domingo, 20 de dezembro de 2020

A civitas de Eburobrittium - o território e os seus limites


A vila de Alfeizerão e toda a sua freguesia inseria-se na civitas de Eburobrittium. Uma civitas era uma cidade romana administrativamente proeminente, possuía jurisdição sobre um dado território e um fórum ou senado ao qual compareciam os seus cidadãos mais importantes; o fórum de uma cidade era o seu vértice político-administrativo, mas também um centro cívico onde convergia a sua vida religiosa e económica. Também era atribuído a designação de civitas ao território dessa cidade.

Quando é finalizada a conquista da Lusitânia pelos romanos, o imperador Augusto divide de forma “artificial” a Península Ibérica em três províncias, a Lusitânia, a Bética e a Tarraconense. A organização administrativa de cada província baseava-se na existência de “civitates” (plural de civitas) que tinham como principal função serem capitais de uma região, centros urbanos, que eram imprescindíveis aos romanos para a organização do seu território na Península e que «foram criados de raiz ou estabelecidos sobre povoações já existentes» (MANTAS, 2009: 168).

Depois de muitas deambulações (Alfeizerão, Évora de Alcobaça, Amoreira de Óbidos, Caldas, etc), a civitas de Eburobrittium foi finalmente identificada com as ruínas encontradas e escavadas na Quinta das Flores, em Óbidos. Para quem tenha em mente uma cidade com a importância que teve Eburobrittium, a área total onde se escavou até agora as ruínas na Quinta das Flores parece irrisória e modesta, mesmo tendo em conta que a construção da A8 sepultou uma parte substancial dos seus vestígios; não obstante, essa identificação funda-se num elemento crucial, o ter-se encontrado aí os vestígios remanescentes de um fórum romano, o que não aconteceria se fosse uma cidade secundária e não uma civitas. Eburobrittium é um topónimo pré-romano, talvez céltico, e a sua existência parece ter origem num centro urbano conquistado pelos romanos e assimilado à sua estrutura administrativa.

Alfeizerão, situada a uns dezasseis quilómetros lineares dessas ruínas, situava-se no interior da Civitas de Eburobrittium, do seu território administrativo. Sobre a sua extensão e limites, transcrevo um trecho elucidativo da lavra de Jorge de Alarcão (ALARCÃO, 1990:381;382):

«A civitas de Eburobrittium, na fachada atlântica, ocupava um pequeno território entre o mar e as serras de Montejunto e dos Candeeiros, cujo festo provavelmente marcava o seu limite oriental. A sul, a ribeira de Alcabrichel servia, talvez de fronteira com a civitas de Olisipo. Quanto ao limite setentrional, é mais difícil de definir, mas poderá ter ocorrido por Évora de Alcobaça e S. Gião (Nazaré).

«(…) Na área da civitas, não é fácil identificar os aglomerados urbanos secundários. Alfeizerão, outrora mais perto do mar, parece corresponder a um “vicus”, que poderá ser a Araducta de Ptolomeu. Seria [Alfeizerão] o porto de Eburobrittium, cerca de 22 km distante da capital [Jorge de Alarcão referencia Eburobrittium em Amoreira de Óbidos].

«(…) Os vestígios romanos na região são por enquanto muito reduzidos. Podem identificar-se, sem grande segurança, onze villae, que não revelam, na sua distribuição, nenhuma nítida atracção pela capital (…) A inscrição de S. Tomás de Lamas foi considerada por Hübner como testemunho epigráfico de uma cidade chamada Trutobriga, sita algures no concelho do Cadaval. Na realidade, tal cidade nunca existiu. A inscrição fazia possivelmente parte de um monumento que assinalaria o limite da civitas e poderia achar-se numa estrada que ligaria Eburobrittium a Scallabis. Outra estrada, de orientação norte-sul, punha Eburobrittium em comunicação com Collipo (a norte) e com as áreas de Torres Vedras e Mafra, estas já no território de Olisipo».

 

 

Fontes:

ALARCÃO, Jorge de, «O Domínio Romano em Portugal», p. 46-47; 88-106, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1988.

ALARCÃO, Jorge de, “Portugal, das Origens à Romanização”, in «Nova História de Portugal», volume I, p. 381-382, Editorial Presença, Lisboa, 1990.

GUERRA, Amílcar, «Plínio-o-Velho e a Lusitânia – Arqueologia e História Antiga», Edições Colibri, Lisboa, 1995.

MANTAS, Vasco Gil, «Ammaia e Civitas Igaeditanorum – Dois espaços forenses lusitanos», in Studia Lusitana, 4, p. 167-188, Museo Nacional de Arte Romano de Mérida, Mérida, 2009.

MOREIRA, José Beleza, «A Cidade Romana de Eburobrittium», Mimesis, Porto, 2002.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Alfeizerão mais pobre: a demolição da Casa do Relego

 


      A Casa do Relego, cuja origem era atribuída ao século XV, já não existe, no lugar onde as suas vetustas e arruinadas paredes ainda se erguiam teimosamente ao fim de quinhentos anos, apenas existe chão e vazio.

     Falemos um pouco dela, como numa elegia póstuma a alguém que, em vida, não se conseguiu honrar e estimar.

     O relego era um dos muitos direitos do Mosteiro donatário, que em Alfeizerão, como nos outros Coutos de Alcobaça, traduzia-se por deter o Mosteiro a exclusividade de venda de vinho de 1 de Janeiro a 31 de Março; segundo as cartas de povoamento de 1332 e 1422, o relego era regulado pelo texto do foral de Santarém (DGA/TT, Gavetas, Gav. 15, mç. 15, n.º 24), o que significava que quem desobedecesse a essa determinação, à primeira vez pagaria 5 soldos, à segunda outros cinco soldos e à terceira por «testemunho de homens bons todo o vinho seja vertido e os arcos da cuba talhados [partidos]». O direito do relego tornava necessária a existência de um edifício onde o mosteiro recebia a quinta parte das uvas colhidas (como os celeiros para os cereais e legumes), e onde se produzia, armazenava e vendia o vinho. 

     A Dra. Iria Gonçalves, na sua obra de referência sobre os Coutos de Alcobaça ( «O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e XV», Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1989) compulsou diversos elementos sobre o relego de Alfeizerão para os séculos XIV e XV e, depois desse período, encontram-se muitas outras referência documentais, das quais referimos apenas uma, porque nos permite constatar que o “relego” não era apenas um direito senhorial, mas correspondia a um lugar/edifício onde ele era aplicado. Desde muito cedo se tornou prática comum o mosteiro arrendar o direito do relego e em 1690, no triénio do abade Frei Sebastião de Sotto Maior, ele é arrendado a António Lopes taleigueiro, arrendamento que renova em 1693 e 1696 («Livro das Folhas de Receita e Despesa no Triénio do Padre Geral Frei João Osório», DGA/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 203) mas neste último triénio é a sua mulher e o seu filho que prosseguem com o relego porque este arrendatário falece a 26 de Janeiro de 1696 – no seu assento de óbito (DGA/ADLRA, IV/24/C/11, f. 64r) é mencionado como “António Lopes do relego”, referência clara ao relego como lugar onde morava, à casa do relego, como chegou até ao nosso século.

    Sobre o edifício em si, na ficha patrimonial n.º IPA.00001847 do SIPA (Sistema Informação do Património Arquitectónico) pode-se ler: «Quinta de produção com casa de um piso marcada pela existência de arco conopial da fresta da fachada principal e o nome da casa e da rua atestam a época de construção e a função do edifício (armazém e venda do vinho senhorial)». É nessa janela com arco conopial de estilo manuelino que assentava a datação estimada do edifício desaparecido. Em termos oficiais, o edifício foi classificado a 12 de Novembro de 1974 como imóvel de Valor Concelhio, mas um despacho de 28 de Janeiro de 2008 retirava-lhe essa (ténue) protecção, ficando desprovido de qualquer classificação, situação que se manteve até agora com os resultados que estão à vista. Notando o aspecto preocupante do edifício depois de ter ruído o telhado da parte onde se encontrava esta janela, já tínhamos feito uma exposição escrita sobre o assunto e em Julho deste ano, reuni os elementos acima citados e outros dados históricos dispersos numa nova exposição, esta ao SIPA e a título pessoal, numa tentativa infrutífera para que o imóvel fosse reavaliado.

     Neste momento, a casa do relego deixou de existir, foi apagada da face da terra de forma irrecuperável. Isto é muito triste e se não servir para mais nada, que ajude um pouco as pessoas a despertar, a estar atentas, para que perdas como esta não se voltem a verificar e se preserve para nós e para os que nos sucederem, o património que nos foi legado.

 

José Coutinho

23 de Novembro de 2020















sábado, 21 de novembro de 2020

Uma tragédia marítima

 


Uma tragédia marítima

Do Diário de Lisboa de 23 de Novembro de 1861 (nº 267, Imprensa Nacional, Lisboa), transcrevemos uma notícia sobre o óbito de nove marinheiros de um brigue, sete dos quais naturais da região.

(actualizamos a ortografia)

 

«Por ofício do encarregado do consulado de Portugal em Liverpool, datado de 25 de Outubro ultimo, consta terem chegado àquele porto dois marinheiros pertencentes ao brigue português “Conde”.

Para conhecimento de quem convier se faz publicar a parte do referido ofício, em que se encontram alguns pormenores sobre o abandono daquele navio:

«No dia 21 do corrente mês apresentou-se neste consulado o capitão J. O. Johannsen do brigue norueguês “R. Wold & Huitfeldt», vindo de Lagos (costa ocidental de África), e o consignatário do mesmo navio, mr. Feyn, negociante norueguês nesta praça, dando o capitão parte de ter encontrado no dia 4 de Outubro, em latitude 36º e longitude 19º, o brigue português “Conde”, sem leme, etc., tendo a bordo só dois homens, os quais ele tomara, assim como os papéis do navio, três baús com roupa, etc., pertencentes ao capitão e piloto, um cronómetro e mais alguns objectos. Também salvou trezentos couros, pouco mais ou menos, e duas velas, não podendo tripular o navio por achar-se quasi toda a sua gente com febre. Mandei logo tomar conta dos dois marinheiros e informando-me deles do que acontecera, soube que o proprietário do brigue português “Conde” é Manuel José de Conde, residente na Baía, Brasil, de onde saía no dia 17 de Agosto passado, com destino ao Porto e escala em Lisboa, trazendo a seguinte carga, segundo o manifesto: 201 caixas de açúcar e 432 sacas e 6 barricas do mesmo e 2979 couros secos e salgados.

«A tripulação era composta de 11 pessoas. Achando-se os dois marinheiros na câmara do navio para objecto de serviço, ouviram gritar e correram logo ao convés, porém, infelizmente, já não encontraram pessoa alguma. Um grande golpe de mar tinha levado tudo do mesmo e assim faleceram nove pessoas, inclusive o capitão. Os seus nomes são os seguintes, tirados da matrícula:

- Capitão, José Riquezo, de S. Martinho, 32 anos, casado, filho d António Riquezo.

- Piloto, Manuel Pereira Setieiro, de S. Martinho, 47 anos, casado, filho de José Pereira Setieiro.

- Marinheiro, Joaquim Pereira, de Venda dos Frades, 33 anos, casado, filho de António Pereira.

- Marinheiro, José Rocha, de Alfeizerão, 23 anos, casado, filho de António Rocha.

- Moço, João da Silva, de Alfeizerão, 20 anos, solteiro, filho de Joaquim da Silva.

- Moço. José Daniel, da Ericeira, 20 anos, solteiro, filho de Francisco Vicente.

- Moço. Victorino Pereira, de Alfeizerão, 21 anos, solteiro, filho de Paulino Pereira.

- Moço, Joaquim Riquezo, de Famalicão, 20 anos, solteiro, filho de Joaquim Riquezo.

- Moço, Constantino Nunes, de Salir do Porto, 20 anos, solteiro, filho de António Nunes.

Sendo os dois que se salvaram:

- Cozinheiro, Anacleto Francisco de Sales, de Cascais, 26 anos, solteiro.

- Despenseiro, Manuel Riquezo, de S. Martinho, 30 anos, casado. Este último, irmão do capitão.

Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, em 21 de Novembro de 1861 – Emílio Aquiles Monteverde».

 

 

 

 


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Três dias de um Diário (1810)


     Já havíamos relevado em tempos o diário de um oficial inglês da Guerra Peninsular, William Tomkinson («The Diary of a Cavalry Officer - on the Peninsular War and Waterloo Campaigns»), onde ele descrevia com uma profusão de detalhes as refregas e movimentações das forças inglesas e francesas na nossa região, um documento rico e invulgar.

     Desta feita, transcrevemos em versão portuguesa nossa, três entradas de diário de um outro oficial inglês, o marechal-de-campo Sir John Burgoyne, que acompanha o exército inglês na sua retirada estratégica para trás das Linhas de Torres. É um testemunho modesto em comparação com o de Tomkinson, mas não deixa de ser um contributo para o nosso conhecimento desses tempos e desse conflito em que muitos portugueses perderam a vida pela espada, pela fome e pela doença, com destaque para o funesto primeiro trimestre de 1811 em que os franceses, impedidos de alcançarem Lisboa, permaneceram na região durante o Inverno, saqueando e matando como uma alcateia de lobos.

     O “general Picton” deste diário nomeia Thomas Picton (1758-1815) general britânico de origem galesa que depois de combater nas Guerras Napoleónicas e Guerra Peninsular, tombou com uma bala na cabeça na batalha de Waterloo, sendo o oficial mais graduado a perecer nessa batalha decisiva.

     (Fonte: «Life and Correspondence of Fiel Marshal Sir John Burgoyne, Bart.», vol. I, Pickle Partners Publishing, 2012)

 

3 de Outubro de 1810 – Para Alcobaça (retirada).

A 3.ª Divisão marcha para Aljubarrota, uma boa vila, próximo à qual se travou a famosa batalha, em comemoração da qual se fundou o convento da Batalha. Este último lugar é um vasto e rico convento de monges, todos os regimentos britânicos desta divisão foram facilmente aquartelados aí, tal como os generais e muitos outros oficiais. Diversas divisões do exército britânico passaram em alturas diferentes por este lugar e algumas permaneceram aí por alguns dias, durante os quais um jantar lhe foi servido no convento para o conjunto dos oficiais. Neste dia isso foi feito pela última vez, pelo menos nos tempos presentes, porque a maior parte dos monges já tinham abandonado o convento e os que tinham ficado para trás partiram nessa mesma tarde, tinham um navio preparado em São Martinho há já algum tempo para os evacuar, com as suas provisões e outros bens. Eles deixaram uma boa quantidade de feno, palha, legumes e outros produtos, que suplicaram ao general para os distribuir porque, caso contrário, ficariam nas mãos dos franceses. E chegou uma mensagem da Quinta que se situava a meia légua dali a dizer que a família que a habitava estava prestes a partir também cumprindo as instruções dadas aos povos e informando o general que deixavam lá uma grande quantidade de vinho, milho e azeite. A vila encontrava-se deserta e os soldados começaram a pilhar as casas, mas o general Picton deu ordens em contrário mal se apercebeu disso, no entanto, muito ainda foi retirado de onde não havia moradores. Esta ordem foi muito malvista pelos soldados, as pessoas tinham sido evacuadas para Lisboa e não havia mal de maior nisso além dos danos que poderia causar à sua reputação, pelo que os soldados continuaram a saquear onde quer que fosse fácil fazê-lo impunemente. O tenente-coronel Fletcher e Chapman foram colocados em Rio Maior, não me importaria de ser eu a verificar se era possível encontrar aí uma boa posição para o exército nos montes diante desse lugar.

5 de Outubro:

O Quartel-General foi transferido para Alcobaça e a 3.ª Divisão recebeu ordens repentinas para marchar nessa tarde para Alfeizerão [«Alfelzerão»], situada a duas léguas e meia de distância. As aldeias encontravam-se todas desertas, as pessoas tinham deixado as suas coisas à mercê dos soldados, as portas das casas haviam sido em grande parte deixadas abertas, e as que assim não estavam, foram forçadas; os soldados aproveitaram-se disso, como não podia deixar de ser, no entanto, o General Picton deu ordens severas a esse respeito que impediam os soldados de se instalarem nas casas, e ordenou-lhes que acampassem a céu aberto como paga pelas suas irregularidades. Já escurecera antes da coluna do exército chegar ao ponto onde deveriam virar e sair da estrada larga e havia intervalos na linha de bagagem, parte da qual virou para a direita enquanto a restante, com os soldados, continuou na estrada maior [para as Caldas], mas ao fim de algum tempo, descobrindo que se haviam enganado, o coronel McKinnon mandou-os parar na primeira água [sic, o rio de Alfeizerão?] e instalaram-se aí para passar a noite. Deveria haver sempre alguém posicionado onde as tropas precisam de virar numa encruzilhada para mostrar a todos o caminho, nesta ocasião não resultou daí nenhuma consequência indesejada.

6 de Outubro:

Para a Roliça (retirada). Uma pequena aldeia ao pé de montes escalvados, conquistados tão bem (mas com uma desnecessária dificuldade) pelas tropas britânicas sob o comando de Sir Arthur Wellesley, alguns dias antes da batalha do Vimeiro em 1808.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Pedrógão


    Em museologia, como em muitos outros domínios, Portugal sofreu durante muitos anos de macrocefalia, o que importava era reunir nos grandes centros e sobretudo em Lisboa, tudo o que fosse encontrado de arqueologia por esse país fora, tanto o Museu Etnológico como o Museu Nacional de Arqueologia recebiam doações de material arqueológico de todas as províncias do país e tinham funcionários dedicados que percorriam o país recolhendo ou adquirindo peças arqueológicas para serem remetidas para Lisboa. Houve no passado múltiplas campanhas arqueológicas desenvolvidas sob esse fito (talvez não tão rigorosas ou científicas como seria desejável, nem prolongando os trabalhos mais do que se considerava necessário).

    No concelho de Alcobaça, por sua vez, ganhou forma ao longo do século XX uma concepção "pleiádica" de Museu, a ideia justa e razoável de que em vez de existir um museu central na sede do concelho, as diferentes freguesias deveriam albergar um pequeno núcleo museológico com o acervo que aí fosse reunido (arqueologia, etnografia, arte, etc.). Sem nos determos no acervo "hermético" da casa-museu Vieira Natividade, com peças arqueológicas e etnográficas dos concelhos de Alcobaça e Nazaré que tardam em ser organizadas e expostas de forma condigna, lembramos que essa ideia do museu deslocalizado já se encontrava presente nas reflexões de Eduíno Borges Garcia, mas que foi o Dr. Pedro Gomes Barbosa, com a criação do museu monográfico do Bárrio, que lhe deu a sua mais eloquente expressão: os itens escavados em Parreitas estão aí expostos, integrados numa exposição permanente que os explica e contextualiza. Seria salutar se a ideia fosse aplicada a outras freguesias, não só para guardar o que aí existisse, mas servindo para informar e transmitir noções sobre o património que acautelassem o desprezo ou a depredação perante o património material e imaterial da terra. Ao contrário do que por vezes se aventa de forma muito ligeira, as pessoas em geral gostam de cultura, gostam de saber sobre as suas raízes e as tradições do passado, e essa inclinação poderia ser fundamentada e enriquecida com exposições e palestras que, por sua vez, poderiam trazer de volta, mais conhecimento e mais informação num processo dinâmico de enriquecimento. 

     Lembramos aqui uma das escavações arqueológicas que se enquadram na preocupação que acima referimos de reunir espólio digno de ser guardado e/ou exposto em Lisboa. Ao lermos o artigo de José Carvalhais sobre as escavações arqueológicas em Alfeizerão, fica-nos a ideia de que se poderia ter ido mais longe, mas esses trabalhos reuniram alguns itens que ficaram em depósito na igreja paroquial antes de serem enviados para Lisboa e darem entrada no Museu Nacional de Arqueologia.

    Em 1903, José de Almeida Carvalhais fez escavações no Pedrógão e algumas sondagens arqueológicas nas Ramalheiras. Entre o espólio encontrado no Pedrógão enuncia, um sarcófago de mármore com tampa, e fragmentos de vasilha e ânfora, além de diversas ossadas, que atribuiu ao período romano (artigo acessível em: http://www.patrimoniocultural.gov.pt/static/data/publicacoes/o_arqueologo_portugues/serie_1/volume_8/90_antiguidades_romanas.pdf). O sarcófago de mármore («pia sepulcral») fora encontrado por pessoas que naquele sítio tentavam extrair pedra e é descrito como muito fragmentado.

    Um dos itens que Carvalhais levou para Lisboa foi um peso de bronze romano (um pondus), que adquiriu por compra a um rapaz que o havia achado no Pedrógão. Pelo menos esse item não se encontra “perdido” e possui uma referência segura, o n.º de Inventário 16165 do Museu Nacional de Arqueologia. A ficha pode ser consultada na hiperligação: http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=1110824&EntSep=2#gotoPosition

domingo, 4 de outubro de 2020

Apontamentos corográficos de Frei Manuel de Figueiredo sobre Alfeizerão (1782)

Seis anos depois regresso ao texto de Frei Manuel de Figueiredo na transcrição de Casimiro de Almeida, com algumas reflexões e acréscimos:

Hiperligação


Uma descrição do castelo pelo cronista frei Manuel de Figueiredo (1781)


«A vila de Alfeizerão fica superior às suas campinas, que a cercam do Sul, Norte e Poente, e desta parte se eleva um formoso rochedo, bem fronteiro à barra de Salir, sobre o qual está fundado o seu destruído Castelo, do qual mostram as ruínas era formado de uma muralha guarnecida nos quatro lados, e nos quatro centros, com oito torreões redondos; da parte do Nascente se avança uma muralha coroada de ameias, com algumas janelas desiguais na altura, e se conservam algumas abertas, e outras tapadas de pedras; no meio deste corpo está mais avançada para o Nascente outra muralha, que forma uma casa quase quadrada, e mais baixa no estado a que está reduzida; esta muralha, unida ao Castelo, o cerca também pela parte do Norte, na qual ficava a porta mais principal, que já não existe, e, fronteira a esta no corpo do Castelo e muralha interior, outra porta arcada, e da parte do Nascente, contígua à obra mais destacada em que já falamos, outra porta. A parte da obra que cerca o Castelo tem no interior várias divisões, portas e uma cisterna; esta obra, pelo que mostra, era o Palácio em que muitas [vezes] se aquartelavam os Reis, e, no ano de 1630, ainda conservava as traves, como consta das Memórias que extraímos dos Livros da Câmara».

LEROUX, Gérard, «Frei Manuel de Figueiredo – Memórias de várias vilas e terras dos Coutos de Alcobaça (1780-1781)», pp. 125-126, Alcobaça, Jornal «O Alcoa», 2020.

domingo, 30 de agosto de 2020

segunda-feira, 27 de julho de 2020

José Rino de Avelar Froes nas Incursões Monárquicas de 1911-12

José Rino de Avelar Froes (1888-1966), filho de Vitorino de Avelar Froes e Júlia Máxima Pereira Rino, estuda em Lisboa onde tira a licenciatura no Curso Diplomático e, coincidindo com a sua maioridade, assiste à implantação da República em 5 de Outubro de 1910. Monárquico até à medula e apoiante de D. Manuel II, ruma ao norte e junta-se às forças monárquicas que tentarão a restauração da Monarquia sob o comando de Paiva Couceiro. Participa nas duas frustradas incursões monárquicas de 1911-1912 e em 1919 está entre os monárquicos sob o comando de Aires de Ornelas que em Monsanto tentam iniciar uma revolta na capital que una forças e esforços com a Monarquia do Norte. Após a vitória republicana em Monsanto, José Froes é encarcerado com outros elementos do contingente monárquico vencido. Quinze anos depois do ocaso monárquico de 1919, e em virtude da sua qualidade de produtor de resina e director da União Resineira Nacional, integra a Câmara Corporativa onde fez carreira como parlamentar. Na sua terra natal, ajudou muito os desfavorecidos da vida através da instituição Casa do Povo de Alfeizerão, tendo como seu amigo e conselheiro o padre João de Matos Vieira.

Das obras de Joaquim Leitão sobre as Incursões Monárquicas, recolhemos duas passagens sobre o José Froes. Estas obras de Joaquim Leitão mostram-nos sobretudo as movimentações dos monárquicos no país vizinho, viajando por todo o lado a tentar reunir fundos e adquirir armas para a causa, ao mesmo tempo que tentam iludir a desconfiança das autoridades espanholas e as denúncias de republicanos dos dois lados da fronteira - numa teia de peripécias e aventuras de índole quixotesca que o autor narra com uma cativante simplicidade.

«(…) Sob um croquis, traçado por mão perita, José Foes José Fróes»], um dos nove cavaleiros andantes da incursão das Beiras, um chauffeur Angel e um carpinteiro construíram um falso num automóvel Morse [marca norte-americana de carros, surgida um ano antes e que era novidade]. Três dias levou a fazer a obra. Finda ela, o automóvel seguiu, só com o chauffeur, para o ponto N; ao mesmo tempo, José Froes saía, em comboio, de S. Sebastian para a cidade de Victoria.

«Dá um nome francês no livro dos hóspedes e, com o porte de um fidalgo que tivesse morto touros em Salvaterra, prepara o proprietário do hotel:

- Ao meio dia deve chegar o meu automóvel, que teve uma panne cerca de Bilbao , onde ficou a consertar. Avise-me logo que chegue.

«Às doze e um quarto, pouco mais ou menos, desse dia de Maio, luminoso e quente, apareceu o automóvel, contendo no fundo falso oitenta granadas que no ponto N recebera.

«Saltou José Fróes para o carro, e o automóvel continuou a sua derrota: Victoria – Burgos – Léon – Palencia – Astorga – Valdeôrras – Rua Petin.

«De Rua Petin iam para Ginzo. Por Verin? Por Orense? Podiam ir por uma estrada directamente a Ginzo, evitando Verin e Orense. Desconheciam-na. Resolveram ir por Verin.

«Dois carabineiros, em Verin, fizeram parar o automóvel. Examinaram, só viram mantas. As granadas dormiam no fundo oco do automóvel.

- Quien son ustedes? – inquiriram os carabineiros.

«José Fróes puxou pelo cartão dum amigo que conhecera em Biarritz, e deu ao carabineiro, que leu: “Le comte J. Romanet du Cailland”

- Hombre! – disse o carabineiro para o camarada – Dejalos passar que és un conde francês!...

- Pues… andar!

- I donde se marcha Vd., señor conde?

- A Vigo – respondeu José Froes.

«E seguiu. Á porta do Hotel Salgado estavam portugueses. Reconhecendo o automóvel e supondo que nele fosse algum dos proprietários do carro, tiraram respeitosamente o chapéu. Quando os carabineiros deram pelo logro, gritaram:

- Parar! Parar!

«O carro já ia em andamento; os carabineiros obtiveram em resposta o pé no acelerador».

(LEITÃO, 1914, pp. 200-201).

*

«Eram as seis da tarde. Já se distribuía o rancho; carneiro com arroz e cinco decilitros de vinho. O arroz mal lavado, vinha com pedras, mas assim mesmo o comiam, que a fome era realmente para devorar pedras. No seu preceito de não aceitar, em campanha, tratamento diferente do dos seus soldados, Paiva Couceiro determinou que nas rações para a escolta lhe fosse incluída a dele que seria igual à de todos, observando-se a mesma regra para o chefe do Estado-Maior.

«No pelotão dos cadetes reinava impenitente alegria. José Froes e Rodrigo Castro Pereira tinham apresentado aos cadetes o seu Pégaso: um jerico comprado por doze mil réis para lhes transportar as bagagens. Coxo, cego, o “conspirador” que os cadetes não acreditavam que deitasse até Chaves, foi todavia festejadíssimo. Sobre este intervalo cómico, os cadetes haviam voltado para a sua toilette. Barbeavam-se uns, penteavam-se outros, pédicuravam-se alguns, quando as sentinelas deram voz de alerta.

«Tudo se precipitou para os sarilhos, como estava: José Froes, que tinha os pés num alguidar de água, correu descalço a meter-se na forma; Francisco Paes de Sande e Castro, que espetava naquele momento o alfinete na seda da gravata, uniu em mangas de camisa, sem colete, só de calção e cinto, como um bóer; José Pedro Folque, com metade da cara barbeada e metade cheia de sabão; e sem confusão, sem hesitações, numa entusiástica e ordenada presteza, a Coluna formou, pronta a bater-se. A gente do campo gritava:

- O inimigo! O inimigo! Vem aí o inimigo! – e enquanto os soldados corriam para as armas, todos esses camponeses, prestimosos e entusiastas, desapareciam, passando-se uma parte da povoação para Espanha.

- É uma cobardia, é uma cobardia! – gritava o capitão Ferreira para os artilheiros que correram a armar as peças.

- Não acho cobardia nenhuma os homens irem para os seus lugares. Se eles fugissem!... – Contrapôs o Conde de Mangualde, tirando o relógio.

- Mas é uma precipitação.

- Deixe lá. Isto quando não sirva para mais nada, serve para a gente ver quanto tempo, num momento de aperto, os homens levam a armar as peças, com aquele diabo daquela mola duríssima do freio que só ajudando com o rodar é que se tem conseguido meter.

- É uma cobardia, vá-se com esta! – insistiu o capitão Ferreira.

- Cobardia ou não – concluiu o Conde de Mangualde – o que sei é que eles levaram minuto e meio a montar as peças. Não desgostei de saber. Agora desmontem as peças! – ordenou aos artilheiros.

«Era rebate falso: apenas um rebanho de ovelhas que ao longe parecera ás sentinelas do bivaque o avizinhar das forças inimigas».

(LEITÃO, «Em marcha para a 2ªa Incursão», 1915, pp. 195-197)

 

 

 

FONTES E AFLUENTES:

CHAGAS, Alvaro Pinheiro, «O Movimento Monarchico», t. I, Editores Leitão & C.ª, Porto, 1913

DIAS, C. Malheiro, «O Estado Actual da Causa Monarquicha, 1912-1913», Typographia-Editora José Bastos, Lisboa.

LEITÃO, Joaquim, «Couceiro, o Capitão Phantasma», edição do autor, Porto, 1914

LEITÃO, Joaquim, «A columna de Couceiro (a 1.ª Incursão)», edição do autor, Porto, 1915

LEITÃO, Joaquim, «Em Marcha para a 2.ª Incursão», edição do autor, Porto, 1915

NETO, Sérgio, «Do Minho ao Mandovi – Um estudo sobre o pensamento colonial de Norton de Matos», Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2016.


domingo, 26 de julho de 2020

Alfeizerão, a terra e o rio (3): Dois alvarás régios (1685 e 1698)

Seguindo a cronologia dos trabalhos efectuados nos rios de Alfeizerão e de Tornada (“Mota”) descritos numa obra do Mosteiro de Alcobaça já anteriormente indicada, o «Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças, Igrejas deste Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça» (DGA/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 92, fl. 274r), trazemos aqui dois alvarás régios que assinalam dois passos desses trabalhos no último quartel do século XVII e que reproduzimos no Apêndice documental que fecha este apontamento.

 

No primeiro alvará (Anexo A), datado de 10 de Julho de 1685 e respondendo a uma solicitação do Mosteiro de Alcobaça e de diversos moradores de Alfeizerão e do Chão da Parada, o rei incumbe o corregedor da comarca de Leiria de providenciar a abertura do rio da Mota, lançando uma finta sobre as pessoas que beneficiavam dessa abertura, entre as quais se indica a entidade Mosteiro de Alcobaça.

Tradicionalmente, e apesar dalgumas pretensões e contendas jurídicas entre o Mosteiro e a Coroa, o rio da Mota ou de Tornada era a fronteira sul dos Coutos de Alcobaça e neste Alvará também se mencionam os habitantes do Chão da Parada que, vivendo em terras realengas, também beneficiavam das obras de abertura do rio e que por isso, presumivelmente, também teriam sido fintadas para contribuírem para o custo da obra.

O Mosteiro de Alcobaça, apesar da determinação do Alvará régio, consegue eximir-se a arcar com a dita obra, isto porque os interesses do Mosteiro, nesta como em outras questões, estavam salvaguardados juridicamente pelo teor dos forais. Na primeira carta de povoamento de Alfeizerão de 21 de Outubro de 1332 (Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, 2.ª incorporação, mç. 1, n.º 1), se instrui os povoadores de Alfeizerão que «deveis logo abrir a várzea da Mota, tão bem aberta de meios como as sergentes [sic] de contra os montes e mantê-las para sempre à vossa custa», o mesmo se reitera na Carta de Foral de 1422 (Forais Antigos, nº339, maço 1, nº4), com uma pequena alteração: «E vós deveis para sempre ser obrigados a abrir a várzea da Mota, assim a aberta de meios, como as sergentes de contra os montes» (atualizamos a grafia de ambas as citações). Sobre o significado das «sergentes», de que derivou o termo sarjeta, apontamos o verbete «Sargênta» do «Diccionario de Lingua Portuguesa» de António de Moraes Silva (SILVA, 1813): «Valeta ou regueira em meio das terras húmidas, e lenteiros [lameiros], para onde escorre a água supérflua; são valas pequenas, ou serventes de valas mestras e que nelas desaguam». Atente-se nestes forais a astuta natureza definitiva dessa obrigação dos povoadores: «mantê-las para sempre à vossa custa». Quanto à «aberta de meios», explícita na segunda carta de povoamento, cremos que aludia ao curso principal do rio, à “madre do rio” que nos surge em algumas demarcações de terrenos, distinto das valas, esteiros e “sergentes” a ele ligadas.

Um dos particulares que solicitou ao rei a Provisão para a abertura do rio da Mota foi o fidalgo e proprietário Silvério da Silva da Fonseca [i], que em 1680, cinco anos antes deste Alvará, segundo informação do mencionado «Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças…», teve uma questão com o Mosteiro sobre a abertura do rio da Mota na qual defendia que a finta para uma eventual abertura do rio devia ser calculada em proporção das suas terras rotas (arroteadas, exploradas) em que o rio passava, e não dos seus juncais, pretensão que não foi aceite. No entanto, a resolução desse litígio deve ter tardado bastante porque ainda no triénio de 1699-1702, como veremos mais adiante, o Mosteiro imputava aos proprietários de terras em Alfeizerão o pagamento do dinheiro que havia emprestado para a abertura do rio pelas terras de Silvério da Silva da Fonseca.

 

O segundo alvará, de 9 de Outubro de 1698, é publicado em resposta a uma petição de Pedro da Silva da Fonseca, mas secundando a vontade manifesta do Mosteiro de Alcobaça e o interesse no reparo do rio que fora transmitida pelos moradores de Alfeizerão e São Martinho; nela, e a pedido dos interessados, determina-se que o ex-provedor da Comarca de Leiria, Manuel Lopes Madeira, pela sua experiência neste particular («como a experiencia mostrava nas aberturas de muitas Vallas, que eu fôra servido mandar-vos abrir nas ditas Villas»), assuma de novo a incumbência de preparar essas obras, repartindo os custos pelos interessados «com toda a igualdade e justiça».

O que releva neste Alvará é a prioridade dada aos diferentes aspectos da obra. Havendo na vila de Alfeizerão dinheiro dos acréscimos, deveria começar-se por abrir no Campo da vila de Alfeizerão um «rio a que chamavam a Valeta, e outras mais Vallas», e com o que acrescesse - ou se não houvesse ou não bastasse, se recolheria o dinheiro pelos interessados – se repararia então o rio da mesma vila, iniciando-se a abertura do escoante das águas para cima. Esta opção é justificada no teor do Alvará – o rio em si, «se não podia nunca reparar, de sorte que todos tivessem proveito», ou seja, só depois de se abrir a Valeta e as Valas, fazia-se (abria-se) o rio de novo, começando a jusante, no escoante das águas «porque só assim teriam todos os que possuíam fazendas naquele Campo, utilidade».

A valeta e as valas, que serviam a um tempo de drenagem e irrigação dos campos e juncais, eram uma parte essencial do valor e importância deste rio, disseminando a sua utilidade e os seus benefícios. É oportuno citar aqui, apesar disto parecer apenas senso-comum, o que nos diz sobre as “Vallas” o referido Dicionário de Morais Silva (SILVA, t. II, 1813, p. 828), cuja primeira edição data de 1789: «cova longitudinal de mais ou menos altura, e largura, que se faz nas fortificações, ou para recolher a água que escorre, e filtra das terras apauladas, para dar curso às águas [e] para navegação de vasos pequenos».

 

Em datas próximas a estes dois alvarás, nas duas últimas décadas do século XVII, encontramos algumas menções aos reparos dos rios na obra «Livro das Folhas de Receita e Despesa no Triénio do Padre Geral Frei João Osório» (DGA/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 203), obra que abrange a vigência de sete abades trienais da Congregação de Santa Maria de Alcobaça, desde o Padre Geral Frei João Osório apontado no título (triénio de 1684-1687) ao triénio de Frei Manuel Coelho (1708-1711). Neste livro menciona-se as obras no rio cujo custo se teria de repartir pelos proprietários («ereos», palavra originária de “herdeiro” vide SILVA, t. I, 1813, p. 719) mas no custo dessas obras também entrava o Mosteiro, certamente em função de propriedades próprias que lindavam com o rio.

No triénio do abade Frei João Osório (1684-1687), se declara que o Corregedor da Comarca era Juiz Comissário e executor da abertura do rio de Alfeizerão e que nesse triénio o Mosteiro emprestou 270.350 réis para a abertura do rio de Alfeizerão. No triénio de Frei Luís de Faria (1687-1690) deu-se para a abertura do rio de Alfeizerão que se chama da Mota (rio de Tornada), 181.800 réis. No triénio seguinte, de Frei Sebastião de Sotto Maior 1690-1693) ainda se devia ai Mosteiro 270.000 réis emprestados para «a abertura do rio que se abriu pelas terras de Silvério da Silva da Fonseca em Alfeizerão e que se há-de cobrar pelos ereos da dita vila». A mesma importância em dívida transitou para as contas dos três triénios seguintes, sendo ainda registada nas dívidas pendentes do triénio de Frei João Paim (1699-1702), não voltando a figurar depois disso. No triénio do abade Frei Gabriel da Glória 1702-1705), se diz que o Mosteiro despendeu «com o que nos tocava da abertura do rio de Alfeizerão e rio do Reguenguinho de Santarém, 160.263 réis» (sublinhado nosso).

 

 

 

FONTES:

CASTELLOBRANCO, José Barbosa Canaes de Figueiredo, «Arvores de Costados das famílias nobres dos Reinos de Portugal, Algarves e domínios ultramarinos», Tomo II, Lisboa, na Impressão Régia, 1831.

«Collecção Chronologica da LEGISLAÇÃO PORTUGUEZA - Compilada e annotada por José Justino de Andrade e Silva, 1683-1700», Lisboa, Imprensa Nacional, 1859.

SILVA, António de Moraes, «Diccionario de Lingua Portuguesa», tomo I, Lisboa, Typografia Lacerdina, 1813.

SILVA, António de Moraes, «Diccionario de Lingua Portuguesa», tomo II, Lisboa, Typografia Lacerdina, 1813.

[Manuscrito] «Livro de Privilégios, Jurisdições, Sentenças, Igrejas deste Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça», DGA/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 92, fl. 274r.

[Manuscrito] «Livro das Folhas de Receita e Despesa no Triénio do Padre Geral Frei João Osório» (DGA/TT, Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, liv. 203),

 

 

 

APÊNDICE DOCUMENTAL:


Anexo A - Alvará do rei D. Pedro II de 10 de Julho de 1685, sobre a abertura do rio da Mota:


«Eu El-Rei faço saber que o D. Abbade Geral da Congregação de S. Bernardio, [e] Silvério da Silva da Fonseca, Henrique Henriques de Miranda, Francisco Pedro e Manuel de Aguiar Ribeiro, me representaram por sua petição, que possuíam as suas quintas e mais fazendas no termo da Villa de Alfeizirão, e outros moradores do Logar do Chão da Parada, por entre os quais passa um rio chamado da Matta [sic], o qual, pela falta de abertura, havia annos lhe fazia muita perda; e aberto, receberiam todos grande utilidade, assim nas sementeiras, como nos juncaes que estavam perdidos com a falta da dita abertura. E porque todos o queriam abrir, e contribuir cada um com o que lhe coubesse, conforme o interesse que recebesse, e não podiam fintar-se sem Provisão minha, me pediam lhes fizesse mercê conceder-lha, para poderem abrir o dito rio e fazer a dita finta, e executal-a pelo Ministro que fosse servido nomear.

«E visto o que allegaram, e informação que se houve pelo Provedor da Commarca de Leiria, ouvindo todos os interessados, que a isso não tiveram duvida – hei por bem que o Corregedor da mesma Commarca faça abrir o rio de que se trata, fintando os interessados com a parte que lhes couber, conforme ao interesse que cada um receber; concorrendo juntamente para a tal abertura o D. Abbade Geral, e fazendo executar a finta. E este Alvará se cumprirá, como se nelle contém, e valerá como Carta, sem embargo de Ordenação em contrário.

«Luiz Godinho de Niza o fez, em Lisboa, a 10 de Julho de 1685. José Fagundes Bezèrra o fez escrever. = REI

«Liv. XXXII da Chancelaria fol. 178».

(In «Collecção Chronologica da LEGISLAÇÃO PORTUGUEZA - Compilada e annotada por José Justino de Andrade e Silva, 1683-1700», p. 42, Lisboa, Imprensa Nacional, 1859)

 


Anexo B – Alvará de D. Pedro II de 9 de Outubro de 1698 sobre a abertura da Valeta, valas e rio de Alfeizerão.

 

«Eu El-REI faço saber a vós Manoel Lopes Madeira, que Pedro da Silva da Fonseca me representou por sua petição, que eu fôra servido conceder Provisão aos moradores da Villa de Alfeizirão, para que vós, servindo de Provedor da Commarca de Leiria, fizésseis abrir, no Campo da dita Villa, um Rio, a que chamavam a Valeta, e outras mais Vallas, pertencentes a elle, do dinheiro dos accrescimos que havia n’aquella Villa; e que, feita a dita obra, o mais que accrescesse se gastasse no reparo de outro Rio, que ia pelo mesmo Campo; e porque o dito Rio se não podia nunca reparar, de sorte que todos tivessem proveito, mas só deviam ter este, fazendo-se o dito Rio de novo, na fórma que sempre se observára, começando de escoante das aguas para cima; porque só assim teriam todos os que possuíam fazendas n’aquelle Campo utilidade; e que, não bastando o dinheiro que accrescesse, o mais que faltasse para a dita obra se repartisse pelos interessados, para que cada um contribuísse, conforme a utilidade que recebesse, obrando-se tudo na fórma das Provisões que eu tinha mandado passar sobre este particular, e estylo que sempre se observara em semelhantes aberturas:

«Pedindo-me lhe fizesse mercê mandar-vos que, acabada a obra da abertura da Valeta, começasseis logo, com o dinheiro que della acrescesse, a abertura do Rio da mesma Villa; e o que faltasse para se findar a dita abertura se repartisse pelos interessados, que contribuiriam, conforme a utilidade que recebessem, aguardando vós em tudo a fórma das Provisões referidas, e estylo que se observava em todas as aberturas que se começavam a fazer do escoante das águas para cima.

«E visto o que allegou , informações que sobre este particular me enviastes, ouvindo os Religiosos de S. Bernardo, e Povo, e que outrosim me representaram os moradores das Villas de Alfeizirão, e S. Martinho, ácerca da utilidade que lhes resultava de se abrir o Rio de Alfeizirão, á custa dos interessados, pedindo-me lhe fizesse mercê nomear-vos para fazerdes esta diligencia, que, como alguns dos interessados eram pessoas muito poderosas, só fiavam do vosso zêlo e inteireza, fizesseis a repartição da despesa com toda a igualdade e justiça, e com muita conveniencia para os Povos a dita abertura, como a experiencia mostrava nas aberturas de muitas Vallas, que eu fôra servido mandar-vos abrir nas ditas Villas, ao que assististes com grande cuidado; e que pelas muitas noticias e experiencias que tínheis, se conseguiria melhor esta obra, principalmente estando por ora desoccupado, para com maus promptidão poderes assistir a ella – hei por bem e vos mando que, sem embargo de terdes acabado o cargo de Provedor da Commarca de Leiria, façaes fazer a obra da abertura do Rio de Alfeizirão, de que os Supplicantes tratam, á custa dos que recebem esta utilidade que se considera, e que façaes o lançamento, como for justiça; para o que vos concedo toda a jurisdição; cumprindo este Alvará, como nelle se contém, que valerá, posto que seu effeito haja de durar mais de um anno, sem embargo da Ordenação do liv. 2.o tit. 40 em contrario. E pagaram de novos direitos 540 réis, que se carregaram ao Thesoureiro delles a fol. 118 do Liv. 5.o de sua receita, e se registou o conhecimento em fórma no Liv. 4.o do registo geral a fol. 263.

«André Rodrigues da Silva o fez, em Lisboa, a 9 de Outubro de 1698 = José Fagundes Bezerra o fez escrever = REI

«Liv. LIII da Chancelaria, fol. 52».

 

(In «Collecção Chronologica da LEGISLAÇÃO PORTUGUEZA - Compilada e annotada por José Justino de Andrade e Silva, 1683-1700», p. 417-418, Lisboa, Imprensa Nacional, 1859)

 



[i]  Silvério da Silva da Fonseca, fidalgo da Casa Real e alcaide-mor de Alfeizerão, era filho de Silvério Salvado de Morais e Micaela da Silva. Do casamento de Silvério da Silva da Fonseca com Maria Teresa de Ayala e Toledo nascerá o seu filho e sucessor Pedro da Silva da Fonseca Salvado, alcaide-mor de Alfeizerão (CASTELLOBRANCO,  1831, pp. 49, 147,149)


domingo, 21 de junho de 2020

Alfeizerão, a terra e o rio (2): O rio de Alfeizerão nas fontes corográficas



A caracterização do rio em fontes do século XVIII

 

1 – O «Dicionário Geográfico» do padre Luís Cardoso[i].

«Pela parte do Nascente desta vila, a distância de três ou quatro tiros de bala, estão uns montes ou outeiros entre os quais corre o rio que passa pela frente desta vila da parte do Sul, coisa de três tiros de espingarda; chamam-lhe o Rio Grande, o seu nascimento é por cima da vila de Santa Catarina, que dista desta duas léguas. A este se junta no lugar chamado das Mestras, o rio do Carvalhal Benfeito e ultimamente se mete e incorpora no distrito de Charnais o rio que vem dos Rebelos e Junqueira, lugares da freguesia da Cela; e o que vem do lugar do Vimeiro não é caudaloso, corre do Nascente a Poente da vila de Salir do Porto e entra na barra da dita vila do Sul para o Norte. Não tem arvoredos, mais que alguns salgueiros e choupos em partes e em outras se fabricam as suas margens. Tem uma ponte de pedra nesta vila, por baixo de cujos arcos já não corre água por estarem entulhados de areias; usam livremente os moradores das suas águas e com elas regam muitas fazendas; há umas marinhas [salinas] no distrito desta vila, junto ao vau de Salir, que confinam com outras daquela vila; junto delas há um chamado lago, que fez Pedro da Silva da Fonseca, que há algum tempo trazia muita abundância de peixes, mas hoje se acha entulhado».

 

2 – As memórias paroquiais de 1758[ii]

Parte I, Quesito 24:

«Não é porto de mar, mas há tradição moralmente certa que o foi, pelos vestígios de conchas e âncoras que se tem achado, porque a terra se tem alterado com as inundações das águas que correm dos montes que existem da parte do Nascente e recolhido [recuado] as águas do mar».

 

Parte III, Quesitos 1 a 19:

«Junto a esta vila para a parte do Sul há um rio em distância de duzentos passos que tem o nome de Rio de Alfeizerão, e muitos lhe chamam Rio de Charnais por passar por esse sítio, nasce em algumas fontes e montes junto ao lugar do Carvalhal Benfeito.

«Nasce com pouca água e se vai aumentando com a corrente de várias fontes que estão nas margens dele, corre todo o ano até à ponte desta vila. Somente é caudaloso quando chove muito, e uma ou duas horas depois.

«Entra neste rio o de Charnais em distância de um quarto de légua, com pouca água fora do tempo da chuva.

«É de curso arrebatado nas enchentes porque é água de monte, isto em quase toda a sua distância.

«Corre de Nascente para Poente.

«Cria enguias e alguns robalos, e nenhum outro pescado.

«As margens são cultivadas e produzem milho, feijão e algum trigo e cevada. Não tem arvoredo.

«Entra no mar no termo da vila de São Martinho a uma distância de meia légua.

«Junto a esta vila para a parte do Sul a uma distância de cento e cinquenta passos tem uma ponte de madeira no caminho que vai para a vila das Caldas.

«Tem seis moinhos [azenhas] que moem em todo o Inverno e na maior parte da Primavera a Outono.

«São as suas águas livres somente para o regadio dos campos, mas não para os moinhos que pagam o foro das águas aos padres de Santa Maria de Alcobaça.

«Desde o seu nascimento até se meter no mar tem a distância de duas léguas e meia, passa somente junto ao lugar do Carvalhal Benfeito, onde nasce, e junto a esta vila».

 

3. «Memórias para formar a História da Comarca de Alcobaça», de Frei Manuel de Figueiredo (1782)[iii]

«O seu termo produz com abundância milho, feijão, trigo e cevada; bastante vinho, nenhum azeite e pouca fruta. O rio de Charnais, que passa ao sul desta vila, em que vêm juntas as águas que nascem em muitas partes do termo de Alcobaça e Santa Catarina, tem sepultado em areia a ponte e excelentes várzeas do seu termo, arruinado o seu grande e frutífero campo, e muitas quintas com ele confinantes, sem que régias e particulares providências dos interessados na cultura e produção de tantas terras pudessem remediar o estrago pretérito nem atalhar o aumento do prejuízo».

 

4 – Respostas de Frei Manuel de Figueiredo às «Perguntas de Agricultura dirigidas aos Lavradores de Portugal» pela Academia de Ciências de Lisboa (1787)[iv]

Pergunta 30:

«As terras, a que entra a água Salgada que é só no termo da Pederneira, e Quinta do Campo do Mosteiro Donatário (estão perdidos os Campos de Alfeizerão, e S. Martinho mais próximos à baía deste nome com as entradas das águas salgadiças). Se remedeiam inundando-as com água doce deixando-as criar juncos, e outras ervagens e tornando a introduzir águas doces. Se entram as águas Salgadas com abundância, o remédio é destiná-las para pastagens».

 

Nota 1:

«As águas marítimas que entram pela garganta da baía de S. Martinho se estendiam de Alfeizerão aonde se carregavam embarcações como diz o Foral do rei D. Manuel e consta de outros Títulos do Cartório de Alcobaça e no Governo do Cardeal Infante D. Afonso que foi abade de Alcobaça de 1519 até 1520. Mandou examinar o embarcadouro de Alfeizerão, e entrou aí o seu comissário das embarcações surtas.

                «O mar foi retrocedendo tanto que sendo grande parte da Quinta que aí possui Manuel Pedro da Silva da Fonseca aforada para Salinas, e tendo em 1586 cultivados 72 talhos de Marinha já não constem indícios deles; e só ao Norte do rio de Fanhais se fabricou algum sal até ao ano de 1752.

                «O retrocesso do mar deu lugar para a cultura dos Campos de S. Martinho e Alfeizerão, e para conservação e limpeza dele alcançou o Mosteiro Donatário dois Alvarás que concedeu o nosso restaurador D. João o 4º para se fazer anual derrama de 20.000 destinados para reparar de Verão as ruínas que fizessem os invernos nos mesmos Campos de Alfeizerão, e S. Martinho».

 

 



[i] CARDOSO, Pe. Luís, «Diccionario Geografico ou Noticia Historica de todas as Cidades, Villas, Lugares e Aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dps Reynos de Portugal e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas», Tomo I, p. 479, Lisboa, na Regia Oficina Sylvana e da Academia Real, 1747.

Actualizamos o texto.

[ii] Respostas do pároco de Alfeizerão, Doutor Manuel Romão, ao inquérito elaborado pelo padre Luís Cardoso, por incumbência da Coroa. Encontra-se em DGA/TT, Memórias paroquiais, vol. 2, nº 53, p. 465 a 472.

Actualizamos o texto.

[iii] BNP, cod. 1479

[iv] Documento transcrito e estudado pelo Doutor António Valério Maduro:

MADURO, António Eduardo Veyrier Valério, «O Inquérito agrícola da Academia Real das Ciências de 1787. O caso da Comarca de Alcobaça» pub. em Mosteiros Cistercienses História, Arte, Espiritualidade e Património, direção de José Albuquerque CARREIRAS,Tomo III, pp.319-354, Alcobaça. 2013