A cultura do arroz foi iniciada
tarde na região de Alcobaça, no início do século XIX, se a cultura do milho grosso
tinha como virtude axial a subsistência dos próprios agricultores com uma
alienação marginal por venda dentro e fora do concelho, a do arroz possuía uma
elevada produtividade e rentabilidade, o que pelo seu lucro potencial a tornava
desejada pelas grandes explorações agrícolas.
Num relatório sobre essa cultura,
coevo da sua difusão no concelho de Alcobaça e concelhos contíguos (Corvo,
1860), é-nos dada uma síntese do seu método de cultivo, sobretudo a partir da
observação in loco na Quinta da
Palhagueira: o terreno em que vai ser cultivado o arroz é lavrado e cercado com
um marachão ou mota de terra bem sólida, a água é depois introduzida aí para se
conhecer o desenho das curvas de nível e se construir a partir delas as
marachas ou muretes de terra que limitam e separam os canteiros, a terra do
fundo é então aplainada da melhor forma possível com o recurso à enxada e ao
arado se os canteiros forem pequenos ou à grade para os canteiros maiores, isto
para que a espessura da água sobre o terreno seja sensivelmente a mesma em toda
a parte. A água para os arrozais era conduzida com valas a partir de cursos de
água, charcos e pântanos. A sementeira era feita nos meses de Março ou Abril e
a lanço, como a do trigo; previamente, a semente do arroz era deixada de molho
durante 24 horas, porque depois de remolhada ou “chumbada”, era lançada sobre a água e descia até ao fundo de forma
regular, ficando apenas a boiar à superfície o arroz “chocho” que não servia para semente. Depois de o arroz começar a
crescer, o arrozal necessitava de uma manutenção regular, com a adequação da altura
da água sobre o terreno e as mondas que se tornam frequentes para arrancar as
outras ervas que aí nascem e que podiam ser reutilizadas como adubo vegetal:
atadas em molhos e metidas na terra do arrozal com os pés. A ceifa era feita
nos meses de Julho a Setembro, as outras ervas apanhadas com o arroz eram
deixadas sobre o marachão maior para servirem de adubo para outras culturas
enquanto as canas do arroz eram também usadas como estrume ou, em alternativa,
como forragem para o gado de grande porte (Corvo, 1860:15-19.374-375).
O arroz era um cereal altamente
produtivo e rentável, como exemplo, o de um agricultor da Maiorga que no ano de
1848 e num terreno com 4 hectares de extensão, semeou 4 hectolitros e 20 litros
de arroz e teve como produção desse terreno, 250 hectolitros de arroz. A parte
ingrata dessa cultura é que esgotava os campos no espaço de dois ou três anos, uma
vez que no arroz, as ervas eram cada vez mais numerosas, mesmo com as mondas
frequentes. O recurso era a rotação de culturas, sobretudo com o milho
irrigado, que beneficiava das mesmas condições. O cultivo do arroz em muitas
zonas baixas ou alagadiças tomara o lugar do milho, cuja cultura se retrai um
pouco na região de Alcobaça com a introdução desta gramínea, há notícia de
arrozais nascidos da recuperação de terrenos paludosos, mas em outros pontos da
região, também é nítido que eles se haviam estendido por campos onde antes se
cultivava milho, feijão, trigo e cevada (Corvo, id., p. 19).
O outro grande inconveniente da
cultura rizícola nessa época, sem dúvida o principal, era a insalubridade e os
surtos de malária nas comunidades vizinhas aos campos onde ela se praticava e
os danos consideráveis na vida das populações, com diversos óbitos registados;
problema que fez gorar a oportunidade social e económica que os arrozais
representavam e ao qual só os avanços científicos e técnicos do século XX
conseguiram dar a réplica adequada[i].
Os primeiros ensaios da cultura do
arroz na região de Alcobaça, já com o estigma de cultura perigosa para as
comunidades que a abraçavam, ocorrem ainda no tempo dos frades bernardos; por
volta de 1824 ou 1825 produziu-se arroz nos campos do Mosteiro, na Quinta do
Valado dos Frades mas como adoecessem com “sezões”
ou febres intermitentes muitos servos e moços que trabalhavam nesses arrozais,
o médico que os tratava teria conseguido dos frades que suspendessem esse tipo
de cultura; na mesma época ter-se-ia também cultivado arroz nos campos de
Alfeizerão, cujas várzeas ofereciam o terreno ideal para essa cultura. Duas
décadas depois da partida dos monges, em 1848, cultiva-se arroz na Maiorga e a
cultura é retomada também nos campos de Alfeizerão e S. Martinho do Porto, protagonizada por três lavradores da região –
José da Trindade Leitão, Agostinho de Melo Salazar e Aureliano Pedro de Sousa e
Sá - que criam grandes searas de arroz. Essas culturas coincidiram com a ocorrência
da malária nas localidades da zona, tendo morrido também muito gado que se vinha
dessedentar na água dos arrozais. O ocorrido leva esses lavradores a desistirem
do arroz e são os próprios a tomar a iniciativa de pedir ao Governador Civil de
Leiria que proibisse essa cultura em todo o Distrito. Na Quinta da Mota, nas
margens do rio de Tornada, também se experimentou o cultivo do arroz mas devido
aos seus efeitos nocivos para a saúde, também foi abandonado por decisão do
proprietário, Joaquim António Henriques (Corvo, id., p. 225, 234). Por uma portaria do Ministério do Reino com
a data de 11 de Março de 1851, não se podia semear arroz no Distrito de Leiria
sem uma licença que a sancionasse. No então concelho de S. Martinho (freguesias
de S. Martinho, Alfeizerão, Serra do Bouro e Salir do Porto) são semeados nesse
ano 5 moios e 10 alqueires de arroz, cuja produção alcançou 83 moios e 40
alqueires; a nível do Distrito, para 50 moios e 30 alqueires de semente,
conseguiu-se obter 643 moios e 54 alqueires (Macedo, 1855:77, 80).
No
ano seguinte, o arroz reaparece com força nos campos de Alfeizerão e, pela
mesma época começa a ser semeado na
Quinta do Campo do Valado dos Frades, então propriedade do conde de Vila Real, D. José Luís de Sousa Botelho Mourão e
Vasconcelos (Corvo, id., p. 382).
As
licenças concedidas para a sementeira de arroz no concelho de Alcobaça,
acrescentam algumas informações. Aureliano Pedro de Sousa e Sá, que em 1848
desistira da cultura do arroz pelos seus custos sociais e sanitários, retoma-a
agora a 6 de Julho de 1854 com uma sementeira de 16 alqueires de arroz numa
fazenda que possuía na Corte Nova, freguesia de S. Martinho do Porto (Maduro,
2007:250). A José Luciano de Sousa e Sá, irmão deste proprietário, é concedida
uma licença a 30 de Junho de 1854, e renovada a 5 de Maio de 1859, para semear
arroz na sua Quinta do Brejo (“terrenos
do Brejo e Canal”), freguesia de Alfeizerão; a 23 de Julho de 1855 a João
Pereira da Conceição para os arrozais da Quinta do Pinheiro, na Maiorga (“terrenos do Campo e Paul, nos campos da
Maiorga”), e a 5 de Maio de 1859, a Joaquim Madeira do lugar de Vale de
Maceira, Alfeizerão, para semear arroz num campo chamado “A Mateira” (Corvo, 1860:108).
Estas
licenças conhecidas (deveria existir mais) nos campos de Alfeizerão, S.
Martinho ou Maiorga, demonstram a continuidade dessa cultura nas condições que
então existiam, mesmo com os cuidados especiais impostos pela legislação para
esse tipo de exploração, os trabalhadores continuam a mondar ou ceifar os
arrozais em águas estagnadas, muitas vezes sob a canícula que aquece as águas e
as converte num caldo microbiano; por reflexo, contraem e transmitem a malária
nas suas famílias e comunidades, doença então popularmente chamada de sezões, febres
terçãs, perniciosas, intermitentes ou paludosas.
A
oposição a esse cereal “nocivo” começara
a ganhar força dentro das povoações que marginam os campos e os seus habitantes
procuram pressionar os governantes, tendo já do seu lado as mais proeminentes
figuras locais, proprietários abastados, funcionários públicos, militares e
párocos.
Como fruto disso, em 1859 foram
publicadas no mesmo número do Diário do Governo duas representações às Cortes
sobre o problema dos arrozais[ii].
Uma delas, um abaixo-assinado dirigido
aos deputados das Cortes pelos membros das Juntas de paróquia das freguesias de
Alvorninha, Vidais, Salir e Tornada, e que se sucede a um outro abaixo-assinado
dos habitantes de Caldas, pede providências contra a cultura do arroz «que tão funesta e prejudicial está sendo à
salubridade deste concelho», reclamando uma acção imediata em nome da saúde
pública, sem a qual poderia se poderia gerar naquelas freguesias a
desobediência civil.
A outra representação, datada de 23
de Dezembro de 1858 e que era, nominalmente, dos habitantes de S. Martinho do
Porto, congrega habitantes dessa freguesia e da freguesia de Alfeizerão; e faz
uma análise mais detalhada do problema das searas de arroz, os «pântanos artificiais paludo-miasmáticos que
vieram converter este salubérrimo solo num depósito pútrido de infecção; não há
uma só habitação que não tenha experimentado os terríveis efeitos das epidemias
miasmáticas»[iii],
frisando que ela afetava sobremaneira as crianças e os «balbuciantes e impúberes». Pedem que se destrua de vez as searas de
arroz, por razões sanitárias e porque «não
temos campo para tal cultura, não se faz seara de arroz a um quarto de légua
distante da povoação, sendo aliás todo o terreno susceptível da cultura de
outras searas próprias do nosso solo e atmosfera». Segue-se a longa lista
das pessoas que assinaram a petição e, como argumento final, vão publicadas em
anexo duas listas com os óbitos nas freguesias de S. Martinho do Porto e
Alfeizerão entre os anos de 1851 e 1858 e que pretende demonstrar a escalada dos
óbitos na região desde a reintrodução do arroz no ano de 1852, as listas tinham
sido elaboradas pelos párocos das duas freguesias, respetivamente, o prior
Vitorino José Afonso Pires do Prado e o pároco António da Conceição Pires. Por
essas listas se verifica que nas freguesias de S. Martinho do Porto e
Alfeizerão, o número anual de óbitos sobe de 13 e 29 no ano de 1851 para,
respetivamente, 49 e 68 em 1856, em pleno período de cultura do arroz.
Os números apontados são eloquentes e
justificam alguma atenção. Nos assentos de óbito da freguesia de S. Martinho
para o ano com mais ocorrências, 1856[iv], o mês
mais funesto do ano foi o de Setembro, com 20 óbitos; neles não se indica a
causa dos óbitos, existindo no assento de óbito de um dos moradores a minúcia
de referir que havia morrido “de repente”.
Sobre as suas idades, importa assinalar que no conjunto dos 49 falecimentos são
referidos 3 menores de idade, além de 11 inocentes, ainda mais novos, os
vulneráveis “balbuciantes e impúberes” referidos na queixa dos
habitantes de S. Martinho. Nos livros de óbitos de Alfeizerão, os assentos
desse ano de 1856[v]
revelam que os meses ordinários da ceifa do arroz, Julho e Agosto, correspondem
à maior incidência de mortes, 39, e que no total de óbitos se contam 14 menores
e 3 inocentes. As causas do óbito também não são mencionadas mas sete moradores
não receberam os sacramentos por não poderem ou por não dar tempo para se lhes
administrar, o que pode constituir uma indicação muito ténue de que eles se
encontravam doentes na altura do óbito. A única indicação clara nos assentos desse
ano é o óbito a 17 de Julho de Jorge Marinheiro, morador em Tavarede, Figueira
da Foz, e que «morreu andando a trabalhar»
na Quinta da Mota em Alfeizerão.
Mas nos assentos de óbito desta
freguesia, para o período cronológico indicado na lista pelo pároco António da
Conceição Pires (1851-1858), encontramos 13 assentos em que se refere
expressamente que haviam morrido de doença («moléstia); as referências à moléstia estão distribuídas pelos
seguintes anos: 1851 (2), 1852 (1), 1853 (3), 1854 (1), 1857 (2) e 1858 (4)[vi]. As
referências a uma moléstia não
significa forçosamente que se tratasse da malária contraída nos arrozais mas
essa era a causa patológica de morte mais disseminada na época, de outra
feição, as duas mortes por doença em 1851 servem para nos recordar que não foi
apenas em 1852 que o arroz foi reintroduzido nas freguesias litorâneas do
concelho de Alcobaça.
Apesar da rentabilidade do cultivo
do arroz e do interesse capitalista na sua produção, as esmagadoras evidências
sanitárias em contrário acabam por preponderar. Durante a visita ao concelho do Governador Civil de Leiria[vii],
iniciada em 30 de Outubro de 1867, a Câmara de Alcobaça «solicitou as necessárias providências para se obstar a que a sementeira
de arroz que tem tido lugar nos campos da Maiorga e Alfeizerão continuasse a
ser nociva às povoações limítrofes, cujos habitantes muito têm sofrido, como se
afirma, em resultado da cultura da mesma gramínea». Na relação da mesma
visita do Governador Civil, mencionam-se os campos paludosos de Alfeizerão, com
quatro quilómetros quadrados de extensão, pântanos cujo esgoto ou enxugo urgia
ser proposto pelo engenheiro hidráulico ao Ministro das Obras Públicas.
Para
os arrozais do concelho, o correr do pano ocorre no decurso do ano de 1871. A
26 de Abril de 1871, o governador civil de Leiria, J. Ferreira da Cunha e
Sousa, reforça o pedido para que fossem proibidos os arrozais, recordando que o
delegado de saúde do Distrito lhe garantira que se perdia uma vida humana por
cada 16 hectolitros de produção de arroz, e que em algumas povoações do
concelho o povo, cansado de esperar, se levantara em massa e destruíra pelas
suas próprias mãos os arrozais que lhes eram contíguos; e pedia com veemência ao
Governador Civil que os arrozais fossem proibidos antes das novas sementeiras. Em
resposta, a 4 de Maio de 1871 o Ministro das Obras Públicas, Sebastião José de
Carvalho, Visconde de Chanceleiros, ordena que o Governador Civil do distrito
administrativo de Leiria faça constar por editais ou intimações diretas que
ficavam proibidos os arrozais no concelho de Leiria (“Diário do Governo”, n.º 101, p. 3-4, 5 de Maio de 1871, Imprensa
Nacional, Lisboa). A 16 de Maio de 1871, o mesmo Visconde, considerando que se
achavam em «idênticas circunstâncias os arrozais
do concelho de Alcobaça, no distrito de Leiria, e do concelho de Montemor o
Novo no Distrito de Évora», estendia a esses concelhos a proibição do
cultivo do arroz (“Diário do Governo”,
n.º 113, p. 2, 20 de Maio de 1871, Imprensa Nacional, Lisboa).
NOTAS:
[i]
Vide: LOBO, Ana Rita Merelo - "A História da malária em Portugal na
transição do século XIX para o século XX e a contribuição da Escola de Medicina
Tropical de Lisboa (1902-1935)", Dissertação para obtenção do Grau de
Doutor em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia,
Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências e Tecnologia, Outubro de
2012. Disponível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/9677/1/Lobo_2012.pdf,
acesso mais recente a 31 de Julho de 2021.
[ii]
Diário do Governo, n.º 41, p. 3-4,
17/2/1859, Imprensa Nacional, Lisboa
[iv] ADLRA, IV/26/A/36, Registos de óbito da freguesia de S.
Martinho do Porto: 1815-1859, f. 64r-67r
[vi]
Idem: IV/24/C/14, Registos de óbito da freguesia de
Alfeizerão: 1851-1864
[vii]
"Collecção dos Relatorios das visitas
feitas aos Distritos pelos respetivos Governadores Civis em virtude da Portaria
de 1 de Agosto de 1866", p. 12, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868
FONTES:
"Collecção dos
Relatorios das visitas feitas aos Distritos pelos respetivos Governadores Civis
em virtude da Portaria de 1 de Agosto de 1866", Lisboa, Imprensa
Nacional, 1868
CORVO, João de Andrade, ALMEIDA, Sebastião Betâmio de, e
RIBEIRO, Manuel José - Relatório sobre a
cultura do arroz em Portugal e sua influência na Saude Publica - Apresentado a
Sua Excellencia o Sr. Ministro dos Negocios do Reino pela Comissão creada pela
Portaria de 16 de Maio de 1859, Imprensa Nacional, Lisboa, 1860.
MACEDO, António de Costa de Sousa de – Estatística do Distrito Administrativo de Leiria, Tipografia
Leiriense, Leiria, 1855
MADURO, António Eduardo Veyrier Valério – Tecnologia e Economia Agrícola no Território
Alcobacense (séculos XVII-XX), (Dissertação de Doutoramento em Letras, área
de História, especialidade de História Contemporânea), Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, 2007.