quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Sem (mais) palavras

 


<António Madeira>

Matou Bernardo Joam á sua porta a Antonio Madeira [entrelinhado: "conforme o que disem"] em 24 dias do mes de Novembro de 619 ás nove horas da noute, pouco mais ou menos, esteve vivo sem falar nem subir ao pée nem nada [sic] desasete horas pouco mais ou menos, porque faleceo aos 25, duas horas depois do meio dia, foi somente ungido e sem a confisão porque não falou mais, nem deu sinal algum todo este tempo de homem vivo, foi enterrado na igreja em os 26 do dito mes, depois que as justiças de Alfeiserão e o ouvidor o mandarão enterrar e por verdade, hoje, 26 de Novembro de 1619.

[O padre-cura] Henrique Baptista

 

[ADLRA, IV/36/C/30, Registos de batismo, casamento e óbito da freguesia de Famalicão: 1615-1621, sem n.º de fólio. Código de referência PT/ADLRA/PRQ/PNZR01/003/0001]


domingo, 13 de fevereiro de 2022

O foral manuelino da Cela Nova (01/10/1515) e o trabalho nas obras dos castelos e muros


Os Coutos de Alcobaça possuíam duas fortalezas de primeira ordem, os castelos de Alcobaça e Alfeizerão e manter essas fortalezas reparadas e prontas para o conflito era uma responsabilidade do Abade e Mosteiro de Alcobaça que para tal, contava com o trabalho prestado pelos moradores dos Coutos através da obrigação da adua ou anáduva. A contestação a essa obrigação estará na origem da sua fixação, a título de exemplo, na letra do foral novo de D. Manuel I à Cela Nova, cujo teor se declara extensivo aos restantes concelhos dos Coutos.

Desse documento, conservado na Câmara Municipal de Alcobaça, apresentamos aqui o trecho sobre as "Obras dos Muros" (fl. 14r-14v). Na transcrição operamos algumas ligeiras adaptações ao texto, nomeadamente o desenvolvimento das abreviaturas, a separação de palavras indevidamente unidas e a conversão na grafia do u com o valor de v.

 

[Fl. 14r] Outrossy foy ora movida demãda pollos ditos comçelhos comtra o dito dom abade y seu moesteiro por serem comstrangidos y apremados por sua parte pera servjrem nas obras y muros do dito moesteiro sobre a qual cousa foram per nos vistas as scripturas do moesteiro per que se prova y achamos seer dado o dito poder ao dito moesteiro per ElRey dom fernamdo por sua carta patente. E per bem della foy sempre em posse da dita servjntia o dito moesteiro. A qual nos decraramos per este nosso foral aversse de fazer desta maneira j que os vezinhos y moradores dos ditos coutos servam per mandado do abade do dito moesteiro ou de seus ofiçiaães daqui adiante nas obras y muros // [fl. 14v] das ditas suas fortellezas como atee qui fizeram. E isto soomente sera quando nos ouvermos por nosso servjço y bem de nossos regnos de se fazerem ou refazerem os ditos castellos y muros y obras delles as quaaes nos curtam [sic] per nosso espeçial mandado ao dito abade mandarmos fazer y doutra maneira nam servjram os moradores dos ditos comçelhos nas ditas obras sem embargo da dita carta. Item da posse em que disso o dito moesteiro estava. Salvo quando nos os ditos castellos mandarmos correger como dito he.


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Na sombra dos dias: sete pequenas narrativas

 


        A leitura dos assentos paroquiais de diferentes freguesias, seja com o intuito de pesquisa histórica ou genealógica ou por mera curiosidade, acaba sempre por cruzar registos que relevam pelo seu conteúdo invulgar ou pelas informações inéditas que nos fazem chegar. Neste parco rascunho transcrevemos seis assentos paroquiais de S. Martinho do Porto em que a fatalidade e a tragédia, ontem como hoje, denotam a pérfida capacidade de supreender qualquer existência, por mais amena ou desassombrada que ela pudesse ou possa ser. Esses textos suscitam por vezes interrogações, veladas pelo tempo e pelo olvido, de forma análoga à dos episódios e eventos inconclusos dos nossos dias que parecerão misteriosos aos que nos sucederem.

                Nos dois primeiros assentos, os falecidos partilham o mesmo apelido, origem e uma condição social semelhante; por sua vez, os dois ultimos assentos reportam-se à mesma fatalidade, mas indicados pelo padre-cura de S. Martinho do Porto e pelo vigário da igreja de Nossa Senhora da Vitória de Famalicão, este indica com mais precisão o lugar onde foi encontrado, e cujo topónimo ainda hoje nos é familiar.

 

<M.el mad.a. Fis lhe hum officio de caridade>

Aos onze dias do mes de Agosto de mil setecentos e sesenta e nove faleseo com todos os sacramentos Manuel Madeira, natural e morador que foi em Alfizirão, pobre, esta sepultado no adro da igreja desta villa de S. Martinho, feci dicto die ut supra.

Antonio Dinis Coresma

[ADLRA (Arquivo Distrital de Leiria), IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, n.º de fólio ilegível]

 

<Izabel madeira, mosa solteira natural de Alfeiserão>

Aos vinte e seis dias do mes de Março anno de [mil] seis sentos e setenta e outo anos, faleseo nesta villa huma mossa por nome Izabel Madeira, a qual faleseo em casa de André Fernandes seu cunhado, hera natural da villa de Alfeizerão, não fes testamento por ser muito pobre, está enterrada no adro da Igreja desta villa para a parte do norte, feci dicto die ut supra.

Bento de Mendanha

[ADLRA, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, n.º de fólio ilegível]

 

Em os nove dias do mes de fevereiro de mil e seis sentos e outenta e hum annos acharão morto hum menino por nome Manuel, hera de idade de seis anos e meo, filho de Antonio Rodrigues Montero e de Catherina gomes sua mulher [moradores] na varzea de Alfeizerão, ficando na dita varzia huma noute tempestuoza; seu corpo foi sepultado no adro da Igreija Matriz desta Villa de Sam Martinho para a parte do norte. Feci dicto dia ut suora.

Manuel Pinto de Abreu

[ADLRA, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, n.º de fólio ilegível]

 

Em os vinte e outo dias do mes de Outubro de mil e seis sentos e outenta e dous annos acharam morta Izabel de Almeida, molher de Antonio Teixeira, com muntas facadas, moradores na Villa de Sam martinho, seu corpo está sepultado no adro da Igreja Matriz da parte do norte. Feci dicto dia ut supra.

Manuel Pinto de Abreu

[ADLRA, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, n.º de fólio ilegível]

 

Em os quinze dias do mes de Maio do anno de mil e seis sentos e noventa e nove faleseo Theresa, filha de Amaro Fernandes e de Theresa do Couto, ja defuntos, moradores que forão em a Villa de Alfiziram, e esta defunta dizem teria de idade vinte annos pouco mais ou menos, não reçebeo os sacramentos porque a acharam morta, e para que conste o sobredito fis este asento, e está sepultada no adro desta Igreija.

O Prior Antonio Cerveira e Sotto

[ADLRA, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, fl. 43r]

 

<Antonio madeira dos Raposos, Satisfes se com o bem da alma [rubrica do padre]>

Em os nove dias do mes de Julho de mil seis centos e setenta annos achou morto o meu compadre ___ [?] garcia, andando a cassa [à caça] no pe [?] de vale da serra, a Antonio madeira morador que foi nos cazais dos Rapozos, thermo de Alfezirão e freguez de Famalicão, o qual avia faltado de sua caza seis semanas, estava lansado de costas sobre huã pedra ja coruto [corrupto], de maneira que achouse, não podia sofrer; veio Antonio Fernandes seu genro e sua filha a asistir lhe ao enterro, mostrava morer [ter morrido] de acidente, foi trazido a esta villa por authoridade de justiça e está sepultado no Adro da Igreija desta dita vila, peguado ao caminho, feci dicto die ut supra.

Antonio Dinis Coresma

[ADLRA, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, n.º de fólio ilegível]


Em o mes de Julho de 1670 se achou morto Antonio Madeira dos Casais dos Raposos no arife [arrife, recife] das quebradas aonde chamão o bico da gralha, junto ao mar, freguesia de Sam Martinho, aonde jas enterrado no adro da dita igreja por não estar em estado; ja corrupto, para o trazerem a esta sua igreja e freguesia, fiserãoçe os tres ofiçios nesta igreja pelos beneses costumados della e eu e o Reverendo padre Cura Antonio Dinis Coresma repartimos ambos de permeio o que importarão os custos delles conforme manda a constituissão, igualmente a cada hum o que lhe coube; mes asima declarado. O Vigr.o Antonio de Moura ferrão

(ADLRA, IV/36/D/36, Registos de óbito da freguesia de Famalicão: 1649-1684, fl. 47r, assento n.º 185)

 

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

O caminho das madeiras do Pinhal Real e as Vigias da costa: anotações periféricas

 

Figura 1: Facho desenhado na costa portuguesa entre Salir do Porto e o Cabo Mondego
(de um mapa do holandês Nicolas Jansz Vooght no Atlas 
La Nueva, y Grande Relumbrante Antorcha de la Mar...”, Amesterdão, Johannes van Keulen, 1700)


            No ano de 1766, uma exposição elaborada pelo sargento-mor das ordenanças dos Coutos de Alcobaça, António Manuel Brazão das Neves, equaciona o estado em que se encontravam as estradas dos Coutos, nomeadamente, a que permitia o transporte de madeiras do Pinhal Real até à enseada de S. Martinho do Porto para serem embarcadas para o Arsenal Real em Lisboa; segundo ele, os trabalhos de construção e manutenção dessas estradas/Calçadas poderia beneficiar com a supressão do sistema de vigia da costa nos antigos moldes por já não se justificar nessa data, e assim se libertar para os ditos trabalhos as ordenanças cativas dessa tarefa.

        Transcrevemos essa carta do sargento-mor (Doc. 2), sobre a qual alinharemos algumas observações. Em alguns artigos por nós consultados o nome do sargento-mor figura como António Maria Brazão das Neves, lapso natural devido ao desenho fluido e equívoco das abreviaturas, mas o seu nome aparece escrito integralmente, por exemplo, no alvará de 1748 em que é nomeado como sargento-mor dos Coutos (Doc. 1).

            Na transcrição desenvolvemos as abreviaturas menos claras, marcando a mudança de folha com a sua indicação entre traços oblíquos; por opção própria, no transporte de uma folha para a seguinte apresentamos como palavras inteiras as que se encontravam divididas.

 

As Calçadas

            As estradas da comarca de Alcobaça foram objecto de repetidas críticas à sua fragilidade e insuficiência – ou não existiam ou, quando isso sucedia, não eram beneficiadas com os trabalhos de manutenção exigidos, degradando-se com rapidez. Para o período cronológico em apenso, o século XVIII, será suficiente mencionarmos dois documentos transcritos por Pedro Penteado (Penteado, 2008). No mais antigo, de 14 de Dezembro de 1756, por decreto do D. José I, ordenava-se a construção de uma calçada entre a Barquinha (hoje ”Ponte da Barca”) e Famalicão; e em sintonia era exigido às Câmaras das vilas da Pederneira, Cela, Alfeizerão e S. Martinho que obrigassem as pessoas que possuíam fazendas nesses distritos para que «logo e sem demora alguma abram vallas, ou aquedutos, pelos quaes devem ter sahída as ágoas». O outro documento, datado de 5 de Junho de 1765, traduz uma representação da Câmara da Pederneira ao rei na qual se assinala que, apesar da Provisão anterior para que as Câmaras das vilas da Pederneira, Cela, Alfeizerão e S. Martinho participassem da factura e conservação da calçada entre a Barquinha e Famalicão para «o necessário e precizo transporte de madeiras dos Pinhaes de V. Magestade para o porto de S. Martinho», a realidade era que a obra não fora concluída e que a maior parte dela se arruinara por completo; solicitando a Câmara da Pederneira que se tomassem medidas para que as obras inadiáveis se realizassem.

            O sargento-mor Brazão das Neves, na carta que aqui transcrevemos, retorna ao tema em datas coincidentes e apresenta as suas propostas para solucionar o problema. Recorda o estado lastimável das estradas e da ponte na Barquinha, em madeira e pouco segura, defendendo que para a construção de uma nova ponte e da calçada entre as vilas da Pederneira e S. Martinho do Porto deveriam concorrer estas vilas e as de Alfeizerão e (lugar do) Carvalhal Benfeito, enquanto as restantes vilas dos Coutos, mais interiores, deveriam participar na construção da calçada entre Évora de Alcobaça e a Maiorga. Para que isso fosse conseguido, o sargento-mor, além das ordenanças libertas dos seus deveres na vigilância da costa, sugeria que se estipulassem dois dias de trabalho por cada morador dos concelhos e que a superintendência do trabalho fosse confiada a pessoa de honra e desinteresse; os concelhos, entre eles, realizariam vistorias semestrais ao estado das estradas, para que fosse operada a sua manutenção e necessários reparos.

            As obras de “factura” e manutenção da estrada entre a Pederneira e S. Martinho do Porto (¹), foram efectivadas, mas longe do que pareceria desejável. Em 1787, nas suas respostas ao Inquérito sobre a agricultura da Academia Real das Ciências, Frei Manuel de Figueiredo indica que na comarca poucos caminhos são calcetados e que no termo de Alfeizerão as estradas planas ou baixas «no Inverno estão cheias de atoleiros invadiáveis», acrescentando que «presentemente, não há quem impulse os povos para os consertos das estradas» (Maduro; 2013:340). Ainda antes do final do século, em 1794, William Beckford testemunha a insegura experiência de travessia da ponte das barcas, sem parapeitos laterais, semelhante às pontes arruinadas das vizinhanças de Alcobaça (Penteado, 2008; Beckford, 1835:166-167).

            O transporte de madeira do Pinhal do Rei para S. Martinho do Porto, para a construção aí de embarcações e para ser embarcada para o Arsenal Real da Marinha em Lisboa continuaria a ser feito em condições algo precárias em carroças de tracção animal por estradas nem sempre nas melhores condições e só na segunda metade do século XIX a situação evoluiria com o chamado Caminho-de-ferro americano entre Pedreanes e S. Martinho, com vagões puxados por animais que rolavam sobre carris, inicialmente de madeira, levando para este porto as madeiras do Pinhal do Rei, e transportando no sentido inverso areia e calcário para a produção de vidro na Marinha Grande (in “O comboio americano”, artigo de J. M. Gonçalves).

            Se as propostas do sargento-mor Brazão das Neves não tiveram o impacto que este decerto esperaria, num ponto é nítido o seu contributo. Frei Manuel de Figueiredo, nas mesmas respostas sobre a agricultura da comarca, na sua nota 5.ª, explica que o rei D. José, atendendo às súplicas que lhe haviam sido dirigidas, consagra por dez anos o dito real d’água à construção de estradas e liberta os povos de concorrerem às três vigias dos fachos da Marinha (sugestão do sargento-mor, o seu mais fiel vassalo), colocando sob a alçada do Corregedor da comarca a coordenação dos trabalhos e a gestão dos dinheiros envolvidos (Maduro, 2013:352).

Figura 2: O Forte e o Facho, imagens fraccionais de um mapa da Baía
("Planta do Porto de S. Martinho e Plano de Restauração do mesmo: por L. G. de Carvalho, Tenente 
Coronel do E. C. de Engenheiros, 1815" (A.H.M.O.P., D-41-B - Folha XVIII)

Os três Fachos

            A exposição do sargento-mor Brazão das Neves, na sua parte introdutória, contém algumas informações preciosas sobre o sistema de vigilância da costa à aproximação de invasores ou corsários, alicerçado em três fachos ou pontos de vigia: S. Martinho do Porto, Cela e Vestiaria. Qualquer coisa de suspeito que fosse avistado na costa era comunicado por sinais de luzes ou fumo a partir de S. Martinho, repetidos nas vigias da Cela e da Vestiaria para que a companhia das ordenanças de Alcobaça se pusesse em campo para se opor ao perigo; a vigilância era feita por dois homens em cada um desses Fachos, de 1 de Maio a 31 de Outubro e durante 24 horas seguidas. As ordenanças de Alcobaça não eram o único meio de defesa, ao sinal dos Fachos, as populações vizinhas, com os sinos das suas igrejas a tocar a rebate, ordenariam a sua própria defesa com os combatentes que conseguissem reunir – é o que se depreende de informação do padre Luís Cardoso sobre Alfeizerão no primeiro tomo do Dicionário Geográfico: «Não se fazem Soldados nesta terra, por ser vissinha de S. Martinho, porto de mar, com Forte, aonde acodem quando há rebate; e por essa razão se não obrigarão os Auxiliares a continuar o presídio das Praças do Alentejo nas guerras passadas» (Cardoso, 1747:278). Esta isenção dos habitantes da freguesia de Alfeizerão não teria mais do que quarenta anos – nos anos de 1691, 1702 e 1706 ainda figura nos assentos de óbito da freguesia a morte de naturais da terra como soldados nas praças do Alentejo, nomeadamente em Évora, Estremoz e Campo Maior (²).

            O Facho de S. Martinho, escreve o sargento-mor, situava-se numa serra próxima ao mar, e ainda hoje persiste na toponímia o promontório do Facho, já muito delapidado pela erosão. O traço do edifício aí onde se postavam os dois vigias aparece desenhado em alguns mapas. Marino Miguel Franzini escreve em 1812: «o cabeço septentrional aonde apparecem as ruinas de huma casa, he denominado o Faxo; com cujo nome ficou pelo costume que havia de accender alli fogos, que servião de signal para o reconhecimento do porto» (Franzini, 1812:42).           O forte de S. Martinho, também descrito por Brazão das Neves, com casas no seu perímetro, deveria situar-se nas proximidades do actual farol. Em 1721, nas respostas ao inquérito da Acacemia Real de História Portuguesa, escrevia o prior António Cerveira e Souto: «E tem esta dita Villa hum forte que fica na ponta da Barra para defeza della, mas muito mal fabricado ou guarnecido por  falta de artilharia com que se podem defender a dita Barra e as embarcasoins que se recolhem a esta Bahia, muitas vezes acosados dos inimigose o dito forte está pella parte do mar quazi arruinado» (Cf. Coutinho, 2021:5).

       Num roteiro publicado em Madrid em 1789, Vicente Tofino de San Miguel descreve nesse promontório uma “torre velha” que, por ser fronteira a uma ermida (a capela de Santa Ana) não se confunde com a casa em que se erguia o Facho; lendo-se aí: «na entrada da barra se vê na ponta da Banda de bombordo uma torre velha, e da banda do Sueste está uma ermida, entrai ao longo da terra da banda do Norte e não vades muito dentro, porque de baixa-mar não há mais de 2 braças» (Tofiño de San Miguel, 1789). Ironicamente, o forte de S. Martinho foi reconstruído por inimigos da Coroa já que os invasores franceses ocuparam-no, pelo menos, desde 19 de Dezembro de 1807 e sob as ordens de famigerado general Thomiéres fez-se obras nesse forte e no forte da Nazaré (fortaleza de S. Miguel), assim como se construiu de raiz um forte de madeira em S. Gião, guarnecido com peças de artilharia (Neves, 1810:327); os três fortes comunicavam entre si por sinais telegráficos e a guarnição deste forte e a do forte de S. Martinho era idêntica: vinte e poucos homens e «duas peças de grande calibre»; em Julho de 1808, cercado o forte da Nazaré por populares, a guarnição dos fortes de S. Gião e S. Martinho abandona-os e junta-se ao exército de Thomiéres (Neves, 1811:23-25).

            A localização dos Fachos da Cela e da Vestiaria, permanece ainda (julgamos) por determinar, sendo no entanto de assinalar que Facho ocorre na toponímia na esfera dessas localidades, caso do lugar do Facho, dois quilómetros e meio a sudoeste da Cela e, dentro da Vestiaria, a rua Facho dos Poços. Sobre o primeiro, o topónimo coaduna-se com a informação do cronista Frei Manuel de Figueiredo que, falando do caminho do Vimeiro para a Cela, narra que «nada há memorável neste caminho mais que os vestígios da casa do facho, aonde assistiam vigias contínuas para acenderem o farol no caso de serem atacadas as Costas pelos inimigos da Coroa ou da Religião» (Leroux, 2020:157). A existência desses dois fachos parece ser bastante antiga, visto que Manuel Vieira Natividade escreve que já no foral da Cela se impunha aos seus moradores que mantivessem os fachos da Cela e Vestiaria (Natividade, 1960:66).

            Na sua exposição, assevera o sargento-mor Brazão das Neves que o regimento que instituíra as três vigias ou fachos remontava a 245 anos atrás, o que, se tomarmos como charneira o ano de 1766, data da missiva de Francisco Nuno Leitão que anexa a exposição do sargento-mor, temos como resultado o ano de 1521, o último ano do reinado de D. Manuel.

            Brazão das Neves defende a supressão das três vigias ou, pelo menos a transposição do facho de S. Martinho para dentro do seu forte, com as conveniências que aponta e por uma questão de precaução. Não vê utilidade na manutenção deste sistema de vigia e elabora: 245 anos antes os portos da Pederneira, Pataias e S. Martinho encontravam-se aptos para o desembarque, mas no momento em que escreve, fazê-lo era dificultoso até para os pescadores (recorde-se as recomendações de Tofiño de San Miguel), sendo improvável que o tentassem inimigos ou piratas, e argumenta que nesses 245 anos só havia memória de um desembarque de mouros na praia da Pederneira, sem grandes danos a lamentar.

            Sobre o assoreamento e ruína desses portos e ancoradouros na costa (a começar pelo porto de Alfeizerão, um dos primeiros a “cair por terra”) e o natural expediente dos corsários em atacar as suas presas em mar aberto, podemos incorporar uma narrativa concordante do cronista Manuel de Brito Alão: «uma embarcação sua [de corsários] que após umas caravelas nossas, entrou naquele porto de São Martinho que está defronte de nós, e se embaraçou, em forma que não pôde sair, e acudindo logo a gente das vilas circunvizinhas, a tomaram e, entre algumas coisas que lhe acharam do que tinham roubado, foi um cálice de prata e ornamentos de uma Igreja, que Deus parece não permitiu os profanassem os inimigos da nossa Santa Fé Católica» (Alão, 1628:f. 83v).

            Os Fachos e torres deste trecho da costa é um tema de tal forma amplo que se pode considerar sem grande exagero que é quase nada o que sabemos de certo, apesar dos válidos contributos de diferentes investigadores (Manuel Vieira Natividade, Eduíno Borges Garcia, Carlos Fidalgo e outros). A somar aos muitos sítios apontados na orla da antiga lagoa da Pederneira, a enseada mais a sul também constitui um tema em aberto com estruturas militares ou defensivas como o castelo de Alfeizerão, o forte de S. Martinho e a torre de Salir do Porto. Os três Fachos ou Vigias podem ser apenas uma parcela historiada e “activa” de um conjunto de estruturas que, para não termos uma visão deficitária do seu papel, seria porventura necessário abordar de uma forma integrada e multidisciplinar com o recurso à toponímia (/etnografia), à História e à arqueologia.


Fontes:

ALÃO, Manuel de Brito - Antiguidade da sagrada imagem de Nossa S. de Nazareth: grandezas de seu sitio, casa, & jurisdiçaõ real, sita junto à villa da Pederneira..., Lisboa, Pedro Crasbeeck Impressor del Rey, 1628.

BECKFORD, William - Recollections of an excursion to the monasteries of Alcobaça and Batalha / by the author of "Vathek". - London : Richard Bentley... publisher, : printed by Samuel Bentley, 1835.

CARDOSO, Luís - Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas, Lisboa : na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, Tomo I, 1747.

COUTINHO, J. L.- O Inquérito de 1721 da Academia Real de História Portuguesa no bispado de Leiria, Maio de 2021, texto eletrónico acessível em: https://www.academia.edu/48936341/O_Inqu%C3%A9rito_de_1721_da_Academia_Real_de_Hist%C3%B3ria_Portuguesa_no_bispado_de_Leiria

FRANZINI, Marino Miguel – Roteiro das Costas de Portugal ou Instruções náuticas para intelligencia e uso da carta reduzida da mesma costa, e dos planos particulares dos seus principaes portos, Lisboa, Impressão Regia, 1813

GONÇALVES, J. M. – “O comboio americano”, artigo de 11 de Fevereiro de 2014, acedido em http://opinhaldorei.blogspot.com/2014/02/o-comboio-americano.html. Consulta mais recente a 25 de Janeiro de 2022

LEROUX, Gérard - Frei Manuel de Figueiredo – Memórias de várias vilas e terras dos Coutos de Alcobaça (1780-1781), Alcobaça, edição do jornal “O Alcoa”, 2020.

MADURO, António Valério - O Inquérito Agrícola da Academia Real de Ciências de 1787. O caso da comarca de Alcobaça, in Mosteiros Cistercienses. História, Arte, Espiritualidade e Património, 3, 2013, p. 319-354

NATIVIDADE, Manuel Vieira – Mosteiro e Coutos de Alcobaça. Alguns Capítulos Extraídos dos Manuscritos Inéditos do Autor e Publicados no Centenário do seu Nascimento, Alcobaça, Tipografia Alcobacense, 1960

NEVES, José Acúrcio das - História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomo I, capítulo 25, impresso na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, Lisboa, 1810

NEVES, José Acúrcio das – História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomo IV, Capítulos 29 e 33, impresso na Oficina de Simão Tadeu Ferreira, Lisboa, 1811

PENTEADO, Pedro - Novos documentos para a História do Caminho Real entre a Pederneira e S. Martinho do Porto no Século XVIII, 2008, versão electrónica em https://www.slideshare.net/ppenteado/novos-documentos-para-a-histria-do-caminho-real-presentation?fbclid=IwAR2_iwLnOnuUIg1QN8d6v7xpXfrGuEiqFS1KnT2uc4U2fBCzunMtCMPh3k8. Consulta mais recente a 25 de Janeiro de 2022

TOFIÑO DE SAN MIGUEL, Vicente - Derrotero de las costas de España en el Océano Atlántico, y de las Islas Azores ó Terceras, para inteligencia y uso de las cartas esféricas presentadas al Rey ..., Madrid, por la viuda de Ibarra, Hijos y Compañía, 1789

 

APÊNDICE DOCUMENTAL

 

Doc. 1

1748, Agosto, 28, Lisboa – Alvará de nomeação de António Manuel Brazão das Neves como Sargento mor das ordenanças dos Coutos de Alcobaça, com o soldo de 80 mil réis

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 39, f.46v

 

António Manuel Brazão das Neves

Houve S. Magestade por bem, tendo Respeito a haver feito ao dito Antonio Manuel Brazão das Neves do posto de Sargento Mor da ordenança dos Coutos de Alcobaça por Patente de 22 de Julho de 1748, Há por bem que elle tenha e haja o soldo de Outenta mil rs assentados e pagos no Almoxarifado de Leiria assim como o havia de acontecer [?] nos que principiara a vencer do dia sucessivo ao que desistira do posto que antes ocupava. E mediante de que lhe foi passado Alvara a 28 de Agosto de 1748

 

Doc. 2

1766, Maio, 18, Alcobaça - Ofício de Francisco Nuno Leitão para Miguel de Arriaga Brum da Silveira, remetendo a exposição do sargento-mor das Ordenanças dos coutos de Alcobaça, António Manuel Brazão das Neves.

Arquivo Histórico Militar (AHM), Código de referência: PT/AHM/DIV/1/08/03/18

 

[Folha 1]

 

Sr. Miguel de Arriaga

            Meu Amigo e Senhor muito da minha veneração. Em hum dos correios passados recebi huma carta de V. S.a  [Vossa Senhoria], em resposta de huma que lhe escrevi; e com ella inviava a V. S.a huma conta do Sargento-Mor destes coutos. Agora remetto outra do mesmo, aberta, para que V. S.a tenha a bondade de a ver, e dar com brevidade ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Sr. Conde de Oeiras. O que o dito Sargento Mór expõem hé pura verdade, e tãobem hé certo que o mesmo procede o mais zelozo do Real Serviço, e o mais independente.

            Ficarei a V. S.a obrigado pela resposta de huma e outra, para socego do mesmo Sargento-Mór, que não descança na duvida de ser, ou não, bem aceita a sua reprezentação. Logre V. S.a saude perfeita, e todas as felicidades, que lhe deseja quem he.

De V. S.a

Amigo e vassalo ____

Francisco Nunes Leitão

                                                                                              Alcobaça, i8 de Mayo de 1766

[Folha 2]

                                                           Senhor

                        Reprezenta a Vossa Magestade o Sargento Mor das Ordenanças dos Coutos de Alcobaça o grave detrimento que padecendo as mesmas em todo o tempo do Verão a Vigia dos fachos das Villas de S. Martinho, Cella, e lugar da Vestearia.

                        Entrão as Vigias em o primeiro de Mayo, e finalizão no ultimo de Outubro, e Vigião em cada hum dos fachos dous homens 24 horas irremissivelmente.

                        Distão dos fachos da Vila da Cella e lugar da Vestearia, duas e trez legoas para o interior da terra do de S. Martinho, que se acha situado em huã Serra, próxima ao Mar, e deste hade receber o da Cella os signais que fizer, repetindo-os para se comunicarem ao da Vestearia, e por elles se fazer avizo ás Companhias da Ordenança, tocando-se a rebate para se opporem a qualquer invazão do inimigo, ou pirata.

                        Tem /[Folha 3]/ o Regimento que ordena estes fachos 245 anos, e se no seu principio parecerão precizos para a guarda dos povos, por se acharem os portos de S. Martinho, Pederneyra e Patayas praticáveis para o dezembarque, hoje [a]té para os pescadores nacionais se experimenta dificultozo, e para o inimigo ou pirata, bem ponderado o receyo de darem á Costa por ser desconhecida e brava, e o respeito que a todos faz a terra aldeã para se invadir sem segurança, tendo [a]demais a objecção de dous fortes, hum na Serra de S. Martinho e outro no Sítio de N. Sra. de Nazaré, artilhado e guarnecido de soldados, que ainda que se considerem pello inimigo ou pirata incapazes para a sua offença, sempre os deve, reputar suficientes para a nossa defeza, se figura huã total impossibilidade; pella qual ou se suspende o valor ou se não rezolve o mais ardente e bárbaro atrevimento.

                        Este juízo comprova a larga experiência de 245 anos em que /[folha 4]/ só consta por tradição vir huã lancha de Mouros á praya da Pederneyra, e não se atrevendo a escallar a villa, se retirarão apressados, levando alguãs redes e couzas de pouco vallor que se acharão nas barracas da praya.

                        Para se acautellar segundo dezembarque, justo parece se conserve a Vigia de S. Martinho, mas no forte, não só pello respeito que faz ao inimigo vello guarnecido, mas para conservação das Cazas do mesmo [forte] que, fechadas, é irreparável a sua ruína, destacando todos os mezes dous soldados e hum Cabo no tempo do Verão do forte de N. Sra. de Nazareth, que sem algum préstimo ou exercício militar, vencem fardas, pão e soldo, impondo a estes e aos que se achão de guarnição no dito forte de Nazaré o preceyto de vigiarem e do que virem suspeytoso fazerem prompto /[folha 5]/ avizo ás Companhias da Ordenança mais próximas para se porem em defeza, abolindo-se os ditos fachos ou pello prejuízo dos povos, ou porque delles não rezulta, segundo parece, a mais leve conveniência, com o ónus porém de dar cada hum, que he obrigado á sobredita vigia, dous dias de trabalho, para o que todos se offerecem sendo perguntados por mim, na erecção de huã Calçada da vila de Evora té a da Mayorga, por ser invadiável no tempo do Inverno, e pouco capaz no Verão, sem embargo de ter concorrido a incomparável grandeza de Vossa Magestade com o subsídio do Real d’ágoa da vila de Alcobaça por tempo de des annos, que são findos sem que do referido producto se seguise a utilidade das Calçadas, por se exhaurir huã boa parte em extorções, culpável omissão dos Provedores, nem o zello, nem a obrigação comovêo para o exame das calçadas, e sua  /[folha6]/ despeza, ficando as mesmas com pouca diferença no primeiro estado, como experimentou a Rainha, minha Senhora, na digressão de Nazaré e Alcobaça, sendo preciza huã considerável despeza para romper estradas por diversas fazendas, cortando olivais e vinhas, que se pagarão da Real fazenda por preços excessivos, de cujos caminhos apenas se conservão hoje os primeiros vestígios e o nome de Calçadas da Sra. Rainha, ficando sempre existindo a mesma dificuldade no giro dos Nacionaes e passageyros, de tal sorte que distando a vila de Evora huã pequena legoa da de Alcobaça, em tempo de Inverno ou ficão incomunicáveis, ou para o serem se fazem caminhos pellos pomares, vinhas e terras de pam, com grave prejuízo de seos donos, e os que ignorão este Meyo, ainda que odiozo, por ser nocivo, ou não passão, ou se precipitão com evidente risco, /[folha 7]/de sorte que muitos o tem não só experimentado nos géneros que conduzem por negocio para diversas feyras, mas na vida vendo-se no ultimo extremo metidos em atoleyros.

                        E outra da vila da Pederneyra té a vila de S. Martinho, nas partes em que for preciza para com facilidade se conduzirem as madeiras do pinhal Real de Leiria para o Arzenal, concorrendo para esta as vilas da Pederneyra, S. Martinho, Alfeizerão e Carvalhal benfeito, e para a de Evora té a Maiorga as outras vilas destes Coutos, e findas as sobreditas Calçadas, concorrerem todas as Vilas para a erecção de huã ponte no rio da Barquinha próximo á Pederneira, por ser a que existe de madeira com pouca segurança, além do prejuízo que experimenta a Real fazenda de Vossa Magestade de poucos em poucos annos nas Madeyras do referido pinhal, conduções e fábrica da mesma /[folha 8]/ ponte.

                        Quando seja do Real agrado de Vossa Magestade a prezente representação, a que me condúz o zello do bem comum, e não algum prezente ou futuro interesse, seria justo concorrerem todos os moradores sem excessão por ser comum o beneficio das Calçadas e ponte, com os dous dias de trabalho para a sua erecção ou operando ou satisfazendo a dinheyro pello estado da terra, cometendo-se a administração das ditas Calçadas a pessoa que dezempenhe com honra, dezinteresse, e cuydado o seu ministério e fundos; impor ás Camaras das Vilas de Evora, Alcobaça e Maiorga a vigoroza obrigação cada huã no seu destricto da conservação da mesma Calçada, fazendo cada huã vestoria todos os seis mezes em acto de Camara /[folha 9]/ na Calçada pertencente a diversa Villa, como por exemplo, a Camara da Villa de Evora na pertencente ao destricto da Villa de Alcobaça, esta no destricto da de Evora, a Camara da Villa de Cós na da Maiorga, e a Villa de S. Martinho, por ser a mais interessada, na Calçada da Villa té a Pederneira, de que se passarão certidões, asignadas por todos os Officiais da Camara, descrevendo nellas o estado das dita Calçada, sem algum emolumento, assim das Vestorias, como das referidas certidões, que se aprezentarão pello Procurador do Conselho ao Provedor da Camara para por ellas examinar o estado das ditas Calçadas, que achando nellas alguã ruína por omissão das ditas Camaras, a mande logo reparar á custa dos Officiais das mesmas, cobrando de cada hum executivamente /[folha 10]/ por um rateio, o que na verdade lhe pertencer, perguntando-se na rezidencia do dito Provedor se satisfez ou não á referida obrigação, ou ser o mesmo obrigado a mostrar na referida rezidencia certidões das ditas Camaras de que não faltou a ellas.

                        Bem visto que no descuido cessará o bem comum da dita Calçada, e se fará mais sensível o discomodo [descómodo] no desperdício do tempo e do trabalho.

                        Mercê Guarde a V. Magestade, Senhor

                                               O mais fiel vassallo

                                               O Sargento mor

                                   António Manuel Brazão das Neves

 


) Um pequeno troço do antigo Caminho Real entre a Pederneira e S. Martinho subsiste ainda a norte da Ponte da Barca com uma extensão comprovada de 245 metros, classificado como Sítio de Interesse Municipal. O lugar em si e a sua componente paisagística e de observação da natureza, reiteram os seus motivos de interesse.

(²) Arquivo Distrital de Leiria, IV/24/C/11, Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1666-1747 (numeração dos fólios ilegível)


quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Ainda os cativos dos corsários

Figura 1: Golfo e cidade de Tunes, com a fortaleza de Tunes e a fortaleza de La Goleta
(in Civitates orbis terrarum
¹)

Dos portugueses capturados pelos corsários mouros nas nossas costas, os mais confiados num eventual resgate e regresso à pátria seriam aqueles que tinham algo de seu ou eram filhos de algo, o que lhes conferia alguma vantagem prévia nas negociações e acordos com os corsários; os restantes, ainda que pudessem beneficiar de um resgate coletivo orquestrado pelos piedosos religiosos que o tinham por missão e causa, estavam sempre mais subordinados à sorte e ao acaso, como de comum acontece aos menos privilegiados. Se o processo de Manuel Teixeira, nascido em S. Martinho do Porto numa família de pescadores, ilustra o caso de um homem que soube virar a sorte a seu favor como quem maneja a vela de um barco para beneficiar do rumo do vento - convertendo-se ao islamismo e trabalhando ao lado dos seus captores até surgir a possibilidade de se evadir para a Europa - também existe documentado o testemunho de uma dúzia de cativos que conseguiu evadir-se do porto de Tunes e regressar à Europa pelo seu próprio engenho e sorte, entre esses evadidos contava-se um natural da Pederneira e outro do Porto de S. Martinho, respetivamente, Pêro Fernandes e António Coresma. 

Este Pêro Fernandes é distinto do "corsário" de Alfeizerão com o mesmo nome, cuja história paralela é contada no processo da Inquisição transcrito por Casimiro de Almeida; de outra feição, Coresma ou Quaresma é um apelido que ocorre por esta época nos assentos paroquiais de Alfeizerão e S. Martinho do Porto, como memorável exemplo o padre António Dinis Quaresma que foi padre-cura na igreja de S. Martinho, nascido em Alfeizerão de João Franco Quaresma e Margarida Carvalha Loba, e que à data da sua Diligência de Habilitação para Familiar do Santo Ofício (1676-77)², era Reitor na Real Igreja de Nossa Senhora da Nazaré. O pai, segundo os testemunhos discordantes dessa Diligência de Habilitação, era natural de Alfeizerão ou da Pederneira (onde terá desempenhado o cargo de tabelião na vila), mas as suas raízes familiares, e do apelido, encontravam-se em Peniche; a mãe, era natural do lugar de Meca, termo de Alenquer

A proeza da fuga do porto de Tunes³ é contada por Manuel de Brito Alão, administrador e cronista da Real Casa de Nossa Senhora da Nazaré no capítulo 66 da sua obra «Prodigiosas histórias e miraculosos sucessos acontecidos na Casa de Nossa Senhora de Nazaré» (Lisboa : por Lourenço Craesbeeck, 1637, fl. 126v):


Capítulo LXVI (Como sairão dous cativos de terra de Mouros, por intercessão da Senhora de Nazareth)

(Entram na igreja, dois cativos, com muita gente da vila da Pederneira, por dela ser natural um deles)

      Feita oração, se ergueram os cativos, e o Sacerdote os chamou e depois de lhes dar os parabéns pela sua liberdade e vinda, lhes pediu que contassem o sucesso da sua soltura & livramento. Ao que respondeu o mais velho, chamado Pêro Fernandes, natural da vila da Pederneira: notório é este povo, como há catorze anos quando eu e o meu companheiro partimos desta vila, ainda que ele, chamado António Quaresma Coresma»], há nove. Ele e eu fomos tomados nas embarcações em que partimos de nossa pátria, ao tempo em que dela saímos, por mouriscos e Turcos, e por várias vezes vendidos de uns para outros, e para vários lugares e cidades; e ultimamente para o porto de Tunes, para remarmos numa galé, em que eu, o meu companheiro e outros cristãos, muito andávamos tratando entre nós, com muito segredo, o modo como poderíamos fugir e vermo-nos livres de tão áspero cativeiro como tínhamos passado aí. E assentamos que, na barquinha da mesma galé, fugíssemos doze pessoas, que nela, apertadamente, podíamos caber; e porque fosse véspera de Santiago desse ano de mil seiscentos e trinta, por ser padroeiro de Espanha, e encomendamo-nos à Nossa Senhora da Nazaré, particularmente eu e o meu companheiro, por ser nossa padroeira, para que nos livrasse do cativeiro e do notável perigo de nossas vidas (no qual nos pusemos na tentada fuga). Aquela noite, dormindo os mouros e Turcos, tivemos ordem e lugar para nos soltarmos dos ferros em que estávamos presos a correntes, e merendamos sem sermos sentidos na barquinha com algum biscoito que pudemos guardar das nossas rações, e pouca água; cortamos o cabo que estava preso à galé, e encomendando-nos à Senhora da Nazaré, saímos pelo rio abaixo, o qual é muito estreito, e sendo sentidos pelos guardas que de uma e outra parte andam toda a noite vigiando, fazendo nesta um grande luar, nos começaram a atirar com arcabuzes e pedras, acordando as gentes que por aquelas partes se agasalhavam, vindo a perseguir-nos com grande gritaria e alarido, sem chegarem a nós, nem fazerem dano algum. 

      «Entramos no mar e com uma velazinha rota que tínhamos, e remos que trazíamos, chegamos brevemente à ilha da Sardenha, atravessando todo aquele mar com muito risco de nos perdermos e sermos outra vez tomados, que são oitenta e cinco léguas; tendo e crendo que, por intercessão da Virgem Senhora da Nazaré, fomos libertados, e nessa ilha recebidos por todos com grande gosto. E daí, embarcamos num navio para Leão [«Lionne», golfo de Leão], atravessando aquele golfão, passamos por muitas partes muito perigosas, por andarem nelas ordinariamente mouros e Turcos; sem, em toda a viagem, nem nos mais caminhos que fizemos, nos acontecer coisa que contrariasse o nosso intento e liberdade, com o que, [com] louvores a Deus, chegamos a esta santa Casa, eu e o meu companheiro, que é natural do Porto de S. Martinho, que aqui está defronte.

 

Figura 2: o rio «muito estreito» entre o Golfo de Tunes e o mar, fortemente defendido
pela fortaleza otomana de La Goleta com as suas peças de artilharia
(Detalhe da gravura anterior)

¹ BRAUN, Georg e HOGENBERG, Frans - CIVITATES ORBIS TERRARUM: LIBER PRIMUS: LIBER SECUNDUS: LIBER TERTIUS, Livro II, Publ.: Coloniae Agripinae : Excudebat Bertramus, post 1576-1606.

² Diligência de Habilitação de António Dinis Quaresma (Padre) - ANTT, Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, António, mç. 19, doc. 590, f. 45r-45v

³ «GOLETA E TUNES: Quatro legoas ao Sueste de Porto Farina está a ponta, ou Cabo de Carthago, e legoa e meia ao Su-sueste desta ponta fica a Goleta dentro do golfo de Tunes. Este golfo he de forma quasi redonda, tem 10, ou 12 milhas de largo, ou de diametro, a sua boca olha para les-nordeste; os navios dão fundo diante de Goleta, a qual foi huma Fortaleza muito celebre, mas hoje está quasi toda arruinada, e só se conserva hum baluarte, onde os Turcos tem 30 Janízaros e 10 peças de artilharia para guarda do porto. A altura do Pólo da Goleta são 36 graus, 20 minutos; observada muitas vezes por D. João de Castro, Fidalgo Portuguez, que depois foi Vice-Rei da Índia, na jornada que fez a Tunes com o Infante Dom Luís em companhia do Emperador Carlos V. Por detrás da Goleta vai hum lago de 12 milhas de comprido, onde não podem entrar mais do que barcas, no fim do qual fica a Cidade de Tunes» (PIMENTEL, Manoel - Arte de Navegar... e Roteiro das viagens e costas maritimas de Guiné, Angola, Brazil, Indias, e Ilhas Occidentaes, e Orientaes, p. 590, Lisboa, na Typografia de Antonio Rodrigues Galhardo, 1819)

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Há mouro na costa: sobre piratas e cativos


 

Os “renegados” piratas

            Durante séculos, corsários turcos e argelinos assediaram as nossas costas, quer as povoações costeiras, quer os barcos que encontravam no caminho, destruíam, pilhavam bens e faziam prisioneiros. Destes, alguns eram resgatados e voltavam à pátria, outros morriam em cativeiro, outros ainda, os chamados “renegados”, iludiam a má-fortuna e convertiam-se ao islamismo e tornavam-se corsários ao lado dos seus antigos senhores.

            Em Alfeizerão temos a notícia de um desses piratas, Pedro Fernandes da Costa, que raptado pelos piratas em Peniche, é levado para Argel, onde se converte e se torna pirata, casando-se aí com uma mulher turca chamada Jasmina, sendo-lhe confiado um barco para capitanear. Depois de o seu barco encalhar na Ericeira, é feito prisioneiro e conduzido aos Estaus, em Lisboa, onde é julgado e readquire a liberdade. Esta história novelesca é desenvolvida num processo da Inquisição que Carlos Casimiro de Almeida teve o mérito de transcrever e dar a conhecer. Em S. Martinho do Porto, encontramos Manuel Teixeira (mais cozinheiro que pirata, poderíamos dizer) que, raptado quando andava na faina da pesca com familiares seus, foi feito escravo e converteu-se ao islamismo, tendo perseverado durante quinze anos até conseguir regressar a Portugal. O pai era pescador em S. Martinho e natural das Beiras (Ílhavo?) e a mãe, Catarina Clemente, era natural de Famalicão.

 

Alguns dos que pereceram em Argel

            Nos livros paroquiais das terras próximas ao mar, também se encontra o triste registo dos que pereceram em Argel depois de para aí terem sido levados pelos seus captores. Transcrevemos esses assentos dos livros paroquiais de Alfeizerão e S. Martinho do Porto, os dois últimos assentos, mais desenvolvidos, falam-nos de dois mareantes de S. Martinho capturados no mesmo ataque pirata ao navio em que viajavam, o primeiro deles falece no designado Hospital Espanhol de Argel.

 

Em o mês de Outubro de seis sentos setenta e seis annos fis nesta igreja de São João Baptista da villa de Alfizarão os officios pella alma de Vicente Rodrigues que faleceo catiuo em Argel, cazado que foi com Isabel Ribeiro desta villa, era ut supra.

O Vigario Antão Carreira [1]

 

Em os uinte e seis dias do mês de Setembro de mil e seis sentos setenta e noue annos, fis os officios pella alma de Domingos Luis, morador que foi em esta Villa de Sam Martinho e foi cazado com Maria Clementa, por auer noua serta [certa] em como morreo em Argel aonde estaua cativo. Feci dia o dia [sic] ut supra.

Manuel Pinto de Abreu [2]

 

Em os doze dias do mês de Maio de mil e seis sentos e outenta e sete annos, fis dous ofícios pella alma de Manoel Pereira Freire por pobre, por auer nouas sertas morrera em Argel aonde estaua cativo e ser morador nesta villa e freguesia de Sam Martinho, de que fis este asento, dia, mês, era ut supra.

Manuel Pinto de Abreu [3]

 

Em os vinte e quatro dias do mês de Junho de mil e seis centos e setenta e sinco annos chegou noua certa que era falecido Gaspar Farto, mareante e morador que foi em esta villa, o qual imbarcando na Pederneira em hum nauio que sua Alteza naquella Ribeira mandou fazer, vindo acompanhado de huma fragata de guerra que o comboiava, sendo defronte de Berlenga, os Turcos queimarão a fragata e capturarão o nauio que leuarão a Argel com trinta e sinco pessoas desta villa e da Pedarneira, entre os quais hia o dito Gaspar Farto que faleceo no Hospital que os Reis de Castela sustentão naquella infame terra* para nelle se curarem os pobres e afleitos captiuos. Este, dizem faleceo com todos os sacramentos e esta sepultado no Cemeterio do mesmo Hospital. Deos lhe de sua Gloria e a todos nos, sua Graça. Feci dicto die ut supra.

Antonio Deniz Coresma [4]

* Hospital Espanhol, ou Hospital Real da Puríssima Conceição dos Padres Calçados da Santíssima Trindade da Província de Castela.

 

Em os trinta dias do mês de Setembro de mil e seis centos e setenta e seis annos fis os officios pella alma de Manoel Rodrigues, morador que foi em esta villa e mestre de hum nauio de Sua Alteza que os mouros capturarão quando se queimou a fragata chamada Piedade que [o] comboiava da Pederneira carregado de madeira para o mesmo ____  [?], e por desgraça susedeo no anno de seis centos e setenta e quatro no mês de Setembro; de prezente ueio noua certa o dito Manoel Rodrigues captiuo falecera e se dis fes testamento que athe agora não ueio. Deos o tenha em sua Gloria e a todos nos conserve em sua Graça. Feci dicto die ut supra.

Antonio Deniz Coresma [5]

 


[1] Arquivo Distrital de Leiria, IV/24/C/11, Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1666-1747, número de folha não legível

[2] ADL, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, número de folha não legível

[3] ADL, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, número de folha não legível

[4] ADL, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, número de folha não legível

[5] ADL, IV/26/A/33, Registos de óbito da freguesia de São Martinho do Porto: 1666-1733, número de folha não legível