sábado, 4 de setembro de 2021

A cultura do arroz na região de Alcobaça no século XIX

 



              A cultura do arroz foi iniciada tarde na região de Alcobaça, no início do século XIX, se a cultura do milho grosso tinha como virtude axial a subsistência dos próprios agricultores com uma alienação marginal por venda dentro e fora do concelho, a do arroz possuía uma elevada produtividade e rentabilidade, o que pelo seu lucro potencial a tornava desejada pelas grandes explorações agrícolas.

            Num relatório sobre essa cultura, coevo da sua difusão no concelho de Alcobaça e concelhos contíguos (Corvo, 1860), é-nos dada uma síntese do seu método de cultivo, sobretudo a partir da observação in loco na Quinta da Palhagueira: o terreno em que vai ser cultivado o arroz é lavrado e cercado com um marachão ou mota de terra bem sólida, a água é depois introduzida aí para se conhecer o desenho das curvas de nível e se construir a partir delas as marachas ou muretes de terra que limitam e separam os canteiros, a terra do fundo é então aplainada da melhor forma possível com o recurso à enxada e ao arado se os canteiros forem pequenos ou à grade para os canteiros maiores, isto para que a espessura da água sobre o terreno seja sensivelmente a mesma em toda a parte. A água para os arrozais era conduzida com valas a partir de cursos de água, charcos e pântanos. A sementeira era feita nos meses de Março ou Abril e a lanço, como a do trigo; previamente, a semente do arroz era deixada de molho durante 24 horas, porque depois de remolhada ou “chumbada”, era lançada sobre a água e descia até ao fundo de forma regular, ficando apenas a boiar à superfície o arroz “chocho” que não servia para semente. Depois de o arroz começar a crescer, o arrozal necessitava de uma manutenção regular, com a adequação da altura da água sobre o terreno e as mondas que se tornam frequentes para arrancar as outras ervas que aí nascem e que podiam ser reutilizadas como adubo vegetal: atadas em molhos e metidas na terra do arrozal com os pés. A ceifa era feita nos meses de Julho a Setembro, as outras ervas apanhadas com o arroz eram deixadas sobre o marachão maior para servirem de adubo para outras culturas enquanto as canas do arroz eram também usadas como estrume ou, em alternativa, como forragem para o gado de grande porte (Corvo, 1860:15-19.374-375).

            O arroz era um cereal altamente produtivo e rentável, como exemplo, o de um agricultor da Maiorga que no ano de 1848 e num terreno com 4 hectares de extensão, semeou 4 hectolitros e 20 litros de arroz e teve como produção desse terreno, 250 hectolitros de arroz. A parte ingrata dessa cultura é que esgotava os campos no espaço de dois ou três anos, uma vez que no arroz, as ervas eram cada vez mais numerosas, mesmo com as mondas frequentes. O recurso era a rotação de culturas, sobretudo com o milho irrigado, que beneficiava das mesmas condições. O cultivo do arroz em muitas zonas baixas ou alagadiças tomara o lugar do milho, cuja cultura se retrai um pouco na região de Alcobaça com a introdução desta gramínea, há notícia de arrozais nascidos da recuperação de terrenos paludosos, mas em outros pontos da região, também é nítido que eles se haviam estendido por campos onde antes se cultivava milho, feijão, trigo e cevada (Corvo, id., p. 19).

            O outro grande inconveniente da cultura rizícola nessa época, sem dúvida o principal, era a insalubridade e os surtos de malária nas comunidades vizinhas aos campos onde ela se praticava e os danos consideráveis na vida das populações, com diversos óbitos registados; problema que fez gorar a oportunidade social e económica que os arrozais representavam e ao qual só os avanços científicos e técnicos do século XX conseguiram dar a réplica adequada[i].

            Os primeiros ensaios da cultura do arroz na região de Alcobaça, já com o estigma de cultura perigosa para as comunidades que a abraçavam, ocorrem ainda no tempo dos frades bernardos; por volta de 1824 ou 1825 produziu-se arroz nos campos do Mosteiro, na Quinta do Valado dos Frades mas como adoecessem com “sezões” ou febres intermitentes muitos servos e moços que trabalhavam nesses arrozais, o médico que os tratava teria conseguido dos frades que suspendessem esse tipo de cultura; na mesma época ter-se-ia também cultivado arroz nos campos de Alfeizerão, cujas várzeas ofereciam o terreno ideal para essa cultura. Duas décadas depois da partida dos monges, em 1848, cultiva-se arroz na Maiorga e a cultura é retomada também nos campos de Alfeizerão e S. Martinho do Porto, protagonizada por três lavradores da região – José da Trindade Leitão, Agostinho de Melo Salazar e Aureliano Pedro de Sousa e Sá - que criam grandes searas de arroz. Essas culturas coincidiram com a ocorrência da malária nas localidades da zona, tendo morrido também muito gado que se vinha dessedentar na água dos arrozais. O ocorrido leva esses lavradores a desistirem do arroz e são os próprios a tomar a iniciativa de pedir ao Governador Civil de Leiria que proibisse essa cultura em todo o Distrito. Na Quinta da Mota, nas margens do rio de Tornada, também se experimentou o cultivo do arroz mas devido aos seus efeitos nocivos para a saúde, também foi abandonado por decisão do proprietário, Joaquim António Henriques (Corvo, id., p. 225, 234). Por uma portaria do Ministério do Reino com a data de 11 de Março de 1851, não se podia semear arroz no Distrito de Leiria sem uma licença que a sancionasse. No então concelho de S. Martinho (freguesias de S. Martinho, Alfeizerão, Serra do Bouro e Salir do Porto) são semeados nesse ano 5 moios e 10 alqueires de arroz, cuja produção alcançou 83 moios e 40 alqueires; a nível do Distrito, para 50 moios e 30 alqueires de semente, conseguiu-se obter 643 moios e 54 alqueires (Macedo, 1855:77, 80).

            No ano seguinte, o arroz reaparece com força nos campos de Alfeizerão e, pela mesma época começa a ser semeado na Quinta do Campo do Valado dos Frades, então propriedade do conde de Vila Real, D. José Luís de Sousa Botelho Mourão e Vasconcelos (Corvo, id., p. 382).

            As licenças concedidas para a sementeira de arroz no concelho de Alcobaça, acrescentam algumas informações. Aureliano Pedro de Sousa e Sá, que em 1848 desistira da cultura do arroz pelos seus custos sociais e sanitários, retoma-a agora a 6 de Julho de 1854 com uma sementeira de 16 alqueires de arroz numa fazenda que possuía na Corte Nova, freguesia de S. Martinho do Porto (Maduro, 2007:250). A José Luciano de Sousa e Sá, irmão deste proprietário, é concedida uma licença a 30 de Junho de 1854, e renovada a 5 de Maio de 1859, para semear arroz na sua Quinta do Brejo (“terrenos do Brejo e Canal”), freguesia de Alfeizerão; a 23 de Julho de 1855 a João Pereira da Conceição para os arrozais da Quinta do Pinheiro, na Maiorga (“terrenos do Campo e Paul, nos campos da Maiorga”), e a 5 de Maio de 1859, a Joaquim Madeira do lugar de Vale de Maceira, Alfeizerão, para semear arroz num campo chamado “A Mateira” (Corvo, 1860:108).

            Estas licenças conhecidas (deveria existir mais) nos campos de Alfeizerão, S. Martinho ou Maiorga, demonstram a continuidade dessa cultura nas condições que então existiam, mesmo com os cuidados especiais impostos pela legislação para esse tipo de exploração, os trabalhadores continuam a mondar ou ceifar os arrozais em águas estagnadas, muitas vezes sob a canícula que aquece as águas e as converte num caldo microbiano; por reflexo, contraem e transmitem a malária nas suas famílias e comunidades, doença então popularmente chamada de sezões, febres terçãs, perniciosas, intermitentes ou paludosas.           

            A oposição a esse cereal “nocivo” começara a ganhar força dentro das povoações que marginam os campos e os seus habitantes procuram pressionar os governantes, tendo já do seu lado as mais proeminentes figuras locais, proprietários abastados, funcionários públicos, militares e párocos.

            Como fruto disso, em 1859 foram publicadas no mesmo número do Diário do Governo duas representações às Cortes sobre o problema dos arrozais[ii].

            Uma delas, um abaixo-assinado dirigido aos deputados das Cortes pelos membros das Juntas de paróquia das freguesias de Alvorninha, Vidais, Salir e Tornada, e que se sucede a um outro abaixo-assinado dos habitantes de Caldas, pede providências contra a cultura do arroz «que tão funesta e prejudicial está sendo à salubridade deste concelho», reclamando uma acção imediata em nome da saúde pública, sem a qual poderia se poderia gerar naquelas freguesias a desobediência civil.

            A outra representação, datada de 23 de Dezembro de 1858 e que era, nominalmente, dos habitantes de S. Martinho do Porto, congrega habitantes dessa freguesia e da freguesia de Alfeizerão; e faz uma análise mais detalhada do problema das searas de arroz, os «pântanos artificiais paludo-miasmáticos que vieram converter este salubérrimo solo num depósito pútrido de infecção; não há uma só habitação que não tenha experimentado os terríveis efeitos das epidemias miasmáticas»[iii], frisando que ela afetava sobremaneira as crianças e os «balbuciantes e impúberes». Pedem que se destrua de vez as searas de arroz, por razões sanitárias e porque «não temos campo para tal cultura, não se faz seara de arroz a um quarto de légua distante da povoação, sendo aliás todo o terreno susceptível da cultura de outras searas próprias do nosso solo e atmosfera». Segue-se a longa lista das pessoas que assinaram a petição e, como argumento final, vão publicadas em anexo duas listas com os óbitos nas freguesias de S. Martinho do Porto e Alfeizerão entre os anos de 1851 e 1858 e que pretende demonstrar a escalada dos óbitos na região desde a reintrodução do arroz no ano de 1852, as listas tinham sido elaboradas pelos párocos das duas freguesias, respetivamente, o prior Vitorino José Afonso Pires do Prado e o pároco António da Conceição Pires. Por essas listas se verifica que nas freguesias de S. Martinho do Porto e Alfeizerão, o número anual de óbitos sobe de 13 e 29 no ano de 1851 para, respetivamente, 49 e 68 em 1856, em pleno período de cultura do arroz.

            Os números apontados são eloquentes e justificam alguma atenção. Nos assentos de óbito da freguesia de S. Martinho para o ano com mais ocorrências, 1856[iv], o mês mais funesto do ano foi o de Setembro, com 20 óbitos; neles não se indica a causa dos óbitos, existindo no assento de óbito de um dos moradores a minúcia de referir que havia morrido “de repente”. Sobre as suas idades, importa assinalar que no conjunto dos 49 falecimentos são referidos 3 menores de idade, além de 11 inocentes, ainda mais novos, os vulneráveis “balbuciantes e impúberes” referidos na queixa dos habitantes de S. Martinho. Nos livros de óbitos de Alfeizerão, os assentos desse ano de 1856[v] revelam que os meses ordinários da ceifa do arroz, Julho e Agosto, correspondem à maior incidência de mortes, 39, e que no total de óbitos se contam 14 menores e 3 inocentes. As causas do óbito também não são mencionadas mas sete moradores não receberam os sacramentos por não poderem ou por não dar tempo para se lhes administrar, o que pode constituir uma indicação muito ténue de que eles se encontravam doentes na altura do óbito. A única indicação clara nos assentos desse ano é o óbito a 17 de Julho de Jorge Marinheiro, morador em Tavarede, Figueira da Foz, e que «morreu andando a trabalhar» na Quinta da Mota em Alfeizerão.

            Mas nos assentos de óbito desta freguesia, para o período cronológico indicado na lista pelo pároco António da Conceição Pires (1851-1858), encontramos 13 assentos em que se refere expressamente que haviam morrido de doença («moléstia); as referências à moléstia estão distribuídas pelos seguintes anos: 1851 (2), 1852 (1), 1853 (3), 1854 (1), 1857 (2) e 1858 (4)[vi]. As referências a uma moléstia não significa forçosamente que se tratasse da malária contraída nos arrozais mas essa era a causa patológica de morte mais disseminada na época, de outra feição, as duas mortes por doença em 1851 servem para nos recordar que não foi apenas em 1852 que o arroz foi reintroduzido nas freguesias litorâneas do concelho de Alcobaça.

            Apesar da rentabilidade do cultivo do arroz e do interesse capitalista na sua produção, as esmagadoras evidências sanitárias em contrário acabam por preponderar. Durante a visita ao concelho do Governador Civil de Leiria[vii], iniciada em 30 de Outubro de 1867, a Câmara de Alcobaça «solicitou as necessárias providências para se obstar a que a sementeira de arroz que tem tido lugar nos campos da Maiorga e Alfeizerão continuasse a ser nociva às povoações limítrofes, cujos habitantes muito têm sofrido, como se afirma, em resultado da cultura da mesma gramínea». Na relação da mesma visita do Governador Civil, mencionam-se os campos paludosos de Alfeizerão, com quatro quilómetros quadrados de extensão, pântanos cujo esgoto ou enxugo urgia ser proposto pelo engenheiro hidráulico ao Ministro das Obras Públicas.

            Para os arrozais do concelho, o correr do pano ocorre no decurso do ano de 1871. A 26 de Abril de 1871, o governador civil de Leiria, J. Ferreira da Cunha e Sousa, reforça o pedido para que fossem proibidos os arrozais, recordando que o delegado de saúde do Distrito lhe garantira que se perdia uma vida humana por cada 16 hectolitros de produção de arroz, e que em algumas povoações do concelho o povo, cansado de esperar, se levantara em massa e destruíra pelas suas próprias mãos os arrozais que lhes eram contíguos; e pedia com veemência ao Governador Civil que os arrozais fossem proibidos antes das novas sementeiras. Em resposta, a 4 de Maio de 1871 o Ministro das Obras Públicas, Sebastião José de Carvalho, Visconde de Chanceleiros, ordena que o Governador Civil do distrito administrativo de Leiria faça constar por editais ou intimações diretas que ficavam proibidos os arrozais no concelho de Leiria (“Diário do Governo”, n.º 101, p. 3-4, 5 de Maio de 1871, Imprensa Nacional, Lisboa). A 16 de Maio de 1871, o mesmo Visconde, considerando que se achavam em «idênticas circunstâncias os arrozais do concelho de Alcobaça, no distrito de Leiria, e do concelho de Montemor o Novo no Distrito de Évora», estendia a esses concelhos a proibição do cultivo do arroz (“Diário do Governo”, n.º 113, p. 2, 20 de Maio de 1871, Imprensa Nacional, Lisboa).

 



NOTAS:

[i] Vide: LOBO, Ana Rita Merelo - "A História da malária em Portugal na transição do século XIX para o século XX e a contribuição da Escola de Medicina Tropical de Lisboa (1902-1935)", Dissertação para obtenção do Grau de Doutor em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências e Tecnologia, Outubro de 2012. Disponível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/9677/1/Lobo_2012.pdf, acesso mais recente a 31 de Julho de 2021.

[ii] Diário do Governo, n.º 41, p. 3-4, 17/2/1859, Imprensa Nacional, Lisboa

[iii] Os miasmas dos pântanos e águas paradas que se acreditava então ser a causa da malária.

[iv] ADLRA, IV/26/A/36, Registos de óbito da freguesia de S. Martinho do Porto: 1815-1859, f. 64r-67r

[v] ADLRA, IV/24/C/14, Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1851-1864, f. 9v-15r

[vi] Idem: IV/24/C/14, Registos de óbito da freguesia de Alfeizerão: 1851-1864

[vii] "Collecção dos Relatorios das visitas feitas aos Distritos pelos respetivos Governadores Civis em virtude da Portaria de 1 de Agosto de 1866", p. 12, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868

 

FONTES:

 

"Collecção dos Relatorios das visitas feitas aos Distritos pelos respetivos Governadores Civis em virtude da Portaria de 1 de Agosto de 1866", Lisboa, Imprensa Nacional, 1868

 

CORVO, João de Andrade, ALMEIDA, Sebastião Betâmio de, e RIBEIRO, Manuel José - Relatório sobre a cultura do arroz em Portugal e sua influência na Saude Publica - Apresentado a Sua Excellencia o Sr. Ministro dos Negocios do Reino pela Comissão creada pela Portaria de 16 de Maio de 1859, Imprensa Nacional, Lisboa, 1860.

 

MACEDO, António de Costa de Sousa de – Estatística do Distrito Administrativo de Leiria, Tipografia Leiriense, Leiria, 1855

 

MADURO, António Eduardo Veyrier Valério – Tecnologia e Economia Agrícola no Território Alcobacense (séculos XVII-XX), (Dissertação de Doutoramento em Letras, área de História, especialidade de História Contemporânea), Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2007.

 

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