domingo, 18 de janeiro de 2015
A LENDA DO CASTELO DE ALFEIZERÃO - Um aditamento
O Marquês de Rio Maior redigiu uma versão desenvolvida desta lenda - já transcrita nesta página - e julgamos oportuno completar agora esse texto com outras alusões, mais modestas, à mesma lenda.
Pinho Leal, em quem se baseia o Marquês de Rio Maior, escreve sobre a fortaleza de Alfeizerão:
D. Afonso I a tomou aos mouros por surpresa em 1147. O último possuidor árabe do castelo foi o emir Aben-Hassan. É tradição que o emir, vendo o castelo perdido, abraçou a sua filha Zaira, e com ela se precipitou das muralhas, morrendo ambos despedaçados.
(PINHO LEAL, Augusto Soares d'Azevedo Barbosa de, Portugal Antigo e Moderno, volume primeiro, páginas 116-117, Livraria Editora de Matos Moreira & Companhia, Lisboa, 1873).
Tito Larcher repete à letra Pinho Leal, mas acrescenta:
Isto em 1147, quando D. Afonso Henriques tomou o castelo. Ora, a verdade é que D. Afonso Henriques não teve esse trabalho, pois que, como referimos quando tratamos de Alcobaça, a esse tempo, toda essa região estava desabitada, e quanto a Zaira, [ela] é figurante das lendas de toda esta região, Leiria, Porto de Mós, Minde, etc.
(LARCHER, Tito Benevenuto, Dicionário Biográfico, Corográfico e Histórico do Distrito de Leiria, Leiria, 1907).
Luís Bonifácio, divergindo um pouco na lenda, conta por sua vez:
Mil cento e quarenta e sete, Afonso Henriques lança-se sobre Alfeizerão. Conquista o castelo não sem heroicidade, e a sua bandeira branca, com a cruz azul, passou a flutuar nas ameias do forte. (...) Contam as crónicas locais que Zaira, a donzela moura, se apaixonara por um cavaleiro cristão, e por ele captada o recebera, alta noite, sem a mínima desconfiança. O indigne sedutor atraiçoara a moura, dando entrada aos correlegionários que se apossaram da fortaleza. Tomada de remorsos e pavor, Zaira contou ao emir a sua loucura. O pai, Aben-Hassan, que a adorava, abraçou-a e precipitou-se com ela das muralhas, preferindo a morte à desonra e à escravidão.
(BONIFÁCIO, Luís, ALFEIZERÃO - Notas Históricas e Arqueológicas, Boletim da Junta da Província da Estremadura, 1949, série II, nº XXII).
quarta-feira, 14 de janeiro de 2015
A festa de Santo Amaro de Alfeizerão - algumas notas breves
1 – a Festa dos Pinhões
Festa dos pinhões é o nome
tradicional para a festa do Santo Amaro que rodeia o seu dia, 15 de Janeiro, e
que tem como centro a sua vetusta capela, antes uma ermida, localizada num
ermo, fora da povoação, e hoje inserida no meio de uma terra que não parou de
crescer.
Os pinhões, em fios ou colares, acompanham as festas e romarias do santo em outros templos, como a festa de Santo Amaro na ermida que lhe é consagrada em Alcântara, ou as festas da capela de Santo Amaro em Ourém, situada esta na encosta do castelo local.
Os pinhões, em fios ou colares, acompanham as festas e romarias do santo em outros templos, como a festa de Santo Amaro na ermida que lhe é consagrada em Alcântara, ou as festas da capela de Santo Amaro em Ourém, situada esta na encosta do castelo local.
Para esta associação entre os
pinhões e o Santo Amaro, podemos aventar duas hipóteses, uma mais modesta e
prosaica, e outra um pouco mais aventurosa e rebuscada. O leitor escolherá a que lhe parecer mais adequada.
Primeiro, a primeira, que se
prende com a forma como o pinhão é apanhado e preparado. Sendo, na Europa,
obtido a partir das pinhas do pinheiro manso ou pinheira (Pinus pinea); a colheita da pinha distribui-se de Dezembro a Março
do ano seguinte, e a partir desta são retiradas as suas sementes, os pinhões,
cujo (delicado) processo de secagem ou cozedura em forno de lenha as prepara
para serem comidas ou utilizadas na cozinha ao longo de todo o ano. Se hoje em
dia, a produção do pinhão tem a exportação como principal destino,
tradicionalmente, o pinhão era consumido e utilizado, principalmente, na quadra
natalícia, e se aqui não se escoasse o grosso da produção desse ano (quando uma
nova produção já se encontrava em marcha), havia uma segunda oportunidade festiva para
tal, que era constituída pelas primeiras grandes romarias do ano, o Santo Amaro
e o Santo Antão, onde o pinhão era (e é) uma iguaria pontual e apetecida.
A segunda hipótese assenta numa
provável raiz pagã para essa associação entre os pinhões e o Santo Amaro. Na Antiguidade, a pinha e o pinheiro manso integravam um conjunto de símbolos empregues nos ritos de fertilidade, da pinha que Dioniso/Baco usava como ceptro, ao pinheiro manso em que se metamorfoseara Átis, o amante de Cíbele, e em honra do qual se conduzia ao templo do Palatino em Roma, um tronco de pinheiro cortado e ungido pelos sacerdotes (CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain, Dicionário dos Símbolos, Editorial Teorema Lda., Lisboa, 1982).
Na nossa realidade próxima, sabemos
que o Santo Amaro era venerado pelo povo como santo casamenteiro (Chaves, Luís, O Amor
Português – Estudo Ethnographico, Livraria Clássica Editora de A. M.
Teixeira, Lisboa, 1922), e há registo de tradições de cortejamento e namoro
ligadas às festas de Santo Amaro.
Nas festas do santo em
Mascotelos, Guimarães, por exemplo, desenrolava-se o jogo dos brilhantes, em
que as jovens arremessavam à cabeça dos romeiros solteiros, bilhetes amorosos
para tentarem iniciar um namoro, como conta Alberto Vieira Braga (Curiosidades de Guimarães, XX, Revista
de Guimarães, nº 71, ano de 1961 - fonte disponiblizada em formato PDF no portal Casa de Sarmento) que acrescenta: «Ir à romaria de Santo Amaro, é
ir ao encontro dos namorados, dos brilhantes, do movimento, da algazarra, dos
bons farnéis e, por vezes, da larga pancadaria entre os rivais do derriço».
Este jogo amoroso na romaria ao Santo Amaro, poderia ter como legenda a quadra registada por Luís Chaves na obra citada:
Este jogo amoroso na romaria ao Santo Amaro, poderia ter como legenda a quadra registada por Luís Chaves na obra citada:
Santo Amaro, meu santo Amaro,
tu és o meu santo querido.
venho hoje aqui pedir-te
que me dês um bom marido.
Os colares de pinhões poderão ter
começado por ser uma oferenda à pessoa almejada no ritual de namoro, o que fazia todo o sentido na festa de um santo padroeiro dos casamentos. Na Web,
encontrei um testemunho, não relativo à uma festa de Santo Amaro, mas à Feira
dos Pinhões que se realiza todos os anos em Ansião no mês de Janeiro (cujas origens remontam ao século XVII, e num lugar vizinho a Ansião, Constantina), e na qual se encontra escrito, por autor não identificado, o seguinte:
«A venda de colares de pinhões é uma das características mais típicas desta
feira, na qual costumam participar cerca de meia centena de feirantes. Os colares
sui generis eram comprados pelos
rapazes para presentearem a amada. Era uma espécie de sinal para o início do
namoro. Aceitar ou não a prenda era o veredito» (Fonte eletrónica: Ansião –
feira dos pinhões realiza-se sábado, artigo escrito a 24 de Janeiro de 2008,
disponível em http://ansiaonews.blogs.sapo.pt/48149.html,
lido em 13 de Janeiro de 2015).
2 - Hagiografia e invocações
São Mauro, que conhecemos como Santo Amaro, terá nascido no ano de 510, filho de um nobre senador romano, Eustíquio, e de sua esposa Júlia. Com apenas doze anos, os pais entregam-no a São Bento de Núrcia para que o educasse na vida monacal. Mauro torna-se um monge zeloso e austero, que cativa a admiração do seu mestre.
No Flos Sanctorum (edição de 1681, na cidade de Lisboa, por António Craesbeeck de Melo, Impressor da Casa Real), composto por frei Diogo do Rosário, narra-se que: «São Bento o amava mais que os outros, e instruído de tal maneira no serviço de Deus, que não havia nenhum tão perfeito na guarda da religião, e muitas vezes vimos que não trazia na Quaresma, túnica, nem cogula, mas só um cilício de burel. Comia somente duas vezes na semana, e tão pouca quantidade que mais parecia gostar do que comer o manjar. Dormia em uma cama de cal e de areia pisada, em cima de uma manta muito áspera; e nunca o viram levantar com os outros monges da cama, porque sempre se levantava a matinas primeiro que todos. Muitas vezes tinha ele rezado cinquenta salmos primeiro que os outros se levantassem, e às vezes todo o Psaltério». Discípulo predileto de São Bento e seu coadjutor, este envia-o para França para fundar a primeira abadia beneditina em solo francês, a abadia de Glanfeuil, na margem do rio Loire, a cujos destinos preside durante quarenta anos, antes de perecer no ano de 584, num dia 15 de Janeiro, segundo a lenda sacra. A São Mauro, como abade e pastor de homens, se deve os atributos iconográficos das suas imagens: o báculo e a mitra abacial. Outras vezes, representam-no com hábito e capuz, recordando a sua humildade, e segurando um livro, que representa a Regra de São Bento.
2.1. Protetor dos ossos
Na obra de frei Diogo do Rosário, a vida de Santo Amaro - segundo a escreve S. Gregório Papa no II livro dos Diálogos, e S. Antonino, na II Parte - está repleta de milagres, da expulsão de demónios à ressuscitação de um morto, mas é a cura milagrosa de ossos ou membros partidos (como o pé partido do criado Sérgio, que o monge cura quando cruzam os Alpes) que os devotos, sobretudo, lhe pedem.
O pároco de Alfeizerão em 1758, Manuel Romão, descreve assim a festa de Santo Amaro:
Em o dia do Santo quinze de Janeiro he vezitada de muita gente das terras vezinhas e tambem das remotas, que publicos milagres, e prodigios que Deuz lhe tem feito por interceSsaõ do Santo, com agradecimento lhe trazem braçoz, maõez, pes, dedos de cera que penduraõ nas paredes da caza do Santo, e supposto muitos milagres moralmente sejaõ certoz, naõ me consta seja algum autentico.
Esta tradição das festas de Santo Amaro, que se perdeu em Alfeizerão, sobrevive nos nossos dias em outras romarias dedicadas ao mesmo santo, como na festa de Santo Amaro na freguesia de Vimeiro, Braga, onde se compra ou se aluga membros em cera que se oferecem ao santo dos ossos em cumprimento de promessas; e o mesmo sucede ainda na romaria de Santo Amaro na capela que lhe é consagrada em Assafarge, concelho de Coimbra.
2.2. Protetor dos pescadores e mareantes
Continuamos com frei Diogo do Rosário:
São Gregório conta que um dia, estando São Bento na sua cela, e indo um santo fradinho chamado Plácido, buscar em um cântaro água a uma lagoa, metendo o vaso na água, por descuido caiu dentro, e a mesma água o foi levando até à distância de um tiro de besta. O varão de Deus, São Bento, dentro da sua cela soube isto e chamou a Amaro e lhe disse: irmão Amaro, corre, que o moço que foi buscar água caiu na lagoa e vai por ela abaixo. Coisa maravilhosa e depois de S. Pedro não usada! Pediu Santo Amaro a bênção a São Bento, e foi depressa cumprir o seu mandado, e correu sobre a água até o lugar onde o fradinho estava, cuidando que ia pela terra, e o trouxe para fora pelos cabelos, e tornando sobre si, e olhando para trás, caiu na conta, e advertiu que correra sobre a água.
É este episódio da vida do santo, que levou a que o olhassem como santo protetor dos pescadores e homens do mar - pedem-lhe que proteja os que ousam navegar sobre o ventre dos mares, salvando-os de serem engolidos por ele, e trazendo-os sãos e salvos a terra firme, como ao fradinho Plácido,
Em Alfeizerão, todos sabem da antiga devoção dos nazarenos pelo Santo Amaro, a quem, num jogo de palavras, apodam de santo do mar. É mesmo quase impossível imaginar essa romaria sem a leal presença dos nazarenos, tão bem evocados no artigo da Graciete Simões que se recuperou para este blogue, e do qual retirei este trecho:
Da Nazaré vinham grupos de pessoas a pé em peregrinação e
depois já mais tarde em camionetas de excursão. Era um gosto ver os nazarenos
trajados a rigor – as mulheres com as sete saias, as blusas com grandes rendas
nas mangas, os cachenés na cabeça, os aventais bordados e as chinelas de
verniz. Eles com as camisas de escocês e calças de surrobeco, calçando tamancos
de pele e sola de madeira. Usavam barrete de lã na cabeça ou, e por vezes
traziam o gabão, de burel castanho, de mangas largas e capuz em bico, cujo
comprimento ia até aos tornozelos
(artigo na Gazeta das Caldas de 26 de Janeiro de 2013).
Quadro do pintor florentino Fra Filippo Lippi (1406-1469): São Bento, na sua cela, pede a Mauro (Amaro) que salve Plácido. À direita, estão retratados estes dois frades na margem do lago |
sexta-feira, 9 de janeiro de 2015
O MARQUÊS DE RIO MAIOR
Assinava com
este título, o 3º Marquês de Rio Maior e 6º Conde de Rio Maior, João António de
Saldanha Oliveira e Sousa, engenheiro civil e oficial de artilharia; autarca, erudito e escritor.
No ano de
1945, quando surge o jornal O Alcoa, o Marquês de Rio Maior inicia nele os seus
artigos sobre S. Martinho do Porto, terra onde reside e pela qual possui uma
verdadeira veneração. Filho adotivo da pérola
da Estremadura, dedica-lhe um esforço estreme na busca dos seus tesouros
históricos, humanos e paisagísticos, transmitidos através de uma escrita
romântica e cuidada.
Transcreveu
diversos documentos históricos e artigos de jornal sobre a vila, e retratou em quadros breves, mas generosos,
a vida dos seus habitantes, as rotinas dos banhistas, o trabalho dos estaleiros,
ou o quotidiano dos pescadores e marítimos.
Por vezes,
en passant, o Marquês de Rio Maior escreveu
também sobre Alfeizerão. Transcrevo aqui um texto seu sobre as fortalezas do concelho de Alcobaça e, sucedendo a este, será publicado o seu registo da lenda
do castelo de Alfeizerão e,
por fim, um artigo sobre a inauguração da luz elétrica em Alfeizerão, um tema
que suporíamos mundano e pobre, mas que o Marquês de Rio Maior consegue
transformar num texto literário de agradável leitura, no qual inclui um citação de cunho etnográfico.
No que toca a este artigo sobre os castelos, existe alguma imprecisão (da fonte utilizada) sobre o que distingue um castelo de uma fortaleza mais pequena (forte ou torre); e, amiúde, uma mescla de factos historicamente admissíveis com efabulações baseadas nesses factos.
Sobre a lenda do castelo de Alfeizerão, não haverá muito a dizer, é uma lenda que nos chega com algumas variantes pela mão de diferentes autores, sendo esta, certamente, a mais elaborada de todas. Não diremos, no entanto, que é apenas uma lenda, porque as lendas, como um verso ou um símbolo, são criaturas voláteis do espírito, que podem permanecer inertes em nós ou levar-nos a cruzar distâncias e ensaiar viagens. Nenhuma coisa é apenas uma coisa, e qualquer coisa pode representar tudo.
Sobre a lenda do castelo de Alfeizerão, não haverá muito a dizer, é uma lenda que nos chega com algumas variantes pela mão de diferentes autores, sendo esta, certamente, a mais elaborada de todas. Não diremos, no entanto, que é apenas uma lenda, porque as lendas, como um verso ou um símbolo, são criaturas voláteis do espírito, que podem permanecer inertes em nós ou levar-nos a cruzar distâncias e ensaiar viagens. Nenhuma coisa é apenas uma coisa, e qualquer coisa pode representar tudo.
(as duas torres - detalhe do pelourinho de Alfeizerão) |
S. Martinho do Porto - leitura de férias
pelo MARQUÊS DE RIO MAIOR
O senhor general João de Almeida, ilustre autor do «Roteiro dos Monumentos militares portugueses», descreve e estuda, na Parte III do seu 2º volume, os que existem ou existiram no distrito de Leiria. Essa parte III compreende 12 capítulos, cada um dos quais é dedicado aos castelos dum concelho apenas.
O capítulo II intitula-se «Monumentos do Concelho de Alcobaça» e trata de 3 castelos e 2 atalaias. Os castelos são os de Alcobaça, Alfeizerão e S. Martinho do Porto; as atalaias, as de S. Domingos e do Facho.
Do Roteiro tão bem organizado pelo senhor general, o que percorremos com prazer e proveito, vamos extrair algumas referências relativas aos Monumentos Militares de Alcobaça, que certamente os cultos leitores de O Alcoa apreciarão.
É de crer que no cabeço onde hoje se veem as ruínas do castelo de Alcobaça haja existido algum castro lusitano-romano. Destruído pelos bárbaros, tê-lo-iam reconstruído no século VI os visigodos. Os moiros, conquistadores da Península, restauraram-no em 716 e deram-lhe o nome de Al-cacer-bem-el-Abbaci.
D. Afonso Henriques tomou em 1147 essa fortaleza, que então se chamava Bem-Ab-Cete e mandou-a reerguer. À sombra dela construiu-se o Mosteiro de Alcobaça.
Na invasão árabe de 1191-1195, o castelo foi destruído. Mandou D. Sancho I reconstruí-lo e doou-o aos Abades do Mosteiro. Arruinado pelo terramoto de 1422, foi restaurado por D. João I, que autorizou o D. Abade de Alcobaça a lançar uma sisa sobre os povos dos coutos, para as despesas dessa restauração.
A artilharia fez-lhe perder todo o valor militar e, por isso, caiu em ruínas, sendo aproveitada a sua pedra para várias construções.
Quanto ao castelo de Alfeizerão, supõe-se que no sítio da Ramalheira, a meio quilómetro a oeste [sic] das suas ruínas, tenha existido um castro lusitano. Uma colónia de Celtas, a convite dos Lusitanos, ter-se-ia estabelecido nesse castro, então costeiro, tornando-o oppidum florescente. Conquistaram-no os Romanos, que o transformaram em poderosa base fortificada de ocupação, e centro administrativo importante, com bom porto militar e comercial.
Tomaram-no em 717 os árabes e, como o mar se tivesse afastado dele pelo crescente assoreamento, construíram outro a oeste, cujas ruínas são as existentes.
Expugnou-o, em 1147, D. Afonso Henriques, reedificou-o e melhorou o seu porto que, pelo constante recuo do mar, perdeu a sua importância, tornando-se inútil o castelo, que acabou por se arruinar.
O castelo de S. Martinho levantava-se no morro do farol, onde teria existido um pequeno castro luso-romano, transformado em forte, provavelmente por D. João III.
A atalaia de S. Domingos era torre que ficava 250 metros a oeste de S. Martinho. Servia também de baliza aos navegantes que demandavam os portos de S. Martinho, Salir e Alfeizerão. Tornada inútil como atalaia, construíram com a pedra dela a atual capela da mesma invocação. Nesta capela o povo passou a acender todas as noites uma luz para orientar os navegantes, até que se inaugurou o farol de S. Martinho.
A atalaia do Facho, grande torre de alvenaria, no alto do mesmo nome, já devia existir quando os Romanos entraram na Península. Com as vigias das Berlengas e outras atalaias costeiras, servia para dar alarme de piratas e corsários à vista.
D. Afonso Henriques tomou em 1147 essa fortaleza, que então se chamava Bem-Ab-Cete e mandou-a reerguer. À sombra dela construiu-se o Mosteiro de Alcobaça.
Na invasão árabe de 1191-1195, o castelo foi destruído. Mandou D. Sancho I reconstruí-lo e doou-o aos Abades do Mosteiro. Arruinado pelo terramoto de 1422, foi restaurado por D. João I, que autorizou o D. Abade de Alcobaça a lançar uma sisa sobre os povos dos coutos, para as despesas dessa restauração.
A artilharia fez-lhe perder todo o valor militar e, por isso, caiu em ruínas, sendo aproveitada a sua pedra para várias construções.
Quanto ao castelo de Alfeizerão, supõe-se que no sítio da Ramalheira, a meio quilómetro a oeste [sic] das suas ruínas, tenha existido um castro lusitano. Uma colónia de Celtas, a convite dos Lusitanos, ter-se-ia estabelecido nesse castro, então costeiro, tornando-o oppidum florescente. Conquistaram-no os Romanos, que o transformaram em poderosa base fortificada de ocupação, e centro administrativo importante, com bom porto militar e comercial.
Tomaram-no em 717 os árabes e, como o mar se tivesse afastado dele pelo crescente assoreamento, construíram outro a oeste, cujas ruínas são as existentes.
Expugnou-o, em 1147, D. Afonso Henriques, reedificou-o e melhorou o seu porto que, pelo constante recuo do mar, perdeu a sua importância, tornando-se inútil o castelo, que acabou por se arruinar.
O castelo de S. Martinho levantava-se no morro do farol, onde teria existido um pequeno castro luso-romano, transformado em forte, provavelmente por D. João III.
A atalaia de S. Domingos era torre que ficava 250 metros a oeste de S. Martinho. Servia também de baliza aos navegantes que demandavam os portos de S. Martinho, Salir e Alfeizerão. Tornada inútil como atalaia, construíram com a pedra dela a atual capela da mesma invocação. Nesta capela o povo passou a acender todas as noites uma luz para orientar os navegantes, até que se inaugurou o farol de S. Martinho.
A atalaia do Facho, grande torre de alvenaria, no alto do mesmo nome, já devia existir quando os Romanos entraram na Península. Com as vigias das Berlengas e outras atalaias costeiras, servia para dar alarme de piratas e corsários à vista.
Marquês de Rio Maior
(Jornal O Alcoa, de 21 de Agosto de 1947)
quinta-feira, 8 de janeiro de 2015
O CASTELO DE ALFEIZERÃO E A SUA LENDA - pelo Marquês de Rio Maior
Durante os seis anos imediatamente anteriores ao de 1153, conquistou D. Afonso Henriques, aos mouros, todos ou quase todos os castelos e povoações da Estremadura que era, segundo ensina o Dr. Frei António Brandão, «toda a terra que corria de Coimbra até Cascais & Sintra entre o rio Tejo, & o mar Oceano, em distância quase de quarenta léguas». Esta grande empresa do rei conquistador começou em 1147, em que tomou, além de outros, o castelo de Alfeizerão, que defendia a povoação do mesmo nome, fundada em 717 pelos sarracenos e do qual ainda restam ruínas. Assentava no morro pedregoso que domina os campos do mesmo nome e era fortificação de respeito, quando os combates se feriam braço a braço e a golpes de armas brancas.
Nesse ano de 1147 era alcaide do castelo de Alfeizerão o emir Aben-Hassan, nobre e esforçado cavaleiro que mantinha bem disciplinada e constantemente vigilante a sua gente de pé e cavalo. Esta vigilância constante impunha-se; porque, após a retomada de Leiria pelo nosso primeiro rei, crescera o perigo da reconquista cristã.
Estavam, pois, permanentemente alerta as guarnições das fortalezas estremenhas, ainda não expugnadas pelos portugueses. De dia, saíam dela audazes cavaleiros que, em correrias, talavam os campos dos contrários, para enfraquecer e cansar o adversário e colher despojos. De noite, as sentinelas vigiavam no alto das torres, prontas a acender as almeuaras, isto é, os fachos, cuja luz indica estarem prestes a ser atacados os sítios em que ardiam, e significava urgente pedido de socorro.
No castelo de Alfeizerão. a torre de atalaia era saliente e, como outras muitas do mesmo género, não tinha porta. Rasgava-lhe os muros uma só janela que diariamente, ao anoitecer, a sentinela designada para a a vela dessa noite, escalava, recolhendo-se logo depois a escada empregue na subida [«escalamento»], e pela qual, na manhã seguinte, a mesma sentinela desceria, quando lha trouxessem.
Aben-Hassan tinha uma filha única, a bela Zaira, a quem muito amava. Muito aferrada às crenças dos seus maiores, era tão linda que lhe chamavam a Flor de Alfeizerão. Morrera-lhe a mãe, ao dá-la à luz, e tinha-a amamentado e criado a escrava moira Axa, que se lhe afeiçoara com ternura quase maternal.
Certa noite, Axa teve dois sonhos.
No primeiro, uma imensa inundação de águas, fortemente agitadas pelo vento, alagava os campos de Alfeizerão. E as ondas alterosas desse mar, embatendo nas muralhas do castelo, ameaçavam derrubá-lo. Na torre albarrã, uma pombinha branca, pousada sobre o parapeito da janela, parecia observar o crescimento da cheia.
De súbito, a ave levanta voo e afasta-se. Mas pouco depois reaparece e torna a pousar no parapeito da janela, trazendo no bico um ramo verde de oliveira em cuja ponta se põe a brilhar estrela cintilante.
E prontamente o vento cai, o marulho serena, e as águas retrocedem. No céu, até aí caliginoso, dissipam-se as nuvens de chumbo, e a voz ovante e estentórea do almoadem, alcandorado no cimo de algum distante minarete, pronuncia três vezes a profissão de fé maometana: «Só Alá é Deus e Mafamede é o seu Profeta».
Mas a pomba de neve, ferida por dardo invisível, estrebucha e cai desamparadamente da janela. E a mesma voz retumbante apregoa, mas agora em tom lúgubre: «A pomba não mais voará!».
Com efeito, a ave caíra morta.
No seu segundo sonho, Axa viu, da mesma forma, a planície de Alfeizerão inundada por uma cheia enorme, e as ondas levantadas no imenso lençol de água pela ventania, investir contra o castelo. Também, como da primeira vez, na torre de atalaia, pousava sobre o peitoril da janela uma pombinha branca. Mas esta, agora, não observa o crescer da inundação; dorme com a cabecita metida sob uma das asas.
Redobra de intensidade o vento, aumentam de volume as águas, e torna-se mais impetuoso o ataque das vagas ao castelo, cujos paredões acabam por ceder. Então a fortaleza abate com grande fragor e, por último, desmorona-se a torre albarrã.
Ao ruir o primeiro lanço de muralha, a pomba acorda e, como se medisse o perigo que a ameaça, desfere o voo, foge, e desaparece.
Axa acordou e, impressionada com o que havia sonhado, foi ter com certo santão que se dizia adivinho e intérprete de sonhos, e contou-lhe os dois sonhos que tivera.
O homem refletiu uns instantes, murmurou algumas frases ininteligíveis, e por fim disse:
«É claro o teu sonho, ó serva do alto e nobre emir Aben-Hassan, meu senhor, e da sua filha, flor em botão!
«As águas tumultuosas a embater nas muralhas do castelo são as hostes dos nazarenos que logo à noite hão-de vir assaltá-lo. A branca pomba, com a estrela no ramo de oliveira que lhe viste no bico, é a formosa Zaira, postada à janela da torre, como atalaia, e que deverá acender a almenara quando avistar ao longe os assaltantes.
«Se desta sorte for dado o alarme, a guarnição do castelo, avisada e pouco depois socorrida pelos que acudirem ao chamamento do facho, travará luta com os agressores, que acabarão por fugir. A paz voltará a reinar nos campos e castelo de Alfeizerão: mas a filha do meu senhor terá morrido, prostrada por golpe de cristão. Será uma morte gloriosa num posto de honra».
«No teu segundo sonho, humilde escrava do dito e nobre emir Aben-Hassan, meu senhor, e de sua filha, flor que perfuma e embeleza a alcáçova de Alfeizerão, as águas invasoras são igualmente o rei contrário e a sua gente a atacarem esta noite o castelo. A pombinha é também a formosa Zaira. Dorme a pomba; porque a donzela gentil não está de vigia. O desabar da torre e do castelo significa a sua conquista pelo inimigo. Não ouviste o almoadem confessar a nossa fé? É que foi vencido o Crescente, nossa bandeira. Mas a pomba de neve bateu as asas, porque o ferro do adversário não ceifou a Flor de Alfeizerão, que desta arte a glória não imortalizou.
«Querem, pois, dizer os dois sonhos, que o castelo vai ser atacado e será conquistado, se a filha do emir não for morta na torre pelos incircuncisos, quando lá estiver de atalaia».
Axa afastou-se então do santão, muito perturbada. Para que Alfeizerão e o seu castelo continuassem na posse da sua raça, era mister que Zaira velasse na torre, e aí a matassem. Assim predissera o adivinho, cujas palavras sempre tinham sido, para a escrava moura, outras tantas verdades.
Induzir a jovem a encarregar-se da próxima vigia na torre, seria fácil. Já algumas vezes ela se prestara a passar ali a noite, de atalaia. Mas iria ela induzir Zaira a encarregar-se de semelhante missão, quando sabia que a morte violenta seria o termo dela? A tanto não pôde resolver-se a atribulada mulher, que se calou e, para se desculpar deste silêncio, que não ousava quebrar, mas que lhe pesava como chumbo, aventou de si para si, que talvez o santão se houvesse desta vez enganado no decifrar dos sonhos.
Quando anoiteceu, um dos da guarnição foi para a torre de atalaia, e não tardou que, nos campos dominado pelo castelo, reinasse o silêncio. Quebrou-o, a meio da noite, o vozear de guerreiros cristãos, já dentro da fortaleza. Haviam-na escalado de surpresa, depois de terem deixado como morto o guarda, que encontraram a dormir e o acutilaram na torre albarrã, também escalada por eles.
A inundação galgara as altas muralhas.
Tomados de assombro, os mouros mal puderam esboçar a defesa da praça. Por sua vez, Aben-Hassan e Zaira, acordados pela vozearia e o estrépito das armas, vestiram-se à pressa, saíram a um eirado, e desse miradouro assistiram à derrota e matança dos seus, que os atacantes passavam à espada.
Subiram depois ambos ao alto da muralha próxima. Daí, puderam medir melhor a grandeza do desastre; não mais as leis do Alcorão seriam acatadas naquela comarca marítima. Previu mais o emir que, se entrasse em combate, seria inevitavelmente vencido, não obstante a sua intrepidez, e temeu que a sua filha viesse a cair nas mãos do inimigo. Então, após breve colóquio com Zaira, abraçou-a (como refere Pinho Leal na sua obra), e com ela atirou-se da muralha abaixo; e os dois morreram despedaçados.
Despedaçado com semelhante desfecho ficou também o coração de Axa, que os vencedores, talvez por dó, pouparam. Mas a triste não tinha consolação; porquanto se cumprira, por ela se haver calado, o que o segundo sonho anunciava: não havendo Zaira velado na torre, o castelo fora tomado, e a jovem, que os invasores não vitimaram, não morrera gloriosamente; pois voluntariamente pusera termo aos seus dias.
Viveu mais de cem anos a mísera escrava moura, que passou o resto da sua existência a chorar a sorte mofina daquela a quem ensinara a falar e cuja morte inglória atribuía ao seu próprio silêncio.
Diz a lenda ouvirem-se, em certas noites de luar, gemidos e queixumes que solta fantasma erradio por entre as ruínas do castelo de Alfeizerão, ou perto delas. E a mesma lenda acrescenta ser esse fantasma o da sentinela, morta pelos cristãos na torre albarrã da velha fortaleza quando se deu o assalto e que, em vez de velar, adormecera a pensar em Zaira, à qual dedicava ardente amor, sem que ela suspeitasse.
Mortalmente ferido pelos atacantes, o guarda enamorado expirara algumas horas depois, a ouvir as lamentações com que Axa, inconsolável, meio oculta na sombra projetada pela torre, pranteava o lastimoso fim da formosa princesa que havia amamentado e criado com tanta ternura e dedicação.
À luz da lua, o gemebundo espetro busca ali agora os despojos mortais da bem amada Flor de Alfeizerão, para lhes dar sepultura condigna; mas em vão, porque serviram de repasto a aves de rapina e feras. E os ais e lamentos que as sucessivas deceções lhe arrancam são tais que se ouvem a grande distância, até em S. Martinho do Porto. Nós, porém, nem aqui nem em parte alguma os ouvimos ainda. E certamente nunca os ouviremos.
Marquês de Rio Maior
Nota:
Lenda publicada em duas partes no jornal O Alcoa, nos números 21 e 23, de 16 e 30 de Maio de 1946, respetivamente.
O Marquês de Rio Maior usou a grafia de Zahara para o nome da filha do emir; apenas adotei a de Zaira, por ser a mais comum entre as versões publicadas da lenda. Zahara ou Zaira provém do árabe Zahra, flor.
A flor de Alfeizerão também o era no nome.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2014
Guerra Peninsular - 1
Num mês de Dezembro como este, mas há duzentos e sete anos, as tropas napoleónicas, sob a égide de Junot, ocuparam a região, pilhando arbitrariamente os seus bens e recursos. A Guerra Peninsular iria arrastar-se durante sete anos, terminando há duas centúrias atrás, em 1814. Ao contrário da I Guerra Mundial, a Guerra Peninsular foi uma guerra dentro de portas com os contornos de uma guerra civil, com portugueses nos dois lados do conflito, e o domínio de um povo invasor que saqueou e matou a seu bel-prazer
Com isso em mente, seleccionamos alguns textos ilustrativos sobre o tema.
Este primeiro é composto por um excerto do capítulo 25 da História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomo I, de José Acúrcio das Neves (impresso na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, em Lisboa no ano de 1810). No tomo II desta obra (no capítulo 30), podem ler a triste narrativa sobre a agitação popular das Caldas da Rainha, que resultou na execução de nove pessoas (houve um décimo condenado - e o livro conta-nos a sua história - que por caprichosa fortuna conseguiu escapar à morte), e que é um bom exemplo da fraudulenta e crua justiça do invasor.
A segunda publicação reúne dois outros escritos de José Acúrcio das Neves, retirados do tomo IV da sua História Geral da Invasão dos Franceses..., e que dão conta do levantamento popular na zona contra os franceses, e da consequente e devastadora punição levada a cabo pelo general Thomières.
Na terceira publicação, transcrevemos uma descrição (inserta na obra de Francisco Baptista Zagalo sobre a Misericórdia de Alcobaça) que retrata o estado em que ficou a região depois das invasões francesas.
Atualizei a grafia das palavras e de alguns nomes.
As gravuras, exceptuando a do forte de S.Miguel, foram extraídas do livro Letters from Portugal and Spain : comprising an account of the operations of the armies under their excellencies Sir Arthur Wellesley and Sir John Moore, from the landing of the troops in Mondego Bay to the battle at Corunna : illustrated with engravings by Heath, Fittler, Warren, &c. from drawings made on the spot by Adam Neale, impressão de Richard Phillips, Londres, 1809.
Estas gravuras retratam a guerra peninsular pelo lado britânico, mas constituem imagens fidedignas desses tempos bélicos, baseadas em desenhos executados nos próprios locais por Adam Neale.
( Neves, José Acúrcio das, História Geral da Invasão dos
Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomo I, capítulo XXV, impresso
na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, Lisboa)
A segunda publicação reúne dois outros escritos de José Acúrcio das Neves, retirados do tomo IV da sua História Geral da Invasão dos Franceses..., e que dão conta do levantamento popular na zona contra os franceses, e da consequente e devastadora punição levada a cabo pelo general Thomières.
Na terceira publicação, transcrevemos uma descrição (inserta na obra de Francisco Baptista Zagalo sobre a Misericórdia de Alcobaça) que retrata o estado em que ficou a região depois das invasões francesas.
As gravuras, exceptuando a do forte de S.Miguel, foram extraídas do livro Letters from Portugal and Spain : comprising an account of the operations of the armies under their excellencies Sir Arthur Wellesley and Sir John Moore, from the landing of the troops in Mondego Bay to the battle at Corunna : illustrated with engravings by Heath, Fittler, Warren, &c. from drawings made on the spot by Adam Neale, impressão de Richard Phillips, Londres, 1809.
Estas gravuras retratam a guerra peninsular pelo lado britânico, mas constituem imagens fidedignas desses tempos bélicos, baseadas em desenhos executados nos próprios locais por Adam Neale.
CAPITULO XXV
A divisão Loison se estende desde o
cabo da Roca até S. Martinho e Nazaré. Extorsões deste General, de Thomières, e
de seus subalternos por esta parte do reino, e outros sucessos com que remata o
ano de 1807.
Deixo dito no lugar competente o destino, que deu Junot à
divisão do seu exército, comandada por Loison [general Louis Henri Loison],
continuarei agora esta matéria. Tendo este general chegado a Lisboa em 4 de
Dezembro, a 8 já tinha o seu quartel em Torres Vedras, onde fez ajuntar os
corregedores desta mesma vila, de Alenquer, Ribatejo, Alcobaça e Leiria, para
tratar com eles o modo de fazer as excessivas requisições com que foram
atormentados os povos destas comarcas, com o pretexto da subsistência do exército.
Intimações severas se fizeram a estes ministros para fazerem executar à mão
armada, se fosse preciso, todas as que lhe fossem feitas pelo comissário de
guerra Priston, declarando-se ilegais todas as que não partissem desta origem,
exceto as que fizesse o general Thomières [barão Jean-Guillaume-Barthélemy
Thomières]. Este general comandava uma das brigadas da divisão, e fez o seu
assento em Peniche: esteve algum tempo em Colares, onde assolou quintas e
pomares, os mais deliciosos do reino. Charlot [general Hugues Charlot]
comandava a outra e estabeleceu o seu quartel em Torres Vedras; enquanto este
último ganhava a benevolência dos povos pela sua humanidade, o outro adquiria
um nome odioso pela sua crueza e rapacidade. As requisições que fez Thomières em
gados, vinho, grãos, &c. foram
imensas: só ao mosteiro de Alcobaça coube dar dos seus granéis 228 moios, e
seis alqueires em trigo, milho cevada e legumes, e por aqui se pode julgar do
mais à proporção [em nota de rodapé, José Acúrcio das Neves acrescenta que o
corregedor de Alcobaça tinha de providenciar, semanalmente, para a mesa do
general Loison, 3 dúzias de garrafas de vinho do Porto, 2 ou 3 garrafas de
vinho dito da Madeira, doces de boa qualidade, 6 arráteis de velas de cera, 1
provisão de café, 2 presuntos, 6 galinhas, 3 perus, 6 dúzias de ovos, 1
provisão de manteiga, 1 pão de açúcar e 12 arráteis de açúcar ordinário].
Suspeitava-se que Thomières repartia o seu produto com Loison, e é certo que
estes géneros, pela maior parte, se conduziam a Peniche, e aí eram vendidos por
preços muito diminutos, às vezes nos próprios sacos em que eram levados.
A 19 de Dezembro [de 1807] já se achavam tropas francesas
guarnecendo o porto de S. Martinho e o forte da Nazaré. Fizeram um novo forte
de madeira em S. Gião, de que as despesas, assim como as de outras obras nos
fortes de S. Martinho e Nazaré, saíam da comarca, havendo a presunção de que Thomières
recebia de Lisboa o dinheiro para elas; e só alguns meses depois foram também
guarnecer a Figueira, ficando entretanto sem defesa toda aquela costa até ao
Porto.
Em Alcobaça esperava achar um Potosí [localidade boliviana
célebre pelas suas minas de prata, alegoria para terra de riqueza e
abundância]; porque desde Baiona, dizia ele mesmo, não lhe tinham falado senão
nas riquezas desta casa, de que avaliava as rendas em mais de meio milhão – o
seu comportamento para com ela foi coerente com estas ideias. Instado pela
devoção que lhe inspirava o retiro dos filhos de S. Bernardo, um dos mais
antigos e veneráveis de Portugal, propôs-se ir visitá-lo. A 27 de Dezembro, foi
almoçar no forte de S. Martinho com Toutan, um dos comandantes franceses
daqueles sítios, que para o brindar com mais um prato, mandou ao campo de
Alfeizerão matar a tiro de espingarda uma vaca, só para lhe aproveitar a
língua, deixando estendido o corpo; refiro este facto, porque serve de dar a conhecer
as grandezas destes homens, à custa dos portugueses.
De S. Martinho, foi pernoitar à Nazaré, em casa do Reitor,
que tratando-o o melhor que lhe foi possível, recebeu em recompensa mil
vexações com o fim de lhe ser extorquido dinheiro; e a 28 finalmente avistou os
santos muros de Alcobaça, em que de tão longe trazia o pensamento.
Não sabiam os religiosos, que este era o dia em que haviam
de receber uma tão importante visita; posto que pensavam bem que não passariam
sem ela. Thomières tinha tido o cuidado de ocultar a sua jornada, para os ter
em suspensão e os apanhar de surpresa. Foi chamado à pressa o prelado, e com
alguns padres o veio receber ao topo da escada: avança o general com tão grande
ímpeto por entre eles, que faltou pouco para os lançar por terra, e rompe na
expressão: Que se o Príncipe de Portugal recebesse por aquela forma um general
francês, ele se não dispensaria de o levar preso; e voltando-se para a sua
comitiva, que na maior parte era composta de portugueses, obrigou a todos a que
pusessem os chapéus na cabeça, repreendendo-os de os levarem nas mãos.
Pediu um quarto, para onde se recolheu; e seguindo-o o
prelado, e mais padres, nenhum foi recebido por espaço de 5 horas; mas o
prelado foi logo atacado por Sibron, oficial português de nação, e francês por
comportamento, que comandava o forte da Nazaré, e servia de língua [tradutor] a
Thomières, com proposições as mais instantes, para entregar a este general os
supostos tesouros da casa. Representou-se ao general, que não estava bem informado;
porque o mosteiro, em lugar de tesouros, tinha grandes dívidas passivas; e foi
necessário levarem-se-lhe os livros da administração das rendas, e do cofre,
donde ele viu com efeito um alcance de mais de sessenta contos de réis. Que
impressão não devia causar esta demonstração num espírito como o de Thomières,
tão penetrado da sagrada fome do ouro? O seu ar sombrio, e as exactas pesquisas
que fez por toda a casa, até nas cavalariças, o mostraram bem; mas enfim, no
dia 30, depois de ter dado ideias de romper estradas dali até Peniche, de
conduções de artilharia, e do estabelecimento de um hospital no mosteiro, para
o que mandou previamente que se fornecesse bem a botica, os padres o viram
partir, alegre e cortês para com todos, ficando eles ainda mais alegres com a
ausência de um tal hóspede.
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A ponte sobre a ribeira de Nisa, desenho de Adam Neale |
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A passagem do exercito em Vila Velha de Ródão, desenho de Adam Neale |
Guerra Peninsular - 2
CAPITULO XXIX
Sucessos da expedição dos
Académicos de Coimbra até Leiria. Restaura-se esta última cidade, e se procuram
os meios de a pôr em estado de defesa. Levantamento da Nazaré e povoações
vizinhas, e consequências que teve.
(…) Chegaram
por este tempo a Leiria emissários da Nazaré, a pedirem socorro contra os franceses
que guarneciam e infestavam aqueles sítios; e uma parte do destacamento dos
Académicos se pôs logo a caminho, levando consigo um corpo de paisanos, dos que
se achavam melhor armados. Os Académicos quiseram apropriar-se de toda a honra
desta acção, mas é necessário dar a cada um o que lhe pertence.
No forte da
Nazaré tinham os franceses uma guarnição de cinquenta e tantos homens com a
competente artilharia; a meia légua daí tinham mais o forte de S. Gião, com
duas peças de grosso calibre, e vinte e tantos homens, e uma força igual no de
S. Martinho, correspondendo-se todos estes pontos por sinais telegráficos, e
tudo às ordens de Miron, tenente de artilharia português, que residia na
Nazaré. O juiz da Pederneira era obrigado a fornecer diariamente aos franceses
certa quantidade de víveres, e além destes, foi intimado por ordem de Miron
para aprontar rapidamente quinhentas rações de reserva, [sob] pena de ser
saqueada a terra. Principiou o juiz, e como as não pudesse completar nas poucas
horas que lhe foram aprazadas, os franceses começaram efetivamente o saque no
primeiro de Julho, e o continuaram no dia 2. Passando nesta ocasião pela praia
uma ordenança francesa com despachos do forte de S. Martinho para o da Nazaré,
os pescadores, justamente indignados contra o bárbaro procedimento dos
invasores, caíram sobre ela, e a esfaquearam [faqueárão], gritando: morram
os franceses! Imediatamente, foi quebrado o mastro em que se faziam os
sinais de comunicação, e a sentinela que o guardava teve uma sorte igual à da
ordenança; o povo correu de todas as parte em tumulto, e os franceses, intimidados,
recolheram-se ao forte.
Acabava de
chegar a notícia da restauração de Leiria, e de publicar-se a proclamação do
Governo de Coimbra, o que animou muito os povos, e deu grande extensão aos seus
movimentos. O Juiz de Fora de Alcobaça fez aprontar toda a pólvora que apareceu
na vila, e andava por quatro arráteis (que quantidade, para fazer frente ao
inimigo!) ajuntaram-se as poucas espingardas que havia, os chuços, as foices e
os espetos em que consistia o principal armamento do paisano. Ao primeiro movimento,
os franceses de S. Gião abandonaram o forte, deixando mal encravadas as suas
duas peças, e enterrados os dois barris de pólvora; os de S. Martinho também
fugiram, indo incorporar-se a Thomières, que girava por entre as Caldas, Óbidos
e Peniche, ficando os do forte da Nazaré cercados pelo povo, que destacou um
corpo de gente ao de S. Gião para conduzir as peças, e os dois barris de
pólvora que, felizmente, foram descobertos por uns rapazes, e algumas outras
munições, que também se acharam. Aqui temos já os nossos com artilharia pronta
para baterem o forte, mas faltava quem a soubesse dirigir.
Dizia-se que
estava em Leiria um numeroso exército espanhol, e é o que sustentava os nossos
na sua temerária empresa. Era temerária, não pelo destacamento francês na
Nazaré, sim pela vizinhança das forças de Thomières nos pontos que ocupava.
Este general se pôs com efeito em movimento com alguns centenares dos seus
soldados, e mandou um emissário ao Geral dos Padres Bernardos, intimando-lhe
que tratasse de acomodar aqueles povos, e que aliás marcharia com 600 homens
[para] reduzir tudo a cinzas; mas não passou de Óbidos, fazendo adiantar
somente uma descoberta de doze ou catorze homens até o sítio da Barquinha, onde
foram repelidos por um destacamento dos nossos, composto de vários clérigos e
paisanos. Estavam dadas algumas providências, como o corte de pontes e estradas
para obstar à marcha do corpo inimigo; mas Thomières desistiu do seu projeto,
por ser informado de que desciam de Leiria o que ele supunha serem tropas
regulares, e não eram senão paisanos mal armados, estudantes, frades e
clérigos: o povo apenas soube do seu retrocesso, cuidou somente em estreitar o
cerco ao forte.
Os repiques
de sinos, com que na noite imediata foram recebidos os socorros vindos de cima,
o toque de um tambor, e o fogo das duas peças que, logo na manhã seguinte,
rompeu contra o forte, davam também ideia aos sitiados de que havia chegado
algum corpo de tropa regular; e foi talvez esta a razão porque o seu fogo quase
cessou de todo, tendo sido contínuo no dia precedente, posto que, sem mais
desgraça do que de ter ferido um moço que se afoitara a disparar sobre eles um
tiro de espingarda de cima de um monte de areia que lhe ficava sobranceiro, e
ali tinham ajuntado os ventos e consolidado alguns arbustos, que nele nasceram
e lançaram raízes. Foi sobre este monte de areia que os nossos formaram uma
espécie de parapeito, e colocaram as peças, com as quais se atirou todo o dia
para o forte, mas sem efeito algum porque, como as peças se enterravam na
areia, desconcertava-se a pontaria, e as balas não acertavam nem no forte.
Na noite que
se seguiu, desertou um artilheiro português, dos que se achavam no forte
servindo ao inimigo, e veio incorporar-se aos nossos. Este homem fez mudar tudo
de face, dando uma melhor direção ao fogo. Uma bala acertou logo sobre a porta
do forte, e lhe causou alguma ruína; com as muralhas estremeceram também os
ânimos dos seus defensores, levantaram bandeira parlamentária e capitularam,
ficando prisioneiros de guerra; mas custou muito a salvá-los das mãos do povo,
e principalmente ao comandante Miron, que se lhe tinha feito extremamente
odioso.
Tomado o
forte, voltaram os Académicos, e a paisanagem que os tinha acompanhado, com os
seus prisioneiros, deixando somente coisa de 100 armas, e uma pequena parte das
munições que se haviam achado, aos povos da Nazaré, que por este modo ficaram
novamente expostos aos insultos do inimigo, quase sem meios alguns de lhe
resistirem.
(…) Os povos
da Nazaré e Pederneira, na triste situação em que tinham ficado, prosseguiam
sempre a defensiva entre sustos contínuos, mas com grande valor. No dia 6, de
manhã, quatro atiradores, vantajosamente postados, fizeram retroceder no sítio
da Barquinha cinquenta franceses que vinham atacá-los. Recorreram aos ingleses,
que ocupavam as Berlengas, os quais lhes mandaram alguns artilheiros, e peças
de pequeno calibre, que com as que se puderam aproveitar do forte faziam o
número de dez, e foram colocadas no alto da Nazaré, para protegerem as povoações
adjacentes. Os artilheiros tornaram logo a embarcar, ficaram as peças servidas
pelos pescadores daquela costa, e assim permaneceram muitos dias. Deve-se à sua
exação nas guardas, não só o terem aprisionado quatro espias, que remeteram
para bordo de um brigue inglês, mas também fizeram acreditar que tinham ali
desembarcado alguns centenares ou milhares de ingleses, ideia que ainda traziam
os franceses quando depois vieram com maiores forças destruir estas mesmas
povoações, e que até então os tinha tido em respeito. É a este imaginário
desembarque que aludia a expressão da Gazeta de Lisboa de 14 de Julho, dos cem meninos perdidos, que dizia terem
desembarcado na praia da banda da Nazaré, e costas vizinhas de Alcobaça.
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Gravura de revista Occidente, nº 423, ano de 1890 |
CAPITULO XXXIII
(…) Na noite
de 14 para 15 [de Julho de 1808] fez Thomières uma digressão para as partes da
Nazaré com o fim de destruir e saquear as povoações daquela costa com um corpo
de 300 homens e algumas peças de artilharia, as quais não chegaram a servir. Dividiu esta tropa em três colunas, de que uma pôde, ao abrigo das trevas,
meter-se debaixo da nossa mal servida artilharia, enquanto as outras se
encaminharam à povoação, pelo centro e pelo pinhal que lhe fica à direita. Logo
que os nossos pressentiram a sua marcha, fizeram-lhes algum fogo, mas sem
direção determinada; as mesmas trevas, porém, que os inabilitavam para fazerem
pontaria, os favoreceu também, e ao povo, para se refugiarem pela beira-mar
para a parte do pinhal. Ficaram somente, por embriagados, ou por incautos, uns
poucos dos que serviam de artilheiros, e também uma mulher e alguns velhos, que
todos foram espingardeados junto às peças, exceto um, que os franceses
reservaram para lhes servir de guia, e que ainda depois quiseram espingardear
no terreiro de Alcobaça, e escapou à força de rogativas e de protestos.
Entraram
pois os franceses na Nazaré, que entregaram ao saque e ao fogo; mas este
somente se ateou em 13 ou 14 casas. O famoso templo de Nossa Senhora da Nazaré,
um dos mais frequentados, ricos, e respeitados de Portugal, e que os nossos
monarcas têm tomado debaixo da sua imediata proteção, foi roubado e profanado.
Levaram-lhe os seus ornamentos ricos, joias, dinheiro, e preciosidades:
despedaçaram o mais, quebraram uma imagem do Menino Jesus, acutilaram um
crucifixo, fizeram o órgão em pedaços, compreenderam no roubo os vasos
sagrados, e lançaram por terra o Santíssimo Sacramento.
Desceram à
praia, e aqui foi a maior destruição. De trezentas ou mais casas que
compreendia a povoação deste lugar, somente escaparam quatro, as mais ficaram
reduzidas a cinzas; e não deixaram rede ou barco que não queimassem. Foi do
número das casas incendiadas, uma barraca que ali tinham os padres Bernardos, a
qual lhes servia de casa de arrecadação dos direitos do pescado, escapando a
capela, da qual tiraram várias imagens de santos, que espingardearam no areal,
onde depois foram achados os fragmentos.
Voltaram à
Pederneira, saquearam a povoação, e duas igrejas, lançando-lhe também o fogo,
que com tudo fez aqui menor estrago. Entraram finalmente em Alcobaça cheios de
presunção e de alegria, como se viessem de ganhar uma grande vitória, e podendo
só vangloriar-se de terem feito daquelas povoações, montes de cinzas, e
reduzido os seus numerosos habitantes aos extremos da miséria, não só pela
destruição e roubo das suas casas, e quanto tinham nelas, mas também pela
sensível perda dos seus barcos e redes, sendo quase todos pescadores. Avalia-se
a perda em mais de 5000 ou 6000 cruzados, o que não admira, porque em mais de
2000 se calculam os diamantes e preciosidades do templo de Nossa Senhora da
Nazaré. Não posso deixar de lastimar que os encarregados da sua administração,
e das chaves do cofre, não tivessem dado as providências para salvarem, como
podiam, estas riquezas.
Deram os
inimigos ideia de quererem continuar a mesma devastação por todos os coutos de
Alcobaça, pois que o seu delito era o mesmo; serviu-lhes porém de resgate o
dinheiro usurpado ao convento.
(…) Loison
seguiu a estrada nova para Lisboa, Thomières veio procurar as suas antigas
posições de Caldas, Óbidos e Peniche, seguindo também o general Kellerman este
caminho por Alcobaça; e agora o veremos com o Prior dos padres Bernardos.
Incêndios, raios, mortes, é o que se podia esperar; mas teve Kellerman a bondade
de se acomodar com cento e doze moedas, em lugar das cem que Loison lhe tinha
feito restituir.
No dia 20
desembarcou Loison em Lisboa, junto ao terreiro do paço, por entre um numeroso
povo que ali concorreu, pela expectação que causava a chegada deste homem
célebre, que por muitas vezes se tinha julgado morto. Todos queriam
desenganar-se, se era verdade que ali vinha o Maneta: desenganaram-se, e
tiveram o desgosto de o verem passar, e aos seus soldados com as mochilas
recheadas dos frutos de tantos saques.
Neves, José Acúrcio das, História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomo IV, Capítulos 29 e 33, impresso na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, Lisboa, 1811
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As tropas no caminho para Mafra. Desenho de Adam Neale |
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O castelo de Torres Vedras. Desenho de Adam Neale. |
Guerra Peninsular - 3
«O relatório feito pelo juiz de fora de Alcobaça em 30 de
Março de 1811 ao intendente geral da polícia, apresentou a mais triste e
lamentável pintura dos estragos que os franceses tinham feito naquela vila, uma
das mais notáveis da Estremadura. Vinte e cinco moradas de casas haviam sido
incendiadas, a fábrica que ali havia, destruída, o mosteiro dos frades entregue
pela maior parte às chamas, os sepulcros arrombados, finalmente apresentando
tudo o quadro da maior desolação e miséria possível. Uma devastadora epidemia
apareceu ali para cúmulo e todas as desgraças, vendo-se os doentes sem socorro
algum de médico, nem de botica, não havendo ao menos um pároco para lhes
ministrar na sua hora extrema os consoladores socorros da religião. As
fazendas, e principalmente os pomares e vinhas, tinham ficado estragados. A
falta de cereais era tal que um pão de arrátel se comprava ali por 200 réis.
«Aos precedentes males se reuniu também o da extrema falta
de autoridades para providenciarem de um modo análogo às circunstâncias. O
próprio juiz de fora, José Lúcio da Veiga, que ali se tinha apresentado para
tomar conta do seu lugar, morrera em 12 de Abril, deixando abertos os ofícios
que se lhe tinham dirigido, e fechados os que eram para o corregedor da
comarca, o qual nem estava naquela vila, nem se sabia onde parava. Um juiz
vereador era por então a maior autoridade da terra, que por este modo se achava
sem ter quem executasse as ordens que de Lisboa tinham sido expedidas para o
seu bom regimen, nem haver quem dirigisse os meios necessários para atalhar a
epidemia que tanta gente vitimava. À vista pois deste quadro, tão aflitivo e
triste, o intendente geral da polícia mandou para lá o mesquinho socorro de
vinte sacas de farinha de pau [sic] e
dois caixotes de água de Inglaterra, panaceia
então muito em voga para grande número de moléstias, mas com especialidade para
a cura das febres intermitentes; todavia a extrema falta de transportes, que
para toda a parte havia, demorou consideravelmente a chegada de tal socorro. O
mesmo intendente ordenou mais que o citado juiz vereador, o bacharel José Gomes
Leitão, de acordo com o abade geral do respetivo mosteiro, desse pela sua parte
as providências económicas que um tão deplorável estado de coisas exigia,
procurando executar por si as ordens dirigidas ao corregedor, visto serem tão
urgentes e não admitirem dilação as circunstâncias em que a vila se achava. Estas
mesmas escassas providências ficaram
também paralisadas pela doença de que fora vítima aquela única autoridade, de
que resultou cair novamente aquela vila no mais deplorável abandono.
«A epidemia que ali [Alcobaça] e em Leiria tantas vítimas
fizera, estendera-se igualmente aos lugares de Alfeizerão, Famalicão,
Pederneira, Praia e Nazaré. O provedor de Leiria dizia não serem bastantes para
tratar os doentes os dois únicos cirurgiões que havia, um na Nazaré e outro em
Famalicão. O aparecimento desta fatal moléstia atribuía-se à fome que padeciam
aqueles povos, não tendo achado meios alguns de se alimentarem. Efetivamente, a
fome que houve nas províncias invadidas, foi uma das mais eficientes causas da
grande mortandade que sofreu a população do reino».
Simão José da Luz Soriano, transcrito por Francisco Baptista Zagalo na História da Misericórdia de Alcobaça - Esboço histórico desta Misericórdia desde a sua fundação até à actualidade,
páginas 228 e 229, A. M. Oliveira, Alcobaça, 1918
![]() |
A batalha do Vimeiro. Desenho de Adam Neale. |
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