quarta-feira, 27 de maio de 2015

As "culpas" do sangue 2: Nuno da Silva, cavaleiro da Ordem de Cristo

Muitos géneros de peçonha há, mas quanto a mim, a mais refinada
 de todas é a que se faz do ódio, porque mata a alma ao seu 
dono, e juntamente o seu corpo; doença tão natural deste Reino
 como aborrecida em todos os demais, onde dos nadas dos seus naturais
 fazem muito, e nós do muito dos nossos fazemos nada: a eles basta
 terem um remendo de pano bom para fazerem a capa toda;
e se cobrem com ele, e por mais fino que seja o nosso, 
se tiver algum pequeno retalho que o não pareça. por esse
 se regulam, e o dissipam todo

(Manuel de Brito Alão, Prodigiosas histórias e 
miraculosos sucessos acontecidos na casa de 
Nossa Senhora da Nazareth, página 116, Lisboa, 1637))


O PROCESSO DE NUNO DA SILVA (Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 9079)
Processo de Nuno da Sylva, que tem hum quarto de Christão novo, cavalleiro professo de certa Ordem militar, solteiro, filho de Nuno de Britto Allão que vivia da sua fazenda, natural da villa da Pederneira, morador na quinta da Cavallariça termo da de Alfeizarão prezo nos carceres da Inquisição desta cidade de Lisboa.



















          Com a data de 21 de Junho de 1671, é emitido contra Nuno da Silva o mandado de prisão com sequestro de bens (fólio 3/Img.5) [1] e quatro dias depois, Nuno da Silva é entregue nos Estaus (Auto de Entrega, fl.4/Img./), a Agostinho Nunes, alcaide dos cárceres secretos da Santa Inquisição de Lisboa, por Antonio Pereira, Familiar do Santo Ofício da vila da Pederneira, presumivelmente, o mesmo que aí conduzirá a sua irmã Catarina dois anos mais tarde.

          As culpas de judaísmo contra Nuno da Silva (fl.6/Img.11) correm paralelas às do pai, Nuno de Brito Alão. A primeira acusação parte de Dona Madalena de Sá, religiosa professa no Mosteiro de Semide, termo da cidade de Coimbra. Madalena é filha de Francisco da Silva, prebendeiro, e de Dona Catarina de Sá, natural de Coimbra. A confissão original da religiosa, feita ainda no mosteiro, é repetida nos cárceres da Inquisição de Coimbra. Afirmou que estivera com Nuno de Brito Alão numa grade do mosteiro (a grade do parlatório) onde declararam ambos que viviam segundo a Lei de Moisés; e Nuno de Brito ter-lhe-ia confidenciado que se comunicava na mesma crença com o filho Nuno, e com um primo deles, António de Figueiredo. A prisão deste em 23 de Janeiro de 1667, e a sua confissão, reforçaria o processo. António de Figueiredo era natural do lugar do Taveiro, e morador no da Lamarosa, freguesia da vila de Tentúgal, e era primo de Nuno de Brito Alão por via paterna, essa via pela qual detinha no sangue mais de meio quarto de christão novo. Na sua confissão rememora uma reunião havida seis anos antes na Pederneira com Nuno de Brito e o seu filho Nuno da Silva, cavaleiro do hábito de Cristo; em que todos haviam declarado as suas crenças judaicas.

          Outras culpas se somariam a estas ao longo do período de encarceramento de Nuno da Silva. A já mencionada Isabel de Brito, tia segunda de Nuno da Silva, e que possui um oitavo de cristã-nova; que confessou de mãos atadas (fl.10/Img.19). João D’Eça, primo do réu e filho de Francisco de Brito, que evocou uma reunião tida com Nuno da Silva na sua casa na quinta da Cavalariça. Mais as culpas transmitidas pela confissão de Nuno de Brito Alão, seu pai, a 4 de Setembro de 1673, de Dona Mariana de Figueiredo, irmã de Isabel de Brito; e das três irmãs do réu, Catarina, Joana e Mariana.

          Com as culpas apuradas até à data, procede-se ao Termo de Inventário no dia 24 de Julho de 1671 (fl.32/Img.63), nos Estaus e casa primeira das audiências da Santa Inquisição. Perante os inquisidores, Nuno da Silva presta juramento, depondo a mão sobre os Santos Evangelhos, e apresenta o seu nome, que tinha quarto de cristão-novo e era cavaleiro do hábito de Cristo; diz quem são os pais, que era natural da vila da Pederneira e morador na dita quinta (da Cavalariça) e que tinha vinte e seis anos de idade.

          Perguntado se quer confessar as suas culpas, Nuno da Silva disse que não tinha culpas que confessar porque era e fora sempre bom, fiel, e catholico christão. Perguntado sobre os seus bens, responde, que era filho familiar e que não tinha bens alguns, nem de raiz, nem moveis, e se alimentava com o que lhe davão seus pays. O réu assinará o termo de inventário como Nunno da Sylva e Souza, nome que será abreviado para Nuno da Silva nos muitos documentos que lhe serão dados para assinar.

          Na sessão de Genealogia (fl.34/Img,67), tida no mesmo dia, e perguntado novamente se cuidara em suas culpas e as queria confessar, Nuno da Silva disse que sim, cuidara, e que não tinha culpas que confessar pertencentes a este tribunal. Pelo que se procedeu às perguntas ordinárias de genealogia:
Disse que elle (como ditto tem) se chama Nuno da Sylva, quarto de x. novo, solteiro de vinte e seis annos de idade, natural da villa da Pederneira[2] e morador na quinta da Cavallariça, termo da Villa de Alfazeirão. Que seus pays se chamão Nuno de Britto Alão, meyo x. novo que vive de sua fazenda, natural da ditta Villa da Pederneira, e Dona Maria da Sylva, x. velha, natural da Villa de Alcobaça.Que seus Avós são já todos defuntos; e os paternos se chamarão Duarte de Britto x. velho, homem nobre, não lhe sabe a qualidade, e Helena Ayres Correa, x. nova, não sabe donde erão naturaes.E os maternos se chamarão Ruy de Souza da Sylva, x. velho. que vivia de sua fazenda, natural do lugar de Picamilho, termo de Porto de Mós, e Dona Catherina de Sousa, x. velha natural de Alcobaça.Por parte de seu pay teve hum tio já defunto, que se chamou Antonio de Britto que falleceo de dez annos.Tem mais huma tia, meya Irmãa do ditto seu pay, filha da ditta sua avó Helena Ayres, e de seu primeiro marido, Duarte de Araújo, não lhe sabe a qualidade, e haja, digo he, religiosa professa no Convento de São João de Estremoz, e se chamava Maria da Assumpção. Por parte de sua May tem huma tia já defunta que se chamava Dona Barbara de Souza, que foi religiosa professa no convento de Cós.Elle Declarante teve dous Irmaõs e seis Irmãas, a saber, Henrique que falleceo de cinco annos, Antonio que falleceo de peito, duas de nome de Helena que fallecerão de pouca idade, Dona Catherina da Sylva, Dona Bernarda da Sylva, Dona Joanna da Sylva e Dona Marianna da Sylva, e esta que he a mais moça será de doze annos de idade, e todas as quatro são solteiras.Elle Declarante he solteiro (como ditto tem) e não tem filhos alguns.He Christão baptizado, e o foi na Igreja de S. André da Villa de Cellas pelo padre Manoel Henriques, e foi seu padrinho Antonio de Britto Freyre.Não é crismado.
          Examinada a sua instrução cristã, falha ao recitar os mandamentos da Santa Madre Igreja. Declara que sabe ler e escrever e tem princípios de Latim, e que nunca saiu do reino, e nele esteve nas cidades de Lisboa e Coimbra, e nas vilas da Pederneira, Alcobaça e Estremoz. Não foi preso nem penitenciado pelo Santo Ofício, e de seus parentes o foram a sua avó Helena Aires e, de presente, estava o seu pai, Nuno de Brito Alão.

          É novamente admoestado no final da sessão para que confesse as suas culpas, ao que responde da forma costumada que não tinha culpas para confessar.

          A 28 de Julho de 1671 (fl.36v./Img.71), Nuno da Silva comparece perante os inquisidores para uma sessão In Genere, onde lhe são feitas perguntas de ordem geral. Começam pela pergunta reincidente se tinha culpas para confessar, com a resposta habitual de Nuno da Silva, a que se seguem as (muitas) perguntas padronizadas sobre as suas atitudes contra a igreja católica ou em observância de ritos e costumes judaicos, a que Nuno da Silva responde sempre em negação. A sessão é coroada com uma admoestação mais elaborada com uma nova pergunta sobre as suas culpas. Como a resposta não fosse diferente, é mandado de volta para os cárceres.

          Decorrido perto de um ano (os inquisidores não se apressam, é o tempo de reclusão e as suas experiências no cárcere que desgastam e vergam os réus), a 22 de Junho de 1672, desenrola-se a sessão In Specie (fl.39v./Img.77), onde Nuno da Silva é confrontado com perguntas específicas sobre as acusações que lhe foram feitas. As perguntas são “específicas” mas completamente vagas e sem detalhes, como já aludimos quando escrevemos sobre o processo de Nuno de Brito Alão. Não há datas, e não há nomes nem lugares: Perguntado em que lugar se achou do ultimo perdão geral a esta parte, e em que companhia de pessoas de sua nação, onde entre praticas se declararão, elle Reo, e as pessoas da ditta companhia, que crião e vivião na ley de Moysés. As perguntas sucedem-se, cada uma vinculada a uma situação ou evento narrado pelas denúncias de outros réus. E a todas, Nuno da Silva responde sempre de forma negativa (Disse que não passou tal). Os inquisidores advertem-no que aquela será a última admoestação antes de ser pronunciado contra ele o libelo de justiça, e incitam-no a confessar as suas culpas, mas Nuno da Silva mantém a mesma posição.

          É redigido o libelo de justiça, que em sucessivos artigos se propõe provar a culpabilidade do réu, demonstrar que ele é um herege apóstata da Santa Fé Católica, negativo, impenitente e pertinaz, e que será declarado como tal, incorrendo na sentença de excomunhão maior, confisco dos seus bens para o Fisco e Camara Real, e as mais penas em Direito estabelecidas, além da sua relaxação à justiça secular.

          Chamado Nuno da Silva a pronunciar-se sobre o documento que lhe é lido, e perguntado se é verdade o que consta do dito libelo e em cada um dos seus artigos, Nuno da Silva responde, de uma forma não isenta de coragem, que concorda ser verdadeiro que é cristão batizado e que já mais de uma vez fora admoestado naquela Mesa, e o mais contestava por negação.

          Perguntado se tem defesa a apresentar e se quer estar com um Procurador para esse efeito, Nuno da Silva responde afirmativamente, e é-lhe sugerido como Procurador o licenciado Francisco Soares Nogueira; que Nuno da Silva aceita, e o licenciado presta juramento nessa função no dia 17 de Agosto de 1672.

          A Defeza é apresentada (a partir do fl.49/Img.97), expondo que provará que o réu foi criado e doutrinado na Lei de Jesus Cristo, e que cumpria os preceitos da Igreja Romana. E nomeia diversas pessoas para o provar - o padre António de Sousa Coelho, Reitor da Casa de Nossa Senhora da Nazaré, António Pereira da Costa, Comissário das Madeiras d’El Rei na vila da Pederneira; e várias pessoas que moravam ou viviam de sua fazenda em quintas da região, como a quinta da Chiqueda ou a quinta de Nossa Senhora da Ajuda, junto a Alcobaça. Estas testemunhas são ouvidas em diligência por um sacerdote cristão-velho juramentado, o Padre Mestre Frei Francisco de São Tomás, regente dos autos no convento da Batalha. A publicação desses depoimentos implica uma nova admoestação ao réu, o mesmo acontecendo com a publicação de novas provas de justiça surgidas entretanto contra ele, que Nuno da Silva nega como falsas. Os inquisidores perguntam-lhe se tem contraditas a apresentar, e se quer estar com o seu Procurador para o fazer, e Nuno da Silva diz que sim.

          Os artigos das contraditas são apresentados (fl.62/Img.123), com Nuno da Silva tentando a um tempo acertar em quem o acusou, e apresentar aos inquisidores motivos plausíveis para essa pessoa o odiar a ponto de cometer perjúrio com mão sobre os Santos Evangelhos. Apresenta contraditas contra António de Figueiredo e os seus filhos (João, Luís e Mariana), Isabel de Brito e o seu sobrinho António Gomes Lobo, Lourenço de Sá e Cristóvão de Abreu. As testemunhas apresentadas pelo réu são ouvidas em cada um dos artigos das contraditas, e também são ouvidos alguns dos visados, como é o caso de António de Figueiredo, que a Inquisição de Coimbra interpela sobre Nuno da Silva na forma vaga e nebulosa que é apanágio dos inquisidores. Da mesma proveniência, a Inquisição de Coimbra, chega ao processo uma averiguação feita no convento de Semide sobre o caráter e a idoneidade moral da religiosa Dona Madalena de Sá, cujas declarações haviam, na raiz dos processos, implicado em práticas de judaísmo Nuno da Silva e o pai.

          A 11 de Setembro de 1673, Nuno da Silva requer à Mesa mais uma reunião com o seu Procurador, Francisco Soares Nogueira. Nesta, elaboram mais artigos de contraditas que o Procurador entrega aos inquisidores nesse mesmo dia (fl.74v./Img.207). Os visados, com as histórias apensas de quezílias e inimizades criadas com o réu, são António Correia de Almeida, António de Paiva (?), Pedro Armando Coelho, e D. Isabel Loba.

          Surgem mais provas de justiça contra Nuno da Silva, em cuja leitura e publicação, Nuno da Silva é admoestado a confessar as suas culpas e, perguntado sobre o que tinha a dizer sobre as provas, respondeu que tudo era falso.

          A 6 de Outubro, os inquisidores convocam Nuno da Silva e dizem-lhe que, em virtude dos novos artigos de contraditas apresentados pelo seu Procurador, ele teria de nomear novas testemunhas para se poder estudar esses artigos. As testemunhas são apontadas em seguida: José (Joseph) Caldeira, escrivão e morador em Montemor-o-Velho; o padre Manuel Nunes, de Famalicão, termo da Pederneira; e Luísa Monteira, criada da casa (quinta da Cavalariça). Em outros naipes de testemunhas apareciam o padre António de Sousa; Filipa de Sousa, padre Manuel Rebelo, padre Pedro Luís, uma Maria da Costa da Pederneira; Tomé de Simas, alferes dos Auxiliares e morador em Vila Franca; uma família da Pederneira composta por Manuel Dias, estalajadeiro, a mulher e um seu cunhado que era almocreve; além de uma mulher viúva chamada Filipa Rodrigues.

          Contrapondo a este esgatanhar de Nuno da Silva pela credibilidade e por um fim favorável do processo, aparecem novas provas de justiça, que são lidas e publicadas, com Nuno da Silva a sofrer mais uma admoestação em forma por não querer admitir a verdade e confessar as suas culpas. Nessa admoestação, Nuno da Silva diz que não tem nada para confessar, mas que deseja apresentar mais contraditas à Mesa pelo que pretendia reunir-se novamente com o seu Procurador para esse efeito, mas o que surge em seguida são (ainda) mais provas de justiça contra si. Declaradas estas como falsas pelo réu, lê-se no final desta última publicação de provas uma humilde solicitação do Procurador Francisco Soares Nogueira (fl.117/Img.233) que prefigura o que depois se seguirá. Concedendo que o réu Nuno da Silva, ainda que recordando na memória todos os atos de sua vida não se acha compreendido em nenhuma das culpas referidas na acusação e, por isso, se acha impossibilitado de procurar remédio na confissão (das culpas); o Procurador, fiado na sua inocência, mas mais ainda na circunspeção[3] dos Inquisidores, implora a ajuda do tribunal e afiança que espera dele uma sentença benigna para o réu, pelo crime da heresia que não cometeo.

          Depois destas alegações finais, o processo, os autos, são declarados conclusos a 13 de Novembro de 1673, e é lavrada a sentença (fl.120/Img.239) em que Nuno da Silva é condenado (convicto) pelo crime de heresia e apostasia e se determina que seja entregue à justiça secular, com confisco de bens, avisado que fica de incorrer na sentença de excomunhão maior [4].
Aos 27 dias desse mês, Nuno da Silva é notificado da sentença (Auto de Notificação: fl.121/Img.241), participando-se que o seu processo fora visto em Mesa por pessoas doutas, de sã consiençia, e tementes a Deos, e que ele fora julgado e condenado no crime de heresia e apostasia – Pelo que a admoestação com muita claridade da parte de Christo Senhor Nosso abrisse os olhos da Alma, e pondoos em Sua Salvação, dezencarregasse sua consiençia confessando inteiramente suas culpas. E por dizer, que assim o queria fazer foi mandado recolher a seu Carcere, para depois ser ouvido.

          Já condenado, Nuno da Silva irá desenrolar nesse mesmo dia a sua confissão para tentar minorar a gravidade das penas que reservam para si. A confissão/denúncia forma um pequeno rosário de reuniões de cristãos judaizantes em que participara Nuno da Silva, nas quais eles haviam declarado a sua crença judaica e as cerimónias que cumpriam em sua observância.

          Doze anos antes, na Pederneira, em casa da sua tia segunda Isabel de Brito, com a participação da irmã dela, Dona Mariana de Figueiredo, as duas irmãs lhe ministraram o ensino da Lei de Moisés, e despois [Nuno da Silva] continuou na ditta crença, fazendo por guarda della as dittas cerimonias todas as vezes que lhe foi possivel, thé esta manhã que allumiado de Deos nosso Senhor se resolveo a confessar suas culpas, e de as haver commettido está muito arrependido, pede perdão, e que com elle se uze de misericordia.

          Onze anos e oito meses atrás, também na casa de Isabel de Brito, achou-se lá com ela, e Isabel Loba, cristã nova nascida na vila da Cela, sobrinha de Isabel de Brito e filha de António Gomes Lobo, com o próprio António Gomes Lobo e António de Figueiredo, primo do réu.

          Dez anos antes, na Lamarosa, termo de Coimbra, achou-se lá em casa de António de Figueiredo e na presença deste e dos seus três filhos, João, Luís e Francisco de Figueiredo; Custódio de Abreu, meio-irmão do anfitrião; o primo deste, Manuel Pereira, e Lourenço de Sá, ouvidor da Casa de Aveiro.

          Oito anos antes, na quinta da Cavalariça, encontrou-se aí com João de Figueiredo, e com dois homens de Montemor-o-Velho que, não conseguindo indicar pelo nome, que não tem presente, menciona os seus cargos e descreve os seus traços físicos com uma minúcia policial – além de lembrar os nomes de terceiros mencionados por estes nas suas conversas.

          Sete anos antes, na Pederneira, na casa de seu pai, estivera com este e com as três irmãs mais velhas, Catarina, Bernarda e Joana da Silva.

          Na declaração seguinte, Nuno da Silva menciona os Andrades da Quinta de S. Bento, na Cela Velha. A família dos Andrades ou Andrade e Gamboa, possui uma respeitável árvore genealógica recenseada [5], mas este processo do Santo Ofício é o primeiro documento que encontramos que expõe claramente as raízes judaicas desta família, que possuía uma presença antiga na vila da Pederneira, e estreitos laços com outras famílias de cristãos-novos da mesma vila, como os Britos e os Lobos:
Disse mais que haverá seis annos e meyo na Quinta da Sella Velha, termo da Villa da Sella, meya legoa da mesma villa, e huma da de Pederneira, em caza de Antonio de Andrade, x. novo por ambas as vias, não sabe em quanta parte, solteiro, de vinte e oito annos, filho de Francisco de Andrade, que vivia de sua fazenda, parente delle confitente não sabe em que grao, e de Izabel da Veiga, se achou com elle, e com a ditta Izabel da Veiga, a qual he agora cazada segunda vez com Antonio Coelho, x. novo por via do Pay, não sabe se em todo, ou em parte, e com o mesmo Antonio Coelho, e com duas filhas destes, solteiras, a saber, Catherina da Veiga, de vinte annos, e Ana [?] de dezenove pouco mais ou menos, porque lhe não sabe a idade ao certo, e com Jeronima Luis, irmã da ditta Izabel da Veiga, viuva de Manoel da Costa, x. velho, que vivia de sua fazenda, e com Brittes da Nazareth filha destes, solteira, de vinte e quatro, ou vinte e cinco annos de idade, e com Manoel d’Almada, irmão do ditto Antonio Coelho, que vivia de sua fazenda, viuvo de huma x. velha cujo nome lhe não lembra, todos naturaes da Pederneira, excepto Antonio Coelho, e Manoel de Almada, que são naturaes de Alfeizarão, aonde he morador o mesmo Manoel d’Almada, e ditto Antonio Coelho, sua molher e filhas na cidade de Leiria, aonde he meirinho da Correição, e o ditto Antonio de Andrade vivia na ditta sua quinta, e Jeronima Luis, a sua filha, na ditta villa da Pederneira, e estando todos nove na ditta quinta, aonde se ajuntarão a ouvir missa [certamente na capela de S. Bento, que ainda aí existe] por ser dia santo, e todos jantarão nella,e despois de terem comido, entre outras praticas se derão conta e declararão, elle confitente, e os dittos Antonio de Andrade, Izabel da Veiga, Antonio Coelho, Catherina da Veiga, Marianna, Jeronima Luis, Brittes da Nazareth e Manoel d’Almada, que crião e vivião na Ley de Moyses para Salvação de suas Almas, e por guarda dellas fazião as dittas ceremonias. Com as dittas pessoas não passou mais, excepto, com Antonio de Andrade, com o qual tem despois semelhante declaração na quinta da Cavallariça de seu Pay, não lhe lembra quanto tempo ha.
          Outras confissões e outras pessoas mais. Na Pederneira, em casa de Francisco de Brito, com este e os filhos João D’Eça, Maria Josefa e Inês Baioa; com a meia-irmã do primeiro, Dona Guiomar de Brito, Isabel de Brito, Isabel Loba e Mariana de Figueiredo. Também na Pederneira, no escritório de Agostinho Coelho, escrivão, se achou com ele e outros cristãos-novos – António Correia, Marcos Tavares, e Francisco de Almeida, homem do mar.

          Nuno da Silva é ouvido na sessão de Crença (fl.130v./Img.260) sobre as suas crenças e devoções e a apostasia da religião católica, e declara o que dissera na confissão, que as irmãs Isabel de Brito e Mariana de Figueiredo o haviam levado para a religião de Moisés, e que persistira nesse erro até à manhã da confissão, em que se apartara della por ser Deus servido de o allumiar.

          A 28 de Novembro, é submetido a uma nova sessão In Specie, em que o interrogam sobre as acusações que existem contra si no processo. Às perguntas feitas, já não contesta como falsas, mas que não he lembrado de tal. Termina a sessão com mais confissão, falando de uma reunião sobre a Lei de Moisés tida na quinta das Cavalariças com as quatro irmãs.

          No mesmo dia é lavrada a Sentença final, na qual lhe atribuem cárcere e hábito penitencial perpétuo sem remissão, abjuração dos erros no Auto Público de Fé, e degredo por cinco anos para o estado do Brasil (fl140/Img279); sentença repetida de forma mais extensa e completa um pouco mais à frente (fólios 142 a 144),

          Nuno da Silva vai ao Auto de Fé que decorreu no Terreiro do Paço no Domingo, dia 10 de Dezembro de 1673 (no mesmo dia que as irmãs).

          O Termo de Ida e Penitencias, fixa as suas penas e conclui o processo (fl.148./Img.295). Publicado a 8 de Janeiro de 1674, discrimina as penitências espirituais a que fica obrigado, e o que se conthem na Carta que lhe será dada, e vá cumprir os cinco annos para o Brazil em que foi condenado, ele assistirá na Igreja que for sua freguesia todos os Domingos e dias Santos, á missa da terra, e pregação quando a houver, com seu habito penitencial que sempre trará sobre suas vestiduras. O que tudo elle comprometteo cumprir sob o cargo do juramento dos Santos Evangelhos.





[1] Mandado de prisão (ficheiro PDF).

[2] Contrariando o que declara o próprio Nuno da Silva, e o que sobre ele testemunham outros familiares, a irmã mais nova, Mariana, afirma que ele nascera na vila da Cela, o que faz algum sentido se atendermos que é na mesma vila que ele é batizado.

[3] Circunspeção é uma palavra rica de sentido que soemos usar numa aceção muito limitada - o de falar ou agir com ponderação e reservas. A palavra remete-nos para o círculo, ser circunspeto é examinar algo atentamente, de todos os ângulos possíveis, como se descrevêssemos um círculo em volta.

[4] Sentença, em formato PDF (original e transcrição).

[5] Memórias da Vila da Cela, de Iva Delgado e Frederico Delgado, edição da Camara Municipal de Alcobaça e Junta de Freguesia da Cela, ano de 1986. Esta obra transcreve, entre outros, o manuscrito de 1828: Memórias sobre a villa da Cela, de António Carlos de Andrade.

Os autores são a filha e o neto de Maria Iva de Andrade Delgado (ou Maria Iva Theriaga Leitão Tavares de Andrade), recentemente desaparecida, da descendência dos Andrades e viúva de Humberto Delgado, o General Sem Medo


Ruínas do Palácio dos Estaus da Santa Inquisição, após o incêndio de 1836

sábado, 23 de maio de 2015

As "culpas" do sangue: as filhas de Nuno de Brito Alão

1 – FRONTISPÍCIO 

          Os processos das filhas de Nuno de Brito Alão possuem muitas características comuns que nos levam a considerá-los em conjunto. As três são presas em datas próximas e são reconciliadas no mesmo Auto de Fé, realizado no Terreiro do Paço a 10 de Dezembro de 1673. Documentos como a Sentença ou o Termo de Ida e penitencias, apenas divergem no nome da ré e numa ou outra palavra menos dócil à cópia. O que diferencia os processos é o modo como cada uma delas recebeu o ensino da Lei de Moisés, e como justificaram o abandono da religião católica ao serem interrogadas sobre isso na sessão de Crença – as suas estratégias de sobrevivência, no fundo.
          O processo do irmão, Nuno da Silva, é distinto destes (e será tratado subsequentemente), por ter negado durante três anos as suas culpas de judaísmo e só ter chegado à confissão depois de ser sumariamente condenado pela inquisição, o que foi levado em conta pelos inquisidores na hora de lhe atribuírem uma sentença.
          As três irmãs (nome estelar) são Catarina da Silva (ou Catarina da Silva e Sousa), a mais velha, Joana da Silva, e Mariana da Silva (ou Mariana de Jesus ou Mariana de Brito) – em todas elas, é o apelido da mãe, uma cristã-velha nascida em Alcobaça, que prevalece.
          No processo de Nuno da Silva, na sessão de Genealogia, ele evoca a história da sua família, intimamente próxima ao infortúnio e à dor:
Ele declarante teve dous Irmaos e seis Irmãas, a saber, Henrique, que falleceo de cinco annos, Antonio que falleceo de peito, duas de nome de Helena que fallecerão de pouca idade, Dona Catherina da Sylva, Dona Bernarda da Sylva, Dona Joanna da Sylva, e Dona Marianna da Sylva, e esta que he a mais moça será de doze annos de idade, e todas as quatro são solteiras.
          Bernarda da Silva faleceu também em Maio de 1673, com dezanove anos – falleceo solteira, referirão laconicamente as irmãs nos seus depoimentos. O seu nome aparece ao lado do nome de Catarina da Silva quando o promotor inventaria as culpas para pedir aos inquisidores um mandado de prisão contra elas e, curiosamente, isto ocorre numa data em que Bernarda da Silva já tinha morrido. Isto terá sucedido porque o Santo Ofício ainda não possuía a informação documentada sobre o seu óbito, ou porque, por bizarro que pareça, não era insólito e podia acontecer a Inquisição acusar e condenar por heresia pessoas já falecidas, o que neste caso, talvez não tenha chegado a acontecer (e estamos a ironizar) por Bernarda da Silva não possuir bens próprios (fazendas) para serem sequestrados [1].
          Para não nos alongarmos no apontamento sobre cada um dos processos, colocamos em anexo (formato PDF), indicado nas notas de rodapé, três documentos ilustrativos, a saber, a Sentença de Catarina da Silva (original e transcrição), a Abjuração em Forma da mesma (o documento impresso que se lia no Auto de Fé) e o Termo de Ida e penitencias (original e transcrição) da irmã caçula, Mariana.

2 – CATARINA DA SILVA


Processo de Dona Catherina da Sylva, e Souza
parte de x. nova, solteira, filha de Nuno de Britto Alão
natural da villa da Pederneira, e moradora na Quinta
da Cavallariça, termo da Villa de Alfeizerão
 (Processo de Catarina da Silva, Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 769).

           O mandado de prisão contra Catarina da Silva e Bernarda da Silva é emitido a 8 de Agosto de 1673 (fólio15/Img29), e Catarina da Silva chega aos Estaus a 28 de Agosto de 1673, conduzida por um Familiar do Santo Ofício da vila da Pederneira, António Pereira da Costa. Como chegassem tarde da noite, e a porta do pátio estivesse já fechada, Catarina foi confiada a Manuel Martins, taberneiro da Inquisição e alcaide do cárcere da penitência que, no dia seguinte, a entregou ao alcaide dos cárceres da Inquisição, Agostinho Nunes (fl.6/Img11).
          A denúncia inicial que a incrimina e a Bernarda da Silva, foi proferida por Isabel de Brito, prima direita do seu pai (a sua mãe homónima, era irmã de Duarte de Brito, avô paterno das jovens). Isabel de Brito, depois de quatro anos em que negou as suas culpas de judaísmo, iniciou a sua confissão de mãos atadas [2], dizendo das duas irmãs, que havia estado com elas na sua casa da Pederneira, juntamente com Francisco de Sousa, filho do seu sobrinho António de Figueiredo, e que estando os quatro reunidos, haviam declarado que criam e viviam na Lei de Moisés. A outra culpa contra Catarina da Silva e as três irmãs, nasce das declarações de Inês Maria, filha de Francisco de Brito da Costa: quatro anos antes, na casa do pai na Pederneira, achou-se com elas, e todas declararam a sua crença na religião de Moisés, e nas cerimónias realizadas em sua observância.
          No dia seguinte, 29 de Agosto, Catarina faz saber à Mesa dos inquisidores que desejava confessar as culpas de judaísmo que tinha cometido. É recebida em audiência, estando aí presentes Pedro Mexia de Magalhães, do Conselho Geral do Santo Ofício, e o inquisidor Bento de Beja de Noronha. Catarina prestou juramento, e disse chamar-se Dona Catherina da Sylva, solteira de vinte e oito annos de idade, natural da villa da Pederneira e moradora na quinta da Cavallariça, termo da villa de Alfeizarão. Por ser menor, foi chamado à Mesa o alcaide dos cárceres, Agostinho Nunes, e perguntado se aceitava ser curador da dita ré menor para a ajudar e aconselhar, ao que este aceitou a curadoria da jovem.
          Inicia-se então, formalmente, a confissão (fl.18/Img35). Catarina declarou que doze ou treze anos antes, na Pederneira, na casa do seu pai, Nuno de Brito, se achou ali com ele, com o seu próprio irmão, Nuno da Silva, com Dona Mariana de Figueiredo e com a irmã desta, Isabel de Brito; e estando todos os cinco, «lhe disse o ditto seu pay Nuno de Britto que cresse e vivesse na Ley de Moyses, porque era sã e boa e verdadeira para a salvação da alma, e não a de Christo Senhor Nosso, e por sua observancia, vestisse camisa lavada à sexta feira, e no mesmo dia jejuasse na forma ordinaria comendo ao jantar, e noite, e deixasse de comer carne de porco, lebre, coelho epeixe de pelle, porque elle ditto seu Pay assim o fazia, e cria e vivia na ditta Ley, com o ditto intento, e os dittos seu Irmão Nuno da Sylva, e parentas Dona Marianna de Figueiredo, e Dona Izabel de Britto aprovarão o ditto ensino, e disserão a ella confitente que fisesse o que lhe dizia o ditto seu Pay, declarando que também crião e vivião na ditta Ley de Moyses com o ditto intento de salvarem suas almas, e por sua guarda fazião as dittas cerimonias; e persuadida ella confitente do ditto ensino, parecendolhe que o ditto seu pay plo ser [por sê-lo] a encaminhava bem, e lhe dizia o que mais lhe convinha, se apartou logo alli da Fè de Christo Senhor Nosso, e se passou à Ley de Moyses, crendo e esperando salvarse nella,e assim o declarou ao ditto seu Pay, e mais pessoas (…)».
          Confessou mais Catarina, narrando que estivera na Pederneira, em casa de Francisco de Brito, na companhia deste, e dos seus três filhos (João D’Eça, Josefa D’Eça e Inês Baioa) e estando todos os cinco, acordaram que partilhavam a mesma crença e práticas.
          A 2 de Setembro, em nova audiência (fl.21v./Img42), Catarina prossegue com as mais culpas de judaísmo de que é lembrada, narrando que dez anos e um mês antes, na Pederneira, na casa de António Gomes, marido de Francisca de Figueiredo, cristã-nova, se achou aí com Isabel Loba, filha deles, e um primo desta, António de Figueiredo, que vivia na Lamarosa, Coimbra, mas viera em romaria à Nossa Senhora da Nazaré com os seus dois filhos, João e Luís, e ficaram alojados na casa de Isabel Loba – e estando todos os cinco reunidos, Catarina ouviu deles que também seguiam a mesma religião proscrita.
          Na sessão de Genealogia de 11 de Setembro de 1673 (fl. 24/Img 47), Catarina diz que os pais são moradores na quinta da Cavalariça, termo de Alfeizerão, e indica os parentes de que se recorda das duas vias, a relação entre eles e se são ou não cristãos-novos. Declara que sabe ler e escrever e que é cristã batizada, e foi batizada na igreja matriz da Pederneira pelo padre Vicente Nunes, tendo como padrinho Manuel Gomes Pereira.
          Lembra, em jeito de confissão, que passara a crer na Lei de Moisés em casa do seu pai, Nuno de Brito, e que nesse ensino e comunicação de seu pai se achava tambem prezente sua irmãa Dona Bernarda da Sylva que falleceo em Mayo passado. Mas adianta que continuara na ditta crença [Lei de Moisés] fazendo as dittas cerimonias athe o dia antecedente a sua confissão em que se apartara della.
          Na sessão de Crença (fl.27v./Img53), de 22 de Setembro, reafirma o mesmo por outras palavras: Disse que a ditta crença lhe durou the confessar suas culpas nesta Meza, e então se apartou della por ser Deos servido de a allumiar.
          Catarina da Silva apresentará ainda mais confissões: a 25 de Setembro (fl.30/Img59) lembra a crença proferida na religião mosaica por seu pai, irmão e irmãs na quinta da Cavalariça, seis ou sete anos antes; e, já no epílogo do processo, uma reunião semelhante havida na casa de Francisco de Brito, na Pederneira, na qual esteve com Dona Guiomar de Brito, meia-irmã dele, e Joana da Silva.
          Na Sentença (fl.37/Img73) [3], é declarado que Catarina da Silva é recebida ao grémio da Santa Madre Igreja, sob condição de abjurar os seus heréticos erros no Auto de Fé, de se instruir nos mistérios da fé e cumprir as penas espirituais estipuladas, com cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores. No processo consta a sua Abjuração em Forma [4], que a acompanha ao Auto de Fé; e na publicação da sentença, descreve-se esse Auto Público de Fé:
Publicada foi a sentença assima e atras escritta á Ree Dona Catherina da Sylva contheuda nestes autos no Auto publico da Feé, que se celebrou no terreiro do Paço desta Cidade Domingo dez do mez de Dezembro de mil seis centos settenta e tres annos, em prezença de suas Altezas, dos Senhores do Conselho geral, os Senhores Inquisidores, Deputados e mais Ministros do Santo Officio, o Nuncio Apostolico, alguns Bispos, muitos Religiosos, o Cabido, e muitas outras pessoas da Nobreza, e povo. Do que fiz este termo por mandado dos dittos Senhores Inquisidores. Manoel Martins Cerqueira o escrevi.
          No Termo de Ida e penitências (fl.42/Img.83), transparece a condescendência dos inquisidores para com esta jovem que confessou com presteza, mostrou-se arrependida e implorou misericórdia, decidindo eles que ela podia ir em paz para onde quisesse, desde que não saísse do reino sem licença da Mesa, e cumprisse o que prometera na sua abjuração em forma e na Carta que lhe fora entregue (as irmãs beneficiarão da mesma atitude e penas).

3 - JOANA DA SILVA
Processo de Dona Joanna da Sylva, 4º parte
de x. nova, solteira, filha de Nuno de Britto Alão
que foi Capitão da Ordenança, natural da Villa da
Pederneira, e moradora na Quinta da Cavallariça
termo da Villa de Alfazeirão
          (Processo de Joana da Silva, Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10732).

          Em resposta ao mandado de prisão decretado pela Inquisição a 8 de Agosto, e do qual também constava a sua irmã Mariana, Joana da Silva é conduzida aos Estaus e entregue nas portas dos cárceres a 8 de Novembro de 1673 (fl.6/Img.11).
          A primeira Culpa indiciada no processo partiu do processo da sua parenta Inês Maria, de dezoito anos, filha de Francisco de Brito da Costa, que a incrimina como um dos participantes na reunião de cristãos judaizantes em casa de Francisco de Brito, onde também estiveram presentes as irmãs Catarina, Bernarda e Mariana da Silva. A segunda Culpa procede do processo da sua irmã mais velha, Catarina, e reporta-se à reunião familiar tida na quinta da Cavalariça, onde a família morava, e onde Nuno de Brito desenvolveu o ensino da Lei de Moisés. A terceira Culpa é aduzida por Mariana da Silva, que narra uma conversa tida entre as duas irmãs na quinta da Cavalariça, onde ambas confessaram que crião e vivião na Ley de Moyses.
          Na sessão do Termo de Inventário (fl.17/Img.33), realizada a dez de Novembro, à pergunta se possuía bens de raiz ou móveis, Joana declara que não possuía bens alguns porque era filha familiar e se sustentava com o que lhe davão seus Pays, em cujo poder estava (o mesmo declararam os irmãos).
          No mesmo dia e fazendo saber que queria confessar as suas culpas, e por ser menor, é chamado também o alcaide dos cárceres, Agostinho Nunes, que é convidado a exercer, e aceita, a curadoria da jovem (Termo de Curador, fl. 19/Img37).
          Na Confissão, havida diante do inquisidor Bento de Beja de Noronha, revela que a sua iniciação nas práticas de judaísmo se devera à sua prima Isabel de Brito [5]. Parecendolhe que a ditta Dona Izabel por ser sua parenta e amiga a encaminhava bem, e lhe disse o que mais lhe convinha se apartasse logo alli da Fé de Christo Senhor Nosso de que tinha bastante noticia e instrucção, e se passasse à crença da Ley de Moyses e assim o declarou à ditta Dona Izabel, dizendolhe que na ditta Ley de Moysés ficava crendo com o ditto intento, e por sua observancia faria as dittas ceremonias, como com effeito fez até agora, que alumiada pelo Spirito Santo concluio que hia errada, e se resolveo a confessar suas culpas e a deixallas, e de as haver commettido está muito arrependida [e] pede perdão, e que com ella se uze de misericordia.
          A misericórdia era uma moeda de troca e, para a merecer, Joana (como Catarina e Mariana), talvez instruída em casa da sua mãe antes da prisão, denuncia outros parentes, quase todos incriminados anteriormente pela Inquisição. Diz que, em casa de Dona Isabel de Brito na Pederneira se achara com ela e com a irmã dela, Mariana de Figueiredo, numa reunião de cristãos judaizantes; e que em casa dos seus pais, na Pederneira, se achou numa reunião semelhante com Nuno de Brito Alão, e os seus próprios irmãos, Nuno da Silva, Catarina, Bernarda e Mariana. Numa outra reunião, havida em casa do parente Francisco de Brito, implica este e os seus filhos – João D’Eça, Inês Josefa e Josefa Maria – nas mesmas crenças e cerimónias. Dois meses depois destas confissões, a 3 de Janeiro de 1674, Joana fará uma nova denúncia: a de Dona Guiomar de Brito, filha de António de Brito que se encontrava então acompanhada pela sua própria irmã Catarina.
          Na sessão de Genealogia (fl.23v./Img.46), Joana da Silva pormenoriza que os seus avós maternos se chamarão Ruy da Sylva e Souza, que fazia viagens á India, e Dona Catherina de Sousa, xx. Velhos [cristãos velhos], naturais e moradores da dita villa de Alcobaça, e que da parte da sua mãe teve uma tia, já defunta, Bárbara da Silva, que fora religiosa professa no mosteiro cisterciense de Cós. Sobre si mesma, declara que fora batizada na vila da Pederneira e que o seu padrinho de batismo se chamava Manuel Gomes, não era crismada, não sabia ler nem escrever, e não sahio fora deste Reyno, nem da ditta villa da Pederneira e quinta da Cavalariça.
          O processo de Joana da Silva é considerado concluso a 17 de Novembro de 1673. A Mesa dos Inquisidores promulga a sua sentença, e Joana da Silva integra o Auto de Fé de 10 de Dezembro de 1673. A 10 de Janeiro de 1674, é publicado o seu Termo de Ida e penitencias (fl. 37/Img.73) onde é levantada a pena de cárcere, e se estipula as penas e obrigações espirituais que teria de cumprir depois de libertada.

4 – MARIANA DA SILVA
Processo de Dona Marianna da Sylva, que
tem hum quarto de Christaã nova, solteira,
filha de Nuno de Britto Alão, que vivia
de sua fazenda, natural da villa da Pe
derneira, moradora na quinta da Caval-
lariça, termo da de Alfeizarão, preza
nos carceres da Inquisição desta cidade de
Lisboa
          (Processo de Mariana de Jesus, ou Mariana da Silva e Sousa, Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 72)

          Mariana da Silva, é entregue nos Estaus de Lisboa no mesmo dia da sua irmã Joana. Elas são presas com sequestro de bens, em obediência a um mandado (fl.19/Img. 37) que, ordenando a sua prisão por haver culpas bastantes, ressalva que se mandou que se esperasse mais provas (as subtilezas do Santo Ofício).
          As suas culpas de judaísmo possuem as mesmas fontes: Inês Maria, filha de Francisco de Brito da Costa (fl.9/Img.17), e a sua irmã Catarina da Silva; às quais se juntará depois o depoimento de Joana da Silva.
          A Mesa pedirá os assentos de batismo das três irmãs, que são adicionados ao processo de Mariana da Silva (fl.22/Img.43):
Treslado dos açentos do L.º dos bautizados desta villa da Pederneira dos anos de 630. té o prezente.    
Aos dous de fevereyro de 647. bautizei Caterina f.ª de Nuno de Brito, e de Dona M.ª s.m. foram Manoel Gomes Pereira e Maria do Souto.O Vigairo V.te Nunes [Vicente Nunes][Na margem está anotado 26, i.e., a idade, 26 anos] 
Aos 24. dias de junho de 1633. annos Baptizei a Joanna fª de Nuno de brito e de sua molher Dona Maria, forão padrinhos o capitão Manuel Gomes Prª [Pereira] e dona Mariana, e pera que conste fis este acento dia mês era ut sup [ut supra: como acima]. O pe. Fr.o Carv. Da Sylva [Francisco Carvalho da Silva][na margem, a idade: 20 an.] 
Aos 7 de Junho de 1655. Baptizei a Mariana, f.ª de Nuno de brito alam e de sua molher D. Maria, forão padrinhos Inácio Ferreira, m.or [morador] em Tomar e soror Mª dasunção, freira professa no mosteiro de S. João destremos [Estremoz]; E assentei neste livro por hum escrito que mandou em que pedia fizesse esta lembrãça e pª que conste fos este açento dia mês era ut sup. O pe. Fr.co Carvª da Sylva.
[na margem: 18 annos]
          A 10 de Novembro de 1673, no mesmo dia de Joana, e depois de outorgada a curadoria de Agostinho Nunes, alcaide dos cárceres, a menor Mariana da Silva inicia a sua confissão (fl.27/Img.53), que prossegue no dia 11:
Disse que haverá tres ou quatro annos na quinta da Cavalariça, legoa e meya da villa de Alfeizerão, e huma da Pederneira, em caza de seus Pays, se achou com Branca, a Bruxa de alcunha, não sabe se era x. nova, agora defunta, dizia ser das partes da ditta villa de Alfeizerão, acostumava vir muitas vezes pedir esmolla á ditta caza, e estando ambas sós, conversando, lhe ensinou a ditta Branca que vivesse na Ley de Moysés, que era boa para a salvação da Alma, que seria rica e teria muita ventura, e por sua guarda rezasse hum terço de Padre Nossos sem lhe declarar a quem os havia de offerecer, e jejuasse hum dia á Raynha Esther, estando em todo elle sem comer, nem beber senão á noite, porque ella assim o fazia, cria e vivia na ditta Lei com o ditto intento, e persuadida ella confitente do ditto ensino por ser rapariga, e lhe parecer que seria bom o que a ditta molher lhe ensinou, ficou dalli por diante crendo e vivendo na ditta Ley, esperando Salvarse nella e ser rica, e ter ventura, como ella lhe disse, declarou á ditta Branca que faria o que ella lhe dizia, como fez, e a ditta crença lhe durou athe Domingo passado, e então a deixou por entender que não devia ser boa, por occazião de ver que tinhão prezo a seu Pay e a outras pessoas, e ainda que vivendo na ditta ley o tempo que tem declarado, nunca se apartou da Fee de Christo Senhor Nosso antes a praticava sempre em seu coração, encomendandosse a Jesus Christo, e aos Santos, e fazendo as mais obras de Christã, entendendo que não era pecado crer na ditta Ley de Moysés, e só despois que vio prender a seu Pay começou a duvidar, despois no tempo em que tem ditto acabou de conhecer que não era boa e da culpa se há que acommetteo, está muito arrependida, pede perdão e que se uze com ella de misericordia. Com a ditta molher não [se] passou mais.
          Confessadas as suas culpas de judaísmo, indica as pessoas com quem partilhava essas crenças e práticas. Josefa e Inês, filhas de Francisco de Brito, escrivão, com quem se achou em reunião três anos antes nas casas que os seus pais tinham na vila da Pederneira, quando Mariana aí se encontrava com a sua mãe por ocasião de uma romaria à Nossa Senhora (Nazaré). Um ano antes, se achara com a sua irmã Catarina, e haviam falado na sua crença na Lei de Moisés quando se encontravam na quinta da Cavalariça, na casa de seus pais. Três anos e meio antes, nas Caldas, achou-se com o seu pai Nuno de Brito, em cazas em que estavão pouzados, e deram-se conta e declararam que criam e viviam na Lei de Moisés. A quinta da Cavalariça, morada da jovem, foi o cenário esperado para conversas sobre crenças e ritos judaicos tidas com Nuno da Silva (irmão della confitente, natural da villa da Sella e morador na dita Quinta), Joana da Silva, Francisco de Brito e o seu filho João D’Eça; e Bernarda da Silva.
          Na Genealogia (fl.35/Img.69), Mariana diz que se chamava Mariana de Jesus ou Silva, e que tinha de quinze para dezasseis anos (dado que contradiz a informação do padre Francisco Carvalho da Silva), e que fora batizada na Igreja matriz da Pederneira pelo padre João Lopes Velho, tendo o alcaide Inácio Ferreira como padrinho de batismo. Diz também que sabe ler e escrever, e que nunca saíra do reino, e nele estivera nas Caldas oito meses, na vila da Pederneira e na quinta da Cavalariça.
          Na sessão de Crença (fl.38v./Img.76), afirma que a crença na lei de Moisés lhe durou the [até] cinco dias antes de sua Confissão (como tem ditto) e então a deixou por ser Deos servido de a alumiar por meyo de sua prizão.
          A Sentença e o Termo de Ida e Penitencias [6] de Mariana da Silva, são idênticas às das irmãs mais velhas, ficando Mariana livre do cárcere, podendo ir para onde quisesse, desde que não se ausentasse do reino sem licença da Inquisição.
          O desfecho destes processos sugere-nos a imagem de uma família parcialmente reconstituída depois da perseguição que a devastou. A casa de Maria da Silva, a mãe, na Pederneira, as jovens filhas de regresso do sombrio cárcere, e Nuno de Brito Alão (um homem doente e em suma miséria) devolvido ao seu lar e à sua família por particular benevolência do Santo Ofício. Apenas Nuno da Silva terá um destino diverso, imposto pela pena de degredo.







[1] Regimento da Inquisição do ano de 1613, Título XXVII:
Achando os Inquisidores informações bastantes de testemunhas, por onde pareça que algumas pessoas podem ser convencidas de heresia, e se achar serem falecidas, por informação bastante, e serem christãos baptizados (a qual informação de testemunhas se tirará a requerimento do Promotor) os Inquisidores mandarão ao dito Promotor, que os accuse, a fim de serem declarados por herejes, e apóstatas, e que seus corpos e ossos sejam desenterrados, e lançados das Igrejas, e cemiterios ecclesiasticos, e condemnada sua memoria e fama, declarando suas fazendas a quem devem pertencer, segundo a Bulla da Santa Inquisição.

[2] Não é uma expressão figurada, mas parte de um estratagema de terror psicológico dos inquisidores: notificaram Isabel de Brito que estava condenada («convencida») por crime de heresia e iria ser relaxada à justiça secular e compareceria no Auto de Fé do Domingo seguinte, 21 de Junho de 1671, para ouvir a sua sentença. E logo ali lhe ataram as mãos. Com as mãos atadas e sendo ouvida em confissão por um padre da Companhia de Jesus, Isabel de Brito convenceu-se que iria ser queimada no Auto de Fé e confessa as suas culpas (Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10092, fólio 109). No final da confissão, escreve o notário: e sendolhe lida esta sua confissão, e por ela ouvida, e entendida, disse estava escritta na verdade. E por a Ree estar de mãos atadas, de seu consentimento assinei  eu Notario por ella com o ditto senhor Inquisidor. Filipe Barbosa o escrevi.
Isabel de Brito foi sentenciada a cinco anos de degredo no estado do Brasil, tendo que envergar um hábito penitencial perpétuo com insígnias de fogo. Estas, acrescidas à costumada cruz amarela do sambenito, expunham a resistência da condenada em confessar as suas culpas.

[3] Sentença, na íntegra, com a respetiva transcrição: SENTENÇA (ficheiro PDF).

[5] A severidade demonstrada pela Inquisição para com Isabel de Brito e Nuno de Brito Alão, tinha muito a ver com o facto de terem sido acusados de ensinarem e difundirem a herética religião mosaica, e serem causadores da apostasia em fiéis católicos.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

O tormento de um homem: o processo de Nuno de Brito Alão

(citação recolhida numa obra crítica de Manuel Borges Carneiro:
Appendice sobre as operações da Santa Inquisição portugueza, 
ou Parte II. do discurso sobre a magia e mais superstiçoes desmascaradas, Lisboa, 1820)


NOTA PRELIMINAR

          A família de Nuno de Brito Alão, os Brito ou Brito Alão, constituiu uma família de cristãos-novos da vila da Pederneira, com laços de sangue com outras famílias de origem judaica da mesma vila, como é o caso dos Lobos ou dos Andrades. Não insistiremos por ora neste ponto, porque ele será aflorado na secção Genealogia deste processo e porque a ele voltaremos num outro artigo. Podemos, no entanto, adiantar que Nuno de Brito Alão é sobrinho de Manuel de Brito Alão (este foi, inclusive, seu padrinho de crisma), que foi administrador da Real Casa de Nossa Senhora da Nazaré, e aclamado autor do livro que sublimou as peregrinações ao santuário mariano da Nazaré: Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazareth, de 1628.

          A família de Nuno de Brito Alão sofreu uma verdadeira perseguição por parte da Inquisição durante perto de um século com um primeiro ciclo de processos que levou, por exemplo, ao encarceramento de Isabel de Brito, irmã do dito Manuel de Brito Alão por volta de 1620 e, que recrudescerá quarenta anos mais tarde com uma nova onda de prisões e denúncias que teve o seu início na região de Coimbra, com primos de Nuno de Brito Alão, e que acabará por conduzir este e os filhos aos Estaus, os temíveis cárceres da Inquisição de Lisboa. Apenas Maria da Silva e Sousa, a esposa de Nuno de Brito Alão, escapou à prisão, por ser cristã velha e por não ter sido implicada em práticas de judaísmo pelos intervenientes nos processos.

          Ser cristão-novo, ter sangue judeu, significava nesses tempos, possuir uma espada de Dâmocles permanentemente suspensa sobre a cabeça. A qualquer momento (às vezes por denúncias vagas movidas por invejas, inimizade ou cobiças de terceiros), esse sangue convertia-se num estigma, e os incriminados podiam perder tudo - mal-grado o papel que desempenhassem na sua comunidade ou a sua participação (fosse ou não por cumprimento do mundo) nos ritos da Santa Madre Igreja: Nuno de Brito Alão era membro de diversas confrarias religiosas da Pederneira e Nazaré; o filho, Nuno da Silva, era cavaleiro da Ordem de Cristo, e mesmo o improvável Manuel de Brito Alão não se salvou de ser alvo de suspeição e (inconsequentes) rumores maliciosos de práticas judaicas.

          Sempre que se fala desta família, sobretudo a propósito do célebre Manuel de Brito Alão, é comum mencionar-se a antiguidade de ambos os nomes de família; os Britos, e os Alões ou Alloens (como no Nobiliário de Famílias de Portugal, a obra de referência de Felgueiras Gaio). Mas preferia referir uma informação veiculada por Meyer Kayserling na sua História dos Judeus em Portugal (editora Perspetiva, São Paulo, Brasil, 2009), que nos diz que o apelido Brito era um apelido comum e popular entre os judeus sefarditas porque a raiz da palavra, B-R-T significava aliança, pacto - e a circuncisão ou aliança da circuncisão, por exemplo, símbolo do pacto sagrado entre Deus e o povo escolhido, denominava-se Brit milá (ברית מילה, em hebraico). Devido à prisão de familiares de Nuno de Brito Alão, ambos os apelidos, Brito e Alão, encontravam-se comprometidos e sob suspeita aos olhos da comunidade, motivo que explica a razão pela qual os filhos de Nuno de Brito Alão e Maria da Silva (para iludir futuras acusações e perseguições) foram batizados com o apelido cristão-velho de Maria da Silva. O que não adiantou muito, devido ao curso dos acontecimentos.

          O processo de Nuno de Brito Alão (Direcção Geral de Arquivos/TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 9078) encontra-se digitalizado pela Torre do Tombo, e quando aludirmos a uma página específica desse processo, associaremos ao fólio do processo original, o número da página digitalizada com as letras Img (de imagem).


O PROCESSO DE NUNO DE BRITO ALÃO




1 - A prisão e as culpas

          A 16 de Junho de 1670, a Inquisição decreta a prisão de Nuno de Brito Alão por culpas de judaísmo, prisão com sequestro de bens, ou seja, confisco de tudo o que possuía de seu. Nascido e criado na vila da Pederneira, Nuno de Brito Alão fora capitão de ordenança e, na data em que se inicia o seu processo, vivia de sua fazenda na Quinta da Cavalariça, termo de Alfeizerão. É um Familiar do Santo Ofício da cidade de Leiria, Inácio Ribeiro, quem o conduz das Caldas da Rainha, onde ele se encontrava em tratamento, para o Tribunal da Santa Inquisição de Lisboa, entregando-o ao alcaide dos cárceres dos Estaus, Agostinho Nunes de seu nome (Auto de Entrega).

          A denúncia original derivava da confissão de judaísmo de dois cristãos-novos. primos de Nuno de Brito Alão: Lourenço de Sá, bacharel em Leis e morador em Montemor-o-Velho (preso a 30 de Dezembro de 1665), e a confissão da sua irmã, Dona Madalena de Sá (prisão a 5 de Março de 1666), que era religiosa professa no mosteiro de Semide, em Coimbra. A prisão destes dois irmãos deve ter resultado da confissão ou confissões de outros alegados cripto-judeus, mas este documento não nos elucida quem terá sido. O pai de Lourenço de Sá, Francisco da Silva, fora antes disso acusado e condenado por judaísmo pela Inquisição mas, como não o tivessem conseguido prender ou capturar, foi queimado em efígie num auto-de-fé na cidade de Coimbra. Estes dois irmãos confessam as suas culpas de judaísmo (crença na Lei de Moisés e cerimónias judaicas...), associando a essas culpas Nuno de Brito Alão, o seu filho Nuno da Silva e um primo do primeiro, António de Figueiredo de Sousa, que é preso pouco depois em Coimbra, a 23 de Janeiro de 1667.

          As culpas contra Nuno de Brito Alão iriam acumular-se a partir daqui com as denúncias de outros implicados, presos também nas Inquisições de Lisboa ou Coimbra: António de Figueiredo, D. Isabel Loba, Cristóvão de Sá (filho de Lourenço de Sá), D. Isabel de Brito, João d'Eça e Maria de Brito, primos de Nuno de Brito Alão. Numa segunda fase do processo, três anos decorridos sobre a sua entrada nos Estaus, a culpa de Nuno de Brito Alão seria agravada pelas confissões das três filhas: Mariana da Silva e Sousa, Catarina da Silva, e Joana da Silva.

2 - Inventário e Genealogia

          A 9 de Julho de 1670, Nuno de Brito Alão, natural da Pederneira e morador na quinta da Cavalariça. a uma légua e termo da vila de Alfeizerão, é chamado à Mesa dos inquisidores, para uma audiência presidida pelo inquisidor João de Castilho. Prestou juramento sobre os Santos Evangelhos, em que pôs mão, disse o nome e a idade (53 anos) e foi-lhe perguntado se cuidou em suas culpas e as quer confessar nesta Meza, para descargo de sua consciençia, salvação de sua Alma e bom despacho de sua cauza?! Nuno de Brito respondeu que não tinha culpas que confessar. Perante a sua resposta, iniciou-se a indagação sobre os seus bens, ou inventário (fólio 40, Img 78):
Perguntado se tem alguns bens, assim de raiz como moveis, ouro, prata ou dinheiro, dividas ativas ou passivas, acções ou pertenções. 
Disse que tinha hum juro no Almoxarifado das Cizas da Cidade de Leiria de cento, trinta e nove mil, e trezentos e sessenta reis, essas estão a dever os dous quartéis que se acabarão de vencer por São João proximo passado [sic - termo contratual].
Que nos Coutos de Alcobaça termo de Alfeizerão tinha huma quinta que se chama da Cavallariça, que consta de cazas, terras de pão e vinha, e tudo paga de foro ao convento de Alcobaça doze tostões cada anno, elle está a dever do dito foro o anno que acabou pelo natal proximo passado, e este que vai correndo. Outrosy à mulher de António Fernandes Baião, moradora em Evora, coutos de Alcobaça, tinha epotecado metade da ditta quinta por mil cruzados lhe havia dado a [à] razão de juro de seis e quatro por cento, e a bem do principal lhe está a dever os redittos de quatro anos, como constará das quitações que bacharem. E a dita metade da quinta tinha obrigado a António de Britto Freire, morador em Cós, por outros mil cruzados que lhe havia dado a Razão de juro de seis e quatro por cento, e lhe está a dever o anno que acabou em Janeiro próximo passado, e desta divida se lhe há de rebater as decimas que o ditto home lhe não descontou do juro de todos os annos que lhe pagou.  
Item mais, na villa de Pederneira, na rua da Praça tinha humas cazas em que de prezente mora o Padre António de Sousa, Reitor de Nossa Senhora da Nazareth, ao qual as emprestou, sem por isso lhe levar aluger.  
Que de moveis tinha hum prato e jarro de prata e duas ou tres gargantilhas de ouro, huma cadea tambem de ouro, hum quiavo, huma salva e huma palangana, tudo de prata, e todas estas peças estarão em caza de João Bautista, Prior de São Martinho e Vigário em Alfeizerão, nos coutos de Alcobaça, a quem os tinha dado em penhor de cem mil reis que lhe tinha dado a razão de juro e as peças que erão constavão mais ao certo da escritura que fezerão e ditto juro, se achará nas nottas de Antonio Correa, escrivão em Alfeizerão – e que dos mais [bens] moveis não pode dar particular razão, por serem poucos, e de pouco valor, e só os necessários de seu uso. 
          À conta dos seus bens, Nuno de Brito Alão possui diversas dívidas pendentes - como a dívida a um mercador de Lisboa contraída na feira de quinze de Agosto na vila das Caldas, a dois moradores da Pederneira (um deles que chegara há dois anos de Angola), vinte e seis e vinte e dois mil réis; ao vigário da igreja de Famalicão, junto à sua Quinta, o dinheiro com atraso de dois anos pelas missas que mandava dizer todas as segundas-feiras; outra ainda, não declarada pelo réu mas anotada na margem da folha, de trinta alqueires de trigo que devia ao padre Manuel de Santa Maria, almoxarife das Caldas.

          No dia seguinte, aos dez dias do mês de Julho de 1670, Nuno de Brito Alão é de novo chamado à Mesa dos Estaus, a Caza primeira das audiências da Santa Inquisição. Os inquisidores voltam a perguntar-lhe se não tem culpas a confessar e, perante a mesma negativa, fazem as perguntas ordinárias de genealogia (fólio 43, Img 85), que transcrevo na íntegra, realçando a negrito algumas passagens. Note-se que Nuno de Brito Alão, como era método nos processos do Santo Ofício, declara, não apenas os parentes que conhece e a sua quota parte de sangue judeu, mas também aqueles que foram ou estão a ser julgados pelo Santo Ofício, e as suas próprias "habilitações" no seio da igreja católica.


Disse que elle se chama Nuno de Britto Alão, meyo Christão novo, por ambas as vias, que vive de sua fazenda, natural e morador na Villa da Pederneira, de cincoenta e tres annos de idade. 
Eque he filho de Duarte de Britto Allão, meyo X. novo [cristão-novo], que vivia de sua fazenda, natural de Pederneira, e de Helena Ayres Correa, meya X. nova, natural desta cidade, ambos defuntos. 
Não sabe como se chamavão seus Avós paternos nem maternos. 
Por via paterna teve alguns tios, e só sabe o nome a tres, a saber, Manoel de Britto Alão, clerigo do habito de São pedro e Abbade de São João de Campos, junto á Galiza, Christovão de Britto, que falleceo solteiro, e serviu nas armadas deste Reyno no posto de capitão, Lourenço de Britto, que foi cazado com Donna Brittes Soarez, X. velha, de quem teve Manoel, e outro mais a quem não sabe o nome, e ambos morrerão na India, solteiros, Frei Lourenço, não lhe sabe o sobrenome, que falleceu sendo Religioso do Carmo no Maranhão. 
Por via mãi, digo, pela mesma via paterna, teve mais duas tias já defuntas, que se chamarão Guiomar de Britto e Dona Izabel de Britto. 
A ditta sua tia Guiomar de Britto foi casada na Pederneira com Martim Luís, X. Velho, escrivão da Camara da mesma Villa, de quem teve o Padre Pedro de Britto, Beneficiado na Igreja Matriz da Pederneira, Francisco de Brito, que vivia de sua fazenda, cazado com Luíza de Souza, X. Velha, António de Britto, cazado com Inez Bayoa, X. vellha, e todos são defuntos. A ditta sua tia Dona Isabel de Brito foi casada na cidade de Coimbra com António de Figueiredo, X. velho, de quem teve João de Figueiredo, já defunto, que foi cazado não sabe com quem, Dona Antónia de Brito, também defunta, que foi casada com o dito seu primo Antonio de Brito, de quem foi segunda mulher, de quem teve Martim Luis, já defunto, que foi cazado em Angola não sabe com quem, António de Figueiredo, que ainda vive em Angola, onde he cazado não sabe com quem. Teve mais a dita sua tia Dona Izabel de Brito, Dona Francisca de Souza, que foi casada em Alcobaça com Antonio Gomes Lobo, X. Novo, que vivia de sua fazenda, Dona Isabel de Brito, viúva de Adrião Ferreira, X. velho, que vivia de sua fazenda, Dona Mariana de Brito, viúva de Francisco de Abreu, X. Velho, capitão da ordenança. 
Por via materna teve huma tia já defunta, não sabe como se chamou, nem com quem foi cazada, e teve dous filhos, tambem defuntos, hum deles se chamou Jeronimo Correia, e outro Fernão de Ayres, ambos foram casados não sabe com quem. 
Elle, declarante, teve hum irmão, que faleceu há nove annos e se chamou Antonio. 
He casado com Dona Maria da Sylva, X. Velha, da qual tem Nuno da Silva, de vinte e dous anos de idade, Catarina da Silva, de dezoito, Bernarda de dezassete, Joanna de quatorze, Mariana de dez, todos solteiros, outros mais que falecerão de pouca idade.
He christão bautizado, e o foi na igreja Parochial da Villa da Pederneira, pelo Vigario que então era fulano Carvalho, e forão seus padrinhos Martim Luis da Costa e Dona Brittes Soarez.
 
He crismado, e o foi na ditta Igreja, não sabe por que Bispo, e foi seu padrinho o Abbade Manuel de Britto, seu tio. 
Tanto que chegou aos annos de discrição. Hia ás Igrejas e fazia as maes obras de christão, e logo foi mandado persignar e benzer, e disse as orações do Padre Nosso, Ave Maria, creo em Deos Padre, Salve rainha, os Mandamentos da Lei de Deos e os da Santa Madre Igreja. 
Sabe ler e escrever, não estudou sciencia alguma, nem tem ordens. 
Não saiu fora deste Reino, e nelle esteve na Pederneira, em quase todos os lugares dos coutos de Alcobaça, e algumas vezes nesta cidade [Lisboa]. 
Não foi preso nem penitenciado pelo Santo Ofício, e de seus parentes o forão sua Mãe e suas primas Dona Antonia de Brito e Dona Francisca de Souza, Dona Mariana de Figueiredo, e de presente esta ainda presa sua prima Dona Isabel de Brito. 
Perguntado se sabe ou suspeita a cauza porque foi prezo?
Disse que entende que seria (?) prezo por testemunhos falsos de seus inimigos.
Foi-lhe dito que elle foi preso por culpas que commetteo, cujo conhecimento pertence ao santo Offício, e lhe fazem a saber que esta meza se não manda prender pessoa alguma sem preceder bastante informação, e que esta houve para elle declarante ser prezo. Pelo que o admoestão da parte de Christo Senhor Nosso, trate de dezencarregar sua consciençia, e confessar inteiramente a verdade das suas culpas, não impondo sobre sy nem sobre outtrem testemunho falso porque isso he o que lhe convem para descargo de sua consciencia, salvação de sua Alma, e mereçer a misericordia que a Santa Madre Igreja manda conceder aos bons e verdadeiros confitentes. E por dizer que não tinha culpas que confessar nesta Meza, foi outra vez admoestado em forma e mandado a seu carcere. E assinou com o ditto Senhor Inquisidor. Filipe Barboza o escrevi [assinaturas de João de Castilho e Nunno de Britto Allão].

3 - O marasmo do processo e as (três) confissões. O regresso a casa.

          A 9 de Outubro de 1670, Nuno de Brito é de novo chamado à Mesa (fólio 46 v./ Img 92), e perante o inquisidor Fernão Correia de Lacerda, é de novo perguntado pelas suas culpas de forma pormenorizada, e o réu nega tudo e é admoestado pelos inquisidores. O mesmo se passa a 20 e a 27 de Outubro. Por conseguinte, é-lhe lido o libelo que resume as culpas de que é acusado, mas neste libelo, como em todo o processo, o réu nunca chega a saber quem o acusa ou a data a que os supostos factos se reportam; e tudo é descrito de forma genérica: Que o Reo se achou em outro certo lugar do dito tempo a esta parte com certa companhia [comp.ª] da sua nação, e onde se deram conta e declararam...

          Perguntado pelo que tem a dizer do teor do libelo, Nuno de Brito declara que, do que ali ouviu, confirmava que era cristão batizado e que já fora admoestado na mesa, mas contesta tudo o mais pela negativa. Perguntado se tem defesa sua a vir (a apresentar) e se quer estar com um procurador para a formar, Nuno de Brito responde afirmativamente. Os inquisidores dizem-lhe então que, para esse efeito, costumava ali trabalhar o licenciado Francisco Soares Nogueira, e se o réu o queria para seu procurador. Nuno de Brito aceita.

          O licenciado Francisco Soares Nogueira presta juramento como procurador do réu e inicia a sua defesa. Nela, argumenta-se que o réu segue os preceitos da igreja, ouve missa e comunga e assiste a todas as obras de caridade que pode; e como demonstração, lembra-se que o reo he irmão da Mizericordia da villa da Pederneira aonde foi Provedor tres annos continuos, e he Irmão de S. Antonio e S. João, confrarias pobres, nas quais fazia grandes despezas, e da Confraria de N. Sª do Rozario e de N. Sª da Nazaret, e de todas as mais que hão na mesma villa, assistindo nellas com grande piedade, e gastando muita fazenda em seu serviço. Também se apontam testemunhas abonatórias: O padre Reitor de Nossa Senhora da Nazaret, Antonio de Souza Coelho, morador na villa da Pederneira; o padre Pedro Fernandes Cascão; o Padre Pedro Luís, coadjutor; o lecenceado Manoel Nunes, clerigo e pregador; Manoel Tomaz Pereyra, cavaleiro do Habito de Aviz; o filho deste Antonio Pereyra da Costa, cavaleiro do habito de Cristo; Izabel Teixeira, mulher de Manuel Luís, trabalhador; Catherina de Almeyda, que nunca casou, e todos são moradores na ditta Villa da Pederneira.

          A 8 de Agosto e a 9 de Setembro de 1671, os inquisidores chamam de novo o réu à mesa e pressionam-no com novas admoestações.

          Finalmente, o procurador apresenta as contraditas da defesa, e as testemunhas que poderiam ser ouvidas a seu respeito. As contraditas representam a impugnação das testemunhas de acusação do réu mas, nestes processos e neste simulacro de justiça, o réu e o seu procurador desconhecem por completo quem são os acusadores e, por isso, o réu limita-se a esgrimir no escuro: apresenta nomes que pensa poderem tê-lo acusado, e aventa hipóteses que expliquem os motivos porque esses supostos acusadores teriam mentido aos inquisidores a seu respeito. Por exemplo, e aí Nuno de Brito acerta, entre as contraditas, é apresentado o nome de António de Figueiredo, com o qual o réu se desentendeu por causa de um cavalo que o primo lhe pedira emprestado para ir da Pederneira a Coimbra, sem nunca o ter devolvido; e logo avança com o nome do filho deste, João de Figueiredo, que avisara Nuno de Brito que o pai, António de Figueiredo, o denunciara à Inquisição mas que, por sua vez, lhe queria mal porque Nuno de Brito nunca lhe agradeceu ou recompensou pelo aviso, tendo alegadamente ido de forma furtiva à quinta da Cavalariça para lhe causar dano.

          É um processo verdadeiramente kafkiano, que resultava muito proveitoso e eficaz para a Inquisição, porque, tal como nas confissões, enredava em acusações e suspeitas outras pessoas que muitas vezes não tinham nada a ver com o que fora apurado ou averiguado.

          O processo arrasta-se. Nuno de Brito é admoestado repetidamente, mas continua a lutar pela sua causa. A 13 de Junho de 1673, o seu procurador apresenta mais contraditas, com novas testemunhas; e a 30 de Agosto, perante o inquisidor Bento de Beja de Noronha, Nuno de Brito Alão reafirma que não tinha culpas algumas que confessar porque era e fora sempre bom, fiel e católico cristão.

          No entanto, menos de uma semana depois, a 4 de Setembro, Nuno de Brito Alão faz saber aos inquisidores que deseja confessar as suas culpas (fólio 141/Img 281). A causa dessa renúncia é compreensível. Nuno de Brito Alão é um homem doente no cárcere, envolvido num processo sem solução aparente em que a única verdade válida é aquela que os inquisidores entenderem como tal.

          Recebido em audiência, Nuno de Brito Alão é admoestado que pois tomara tão bom conselho como era o de querer confessar voluntariamente nesta Meza suas culpas, lhe convinha muito traselas todas à memoria, e dizer inteiramente a verdade dellas, e todas as pessoas com quem as comunicou, ou estas sejão vivas ou mortas, presas, soltas, reconciliadas, ausentes deste Reyno ou nelle residentes. Nuno de Brito confessa as suas culpas de judaísmo e implica outros participantes nesses ritos judaicos tidos em casas da Pederneira ou na sua própria quinta - todos eles seus parentes e alguns já presos pela Inquisição: António Gomes Lobo, a sua mulher Francisca de Sousa, e a filha de ambos, Isabel Loba, Lourenço de Sá e Dona Madalena de Sá, António de Figueiredo e os seus filhos; Francisco de Brito, Luísa d'Eça e João d'Eça, os primos António de Brito, Isabel de Brito e Dona Mariana de Figueiredo; e o seu próprio filho, Nuno da Silva ("hóspede" dos Estaus desde 1671). A confissão-denúncia segue o modelo habitual: declararam que para salvar sua alma, deixasse a Fé de Christo Senhor Nosso, e cresse, e vivese na Ley de Moises, e que nas Orações que rezasse não dicesse Jesus no fim, guardasse os sabados de trabalho vestindo camisa lavada, ou nova se a tivesse, mandasse alimpar os candieiros e porlhe torcidas novas e azeite limpo, e que quando lhe passasse algum defunto pela porta lançasse fora a agoa que tinha nos cantaros para beber, cuspisse nas sombras dos Christão Velhos, que se confessasse e comungasse por cumprimento do mundo, e que não comesse Lebre, coelho nem peixe de pelle.

          A confissão não traz o desfecho imediato do processo, porque os inquisidores não se encontram satisfeitos com o que ele revelara até então. Admoestam-no novamente e intimidam-no, afirmando que haviam aparecido mais provas de justiça contra si, que fazem publicar. Por outro lado, não neste processo, mas no do seu filho, Nuno da Silva, é indicado que Nuno de Brito Alão terá tido tormento (1), ou seja, que fora submetido a tortura.

          A 17 de Novembro de 1673, diante do inquisidor Pedro Mexia de Magalhães, Nuno de Brito confessa o que mais lembrava de suas culpas, e denuncia também Guiomar de Brito ou de Figueiredo, Antónia de Sousa, e Maria Josefa; e António Coelho, natural de Alfeizerão e morador em Leiria onde era meirinho da correição da cidade.

         Os inquisidores ainda não se mostram satisfeitos e, no dia seguinte, dia 18, em nova audiência, Nuno de Brito Alão associa aos ritos judaicos as suas filhas: Catarina da Silva, Bernarda da Silva, Mariana da Silva (ou Mariana de Jesus) e Joana da Silva (Bernarda da Silva havia já falecido, Catarina encontrava-se já nos Estaus; e Mariana e Joana da Silva tinham sido presas no dia 8 desse mês).

          É pronunciado o libelo contra Nuno de Brito Alão; e a 2 de Janeiro de 1674 (fólio 184/Img 367), publica-se o Termo de Ida e Penitência, que fixa as suas penas:
Termo de ida e penitencias
Aos dous dias do mez de Janeiro de mil seicentos e setenta e quatro annos, em Lisboa, nos Estaos, caza do despacho da santa Inquisição, estando ahi em audiência de manhã os senhores inquisidores, mandarão vir perante sy a Nuno de Britto Alão, reo contheudo nestes Autos, por constar estava instruido, confessado e sendo presente lhe foi ditto, que elle não torne a commetter as culpas porque foi prezo, e processado nesta Inquisição, nem outras semelhantes, porque será castigado com todo o rigor do Direito, e que trate de com sua vida e exemplo, dar mostras de fiel catholico christão, communicando com pessoas de quem possa aprender da catholica doutrina e apartandosse dos que o podem perverter; e que neste primeiro anno se confortará nas quatro festas principaes della, a saber, Paschoa da Resurreição, do Espirito Santo, Assumpção de nossa Senhora e Natal, de que mandará certidão a esta Meza, sem cuja licença não comungará, e que no mesmo anno rezará em cada semana, hum Rozario á Virgem Nossa Senhora, e em cada sexta feira cinco Padre Nossos, cinco AveMarias em honra das cinco chagas de Christo, e que cumpra o que prometteo em sua abjuração, e o que se conthem na carta que lhe será dada, e que lhe assinão por carcere a villa da Pederneira, onde continuará na Igreja que foy sua freguesia, todos os Domingos e Dias santos á Missa ___ e pregação quando a houver com seu habito penitencial, que sempre trará sobre suas vestiduras, o que tudo elle prometeo cumprir sob o cargo do juramento dos Santos Evangelhos que lhe foi dado. De que fiz este termo por mandado dos ditos senhores Inquisidores. Filippe Barboza o escrevi.
          Nuno de Brito Alão integra o auto-de-fé de 10 de Dezembro de 1673 (que se realizou no Terreiro do Paço, em Lisboa), onde faz a abjuração pública e ouve a sentença de joelhos como os restantes condenados. Depois do auto-de-fé, transita dos cárceres dos Estaus para os da vila da Pederneira, como havia sido determinado pela sentença.
          Já com ele preso na Pederneira, a esposa, Maria da Silva, faz uma petição à inquisição nestes termos:

                                                                                             Illmos. Inors.[Ilustríssimos Inquisidores]
Diz Dona Maria da Sylva, mulher nobre, christam velha, e mulher de Nuno de Britto Alam, que sahio reconcilido neste Auto proximo paçado em 10 de Dezembro de 1673; que ella persuadida dos pios conselhos d. alguns Religiozos, a respeito de tornar a recolher em sua caza ao ditto Nuno de Britto Alam seo marido, suppostas as enfermidades, que padece, eser hum homem aleijado, e estar em suma mizeria, padeçendo muitas [m.tas]enfermidades nesta sorte [?]; se rezolve por força dos dittos conselhos, e tam religiozos, e obra de charidade, que nisto julga fazer, a reçeber em sua caza ao ditto seo marido; e pª. o poder fazer com algum credito.
          A decisão dos inquisidores é positiva: Illma, Sª. queira mandar tirar o habito penitencial ao ditto seo marido Nuno de Britto Allam, poiz só tirandoselhe o reçebera em sua caza, e não d.’outra maneira: atentando que he huma mulher christam velha e nobre.

          Abaixo da mensagem, surge a rubrica E. P. Mg. – o Mg. alusivo talvez a Pedro Mexia de Magalhães ou ao inquisidor Manuel de Magalhães de Meneses, que também assina alguns documentos do processo. Mais abaixo a anotação Assine esta petiçºao e torne com seu sinal Reconhecido por Tabelião pub.co Lxª 4. de maio de 674.

          Depois de cumpridas as formalidades, e na data de 30 de Maio de 1674 (fólio 189), Nuno de Brito Alão é chamado pelos inquisidores, e informado por estes do seu parecer favorável à petição da esposa para o acolher em sua casa, ordenando que se lhe tirasse o hábito penitencial; comprometendo-se então Nuno de Brito a cumprir as penitencias espirituais e a não sair do reino sem a licença da Mesa. As partes assinam este documento final.

          Nesta fase, deverá ter sido escrita a anotação que se lê na folha de rosto do processo: 

Informados que se lhe tire o habito á petição de sua m.er.

4 - A doença de Nuno de Brito Alão

          Os problemas de saúde de Nuno de Brito Alão são mencionados em diferentes documentos do processo, e parecia serem frequentes as suas estadias nas Caldas para tratamento. Além da alusão no auto de entrega; Mariana de Jesus da Silva, no seu depoimento, diz que o pai lhe falou da Lei de Moisés quando se encontravam na vila das Caldas em casas em que estavam pousados. Nas contraditas, também é dito que João de Figueiredo, querendo prevenir Nuno de Brito Alão que a Inquisição podia estar no seu encalço, procurou-o e foi às Caldas, onde o Reo se estava curando.

          Mais elucidativa, parece ser a petição de Maria da Silva, que fala de enfermidades que o marido padece e ser este um homem aleijado.

          De toda a forma, quem seguir este processo não pode deixar de notar que a assinatura de Nuno de Brito Alão diverge muito de uns documentos para outros. Nas duas primeiras assinaturas, mantém o apelido Allão, mas depois prescinde dele, e a própria assinatura deforma-se e estiola-se num lamento caligráfico.

          Seguindo essa impressão, perguntei a uma grafóloga profissional, Margarida Neto Macedo (2), se aceitaria analisar essas assinaturas de Nuno de Brito Alão e emitir um parecer. Margarida Macedo, amavelmente e com vivo interesse, aceitou o repto (e aqui endereço-lhe os meus agradecimentos por isso), frisando, no entanto, os condicionantes dessa análise: o de não ter outros textos escritos pelo punho de Nuno de Brito Alão, e o de estudar a partir de páginas fotografadas e não do próprio original em papel. Inteirei-a de alguns pormenores gerais do processo (ela preferiu não ter muita informação à partida, para ser mais independente na sua análise da letra), e transmiti-lhe duas páginas aleatórias do processo para ela se inteirar da forma como se escrevia na época e um ficheiro com dez amostras da assinatura do réu, dispostas por ordem cronológica: as duas primeiras assinaturas do réu no processo, e as restantes oito recolhidas ao longo do processo até à sua conclusão. Uma análise mais profunda poderia eventualmente ter sido realizada tendo como objeto todas as assinaturas de Nuno de Brito Alão no seu processo (que andará perto das trinta), mas aqui a lacuna e a falha são da minha inteira responsabilidade. A análise de Margarida Neto Macedo aos elementos que lhe foram transmitidos, e que transcrevo na íntegra, foi a seguinte:
A escrita de Nuno de Brito Alão revela uma mente activa, com boa capacidade de análise e discriminação e uma forte necessidade de captar o essencial. Motivado por um sentido prático e realizador, era pessoa diligente e escrupulosa que gostava de finalizar um trabalho bem feito. Contudo, mantinha a supremacia da lógica sobre o senso comum e concebia a vida a partir da sua concepção ideal, inspirando-se em princípios e valores.Tinha um instinto protector para com os demais, sendo pessoa emocionalmente contida. Na sequência temporal das dez assinaturas analisadas, as duas primeiras indicam um abalo emocional que pode corresponder a um estado de sobressalto e de choque que se repercute no equilíbrio psico-somático, havendo um agravamento na segunda, ou mesmo espasmos com fadiga muscular anormal. A partir da terceira assinatura até à nona, assiste-se a um crescendo de dificuldades motoras que indicam uma lesão na medula espinal. Na última assinatura encontra-se uma ligeira recuperação do estado motor, mas surge um estado mental de reservas e cautelas obsessivas.

Notas:
(1) No processo de Nuno da Silva pode ler-se, e cito: «em os quatro de Setembro de 1673 [Nuno de Brito Alão] começou a confessar Suas culpas e disse deste Reo o seguinte; e por não satisfazer, foi segunda vez acuzado, e lhe foi feita publicação de mais provas de justiça a que não veyo com Contradittas. Tem assento de tormento, e neste estado está seu Processo» (Processo de Nuno da Silva, fólios 21v.-22, Img 46-47).
O assento de tormento (Regimento... de 1613, XLVII) especificava qual o tormento que os deputados e inquisidores haviam decidido que o réu sofresse: «o género de tormento que se ha de dar, e se hade ser esperto, ou não, e quantos tractos hade haver».

(2) Margarida Neto Macedo, licenciada em Filosofia e ex-docente do ensino secundário, dedica-se desde 1989 ao estudo e aplicação da Grafologia, sendo palestrante e prestando serviços a empresas e aconselhamento pessoal. O seu trabalho articula-se em torno do blogue Letra Aberta e da sua página no Facebook.