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Convento de Nossa Senhora da Conceição dos Frades Franciscanos Capuchos de Alferrara, em Palmela, onde foi inumado Frei José da Conceição
(créditos das imagens: Urban Exploration in the World)
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Frei José
Frei José da Conceição, denominado Raposo por ter nascido nos Raposos, Coutos de Alcobaça, é biografado por frei José de Jesus Maria num registo piedoso e quase hagiográfico no tomo segundo da sua Crónica da Província de Santa Maria da Arrábida (Fr. José de Jesus Maria,
Chronica da Provincia de Santa Maria da Arrabida, da regular e mais estreita Observancia da Ordem do Serafico Patriarcha S. Francisco, Tomo 2, impresso na Oficina de José Antóno da Silva, Lisboa, 1737. A biografia de Frei José da Conceição preenche o capítulo quarto da obra (páginas 783 a 789), e transcrevemo-lo aqui, servindo-nos da sua versão eletrónica no portal do
GoogleBooks. Atualizamos a grafia, mas as páginas originais do capítulo IV podem ser lidas neste
ficheiro PDF.
Os Raposos ou Casal dos Raposos, hoje na freguesia de Famalicão da Nazaré, esteve inserido até à extinção das Ordens Religiosas (embora algumas fontes o omitam) no couto de Alfeizerão, que a norte da vila compreendia também a Macarca, o Rebolo, Famalicão de Baixo e Mata da Torre.
O Capítulo IV
CAPITULO IV
Operações de vida, e feliz morte de Frei José
da Conceição Raposo.
Venturosa discrição, que sabe
tirar das infelicidades do Mundo documentos para evitar desgraças eternas,
desenganando-se, que servir aos homens é trabalhar debalde, e só servir a Deus
é segurar o prémio em que se cifra a coroa de todas as felicidades! A má
correspondência que achou nos homens Frei José da Conceição, vulgarmente
chamado o Raposo por nascer nos Coutos de Alcobaça em um Casal conhecido por
esta denominação, foi motivo, segundo conceito geral da Província, de passar de
religioso ordinário a ser perfeito na vida. Vivia entre os Frades sem mais opinião
que a de bem procedido: esperava em um Capítulo que atendendo ai serviço e
trabalho que teve em reedificar o Convento de Óbidos sendo dele Guardião, lhe dessem
o prémio do seu merecimento; e como visse preferidos para as prelazias a outros
que no seu conceito eram de inferior merecimento, renunciou como em despique o
ofício de Pregador e se pôs a seguir os atos de Comunidade, retirando-se a todo
o trato das criaturas. Algumas mortificações experimentou nos Prelados pela
renúncia do ofício, atribuindo-o à demasiada paixão: não nos toca a disputar se
o foi, e só narrando o facto dizer que as tolerou com alegria e admirável
paciência. Foi-se entregando a vários exercícios penais além dos ordinários da
nossa vida comum [«commua» no original, usado como feminino de comum], multiplicando as horas de oração com
grande edificação dos que notavam a sua já admirável vida, louvando a Divina
Sabedoria, pois com regras tortas sabe formar linhas direitas.
No ano de mil e seiscentos e
noventa e um, mandou o Provincial Frei Paulo da Ressurreição circular uma
patente pelos Conventos da Província, em que dava a notícia de que o Senhor Rei
D. Pedro II nos oferecia uma Missão em Pernambuco, como deixamos em seu lugar
escrito, e nela convidava os frades para que se animassem a tão gloriosa
empresa, como era a redução e catecismo daqueles pobres e cegos gentios que
viviam e morriam na escravidão do Demónio por falta de quem os doutrinasse nas
verdades da Fé Católica, ordenando que os que se alentassem a fazer este bom
serviço a Deus e à sua Igreja assinassem ao pé da patente, e foi Frei José um
dos primeiros que se ofereceram para a jornada, mais ambicioso já da salvação
das almas do que das honras do Mundo. Desvaneceu-se esta santa Missão pelas
razões que já dissemos, e o mandou a obediência da família para o Convento da
Arrábida; aí se portou com tanto retiro ao trato das criaturas, ainda dos
mesmos religiosos seus Irmãos, que se não via mais do que nos atos da
Comunidade, ou no Coro de noite, onde passava muitas horas em oração. Das suas
penitências particulares só podemos dizer pela voz comum que eram muitas, mas
não individualizá-las porque a sua humilde cautela as sabia esconder, ainda que
não podia ocultar os seus efeitos no pálido e macilento do rosto com que a
todos se fazia objeto de veneração.
Nove anos com pouca diferença se
conservou nesta asperíssima vida, mas como ela fosse flagelo para alguns, que
estudavam menos conseguir o caminho da perfeição satisfazendo-se com a vida
ordinária e comum a todos os Conventos, solicitaram cautelosamente que o
mudassem para outro Convento, e com efeito o puseram no de Alferrara [Convento
de Nossa Senhora da Conceição dos frades franciscanos capuchos de Alferrara, em
Palmela]. Mudou de Convento mas não de
vida, pois neste observava os mesmos exercícios que no outro praticava,
servindo de tanta edificação aos noviços que mais os incitava para a virtude o
seu exemplo do que as devotas exortações dos seus mestres. Nunca o viam pelos
dormitórios sem o capelo na cabeça, as mãos metidas nas mangas, os olhos caídos
sobre o peito; era o mesmo velo que admirar um verdadeiro Typus Religionis.
Nunca admitiu que alguém o servisse porque o hábito, panos menores, e lenço,
que era a única coisa que tinha de seu uso, ele mesmo os lavava. Causava-lhe
uma grande aflição ver que se faltasse a qualquer ápice das nossas leis e
criação Regular, e com caridade o advertia aos transgressores, e especialmente
aos frades moços, mas com tanta doçura de palavras, que ao mesmo tempo que os
arguia, os deixava obrigados; e não lucravam pouco os noviços com as suas
admoestações.
Havia tempos em que os frades
mais velhos e zelosos da nossa reforma se lamentavam de ver que o Convento da
Arrábida, que tinha sido o jardim, onde sempre com mais singularidade
floresceram as virtudes que tanto ilustraram esta Província, e que de entre os
seus duros penhascos tinham saído os ecos daquelas assombrosas penitências de
um S. Pedro de Alcântara e outros servos de Deus que tanto atroaram o mundo
pela miséria dos tempos e pela tibieza dos Prelados se tivesse reduzido a um
estado que já não se diferenciava dos outros Conventos mais, que na abstinência
da carne que ali se observa por lei, porque o silêncio que nele tinha sido
inviolável, totalmente se desterrara com a especiosa capa de que seria
desatenção faltar à política religiosa não assistir aos hóspedes e benfeitores
que buscavam o Convento, e remediavam a nossa pobreza com as suas contínuas
esmolas, que sem dúvida negariam se por esta falta de assistência fossem
escandalizados, devendo só entender que quem busca os Conventos, é mais por se
edificar dos exercícios religiosos do que por recreação profana; e que o
sustento dos Frades Menores, quando satisfazem à obrigação de tais, corre por
conta da liberal mão da Divina Providência, abonando Deus o infalível desta sua
promessa com continuados prodígios.
No ano de mil setecentos e
quatro, em que saiu eleito Provincial Frei António dos Santos, se reforçaram os
clamores, e pelas zelosas instâncias dos que mais sentiam esta ruína, se
resolveram os Padres da Definição a elegerem em Guardião para o Convento da
Arrábida ao devoto Frei José pela grande opinião que dele tinha formado a
Província. Aceitou ele obrigado dos pareceres de pessoas doutas e virtuosas a
quem para esse fim consultou, porém, com as condições que já deixamos notado,
de lhe darem por companheiros e súbditos os frades que ele nomeasse, e
voluntariamente quisessem entrar nesta espiritual conquista; pois só assim
poderia venturosamente, e com mais suavidade desterrar os abusos introduzidos
contra o instituto particular daquele devotíssimo santuário, reduzindo-o ao seu
antigo esplendor. Tudo se conseguiu, favorecendo-o a Divina graça, com tanta
facilidade que o Convento logo se viu um Paraíso de virtudes, e terror
espantoso ao Inferno pela guerra que lhe faziam os seus novos habitadores com
rigorosíssimas penitências, vendo-se ali reproduzidos os espíritos dos seus
primitivos fundadores.
Já tornaram a ter uso as
cortiças, que estavam na maior parte postas em esquecimento, servindo de cama a
muitos, e de cabeceiras, duros madeiros. O sangue, de que as paredes das
Ermidas da Cerca se achavam rubricadas, dava fiel testemunho da crueldade com
que alguns castigavam a rebeldia da carne para sujeitá-la às leis do espírito,
e as muitas horas que, de dia e de noite, se viam gastar de joelhos no Coro e
na Capela, manifestavam as poucas, que outros tomavam para o descanso do corpo,
e sono; e também o Céu concorreu com o seu testemunho nos muitos e grandes
prodígios que Deus tem obrado nestes tempos em crédito da virtude de alguns,
que estão já na glória, gozando o prémio dos seus merecimentos, de que
brevemente daremos notícia; e para confusão daqueles que capeavam a relaxação
do silêncio com o pretexto de um política assistência aos hóspedes e negociação
do sustento necessário, foram tantas as esmolas com que a devoção dos fiéis
socorria ao Convento, que foi necessário à espiritual prudência do Guardião
algumas vezes rejeitá-las, temendo que fossem indústria do Demónio para
relaxação de tanta pobreza, de que fui testemunha ocular, como quem teve a
fortuna de que ele neste tempo me admitisse por seu súbdito para me confirmar
as lições que principiou a dar-me sendo meu Mestre no Noviciado. A mesma
abundância experimentei, precisando-me a coartar a liberalidade de alguns
devotos poucos anos passados, sucedendo-lhe no lugar, porque é Deus muito fiel
em pagar aos jornaleiros que trabalham na sua vinha.
Continuou este venerável padre a
prelazia os três anos, guardando tanto à risca os ápices das leis especiais do
Convento que para os súbditos se suavizava o seu rigor vendo que ele em tudo
era o primeiro para o exemplo, e com tanta caridade para todos, como se fosse
pai de cada um. A Matinas, que não só neste Convento mas em todos são
indispensáveis à meia-noite, sendo ele dos primeiros que entravam no Coro, nos
dias que chovia muito tinha a compaixão de esperar que a chuva aplacasse para
que os frades pudessem vir com mais comodidade isentos de se molharem, por
razão de que as celas estão divididas pela Serra, que depois de se acabarem, se
a chuva continua, escolhem por mais conveniência ficar no Coro até Prima [primeira
hora canónica diurna], tomando o descanso
necessário encostados às cadeiras. Acabada a hora da Prima, e a oração mental
que se lhe segue, ia dizer a sua missa, que servia a todos de compunção a
devoção com que nela se portava, e voltava para o Coro a dar graças, ouvindo
também outras missas até à hora da Terça, se as obrigações de Prelado algumas
vezes o não precisavam a sair do Coro. Jejuava todas as Quaresmas de nosso
Padre S. Francisco, que compreendem onze meses do ano, e no comer era tão parco
que muitos dias da semana se contentava só com alguns legumes; tendo porém a
advertência de mandar por obediência a alguns dos seus súbditos comessem a
porção do peixe, se via que excediam os limites da prudente mortificação, ou
eram improporcionadas as suas mortificações ao débil da natureza que neles se
notava.
Para todas as festividades de
Nossa Senhora e outras festas de Sabaoth, se preparava com uma novena de
mortificações especiais e rigoroso silêncio quanto permitia o seu ofício,
virtude que introduziu na maior parte da comunidade. Depois de jantar, ainda
que tivesse algum hóspede de especial respeito a que assistir, primeiro ia
buscar a sua quarta de água à fonte para o serviço da cozinha, por não deixar
de acompanhar aos súbditos neste ato de trabalho que se faz todos os dias em
ato de comunidade. Nos dias santos e mais solenes, em que depois do jantar se
costuma dispensar no silêncio para que em alguma conversação honesta tomem os
frades algum alívio, tanto que saía de Vésperas se deixava ficar no antecoro
incitando os súbditos a esta recreação, mas brevemente se despedia por dar
lugar aos que ali ficavam violentos [impetuosos], a retirarem-se para as suas celas, onde faziam mais gosto
divertirem-se com a lição dos seus livros. Acabados à noite os atos da comunidade,
se não recolhia sem primeiro ir ao Coro gastar com Deus largo tempo em oração. Estra
era a ordinária forma da sua vida nos três anos em que foi ali Prelado. No
Capítulo imediato o elegeram Custódio e ficou continuando a sua habitação neste
mesmo santuário, de onde não saía sem um negócio [empresa, tarefa] muito preciso. Sendo chamado a Lisboa para
assistir à Congregação por razão do seu ofício, e no mesmo dia em que ela se
celebrou veio dormir ao Convento, ficando este em distância de seis léguas,
três de mar e três de terra, que a todo este excesso o obrigava o amor da
solidão e a displicência que tinha ao trato de seculares.
Como se viu sem as obrigações de
Prelado, acrescentou as horas que aquelas lhe ocupavam aos seus santos
exercícios e lição de livros espirituais, dispondo-se para a morte de que entendeu
tivera revelação, pois disse muito tempo antecedente que, depois de fazer certa
jornada logo se lhe seguia fazer a da eternidade. O efeito o mostrou porque
voltando do Alentejo, onde a obediência o mandou, se sentiu agravado com uma
febre maligna que o precisou a buscar-lhe remédio na Enfermaria de Setúbal;
porém, respeitando mais as necessidades do espírito do que as do corpo, feita
uma confissão geral, pediu que lhe dessem o Santíssimo Viático, e para o
receber, não obstante a muita debilidade em que estava, se prostrou de joelhos
sobre a cama fazendo uma devota protestação da Fé e proferindo jaculatórias com
palavras tão doces e enternecidas, que bem mostravam o fogo do amor Divino que
ardia no seu peito. A seu tempo pediu a Santa Unção, e continuou todos os dias
que viveu com tantos atos de verdadeiro católico e perfeito religioso até
exalar o espírito, que a todos fez entender foi a sua morte preciosa aos olhos
de Deus. Pela grande fama que havia da sua virtude, concorreu muita gente a
venerá-lo, e o acompanhou até ao Convento de Alferrara onde foi a sepultar.
Testemunharam muitas pessoas fidedignas que em toda a distância do caminho que
vai da vila ao Convento, que será de meia légua, viram sobre o féretro uma
pomba, e como só foi vista por particulares e devotos, deu motivo a formarem juízo
que ela seria Maria Santíssima naquela cândida figura, de quem foi devotíssimo,
que lhe veio assistir em gratificação do bem com que a tinha servido, especialmente
em lhe restaurar a reforma do Convento da Arrábida que esta Soberana Senhora
tem debaixo do seu patrocínio. Foi a sua ditosa morte em oito de Novembro de mil,
setecentos e onze.

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Convento franciscano da Nossa Senhora da Arrábida |