CAPITULO XXIX
Sucessos da expedição dos
Académicos de Coimbra até Leiria. Restaura-se esta última cidade, e se procuram
os meios de a pôr em estado de defesa. Levantamento da Nazaré e povoações
vizinhas, e consequências que teve.
(…) Chegaram
por este tempo a Leiria emissários da Nazaré, a pedirem socorro contra os franceses
que guarneciam e infestavam aqueles sítios; e uma parte do destacamento dos
Académicos se pôs logo a caminho, levando consigo um corpo de paisanos, dos que
se achavam melhor armados. Os Académicos quiseram apropriar-se de toda a honra
desta acção, mas é necessário dar a cada um o que lhe pertence.
No forte da
Nazaré tinham os franceses uma guarnição de cinquenta e tantos homens com a
competente artilharia; a meia légua daí tinham mais o forte de S. Gião, com
duas peças de grosso calibre, e vinte e tantos homens, e uma força igual no de
S. Martinho, correspondendo-se todos estes pontos por sinais telegráficos, e
tudo às ordens de Miron, tenente de artilharia português, que residia na
Nazaré. O juiz da Pederneira era obrigado a fornecer diariamente aos franceses
certa quantidade de víveres, e além destes, foi intimado por ordem de Miron
para aprontar rapidamente quinhentas rações de reserva, [sob] pena de ser
saqueada a terra. Principiou o juiz, e como as não pudesse completar nas poucas
horas que lhe foram aprazadas, os franceses começaram efetivamente o saque no
primeiro de Julho, e o continuaram no dia 2. Passando nesta ocasião pela praia
uma ordenança francesa com despachos do forte de S. Martinho para o da Nazaré,
os pescadores, justamente indignados contra o bárbaro procedimento dos
invasores, caíram sobre ela, e a esfaquearam [faqueárão], gritando: morram
os franceses! Imediatamente, foi quebrado o mastro em que se faziam os
sinais de comunicação, e a sentinela que o guardava teve uma sorte igual à da
ordenança; o povo correu de todas as parte em tumulto, e os franceses, intimidados,
recolheram-se ao forte.
Acabava de
chegar a notícia da restauração de Leiria, e de publicar-se a proclamação do
Governo de Coimbra, o que animou muito os povos, e deu grande extensão aos seus
movimentos. O Juiz de Fora de Alcobaça fez aprontar toda a pólvora que apareceu
na vila, e andava por quatro arráteis (que quantidade, para fazer frente ao
inimigo!) ajuntaram-se as poucas espingardas que havia, os chuços, as foices e
os espetos em que consistia o principal armamento do paisano. Ao primeiro movimento,
os franceses de S. Gião abandonaram o forte, deixando mal encravadas as suas
duas peças, e enterrados os dois barris de pólvora; os de S. Martinho também
fugiram, indo incorporar-se a Thomières, que girava por entre as Caldas, Óbidos
e Peniche, ficando os do forte da Nazaré cercados pelo povo, que destacou um
corpo de gente ao de S. Gião para conduzir as peças, e os dois barris de
pólvora que, felizmente, foram descobertos por uns rapazes, e algumas outras
munições, que também se acharam. Aqui temos já os nossos com artilharia pronta
para baterem o forte, mas faltava quem a soubesse dirigir.
Dizia-se que
estava em Leiria um numeroso exército espanhol, e é o que sustentava os nossos
na sua temerária empresa. Era temerária, não pelo destacamento francês na
Nazaré, sim pela vizinhança das forças de Thomières nos pontos que ocupava.
Este general se pôs com efeito em movimento com alguns centenares dos seus
soldados, e mandou um emissário ao Geral dos Padres Bernardos, intimando-lhe
que tratasse de acomodar aqueles povos, e que aliás marcharia com 600 homens
[para] reduzir tudo a cinzas; mas não passou de Óbidos, fazendo adiantar
somente uma descoberta de doze ou catorze homens até o sítio da Barquinha, onde
foram repelidos por um destacamento dos nossos, composto de vários clérigos e
paisanos. Estavam dadas algumas providências, como o corte de pontes e estradas
para obstar à marcha do corpo inimigo; mas Thomières desistiu do seu projeto,
por ser informado de que desciam de Leiria o que ele supunha serem tropas
regulares, e não eram senão paisanos mal armados, estudantes, frades e
clérigos: o povo apenas soube do seu retrocesso, cuidou somente em estreitar o
cerco ao forte.
Os repiques
de sinos, com que na noite imediata foram recebidos os socorros vindos de cima,
o toque de um tambor, e o fogo das duas peças que, logo na manhã seguinte,
rompeu contra o forte, davam também ideia aos sitiados de que havia chegado
algum corpo de tropa regular; e foi talvez esta a razão porque o seu fogo quase
cessou de todo, tendo sido contínuo no dia precedente, posto que, sem mais
desgraça do que de ter ferido um moço que se afoitara a disparar sobre eles um
tiro de espingarda de cima de um monte de areia que lhe ficava sobranceiro, e
ali tinham ajuntado os ventos e consolidado alguns arbustos, que nele nasceram
e lançaram raízes. Foi sobre este monte de areia que os nossos formaram uma
espécie de parapeito, e colocaram as peças, com as quais se atirou todo o dia
para o forte, mas sem efeito algum porque, como as peças se enterravam na
areia, desconcertava-se a pontaria, e as balas não acertavam nem no forte.
Na noite que
se seguiu, desertou um artilheiro português, dos que se achavam no forte
servindo ao inimigo, e veio incorporar-se aos nossos. Este homem fez mudar tudo
de face, dando uma melhor direção ao fogo. Uma bala acertou logo sobre a porta
do forte, e lhe causou alguma ruína; com as muralhas estremeceram também os
ânimos dos seus defensores, levantaram bandeira parlamentária e capitularam,
ficando prisioneiros de guerra; mas custou muito a salvá-los das mãos do povo,
e principalmente ao comandante Miron, que se lhe tinha feito extremamente
odioso.
Tomado o
forte, voltaram os Académicos, e a paisanagem que os tinha acompanhado, com os
seus prisioneiros, deixando somente coisa de 100 armas, e uma pequena parte das
munições que se haviam achado, aos povos da Nazaré, que por este modo ficaram
novamente expostos aos insultos do inimigo, quase sem meios alguns de lhe
resistirem.
(…) Os povos
da Nazaré e Pederneira, na triste situação em que tinham ficado, prosseguiam
sempre a defensiva entre sustos contínuos, mas com grande valor. No dia 6, de
manhã, quatro atiradores, vantajosamente postados, fizeram retroceder no sítio
da Barquinha cinquenta franceses que vinham atacá-los. Recorreram aos ingleses,
que ocupavam as Berlengas, os quais lhes mandaram alguns artilheiros, e peças
de pequeno calibre, que com as que se puderam aproveitar do forte faziam o
número de dez, e foram colocadas no alto da Nazaré, para protegerem as povoações
adjacentes. Os artilheiros tornaram logo a embarcar, ficaram as peças servidas
pelos pescadores daquela costa, e assim permaneceram muitos dias. Deve-se à sua
exação nas guardas, não só o terem aprisionado quatro espias, que remeteram
para bordo de um brigue inglês, mas também fizeram acreditar que tinham ali
desembarcado alguns centenares ou milhares de ingleses, ideia que ainda traziam
os franceses quando depois vieram com maiores forças destruir estas mesmas
povoações, e que até então os tinha tido em respeito. É a este imaginário
desembarque que aludia a expressão da Gazeta de Lisboa de 14 de Julho, dos cem meninos perdidos, que dizia terem
desembarcado na praia da banda da Nazaré, e costas vizinhas de Alcobaça.
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Gravura de revista Occidente, nº 423, ano de 1890 |
CAPITULO XXXIII
(…) Na noite
de 14 para 15 [de Julho de 1808] fez Thomières uma digressão para as partes da
Nazaré com o fim de destruir e saquear as povoações daquela costa com um corpo
de 300 homens e algumas peças de artilharia, as quais não chegaram a servir. Dividiu esta tropa em três colunas, de que uma pôde, ao abrigo das trevas,
meter-se debaixo da nossa mal servida artilharia, enquanto as outras se
encaminharam à povoação, pelo centro e pelo pinhal que lhe fica à direita. Logo
que os nossos pressentiram a sua marcha, fizeram-lhes algum fogo, mas sem
direção determinada; as mesmas trevas, porém, que os inabilitavam para fazerem
pontaria, os favoreceu também, e ao povo, para se refugiarem pela beira-mar
para a parte do pinhal. Ficaram somente, por embriagados, ou por incautos, uns
poucos dos que serviam de artilheiros, e também uma mulher e alguns velhos, que
todos foram espingardeados junto às peças, exceto um, que os franceses
reservaram para lhes servir de guia, e que ainda depois quiseram espingardear
no terreiro de Alcobaça, e escapou à força de rogativas e de protestos.
Entraram
pois os franceses na Nazaré, que entregaram ao saque e ao fogo; mas este
somente se ateou em 13 ou 14 casas. O famoso templo de Nossa Senhora da Nazaré,
um dos mais frequentados, ricos, e respeitados de Portugal, e que os nossos
monarcas têm tomado debaixo da sua imediata proteção, foi roubado e profanado.
Levaram-lhe os seus ornamentos ricos, joias, dinheiro, e preciosidades:
despedaçaram o mais, quebraram uma imagem do Menino Jesus, acutilaram um
crucifixo, fizeram o órgão em pedaços, compreenderam no roubo os vasos
sagrados, e lançaram por terra o Santíssimo Sacramento.
Desceram à
praia, e aqui foi a maior destruição. De trezentas ou mais casas que
compreendia a povoação deste lugar, somente escaparam quatro, as mais ficaram
reduzidas a cinzas; e não deixaram rede ou barco que não queimassem. Foi do
número das casas incendiadas, uma barraca que ali tinham os padres Bernardos, a
qual lhes servia de casa de arrecadação dos direitos do pescado, escapando a
capela, da qual tiraram várias imagens de santos, que espingardearam no areal,
onde depois foram achados os fragmentos.
Voltaram à
Pederneira, saquearam a povoação, e duas igrejas, lançando-lhe também o fogo,
que com tudo fez aqui menor estrago. Entraram finalmente em Alcobaça cheios de
presunção e de alegria, como se viessem de ganhar uma grande vitória, e podendo
só vangloriar-se de terem feito daquelas povoações, montes de cinzas, e
reduzido os seus numerosos habitantes aos extremos da miséria, não só pela
destruição e roubo das suas casas, e quanto tinham nelas, mas também pela
sensível perda dos seus barcos e redes, sendo quase todos pescadores. Avalia-se
a perda em mais de 5000 ou 6000 cruzados, o que não admira, porque em mais de
2000 se calculam os diamantes e preciosidades do templo de Nossa Senhora da
Nazaré. Não posso deixar de lastimar que os encarregados da sua administração,
e das chaves do cofre, não tivessem dado as providências para salvarem, como
podiam, estas riquezas.
Deram os
inimigos ideia de quererem continuar a mesma devastação por todos os coutos de
Alcobaça, pois que o seu delito era o mesmo; serviu-lhes porém de resgate o
dinheiro usurpado ao convento.
(…) Loison
seguiu a estrada nova para Lisboa, Thomières veio procurar as suas antigas
posições de Caldas, Óbidos e Peniche, seguindo também o general Kellerman este
caminho por Alcobaça; e agora o veremos com o Prior dos padres Bernardos.
Incêndios, raios, mortes, é o que se podia esperar; mas teve Kellerman a bondade
de se acomodar com cento e doze moedas, em lugar das cem que Loison lhe tinha
feito restituir.
No dia 20
desembarcou Loison em Lisboa, junto ao terreiro do paço, por entre um numeroso
povo que ali concorreu, pela expectação que causava a chegada deste homem
célebre, que por muitas vezes se tinha julgado morto. Todos queriam
desenganar-se, se era verdade que ali vinha o Maneta: desenganaram-se, e
tiveram o desgosto de o verem passar, e aos seus soldados com as mochilas
recheadas dos frutos de tantos saques.
Neves, José Acúrcio das, História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomo IV, Capítulos 29 e 33, impresso na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, Lisboa, 1811
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As tropas no caminho para Mafra. Desenho de Adam Neale |
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O castelo de Torres Vedras. Desenho de Adam Neale. |
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