora da Nazareth, ao qual as emprestou, sem por isso lhe levar aluger.  
Que de moveis tinha hum prato e jarro de prata e duas ou tres gargantilhas de ouro, huma cadea tambem de ouro, hum quiavo, huma salva e huma palangana, tudo de prata, e todas estas peças estarão em caza de João Bautista, Prior de São Martinho e Vigário em Alfeizerão, nos coutos de Alcobaça, a quem os tinha dado em penhor de cem mil reis que lhe tinha dado a razão de juro e as peças que erão constavão mais ao certo da escritura que fezerão e ditto juro, se achará nas nottas de Antonio Correa, escrivão em Alfeizerão – e que dos mais [bens] moveis não pode dar particular razão, por serem poucos, e de pouco valor, e só os necessários de seu uso. 
          À conta dos seus bens, Nuno de Brito Alão possui diversas dívidas pendentes - como a dívida a um mercador de Lisboa contraída na feira de quinze de Agosto na vila das Caldas, a dois moradores da Pederneira (um deles que chegara há dois anos de Angola), vinte e seis e vinte e dois mil réis; ao vigário da igreja de Famalicão, junto à sua Quinta, o dinheiro com atraso de dois anos pelas missas que mandava dizer todas as segundas-feiras; outra ainda, não declarada pelo réu mas anotada na margem da folha, de trinta alqueires de trigo que devia ao padre Manuel de Santa Maria, almoxarife das Caldas.

          No dia seguinte, aos dez dias do mês de Julho de 1670, Nuno de Brito Alão é de novo chamado à Mesa dos Estaus, a Caza primeira das audiências da Santa Inquisição. Os inquisidores voltam a perguntar-lhe se não tem culpas a confessar e, perante a mesma negativa, fazem as perguntas ordinárias de genealogia (fólio 43, Img 85), que transcrevo na íntegra, realçando a negrito algumas passagens. Note-se que Nuno de Brito Alão, como era método nos processos do Santo Ofício, declara, não apenas os parentes que conhece e a sua quota parte de sangue judeu, mas também aqueles que foram ou estão a ser julgados pelo Santo Ofício, e as suas próprias "habilitações" no seio da igreja católica.


Disse que elle se chama Nuno de Britto Alão, meyo Christão novo, por ambas as vias, que vive de sua fazenda, natural e morador na Villa da Pederneira, de cincoenta e tres annos de idade. 
Eque he filho de Duarte de Britto Allão, meyo X. novo [cristão-novo], que vivia de sua fazenda, natural de Pederneira, e de Helena Ayres Correa, meya X. nova, natural desta cidade, ambos defuntos. 
Não sabe como se chamavão seus Avós paternos nem maternos. 
Por via paterna teve alguns tios, e só sabe o nome a tres, a saber, Manoel de Britto Alão, clerigo do habito de São pedro e Abbade de São João de Campos, junto á Galiza, Christovão de Britto, que falleceo solteiro, e serviu nas armadas deste Reyno no posto de capitão, Lourenço de Britto, que foi cazado com Donna Brittes Soarez, X. velha, de quem teve Manoel, e outro mais a quem não sabe o nome, e ambos morrerão na India, solteiros, Frei Lourenço, não lhe sabe o sobrenome, que falleceu sendo Religioso do Carmo no Maranhão. 
Por via mãi, digo, pela mesma via paterna, teve mais duas tias já defuntas, que se chamarão Guiomar de Britto e Dona Izabel de Britto. 
A ditta sua tia Guiomar de Britto foi casada na Pederneira com Martim Luís, X. Velho, escrivão da Camara da mesma Villa, de quem teve o Padre Pedro de Britto, Beneficiado na Igreja Matriz da Pederneira, Francisco de Brito, que vivia de sua fazenda, cazado com Luíza de Souza, X. Velha, António de Britto, cazado com Inez Bayoa, X. vellha, e todos são defuntos. A ditta sua tia Dona Isabel de Brito foi casada na cidade de Coimbra com António de Figueiredo, X. velho, de quem teve João de Figueiredo, já defunto, que foi cazado não sabe com quem, Dona Antónia de Brito, também defunta, que foi casada com o dito seu primo Antonio de Brito, de quem foi segunda mulher, de quem teve Martim Luis, já defunto, que foi cazado em Angola não sabe com quem, António de Figueiredo, que ainda vive em Angola, onde he cazado não sabe com quem. Teve mais a dita sua tia Dona Izabel de Brito, Dona Francisca de Souza, que foi casada em Alcobaça com Antonio Gomes Lobo, X. Novo, que vivia de sua fazenda, Dona Isabel de Brito, viúva de Adrião Ferreira, X. velho, que vivia de sua fazenda, Dona Mariana de Brito, viúva de Francisco de Abreu, X. Velho, capitão da ordenança. 
Por via materna teve huma tia já defunta, não sabe como se chamou, nem com quem foi cazada, e teve dous filhos, tambem defuntos, hum deles se chamou Jeronimo Correia, e outro Fernão de Ayres, ambos foram casados não sabe com quem. 
Elle, declarante, teve hum irmão, que faleceu há nove annos e se chamou Antonio. 
He casado com Dona Maria da Sylva, X. Velha, da qual tem Nuno da Silva, de vinte e dous anos de idade, Catarina da Silva, de dezoito, Bernarda de dezassete, Joanna de quatorze, Mariana de dez, todos solteiros, outros mais que falecerão de pouca idade.
He christão bautizado, e o foi na igreja Parochial da Villa da Pederneira, pelo Vigario que então era fulano Carvalho, e forão seus padrinhos Martim Luis da Costa e Dona Brittes Soarez.
 
He crismado, e o foi na ditta Igreja, não sabe por que Bispo, e foi seu padrinho o Abbade Manuel de Britto, seu tio. 
Tanto que chegou aos annos de discrição. Hia ás Igrejas e fazia as maes obras de christão, e logo foi mandado persignar e benzer, e disse as orações do Padre Nosso, Ave Maria, creo em Deos Padre, Salve rainha, os Mandamentos da Lei de Deos e os da Santa Madre Igreja. 
Sabe ler e escrever, não estudou sciencia alguma, nem tem ordens. 
Não saiu fora deste Reino, e nelle esteve na Pederneira, em quase todos os lugares dos coutos de Alcobaça, e algumas vezes nesta cidade [Lisboa]. 
Não foi preso nem penitenciado pelo Santo Ofício, e de seus parentes o forão sua Mãe e suas primas Dona Antonia de Brito e Dona Francisca de Souza, Dona Mariana de Figueiredo, e de presente esta ainda presa sua prima Dona Isabel de Brito. 
Perguntado se sabe ou suspeita a cauza porque foi prezo?
Disse que entende que seria (?) prezo por testemunhos falsos de seus inimigos.
Foi-lhe dito que elle foi preso por culpas que commetteo, cujo conhecimento pertence ao santo Offício, e lhe fazem a saber que esta meza se não manda prender pessoa alguma sem preceder bastante informação, e que esta houve para elle declarante ser prezo. Pelo que o admoestão da parte de Christo Senhor Nosso, trate de dezencarregar sua consciençia, e confessar inteiramente a verdade das suas culpas, não impondo sobre sy nem sobre outtrem testemunho falso porque isso he o que lhe convem para descargo de sua consciencia, salvação de sua Alma, e mereçer a misericordia que a Santa Madre Igreja manda conceder aos bons e verdadeiros confitentes. E por dizer que não tinha culpas que confessar nesta Meza, foi outra vez admoestado em forma e mandado a seu carcere. E assinou com o ditto Senhor Inquisidor. Filipe Barboza o escrevi [assinaturas de João de Castilho e Nunno de Britto Allão].

3 - O marasmo do processo e as (três) confissões. O regresso a casa.

          A 9 de Outubro de 1670, Nuno de Brito é de novo chamado à Mesa (fólio 46 v./ Img 92), e perante o inquisidor Fernão Correia de Lacerda, é de novo perguntado pelas suas culpas de forma pormenorizada, e o réu nega tudo e é admoestado pelos inquisidores. O mesmo se passa a 20 e a 27 de Outubro. Por conseguinte, é-lhe lido o libelo que resume as culpas de que é acusado, mas neste libelo, como em todo o processo, o réu nunca chega a saber quem o acusa ou a data a que os supostos factos se reportam; e tudo é descrito de forma genérica: Que o Reo se achou em outro certo lugar do dito tempo a esta parte com certa companhia [comp.ª] da sua nação, e onde se deram conta e declararam...

          Perguntado pelo que tem a dizer do teor do libelo, Nuno de Brito declara que, do que ali ouviu, confirmava que era cristão batizado e que já fora admoestado na mesa, mas contesta tudo o mais pela negativa. Perguntado se tem defesa sua a vir (a apresentar) e se quer estar com um procurador para a formar, Nuno de Brito responde afirmativamente. Os inquisidores dizem-lhe então que, para esse efeito, costumava ali trabalhar o licenciado Francisco Soares Nogueira, e se o réu o queria para seu procurador. Nuno de Brito aceita.

          O licenciado Francisco Soares Nogueira presta juramento como procurador do réu e inicia a sua defesa. Nela, argumenta-se que o réu segue os preceitos da igreja, ouve missa e comunga e assiste a todas as obras de caridade que pode; e como demonstração, lembra-se que o reo he irmão da Mizericordia da villa da Pederneira aonde foi Provedor tres annos continuos, e he Irmão de S. Antonio e S. João, confrarias pobres, nas quais fazia grandes despezas, e da Confraria de N. Sª do Rozario e de N. Sª da Nazaret, e de todas as mais que hão na mesma villa, assistindo nellas com grande piedade, e gastando muita fazenda em seu serviço. Também se apontam testemunhas abonatórias: O padre Reitor de Nossa Senhora da Nazaret, Antonio de Souza Coelho, morador na villa da Pederneira; o padre Pedro Fernandes Cascão; o Padre Pedro Luís, coadjutor; o lecenceado Manoel Nunes, clerigo e pregador; Manoel Tomaz Pereyra, cavaleiro do Habito de Aviz; o filho deste Antonio Pereyra da Costa, cavaleiro do habito de Cristo; Izabel Teixeira, mulher de Manuel Luís, trabalhador; Catherina de Almeyda, que nunca casou, e todos são moradores na ditta Villa da Pederneira.

          A 8 de Agosto e a 9 de Setembro de 1671, os inquisidores chamam de novo o réu à mesa e pressionam-no com novas admoestações.

          Finalmente, o procurador apresenta as contraditas da defesa, e as testemunhas que poderiam ser ouvidas a seu respeito. As contraditas representam a impugnação das testemunhas de acusação do réu mas, nestes processos e neste simulacro de justiça, o réu e o seu procurador desconhecem por completo quem são os acusadores e, por isso, o réu limita-se a esgrimir no escuro: apresenta nomes que pensa poderem tê-lo acusado, e aventa hipóteses que expliquem os motivos porque esses supostos acusadores teriam mentido aos inquisidores a seu respeito. Por exemplo, e aí Nuno de Brito acerta, entre as contraditas, é apresentado o nome de António de Figueiredo, com o qual o réu se desentendeu por causa de um cavalo que o primo lhe pedira emprestado para ir da Pederneira a Coimbra, sem nunca o ter devolvido; e logo avança com o nome do filho deste, João de Figueiredo, que avisara Nuno de Brito que o pai, António de Figueiredo, o denunciara à Inquisição mas que, por sua vez, lhe queria mal porque Nuno de Brito nunca lhe agradeceu ou recompensou pelo aviso, tendo alegadamente ido de forma furtiva à quinta da Cavalariça para lhe causar dano.

          É um processo verdadeiramente kafkiano, que resultava muito proveitoso e eficaz para a Inquisição, porque, tal como nas confissões, enredava em acusações e suspeitas outras pessoas que muitas vezes não tinham nada a ver com o que fora apurado ou averiguado.

          O processo arrasta-se. Nuno de Brito é admoestado repetidamente, mas continua a lutar pela sua causa. A 13 de Junho de 1673, o seu procurador apresenta mais contraditas, com novas testemunhas; e a 30 de Agosto, perante o inquisidor Bento de Beja de Noronha, Nuno de Brito Alão reafirma que não tinha culpas algumas que confessar porque era e fora sempre bom, fiel e católico cristão.

          No entanto, menos de uma semana depois, a 4 de Setembro, Nuno de Brito Alão faz saber aos inquisidores que deseja confessar as suas culpas (fólio 141/Img 281). A causa dessa renúncia é compreensível. Nuno de Brito Alão é um homem doente no cárcere, envolvido num processo sem solução aparente em que a única verdade válida é aquela que os inquisidores entenderem como tal.

          Recebido em audiência, Nuno de Brito Alão é admoestado que pois tomara tão bom conselho como era o de querer confessar voluntariamente nesta Meza suas culpas, lhe convinha muito traselas todas à memoria, e dizer inteiramente a verdade dellas, e todas as pessoas com quem as comunicou, ou estas sejão vivas ou mortas, presas, soltas, reconciliadas, ausentes deste Reyno ou nelle residentes. Nuno de Brito confessa as suas culpas de judaísmo e implica outros participantes nesses ritos judaicos tidos em casas da Pederneira ou na sua própria quinta - todos eles seus parentes e alguns já presos pela Inquisição: António Gomes Lobo, a sua mulher Francisca de Sousa, e a filha de ambos, Isabel Loba, Lourenço de Sá e Dona Madalena de Sá, António de Figueiredo e os seus filhos; Francisco de Brito, Luísa d'Eça e João d'Eça, os primos António de Brito, Isabel de Brito e Dona Mariana de Figueiredo; e o seu próprio filho, Nuno da Silva ("hóspede" dos Estaus desde 1671). A confissão-denúncia segue o modelo habitual: declararam que para salvar sua alma, deixasse a Fé de Christo Senhor Nosso, e cresse, e vivese na Ley de Moises, e que nas Orações que rezasse não dicesse Jesus no fim, guardasse os sabados de trabalho vestindo camisa lavada, ou nova se a tivesse, mandasse alimpar os candieiros e porlhe torcidas novas e azeite limpo, e que quando lhe passasse algum defunto pela porta lançasse fora a agoa que tinha nos cantaros para beber, cuspisse nas sombras dos Christão Velhos, que se confessasse e comungasse por cumprimento do mundo, e que não comesse Lebre, coelho nem peixe de pelle.

          A confissão não traz o desfecho imediato do processo, porque os inquisidores não se encontram satisfeitos com o que ele revelara até então. Admoestam-no novamente e intimidam-no, afirmando que haviam aparecido mais provas de justiça contra si, que fazem publicar. Por outro lado, não neste processo, mas no do seu filho, Nuno da Silva, é indicado que Nuno de Brito Alão terá tido tormento (1), ou seja, que fora submetido a tortura.

          A 17 de Novembro de 1673, diante do inquisidor Pedro Mexia de Magalhães, Nuno de Brito confessa o que mais lembrava de suas culpas, e denuncia também Guiomar de Brito ou de Figueiredo, Antónia de Sousa, e Maria Josefa; e António Coelho, natural de Alfeizerão e morador em Leiria onde era meirinho da correição da cidade.

         Os inquisidores ainda não se mostram satisfeitos e, no dia seguinte, dia 18, em nova audiência, Nuno de Brito Alão associa aos ritos judaicos as suas filhas: Catarina da Silva, Bernarda da Silva, Mariana da Silva (ou Mariana de Jesus) e Joana da Silva (Bernarda da Silva havia já falecido, Catarina encontrava-se já nos Estaus; e Mariana e Joana da Silva tinham sido presas no dia 8 desse mês).

          É pronunciado o libelo contra Nuno de Brito Alão; e a 2 de Janeiro de 1674 (fólio 184/Img 367), publica-se o Termo de Ida e Penitência, que fixa as suas penas:
Termo de ida e penitencias
Aos dous dias do mez de Janeiro de mil seicentos e setenta e quatro annos, em Lisboa, nos Estaos, caza do despacho da santa Inquisição, estando ahi em audiência de manhã os senhores inquisidores, mandarão vir perante sy a Nuno de Britto Alão, reo contheudo nestes Autos, por constar estava instruido, confessado e sendo presente lhe foi ditto, que elle não torne a commetter as culpas porque foi prezo, e processado nesta Inquisição, nem outras semelhantes, porque será castigado com todo o rigor do Direito, e que trate de com sua vida e exemplo, dar mostras de fiel catholico christão, communicando com pessoas de quem possa aprender da catholica doutrina e apartandosse dos que o podem perverter; e que neste primeiro anno se confortará nas quatro festas principaes della, a saber, Paschoa da Resurreição, do Espirito Santo, Assumpção de nossa Senhora e Natal, de que mandará certidão a esta Meza, sem cuja licença não comungará, e que no mesmo anno rezará em cada semana, hum Rozario á Virgem Nossa Senhora, e em cada sexta feira cinco Padre Nossos, cinco AveMarias em honra das cinco chagas de Christo, e que cumpra o que prometteo em sua abjuração, e o que se conthem na carta que lhe será dada, e que lhe assinão por carcere a villa da Pederneira, onde continuará na Igreja que foy sua freguesia, todos os Domingos e Dias santos á Missa ___ e pregação quando a houver com seu habito penitencial, que sempre trará sobre suas vestiduras, o que tudo elle prometeo cumprir sob o cargo do juramento dos Santos Evangelhos que lhe foi dado. De que fiz este termo por mandado dos ditos senhores Inquisidores. Filippe Barboza o escrevi.
          Nuno de Brito Alão integra o auto-de-fé de 10 de Dezembro de 1673 (que se realizou no Terreiro do Paço, em Lisboa), onde faz a abjuração pública e ouve a sentença de joelhos como os restantes condenados. Depois do auto-de-fé, transita dos cárceres dos Estaus para os da vila da Pederneira, como havia sido determinado pela sentença.
          Já com ele preso na Pederneira, a esposa, Maria da Silva, faz uma petição à inquisição nestes termos:

                                                                                             Illmos. Inors.[Ilustríssimos Inquisidores]
Diz Dona Maria da Sylva, mulher nobre, christam velha, e mulher de Nuno de Britto Alam, que sahio reconcilido neste Auto proximo paçado em 10 de Dezembro de 1673; que ella persuadida dos pios conselhos d. alguns Religiozos, a respeito de tornar a recolher em sua caza ao ditto Nuno de Britto Alam seo marido, suppostas as enfermidades, que padece, eser hum homem aleijado, e estar em suma mizeria, padeçendo muitas [m.tas]enfermidades nesta sorte [?]; se rezolve por força dos dittos conselhos, e tam religiozos, e obra de charidade, que nisto julga fazer, a reçeber em sua caza ao ditto seo marido; e pª. o poder fazer com algum credito.
          A decisão dos inquisidores é positiva: Illma, Sª. queira mandar tirar o habito penitencial ao ditto seo marido Nuno de Britto Allam, poiz só tirandoselhe o reçebera em sua caza, e não d.’outra maneira: atentando que he huma mulher christam velha e nobre.

          Abaixo da mensagem, surge a rubrica E. P. Mg. – o Mg. alusivo talvez a Pedro Mexia de Magalhães ou ao inquisidor Manuel de Magalhães de Meneses, que também assina alguns documentos do processo. Mais abaixo a anotação Assine esta petiçºao e torne com seu sinal Reconhecido por Tabelião pub.co Lxª 4. de maio de 674.

          Depois de cumpridas as formalidades, e na data de 30 de Maio de 1674 (fólio 189), Nuno de Brito Alão é chamado pelos inquisidores, e informado por estes do seu parecer favorável à petição da esposa para o acolher em sua casa, ordenando que se lhe tirasse o hábito penitencial; comprometendo-se então Nuno de Brito a cumprir as penitencias espirituais e a não sair do reino sem a licença da Mesa. As partes assinam este documento final.

          Nesta fase, deverá ter sido escrita a anotação que se lê na folha de rosto do processo: 

Informados que se lhe tire o habito á petição de sua m.er.

4 - A doença de Nuno de Brito Alão

          Os problemas de saúde de Nuno de Brito Alão são mencionados em diferentes documentos do processo, e parecia serem frequentes as suas estadias nas Caldas para tratamento. Além da alusão no auto de entrega; Mariana de Jesus da Silva, no seu depoimento, diz que o pai lhe falou da Lei de Moisés quando se encontravam na vila das Caldas em casas em que estavam pousados. Nas contraditas, também é dito que João de Figueiredo, querendo prevenir Nuno de Brito Alão que a Inquisição podia estar no seu encalço, procurou-o e foi às Caldas, onde o Reo se estava curando.

          Mais elucidativa, parece ser a petição de Maria da Silva, que fala de enfermidades que o marido padece e ser este um homem aleijado.

          De toda a forma, quem seguir este processo não pode deixar de notar que a assinatura de Nuno de Brito Alão diverge muito de uns documentos para outros. Nas duas primeiras assinaturas, mantém o apelido Allão, mas depois prescinde dele, e a própria assinatura deforma-se e estiola-se num lamento caligráfico.

          Seguindo essa impressão, perguntei a uma grafóloga profissional, Margarida Neto Macedo (2), se aceitaria analisar essas assinaturas de Nuno de Brito Alão e emitir um parecer. Margarida Macedo, amavelmente e com vivo interesse, aceitou o repto (e aqui endereço-lhe os meus agradecimentos por isso), frisando, no entanto, os condicionantes dessa análise: o de não ter outros textos escritos pelo punho de Nuno de Brito Alão, e o de estudar a partir de páginas fotografadas e não do próprio original em papel. Inteirei-a de alguns pormenores gerais do processo (ela preferiu não ter muita informação à partida, para ser mais independente na sua análise da letra), e transmiti-lhe duas páginas aleatórias do processo para ela se inteirar da forma como se escrevia na época e um ficheiro com dez amostras da assinatura do réu, dispostas por ordem cronológica: as duas primeiras assinaturas do réu no processo, e as restantes oito recolhidas ao longo do processo até à sua conclusão. Uma análise mais profunda poderia eventualmente ter sido realizada tendo como objeto todas as assinaturas de Nuno de Brito Alão no seu processo (que andará perto das trinta), mas aqui a lacuna e a falha são da minha inteira responsabilidade. A análise de Margarida Neto Macedo aos elementos que lhe foram transmitidos, e que transcrevo na íntegra, foi a seguinte:
A escrita de Nuno de Brito Alão revela uma mente activa, com boa capacidade de análise e discriminação e uma forte necessidade de captar o essencial. Motivado por um sentido prático e realizador, era pessoa diligente e escrupulosa que gostava de finalizar um trabalho bem feito. Contudo, mantinha a supremacia da lógica sobre o senso comum e concebia a vida a partir da sua concepção ideal, inspirando-se em princípios e valores.Tinha um instinto protector para com os demais, sendo pessoa emocionalmente contida. Na sequência temporal das dez assinaturas analisadas, as duas primeiras indicam um abalo emocional que pode corresponder a um estado de sobressalto e de choque que se repercute no equilíbrio psico-somático, havendo um agravamento na segunda, ou mesmo espasmos com fadiga muscular anormal. A partir da terceira assinatura até à nona, assiste-se a um crescendo de dificuldades motoras que indicam uma lesão na medula espinal. Na última assinatura encontra-se uma ligeira recuperação do estado motor, mas surge um estado mental de reservas e cautelas obsessivas.

Notas:
(1) No processo de Nuno da Silva pode ler-se, e cito: «em os quatro de Setembro de 1673 [Nuno de Brito Alão] começou a confessar Suas culpas e disse deste Reo o seguinte; e por não satisfazer, foi segunda vez acuzado, e lhe foi feita publicação de mais provas de justiça a que não veyo com Contradittas. Tem assento de tormento, e neste estado está seu Processo» (Processo de Nuno da Silva, fólios 21v.-22, Img 46-47).
O assento de tormento (Regimento... de 1613, XLVII) especificava qual o tormento que os deputados e inquisidores haviam decidido que o réu sofresse: «o género de tormento que se ha de dar, e se hade ser esperto, ou não, e quantos tractos hade haver».

(2) Margarida Neto Macedo, licenciada em Filosofia e ex-docente do ensino secundário, dedica-se desde 1989 ao estudo e aplicação da Grafologia, sendo palestrante e prestando serviços a empresas e aconselhamento pessoal. O seu trabalho articula-se em torno do blogue Letra Aberta e da sua página no Facebook.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

INQUISIÇÃO - algumas notas relativas aos processos por judaísmo


          Cristão-novo é o termo comum para designar os judeus portugueses. No reinado do rei Venturoso, os judeus são obrigados a converterem-se à religião católica ou a saírem do país caso persistissem na sua crença. Com Dom João III, o estabelecimento da Inquisição em Portugal irá criar os meios institucionais para a repressão da heresia ou heterodoxia.

          Todo o cristão-novo era suspeito, e a todo o tempo, de ser um cripto-judeu ou um cristão judaizante, de prosseguir com as suas crenças e práticas mosaicas a coberto dos ritos e cerimónias da Santa Madre Igreja. No que toca ao judaísmo, o preconceito social e a ação da Inquisição possui, inegavelmente, um fundo de discriminação racial. Nos processos por judaísmo, existe um capítulo designado por Genealogia (1), onde se listam os ancestrais do réu até aos avós paternos e maternos, para esclarecer quem, entre eles, é cristão-velho e cristão-novo, e a sua quota-parte de sangue judeu; se é 1/2 cristão-novo, 1/4 de cristão-novo, 1/8 de cristão-novo, ou apenas parte de cristão novo se a sua origem judia for indeterminada, ou estiver esbatida pelo acumular de gerações e uniões. O cristão-novo, e a expressão consta dos processos, possuía nas veias sangue infecto de judeus.

          Para a Inquisição, bastava uma denúncia de outro cristão-novo, ou as suspeitas levantadas por um elemento da comunidade em que vivia, para alguém ser preso por judaísmo, quer fosse ou não, efetivamente, um cripto-judeu. Apelar para um justo julgamento ou uma apuramento imparcial da verdade dos factos era um via condenada ao fracasso desde o início, pelo que confessar o seu próprio judaísmo, e denunciar outros (a começar pela família) pelo mesmo crime era a forma mais rápida de abreviar o processo e de poder contar com a misericórdia e a benevolência dos inquisidores, que se traduzia no teor e na gravidade das penas. Famílias inteiras eram presas por este meio nos cárceres da inquisição, e a confissão de cada um dos seus membros avolumava as culpas e as acusações (descritas sob a epígrafe Outra culpa contra este reo) que pendiam sobre os seus familiares que se encontravam na mesma situação. Na sua ânsia de granjear a benevolência dos inquisidores, as denúncias visavam amigos e relações fora do círculo familiar, e a acção da inquisição progredia de forma tentacular com novas prisões e processos. Os documentos que envolvem a família dos Brito Alão são um bom exemplo disto.

          Os acusados que eram presos pela Inquisição eram encaminhados, consoante a região de proveniência, para uma das três sedes do Santo Ofício que existiam em Portugal: Lisboa (os Estaos, no Rossio), Coimbra ou Évora. O funcionamento dessas prisões e tribunais encontrava-se detalhadamente descrito nos Regimentos da Inquisição (houve quatro Reginentos sucessivos: 1552, 1613, 1640 e 1774 - os de 1613 e 1640 são muito semelhantes e foram publicados sob a égide de D. Pedro de Castilho e D. Francisco de Castro, respetivamente ), contemplando todos os aspetos e situações possíveis, desde as fases por que passavam os processos, de que forma se empregava os tormentos (nome suave para a tortura), os títulos e os cargos da estrutura, ou como se deveria proceder quando alguém se matava no cárcere ou nele enlouquecia. A Mesa de audiência dos réus é descrita de tal forma (Regimento de 1640, Título II) que quase a conseguimos visualizar:
Em cada Inquisição , deverá existir uma Casa para a Mesa do Despacho, que estará em lugar tão resguardado que fora dele não se possa ouvir coisa alguma, estarão nessa casa as cadeiras rasas e de que forem necessárias, e um banco para o preso se sentar; e estará armada no Inverno com panos de ras e com guadamecis no Verão (2).
Sobre um estrado de altura de quatro dedos haverá uma mesa coberta com seu pano de damasco carmesim, e por cima couro negro, e será capaz de ter ao menos cinco cadeiras de cada parte, e nesta mesa haverá três gavetas com chaves diferentes, em que cada um dos Inquisidores possa recolher os seus papéis, mas não meterão nela os seus cadernos, porque estes se hão-de recolher sempre ao Secreto.
Nesta Mesa estará um Missal para dar juramento, uma tábua com a oração do Espírito Santo, os Regimentos do santo Ofício, e Fisco, o Colectório das Bulas Apostólicas, e privilégios da Inquisição, tinteiros de prata bastantes para os Ministros que na mesa assistem, e uma campainha, e na parede que fica defronte do lugar em que os presos se costumam assentar, estará uma imagem de Cristo Senhor Nosso, de vulto, ornada com a decência que convém.

          A confissão ou declaração de culpa que lemos nos processos por judaísmo, não é uma declaração espontânea, pessoal, como a confissão que uma pessoa possa fazer de um delito que cometeu no passado. Essa confissão, como a delação de outros, que se serve dos mesmos termos, parece ser a repetição mais ou menos parcelar de uma minuta usada pelos escrivãos e notários do Santo Ofício, e que é composta, em regra, pelos seguintes elementos:
A crença na Lei de Moisés que era boa e verdadeira para a salvação das suas Almas, por cuja observância guardavam os Sábados de trabalho, vestindo neles camisa lavada, ou nova se a tinham [«em folha, e quando não as tinhão em folha, as vestião lavadas»], ou os melhores vestidos; começando na Sexta-feira à tarde, em que havia de concertar, ou mandar concertar, os candeeiros [ou «alimpar os candeeiros»], pondo-lhes azeite limpo, torcidas novas; cortava as unhas no mesmo dia, e no Domingo virava a camisa às avessas por desprezo do dia; passeando de noite em casa olhava para a sombra e lhe fazia reverência entendendo que nela se representava Moisés; quando lhe passava pela porta algum defunto [cortejo fúnebre] lançava fora a água que tivesse nos cântaros para beber e botasse farinha nas couceiras das portas; zombava dos cristãos velhos e lhes cuspia na sombra; fazia o jejum do dia grande que vem no mês de Setembro [Yom Kipur, ou Dia do Perdão], estando em todo o dia sem comer nem beber, senão à noite, e então ceava peixe e comia cousas que não fossem de carne; que não ouviam missa, senão por cumprimento do mundo; dissesse a oração do Padre Nosso sem Ámen Jesus no fim ao Deus grande; não comesse carne de porco, lebre, coelho nem peixe de pele [ou «sem escamas nem gordura»] e na panela das carnes mandava lançar gordura; que dormindo com cristãos velhos na cama lhes virasse as costas; comunicando estas coisas com pessoas de sua nação, apartadas da fé, com as quais se declarava por Judeu.

          Estas "culpas" de judaísmo fundem crenças hebraicas com preconceitos nascidos da aversão e ódio que lhes tinham muitos cristãos-velhos. No processo de Cristóvão Machado, é usada repetidamente uma versão abreviada desta confissão/denúncia. A forma mais extensa da confissão surge muitas vezes na sentença que encerra o processo.

          Uma acusação de judaísmo implicava a prisão da pessoa incriminada nos cárceres secretos da Inquisição. O documento de 1640, Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, denota algum critério no acondicionamento dos presos nos cárceres, nomeadamente, o cuidado de juntarem apenas mulheres na mesma cela; ou a preocupação de isolarem o encarcerado, ou seja, um preso não poderia estar na mesma cela ou corredor que outro membro da sua família, ou de uma pessoa residente na mesma terra ou acusada do mesmo delito. Mas estando ali presos durante anos a fio (há casos de encarceramentos que duraram catorze anos), era natural que conseguissem comunicar uns com os outros de alguma forma, e derivará daí a acusação recíproca que se regista entre pessoas da mesma família: estando o familiar já nos cárceres: a acusação não o prejudicaria, e contribuía para o abreviar do processo.

          A prisão de alguém por judaísmo pressupunha a sua imediata culpabilidade, pelo que, quase sempre, essas pessoas eram presas com sequestro de bens - perdiam todos as suas propriedades e valores, que eram confiscados por um Juiz do fisco da câmara.
          João Lúcio de Azevedo (História dos Cristãos-Novos Portugueses, Clássica Editora, Lisboa, 1989) publicou um excerto (que transcrevemos) das queixas dos cristãos-novos à Sé Apostólica (Aggravos dos Cristãos Novos), onde se relata esse confisco de bens, que antecede à situação de fome e privação reservada à família daqueles que eram levados para os cárceres da inquisição.

Em quanto dois familiares do Santo Ofício trazem publicamente o reo prezo plas ruas e lugares frequentados, e ordinariamente seguidos como em um triunfo, de grande multidão de gente, vai outro familiar avizar ao Juiz do fisco, ou outro ministro de justiça em falta do dito Juiz, para que vá a fazer inventario e confiscação dos bens da casa do preso, outros dois ou tres familiares ficão nella dispostos de maneira que se segue. Hum está á porta da rua e outro em cima em huma camara adonde guarda toda a família junta à vista, para que não possa entrar nem sair pessoa alguma, nem menos algum filho do prezo possa vestir outro vestido melhor daquelle que traz vestido, ou esconder alguma couza de valor, como ouro, prata, ou joias, ou couzas semelhantes. Chegado o Juiz do fisco faz tirar das orelhas, do pescoço, das mãos e das algibeiras da Mãi, da mulher, dos filhos, assim machos como fêmeas, do seu prezo, collares, aneis, joias, dinheiro que acaso tivessem em si, e neste estado se lanção todos fora de casa, nem menos permittem que os miseraveis se componhão com os vestidos com que erão costumados a sair à rua, nem lhe permitte que levem consigo alguma couza, lençoes ou outra roupa necessaria para o seu uso, nem lhes dá alguma sorte de dinheiro para viver, nem dos mantimentos que estão em caza pera se sustentarem. Depois, fazendo-se senhor da caza [o Juiz do fisco] e tomadas todas as chaves, começa com os seus ministros a fazer o inventario, que dura às vezes sinco ou seis mezes, e em todo aquelle tempo tem a porta da rua com travessas.

          Ironicamente, apesar de os acusados permanecerem nos cárceres até ao desfecho do processo, e de lhes serem confiscados os bens, não é raro encontrar-se, entre as penas que lhe eram imputadas, a sua obrigação de cobrirem as custas do processo.

          Outras penas comuns, sem mencionar a pena de morte (que não sucedeu nos casos que estudamos), era a participação nos Autos de Fé, onde confessavam publicamente as suas faltas, a transferência para os cárceres do concelho onde continuariam a cumprir pena por um tempo estipulado, o degredo ou as galés.

          A abjuração em forma que surge entre as penas, é um documento impresso que fica inserido no processo (imagem infra), completado com os dados do réu (ou ré) e por ele assinado, onde ele jura continuar a seguir a fé católica, e a revelar as heresias de que tiver conhecimento - o que poderia ser útil aos inquisidores em caso de reincidência.


Um exemplo de uma Abjuração em forma
          Um dos documentos que encerra o processo, com um nome algo sinistro, é o Termo de Segredo, outra folha impressa no qual o réu se compromete a guardar segredo sobre o que viu e ouviu dentro da prisão:
(...) sendo presente lhe foy dado juramento dos Santos Evangelhos, em que poz a mão, & sob cargo delle lhe foy mandado, que tenha muito segredo em tudo o que vio,& ouvio nestes carceres, & cõ ella se passou acerca de seu processo, & nem por palavra, nem escrito o descubra, nem por outra qualquer via que seja, sob pena de ser gravemente castigada, o que tudo ella prometteo cumprir.


O SAMBENITO

          O sambenito é o nome para o manto penitencial a cujo uso eram condenados os réus da Inquisição e que era formado por um escapulário que ostentava à frente e atrás uma cruz de Santo André, ou seja, uma cruz em forma de X. A cor do manto e da cruz, podiam variar, e esse manto podia por vezes ter outros motivos adicionais, como as chamas no sambenito daqueles que iriam ser queimados no auto-de-fé. Aos reconciliados, diz-nos o Regimento do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal, de 1613 (Capítulo 47), «mandarão prover de sambenitos de pano amarelo [cor da bolsa de Judas], com faixas de pano vermelho postos em aspa, para que os tragam assim como os levaram ao Auto-de-fé, e em suas sentenças de reconciliação se contêm».

          O sambenito parece ser anterior ao estabelecimento da inquisição, e representaria um traje envergado por aqueles que pretendiam expiar os seus pecados, e que era, para esse efeito, bendito por um religioso; de «saco bendito», segundo alguns autores, proviria o termo sambenito, depois aproximado ao de São Bento, reverenciado como triunfador sobre o Satã e o pecado.

          A cruz de Santo André possui uma simbologia mais obscura. Este discípulo de Cristo, prestes a ser martirizado, teria modestamente pedido para ser crucificado numa cruz em diagonal por não se sentir digno de morrer da mesma forma que Jesus. A sua cruz nas vestes de um penitente seria um sinal de dor e sofrimento, marcadamente diferente da cruz latina de Jesus, porque o penitente desviara-se, perdera-se, do caminho de salvação reservado a todos os cristãos, e apenas a penitência ou o sacrifício o poderia trazer de volta ao grémio dos abençoados pelo Altíssimo. E os condenados usarem nas vestes uma cruz diferente da cruz de Jesus evitava qualquer associação consciente ou subconsciente com o suplício e morte do Salvador.

          O manto penitencial perpétuo era o castigo reservado pela Inquisição aos cristãos-novos judaizantes, o estigma ignominioso que lhes era imposto para lhes recordar, e a todos os que o rodeavam, que haviam desprezado ou insultado a oportunidade de salvação que lhes havia sido dada com a conversão ao catolicismo.

          E o cumprimento dessa penitência do manto perpétuo era regulado atentamente pela estrutura inquisitorial. Os penitenciados que fossem achados sem o seu hábito perpétuo, seriam repreendidos na Mesa da Inquisição, e os Inquisidores dariam ordens para que houvesse Familiares ou pessoas que os vigiassem. E se fosse apanhado fora do lugar em que habitava sem o hábito ou com ele dissimulado por outras roupas, perderia «os vestidos, ou a cousa com que trouxer coberto o dito hábito». E as justiças seculares, achando os ditos penitenciados sem as ditas penitências deviam prendê-los e entregá-los aos inquisidores (Capítulo 61 do Regimento de 1613).


(gravura de Goya)

NOTAS:

(1) A inquirição sobre a genealogia era minuciosa e exaustiva, como se depreende das instruções do Regimento de 1613 (Título IV, 12): 
Na primeira sessão será perguntado pela sua genealogia, em forma, declarando donde é natural, como se chama, a idade e ofício que tem, e os nomes de seu pai, mãe e avós paternos e maternos, assim vivos vomo defunctos, e dos transversaes que se lembrar, e donde eram naturaes e moradores, e o officios que tiveram, e com quem foram casados, e se são vivos ou defunctos eos filhos que os ascendentes e transversaes deixaram, e quantas vezes foi casado, e os filhos que teve, ou tem, e de que idade são. E assim declarará de que nação é. e se elle, ou os ditos seus parentes, tem alguma raça de mouro ou judeu - e se lhe perguntará pelo decurso da sua vida, onde se ha criado e com que pessoas, se sabe ler ou escrever, e se aprendeu alguma sciencia,e se andou fora deste Reino, e em que partes esteve, e as pessoas com quem conversou e tratou, e se foi reconciliado, preso, ou penitenciado pelo Santo Officio, ou é neto de relaxado, e se sabe as orações de Christão, com as mais perguntas costumadas.

(2) O banco ou cadeira rasa era para os presos comuns. Os outros, e eram muitas as excepções, tinham direito a cadeira de espaldas, tal como pormenoriza o Regimento de 1613:
Dignidades, cónegos de Sés ou igrejas colegiadas, Provisores, Vigarios e Desembargadores dos Prelados e Relações Eclesiasticas, Priores de Convento ou Collegio, ou Abbades, ou Relligiosos, ou Priores ou Abbades de Igrejas Paroquiais, Fidalgos, Desembargadores, Corregedores, Juízes, Ouvidores, Vereadores ou Cidadãos das Cidade, ou os do governo de Villas notáveis, Doutores ou Licenciados por Universidade, e Bachareis formados pelas Universidades aprovadas, ou os que tem privilegio de Desembargadores, aos Secretarios d’El-Rei, Escrivão da Fazenda da Camara, assim d’El-Rei, como das Cidades ou Villas notaveis, ou pessoas nobres, e por tal conhecidas.

domingo, 5 de abril de 2015

O "Santo Ofício" e a vila de Alfeizerão


          Estamos a elaborar um singelo artigo sobre a perseguição movida pela Inquisição à família judia dos Brito Alão, que originou o encarceramento e condenação (por judaísmo e apostasia) de diversos membros da família que moravam na vila da Pederneira e na Quinta da Cavalariça, termo da vila de Alfeizerão. Este é um tema com diferentes leituras possíveis, que tentaremos abordar com algum critério e ponderação. No emmeio desse artigo em preparação, surgiram-nos outros documentos da Inquisição (quatro) em que o topónimo Alfeizerão era indicado, e são esses documentos que evocamos agora, superficialmente, neste texto. Qualquer um dos processos aludidos do chamado Santo Ofício, foi disponibilizado em formato digital pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo (como milhares de outros documentos da Inquisição, que abrangem processos, cartas, confissões, diligências e denúncias), num trabalho utilíssimo e gigantesco que sublinhamos e enaltecemos.

          Os quatro documentos em foco são algo diferentes entre si, e ilustram bem o ofício dos inquisidores. De um quinto processo da Inquisição (de grande interesse), sobre o pirata alfeizerense Pedro Fernandes da Costa, já aqui publicamos a transcrição feita por Casimiro de Almeida. Assinale-se, a título de curiosidade, que também a vila da Pederneira teve o seu pirata: chamava-se Álvaro Dias - nascido na Pederneira, foi capturado pelos piratas, acabando por se tornar num deles; com o novel nome de Solimão luta como artilheiro pirata até ser feito prisioneiro. É levado aos inquisidores sob a acusação de arabismo, mas as coisas correm-lhe bem: cumpre algumas penitências e é reeducado na religião católica. No final do processo (folha 16), atesta-se que ele está bem instruído nos mistérios da Santa Fé, e que comungara depois de se confessar na Igreja de São Roque, em Lisboa, a 29 de Maio de 1631.

1- JOANA FERREIRA  

          O processo de Joana Ferreira, desenrola-se nos anos de 1584 e 1585. Ela é natural de Alfeizerão, nascida no seio de uma família de cristãos-novos: João do Couto, sapateiro, e Beatriz Vieira. Sabemos pelas inquirições do processo que este sapateiro alfeizerense é órfão de pai e que a mãe se chama Inês do Couto, e que a sua esposa, Beatriz Vieira, é filha de Lionardo [sic] Vieira e Ana Ferreira.
          Joana Ferreira trabalha na Póvoa de Santa Iria, termo de Lisboa, como criada de um carpinteiro, Francisco Fernandes, cristão-velho. Presa aos vinte anos pela inquisição sob a acusação de «blasfémias contra o nome de Jesus», é condenada a integrar um auto-de-fé particular e à abjuração e penitência pública. 
          Francisco Fernandes, o carpinteiro de Santa Iria para quem Joana Ferreira trabalhava, é preso pouco depois (processo 4232 do Tribunal do Santo Ofício) com a acusação similar de blasfémias. Na prática, são dois processos separados sobre a mesma transgressão, já que a ré Joana Ferreira é confrontada também neste processo de Francisco Fernandes (pg.. 16), O carpinteiro dá corpo ao mesmo auto-de-fé que ela (realizado a 23 de Julho de 1585), e condenam-no a abjurar, a penitências públicas e a pagar as custas do processo. Os processos de ambos são conduzidos por Bartolomeu da Fonseca e pelo Inquisidor-mor do reino, D. Diogo de Sousa.


2- SILVÉRIO SALVADO DE MORAIS (diligência de habilitação de)

          Documento datado de 1627, representa uma diligência de habilitação de Silvério Salvado de Morais para Familiar do Santo Ofício. Nesta data, o candidato, que é natural da Guarda, desempenha as funções de alcaide-mor de Alfeizerão e reside em Alcobaça. Silvério Salvado de Morais é cavaleiro da Ordem de Cristo, e tem como abono o facto de o sogro, Francisco da Silva, ser irmão do inquisidor de Lisboa, o bispo Pedro da Silva de Sampaio (que ocupou o cargo entre 1617 e 1632, antes de rumar ao Brasil). 
          Grande parte deste processo (uns vinte fólios) encontra-se gravemente deteriorado mas, do que subsiste, percebe-se que a inquirição levantada pelos inquisidores aos familiares de Silvério Salvado de Morais e da esposa, Micaela da Silva (um interrogatório cerrado com diversas perguntas padronizadas - enunciadas nos fls. 3 e 4), comprova a sua lympeza do sangue e geração, ou seja, que são christãos velhos legitimos, limpos e de limpo sangue, sem raça alguma de Judeus, Mouros, Cristãos Novos ou de outra secta. Por sua vez, a inquirição sobre a estatura moral de Silvério Salvado de Morais, procurava averiguar se ele era homem de boa vida e costumes, quietto, pacifiquo, capaz de segredo, pra delle se poderem fiar [em] negocios de segredo e importancia.
       
           Extra-texto, lembramos que os Familiares do Santo Ofício representavam a base da estrutura hierárquica da instituição, formada por leigos que se vinculavam à Inquisição e "policiavam" as comunidades em que estavam inseridos,fazendo diligências, denúncias e prisões. No Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, publicado um pouco depois desta data, em 1640, encontram-se esmiuçados os requisitos e funções dos Familiares (no Título XXI). de onde transcrevemos este trecho:
          Os Familiares do S, Officio, serão pessoas de bom procedimento, & de confiança, & capacidade conhecida: terão fazenda, de que possão viver abastadamente (...). Na vespora, & dia de Saõ Pedro Martyr, sendo possivel, se acharão na Inquisição do seu districto para acompanharem o Tribunal, & assistirão na Igreja, em que se celebrar a festa do Santo: no dia em que se fezer o Auto da Fé, se acharão ante manhaã na Inquisição, para hirem com os prezos na procissão; e sómente nestes dias, & quando forem prender alguma pessoa, ou a trouxerem preza para os carceres, levarão o habito de Familiar do Santo Officio, que haõ de ter.
           Por outro lado, o segredo ou a capacidade de guardar segredo, que várias vezes é inquirido nesta diligência de Salvado de Morais, era algo indispensável aos inquisidores e seus coadjutores, como se encontra estabelecido no Título 7 do mesmo Regimento de 1640: E por quanto o segredo he huma das cousas de mayor importancia ao santo Officio, mandamos, que todos o guardem com particular cuidado, não só nas materias, de que poderia resultar prejuizo se fossem discubertas, mas ainda naquellas que lhes parecerem de menos consideração, porque no Santo Officio não há cousa em que o segredo não seja necessario.

3 - MARIA RODRIGUES (processo de)

          Neste processo, iniciado a 24 de Setembro de 1701, Maria Rodrigues, natural de Pombal e a viver em Setúbal, acusa de bigamia o marido, conhecido pelos nomes de Manuel do Couto ou Manuel Francisco, que era natural de Alfeizerão [Alfizerão], e que alegadamente, depois de viver com ela durante seis meses, se teria ausentado para se casar com Maria Gonçalves, moradora na mesma cidade de Setúbal. É ordenada a prisão de Manuel do Couto, com sequestro de bens (página 11), e ordenada a obtenção das duas certidões de casamento para se comprovar o delito. Depois de averiguada a acusação, Manuel do Couto é ilibado e solto, enquanto é presa Maria Rodrigues, por perjúrio, e condenada a um auto-de-fé, a pagar as custas do processo e a degredo por três anos para o couto de homiziados de Castro Marim.

          (Manuel do Couto era filho de Domingos Pires, lavrador, e Lucrécia Álvares, residentes em Alfeizerão).

          Nota: a bigamia, era um dos delitos que estava sob a alçada da Inquisição, como o comprova o já citado Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal.

Processo de Maria Rodrigues, cazada com Manoel Francisco trabalhador 
natural da villa de Pombal, Bispado de Coimbra, moradora na de Setubal [Setuual), 
Arcebispado de Lisboa, preza nos carceres da Inquisição da mesma Cidade
4 - CRISTÓVÃO MACHADO (processo de)

         Cristóvão Machado, meio cristão-novo, natural de Aljubarrota, e que vivia de sua fazenda na vila de Alfeizerão, é preso com a idade de 35 anos a 12 de Maio de 1683 sob a acusação de judaísmo. A sua prisão devera-se a revelações feitas pelo seu irmão Bento Brado da Silva, meio cristão-novo, que fora preso por culpas de judaismo nos cárceres secretos da inquisição de Évora a 12 de Maio de 1692, dos quais foi trazido para a Inquisição de Lisboa. Interrogado pelo inquisidor Estevão de Brito, declarara que, quatro anos antes, se achara com o seu irmão Cristóvão de Machado, casado com uma cristã-velha chamada Maria de Almada; e estando ambos sós, entre práticas de que já não se lembra, ouviu dizer a seu irmão que acreditava na Lei de Moisés para a salvação das suas almas e que em observância dela, guardava os Sábados de trabalho. Foi lida a confissão e Bento Brado da Silva assinou.

          Interrogado Cristóvão Machado sobre os seus bens ou rendimentos no título Inventário, responde este:
Disse que não tinha bens alguns de raiz seus, e vivia do rendimento de huma _____ [?] de sua mulher, Maria de Almada com obrigação de duas missas cada anno a capella de São João Baptista de Alfeizerão, e algumas terras livres que não sabe indicar. E que de bens moveis tinha so os necessários para o seu uzo.
          Interrogado sobre o motivo da sua prisão, e diante do inquisidor Pedro de Ataíde de Castro, Cristóvão Machado, com um dia de prisão, faz e assina a sua longa confissão a 13 de Maio de 1683 (páginas 29-38), na qual denuncia a sua irmã, Maria Baptista, mulher de António da Cunha, natural da vila de Aljubarrota e moradora na vila da Pederneira, já que quinze anos antes, quando se vira a sós com a sua irmã, entre práticas de que já não se lembra, esta lhe confessara a sua fidelidade à Lei de Moisés e às práticas próprias dela. Confirma também a conversa havida com o seu irmão Bento Brado da Silva, não se lembrando muito bem como haviam falado da Lei de Moisés e da sua observância. Mais relata que, oito anos antes, na sua quinta junto a Aljubarrota, conversara com seu irmão Jerónimo Rodrigues, meio cristão-novo que vivia da sua fazenda, casado com Catarina de Almada, e por ocasião de falarem nas prisões do Santo Ofício com a sua irmã, Maria Baptista, eles declararam a mesma fé (a Lei de Moisés e a sua observância). Denuncia também, nos mesmos moldes, ao seu irmão Francisco da Silva, meio cristão-novo, com quem estivera cinco anos antes na quinta da Charneca, termo da cidade de Lisboa; e ao seu irmão Sebastião Nunez, meio cristão-novo, com quem conversara cerca de um ano atrás junto da igreja de Santa Ana dessa cidade (Lisboa); e ainda… que cinco anos antes, numa eira junto à vila de Alfeizerão, se achou com o seu irmão Rafael da Silva, que era alferes de ordenança, também natural de Aljubarrota e morador em Alfeizerão, e que este confessara ser observante e crente na Lei de Moisés; e ainda… que dez meses antes, em Lisboa, em casa de Benjamim Sebastião da Silva, e estando ambos a sós, este lhe declarou o mesmo. E as denúncias sucedem-se: Sebastião da Silva, natural de Alcobaça, um quarto de cristão-novo; o primo António da Silva, um quarto de cristão-novo; a tia materna Catarina da Silva, natural de Alcobaça, com quem ficam associados nas culpas de judaísmo, outros cinco familiares que se encontravam em sua casa (todos citados pelos nomes).

          Cristóvão Machado é condenado a auto-de-fé, a abjurar das suas crenças judaicas, a usar o hábito penitencial, e a cumprir as penitências espirituais. A 23 de Agosto (página 65), sem dúvida, como prémio pela sua copiosa colaboração, os inquisidores dão por levantado o cárcere e tirado o hábito, e que pode ir para onde bem quizesse, contanto que não seja para fora do Reino sem licença desta Mesa, ficando apenas obrigado a algumas penitências espirituais; como confessar-se e comungar nas quatro datas principais do ano (Natal, Páscoa da Ressureição, Espírito Santo e Assunção de Nossa Senhora).

Processo de Christovão Machado, meyo Christão novo que vivia de sua fazenda, 
natural de Algibarrota e morador na villa de Alfeizirão