quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O CASTELO DE ALFEIZERÃO E A SUA LENDA - pelo Marquês de Rio Maior


     Durante os seis anos imediatamente anteriores ao de 1153, conquistou D. Afonso Henriques, aos mouros, todos ou quase todos os castelos e povoações da Estremadura que era, segundo ensina o Dr. Frei António Brandão, «toda a terra que corria de Coimbra até Cascais & Sintra entre o rio Tejo, & o mar Oceano, em distância quase de quarenta léguas». Esta grande empresa do rei conquistador começou em 1147, em que tomou, além de outros, o castelo de Alfeizerão, que defendia a povoação do mesmo nome, fundada em 717 pelos sarracenos e do qual ainda restam ruínas. Assentava no morro pedregoso que domina os campos do mesmo nome e era fortificação de respeito, quando os combates se feriam braço a braço e a golpes de armas brancas.
     Nesse ano de 1147 era alcaide do castelo de Alfeizerão o emir Aben-Hassan, nobre e esforçado cavaleiro que mantinha bem disciplinada e constantemente vigilante a sua gente de pé e cavalo. Esta vigilância constante impunha-se; porque, após a retomada de Leiria pelo nosso primeiro rei, crescera o perigo da reconquista cristã.
     Estavam, pois, permanentemente alerta as guarnições das fortalezas estremenhas, ainda não expugnadas pelos portugueses. De dia, saíam dela audazes cavaleiros que, em correrias, talavam os campos dos contrários, para enfraquecer e cansar o adversário e colher despojos. De noite, as sentinelas vigiavam no alto das torres, prontas a acender as almeuaras, isto é, os fachos, cuja luz indica estarem prestes a ser atacados os sítios em que ardiam, e significava urgente pedido de socorro.
     No castelo de Alfeizerão. a torre de atalaia era saliente e, como outras muitas do mesmo género, não tinha porta. Rasgava-lhe os muros uma só janela que diariamente, ao anoitecer, a sentinela designada para a a vela dessa noite, escalava, recolhendo-se logo depois a escada empregue na subida [«escalamento»], e pela qual, na manhã seguinte, a mesma sentinela desceria, quando lha trouxessem.
Aben-Hassan tinha uma filha única, a bela Zaira, a quem muito amava. Muito aferrada às crenças dos seus maiores, era tão linda que lhe chamavam a Flor de Alfeizerão. Morrera-lhe a mãe, ao dá-la à luz, e tinha-a amamentado e criado a escrava moira Axa, que se lhe afeiçoara com ternura quase maternal.
     Certa noite, Axa teve dois sonhos.

     No primeiro, uma imensa inundação de águas, fortemente agitadas pelo vento, alagava os campos de Alfeizerão. E as ondas alterosas desse mar, embatendo nas muralhas do castelo, ameaçavam derrubá-lo. Na torre albarrã, uma pombinha branca, pousada sobre o parapeito da janela, parecia observar o crescimento da cheia.
     De súbito, a ave levanta voo e afasta-se. Mas pouco depois reaparece e torna a pousar no parapeito da janela, trazendo no bico um ramo verde de oliveira em cuja ponta se põe a brilhar estrela cintilante.
     E prontamente o vento cai, o marulho serena, e as águas retrocedem. No céu, até aí caliginoso, dissipam-se as nuvens de chumbo, e a voz ovante e estentórea do almoadem, alcandorado no cimo de algum distante minarete, pronuncia três vezes a profissão de fé maometana: «Só Alá é Deus e Mafamede é o seu Profeta».
     Mas a pomba de neve, ferida por dardo invisível, estrebucha e cai desamparadamente da janela. E a mesma voz retumbante apregoa, mas agora em tom lúgubre: «A pomba não mais voará!».
     Com efeito, a ave caíra morta.

     No seu segundo sonho, Axa viu, da mesma forma, a planície de Alfeizerão inundada por uma cheia enorme, e as ondas levantadas no imenso lençol de água pela ventania, investir contra o castelo. Também, como da primeira vez, na torre de atalaia, pousava sobre o peitoril da janela uma pombinha branca. Mas esta, agora, não observa o crescer da inundação; dorme com a cabecita metida sob uma das asas.
     Redobra de intensidade o vento, aumentam de volume as águas, e torna-se mais impetuoso o ataque das vagas ao castelo, cujos paredões acabam por ceder. Então a fortaleza abate com grande fragor e, por último, desmorona-se a torre albarrã.
     Ao ruir o primeiro lanço de muralha, a pomba acorda e, como se medisse o perigo que a ameaça, desfere o voo, foge, e desaparece.

     Axa acordou e, impressionada com o que havia sonhado, foi ter com certo santão que se dizia adivinho e intérprete de sonhos, e contou-lhe os dois sonhos que tivera.
     O homem refletiu uns instantes, murmurou algumas frases ininteligíveis, e por fim disse:
     «É claro o teu sonho, ó serva do alto e nobre emir Aben-Hassan, meu senhor, e da sua filha, flor em botão!
     «As águas tumultuosas a embater nas muralhas do castelo são as hostes dos nazarenos que logo à noite hão-de vir assaltá-lo. A branca pomba, com a estrela no ramo de oliveira que lhe viste no bico, é a formosa Zaira, postada à janela da torre, como atalaia, e que deverá acender a almenara quando avistar ao longe os assaltantes.
     «Se desta sorte for dado o alarme, a guarnição do castelo, avisada e pouco depois socorrida pelos que acudirem ao chamamento do facho, travará luta com os agressores, que acabarão por fugir. A paz voltará a reinar nos campos e castelo de Alfeizerão: mas a filha do meu senhor terá morrido, prostrada por golpe de cristão. Será uma morte gloriosa num posto de honra».
     «No teu segundo sonho, humilde escrava do dito e nobre emir Aben-Hassan, meu senhor, e de sua filha, flor que perfuma e embeleza a alcáçova de Alfeizerão, as águas invasoras são igualmente o rei contrário e a sua gente a atacarem esta noite o castelo. A pombinha é também a formosa Zaira. Dorme a pomba; porque a donzela gentil não está de vigia. O desabar da torre e do castelo significa a sua conquista pelo inimigo. Não ouviste o almoadem confessar a nossa fé? É que foi vencido o Crescente, nossa bandeira. Mas a pomba de neve bateu as asas, porque o ferro do adversário não ceifou a Flor de Alfeizerão, que desta arte a glória não imortalizou.
     «Querem, pois, dizer os dois sonhos, que o castelo vai ser atacado e será conquistado, se a filha do emir não for morta na torre pelos incircuncisos, quando lá estiver de atalaia».
     Axa afastou-se então do santão, muito perturbada. Para que Alfeizerão e o seu castelo continuassem na posse da sua raça, era mister que Zaira velasse na torre, e aí a matassem. Assim predissera o adivinho, cujas palavras sempre tinham sido, para a escrava moura, outras tantas verdades.
     Induzir a jovem a encarregar-se da próxima vigia na torre, seria fácil. Já algumas vezes ela se prestara a passar ali a noite, de atalaia. Mas iria ela induzir Zaira a encarregar-se de semelhante missão, quando sabia que a morte violenta seria o termo dela? A tanto não pôde resolver-se a atribulada mulher, que se calou e, para se desculpar deste silêncio, que não ousava quebrar, mas que lhe pesava como chumbo, aventou de si para si, que talvez o santão se houvesse desta vez enganado no decifrar dos sonhos.
     Quando anoiteceu, um dos da guarnição foi para a torre de atalaia, e não tardou que, nos campos dominado pelo castelo, reinasse o silêncio. Quebrou-o, a meio da noite, o vozear de guerreiros cristãos, já dentro da fortaleza. Haviam-na escalado de surpresa, depois de terem deixado como morto o guarda, que encontraram a dormir e o acutilaram na torre albarrã, também escalada por eles.
     A inundação galgara as altas muralhas.
     Tomados de assombro, os mouros mal puderam esboçar a defesa da praça. Por sua vez, Aben-Hassan e Zaira, acordados pela vozearia e o estrépito das armas, vestiram-se à pressa, saíram a um eirado, e desse miradouro assistiram à derrota e matança dos seus, que os atacantes passavam à espada.
     Subiram depois ambos ao alto da muralha próxima. Daí, puderam medir melhor a grandeza do desastre; não mais as leis do Alcorão seriam acatadas naquela comarca marítima. Previu mais o emir que, se entrasse em combate, seria inevitavelmente vencido, não obstante a sua intrepidez, e temeu que a sua filha viesse a cair nas mãos do inimigo. Então, após breve colóquio com Zaira, abraçou-a (como refere Pinho Leal na sua obra), e com ela atirou-se da muralha abaixo; e os dois morreram despedaçados.
     Despedaçado com semelhante desfecho ficou também o coração de Axa, que os vencedores, talvez por dó, pouparam. Mas a triste não tinha consolação; porquanto se cumprira, por ela se haver calado, o que o segundo sonho anunciava: não havendo Zaira velado na torre, o castelo fora tomado, e a jovem, que os invasores não vitimaram, não morrera gloriosamente; pois voluntariamente pusera termo aos seus dias.
     Viveu mais de cem anos a mísera escrava moura, que passou o resto da sua existência a chorar a sorte mofina daquela a quem ensinara a falar e cuja morte inglória atribuía ao seu próprio silêncio.
     Diz a lenda ouvirem-se, em certas noites de luar, gemidos e queixumes que solta fantasma erradio por entre as ruínas do castelo de Alfeizerão, ou perto delas. E a mesma lenda acrescenta ser esse fantasma o da sentinela, morta pelos cristãos na torre albarrã da velha fortaleza quando se deu o assalto e que, em vez de velar, adormecera a pensar em Zaira, à qual dedicava ardente amor, sem que ela suspeitasse.
     Mortalmente ferido pelos atacantes, o guarda enamorado expirara algumas horas depois, a ouvir as lamentações com que Axa, inconsolável, meio oculta na sombra projetada pela torre, pranteava o lastimoso fim da formosa princesa que havia amamentado e criado com tanta ternura e dedicação.
     À luz da lua, o gemebundo espetro busca ali agora os despojos mortais da bem amada Flor de Alfeizerão, para lhes dar sepultura condigna; mas em vão, porque serviram de repasto a aves de rapina e feras. E os ais e lamentos que as sucessivas deceções lhe arrancam são tais que se ouvem a grande distância, até em S. Martinho do Porto. Nós, porém, nem aqui nem em parte alguma os ouvimos ainda. E certamente nunca os ouviremos.


Marquês de Rio Maior



Nota: 
     Lenda publicada em duas partes no jornal O Alcoa, nos números 21 e 23, de 16 e 30 de Maio de 1946, respetivamente. 
    O Marquês de Rio Maior usou a grafia de Zahara para o nome da filha do emir; apenas adotei a de Zaira, por ser a mais comum entre as versões publicadas da lenda. Zahara ou Zaira provém do árabe Zahra, flor. 
      A flor de Alfeizerão também o era no nome.

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