domingo, 9 de novembro de 2014

MEMÓRIAS PAROQUIAIS DE 1758 - TRANSCRIÇÃO, por Carlos Casimiro de Almeida

MEMÓRIAS PAROQUIAIS DE 1758

TRANSCRIÇÃO de Carlos Casimiro de Almeida


                                                                                       Alfeizirão

                             Alfaceiraõ  
[PARTE I]

1.He villa dos couttoz de Alcobaça Patriarchado de Lisboa comarca
de Leria Provincia da Estremadura, freguezia de Saõ
Joaõ Baptista

2.He de Donataria o ReverendiSsimo Dom Abbade Geral de Al-
cobaça de prezente he o ReverendiSsimo Frey Manoel Bar-
boza

3.Tem a villa sincoenta e douz vezinhoz e toda a freguezia
duzentos e oitenta e seiz, PeSsoas nove sentas e trinta
e trez

4.Está situada em Areal quasi planicie com alguma declina-
ção para o Sul. Desta villa se avistaõ as villas dasCal-
daz da Rainha distante duaz legoaz = Obidos distan-
te trez legoas = Saõ Martinho distante meya legoa =
Salir do Porto distante trez quartoz de legoa

5.Tem por termo o luguar do Valado com trinta e douz vi-
zinhos = Val da Maceira com quinze vezinhos = Mosquei-
roz com doze vezinhos = Cazalinho com oito vezinhos =
oito cazaiz doSul = quinze cazaiz do Norte todos dispersos =
parte do luguar de Famalicam diversa freguezia em distan-
cia de meya legoa, e o maiz dito termo em menos distancia

6.A Igreja Parochial está fora da villa distante seSsenta paSsoz
posta por Terra, e quasi demolida á maiz de sincoenta annoz
e serve=lhe de Matriz a lemitada Igreja do Espirito Santo sita
no meyo da villa, que amiaça total ruina. Pertence a esta fre-
guezia toda a macalhona, que consta de setenta e doiz ca-
zaiz disperSsoz sitoz no termo de Alcobaça = os dittoz

                                               Luguar 




luguar do Valado = Mosqueiroz = Cazalinho = Val da Maceira =
Cazaiz do Sul = Cazaiz do Norte

7.He orago da Freguezia Saõ Joaõ Baptista constava a Sua
Igreja de trez altares o Colateral da parte direita de NoSsa Sen-
hora do Rozario, e da esquerda Saõ Miguel. Naõ tinha
Navez. Conserva na que lhe serve de Parrochia a Confraria
do SantiSsimo Sacramento com compromiSso de sujeição á
Ordinário com renda de sincoenta mil reis pouco maiz
ou menos, que suprem todoz os gastoz da Confraria sem
que os Mordomos concoraõ para alguma despeza. A Sen-
hora do Rozario continha mil reis de renda. A das Almas
com as esmolaz que dão os devotoz, e suprem as despezas.

8.O Parrocho he Vigário, e Prior na villa de São Martinho do mesmo
Sancto da appresentação do ReverendiSsimo Dom Abbade Geral
de Alcobaça. Há annos que tem de Renda quinhentoz mil reis,
 e há outroz que Saõ os maiz, que nem tresentos por serem
os frutoz muito contingentes como Saõ pescarias, e pam.

9.Naõ tem Beneficioz à ditta Igreja.

10.Naõ tem convento algum

ii.Naõ tem Hospital

i2. Naõ tem caza da Mizericordia

13. Tem a Ermida de Santo Amaro, que está proxima á Villa taõ
antiga como a mesma. A Ermida de Santa Quitéria sita no
meyo do ditto luguar do Vallado erecta com provizão de Sua
Eminência de doze de Junho de mil e sete sentos e trinta.
A Ermida do Espirito Sancto em que está a Parrochia sitta
no meyo da villa Saõ feliais da Parrochia, e pertencem
aos Parochianoz




14.Em o dia do Santo quinze de Janeiro he vezitada de muita
gente das terras vezinhas e tambem das remotas, que publicos
milagres, e prodigios que Deuz lhe tem feito por interceSsaõ do
Santo, com agradecimento lhe trazem braçoz, maõez, pes, dedos
de cera que penduraõ nas paredes da caza do Santo, e supposto
muitos milagres moralmente sejaõ certoz, naõ me consta
seja algum autentico, nos maiz dias do anno poucas vezes
vem á ditta Igreja gente de Romaria. Á Ermida de
Santa Quitéria parte do discurSso do anno vaõ algumaz
peçoaz de Romaria das terras vezinhaz, e Remotaz por pro-
meSsas, ou por lhe terem mordido caunz damnadoz.

15. He a terra (respectivo á sua pequenhéz) abundante de milho,
e feijaõ branco por ter vargenz e terras alagadaz dagoa
no inverno, e ainda parte no veraõ dá favaz, e ervilhaz,
e ortaliça, bastante trigo e vinho pouca sevada algu-
ma fruta no luguar do Valado, e Macalhona. Naõ há
olivaiz por que a expriencia tem mostrado que naõ produ-
zem por estar a terra situada vezinha ao Mar, e muito en-
festada dos ventos ispecialmente nortez

16.Tem douz Juizez ordinárioz, trez Veriadores, e hum Pró-
curador do Concelho annuais, que servem por confirmaçaõ
do Dom Abbade Geral de Alcobaça

17. Naõ he cabeça de Concelho, Honra, ou Behetria  (1)

18. Naõ há memoria que desta terra sahiSse homem gran-
de em virtude, de letras, ou em Armaz, sendo que, há tra-
dição que junto a esta villa para o Nascente distante de
quatro sentoz paSsoz pouco maiz, ou menos no

                                                                       Ccitio 



CCitio que se chama a Ramalheira esteve situada a cidade de Ebóbri-
cio de que se acha vestegioz de alicerces de cazaz, donde há quem diz
sahio o famozo, e alentado Vereatto

19. No dia quinze de Janeiro em o Rocio da Ermida de Santo Amaro
há feira grande de dous diaz, mas naõ taõ franca que
os Rellegiozoz de Santa Mariade Alcobaça deixem de
cobrar terrado pello preço que lhe parece, sendo drecta esta
feira com provizaõ Regia para ser o terrado para a Igreja
do Santo que naõ tem fabrica

20. Naõ tem correyo, e serveSse do das Caldas da Rainha, ou de
Alcobaça distante cada huma Villa duaz legoaz

21.Dista quatorze legoaz de Lisboa capital do Reino, e Pa-
triarchado


22. Naõ tem privelegio maiz que por ser contigua ao Porto
do mar de Saõ Martinho distante meya Legoa.
Naõ tem couza memoravel, ou antiguidade

23. Tem para a parte do Sul distante hum quarto de legoa
huma chamada alagoa Limpa que os animais que tem
sanguexugaz que ouveraõ em outraz agoas bebendo nella
as largaõ, e as sanguexugaz desta Lagoa saõ muito appro-
vadaz, e as levaõ para Lisboa, e para outras partes. Naõ
cria pescado. No inverno terá de comprido trezentas varaz,
e de largura oitenta, e de altura doze palmos no maiz alto,
no veraõ sento e sincoenta varaz de comprido, e de largura qua-
renta, e de altura seiz ou sete palmoz no mais alto




24.Naõ he porto de mar, mas há tradiçaõ moralmente 
Sertã, que o foi pellos vestegioz de conchaz e ancoraz
que se tem achado por que a terra se tem alterado com az
innundaçõiz das agoaz que correm dos Montez que tem
da parte do Nascente, e recolhido as agoaz do mar.

25. He terra aberta, e para a parte do Poente tem distancia de
duzentos paSsoz hum catello alto, grande e antigo que
está a maior parte delle por terra, e ao meu parecer foi
obra dos Romañoz pellas inscriçoiz que vi nelle em pedraz
que se dedecavaõ a Senadores Romañoz


26. No terremoto do primeiro de Novembro de mil e sete sentoz
e sincoenta e sinco teve o ditto castello muita Ruina, e cahio
muita parte, mas sempre lhe ficaraõ bastantes torrez
illezaz, e a villa padeceraõ as cazaz mais altas que saõ poucas
algum destroço que se acha reparado, menoz dos Temploz.

 [PARTE II]

Naõ há Serra nos lemites desta freguezia

   [PARTE III] 


 De Rio

Junto a esta villa para a parte do Sul há hum Rio em
                                                       distancia 

 
Distancia de duzentoz paSsoz que tem o nome Rio de Alfaceiraõ 
e muitoz lhe chamaõ o Rio de charnais por paSsar por este sitio,
nasce em algumaz fontez e montez junto ao luguar do
Carvalhal bem feito.

2. Nasce com pouca agoa, e se vai aumentando com a corrente
de variaz fontez que estaõ nas margenz delle, corre to-
do o ano athe a ponte desta villa. Somente he cau-
dalozo em quanto chove muito, e huma ou duas oras de-
poiz

3. Entra neste Rio o de charnais em distancia de hum quarto
de legoa com pouca agoa fora do tempo da chuva

4. Neste naõ há que dizer


5. He de curso arebatado nas enchentes por que he agoa de Mon-
te isto quasi em toda a sua distancia

6.Corre de Nascente para o Poente

7.Cria enguias, e algunz Ruivaloz, e nenhum outro pescado


8. Neste não há que dizer


9. Neste não há que dizer


10.As margenz saõ cultivadas, e produzem milho, feijaõ, e al-
gum trigo, e sevada. Não tem arvoredo


11. Neste não há que dizer

12. Não há memoria, ou tradiçaõ que este Rio tiveSse outro
nome

13. Entra no mar no termo da villa de Saõ Martinho em dis-
tancia de meya legoa

14. Neste não há que dizer

15. Junto a esta villa para a parte do Sul en distancia
de sento e sincoenta paSsoz tem huma ponte de ma-
deira no caminho que vai para a villa das Caldas.

16. Tem seis moinhoz que moem em todos o inverno, e a mai-
or parte da Primavera, e Outono.

17. Não há tradiçaõ que neste Rio de suas areas se tira
ouro, ou algum metal

18. São as suas agoas livres somente para a regadiá

                                           dos campoz




dos campoz mas não para os moinhos que pagão nos Padres 
de Santa Maria de Alcobaça foro das agoas

19. Desde o seu nascimento thé se meter no mar tem a dis-
tancia de duas legoas e meya passa somente junto ao lu-
guar do Carvalhal bem feito ahonde nasce, e a esta villa

O Prior eVigario Dor. Manuel Romão (2)




Nota (de Casimiro de Almeida):
(1) Beahtria: «povoação autonómica, livre, independente, que elegia os seus magistrados». 
 Segundo o Diccionario Prosodico de Portugal e Brazil, de António José de Carvalho e 
 João de Deus, 8ª edição, Porto, 1905, p.124.

(2) O Pe. Manuel Romão, de Castelo Branco, era o pároco da vila, também referido na Corografia de frei Manuel de Figueiredo. Nos assentos paroquiais assina da mesma forma:  Prior e Vigário Dor. Manuel Romão.

____________________________________________________________

ADENDA:

As Memórias Paroquiais de 1758 são formadas pelas respostas de todos os párocos do reino a um inquérito elaborado pelo Padre Luís Cardoso, membro da Congregação do Oratório, que fora incumbido de as organizar. Transcrevemos, infra, as perguntas desse questionário, que estava dividido em três partes distintas: sobre as povoações (27 perguntas), sobre as serras (13 perguntas), e sobre os rios (20 perguntas). A segunda parte não foi desenvolvida nas respostas do pároco por não haver serra nos limites da freguesia.
A cópia digitalizada das Memórias Paroquiais foi disponiblizada pela Torre do Tombo.

José Eduardo Lopes

O questionário:


 Parte I: O que se procura saber da terra

1. Em que província fica, a que bispado, comarca, termo e freguesia pertence.

2. Se é d’el-Rei, ou de donatário, e quem o é ao presente.

3. Quantos vizinhos tem, e o número de pessoas.

4. Se está situada em campina, vale, ou monte e que povoações se descobrem dela, e quanto distam.

5. Se tem termo seu, que lugares, ou aldeias compreende, como se chamam, e quantos vizinhos tem.

6. Se a Paróquia está fora do lugar, ou dentro dele, e quantos lugares, ou aldeias tem a freguesia, e todos pelos seus nomes.

7. Qual é o seu orago, quantos altares tem, e de que santos, quantas naves tem; se tem Irmandades, quantas e de que santos.

8. Se o Pároco é cura, vigário, ou reitor, ou prior, ou abade, e de que apresentação é, e que renda tem.

9. Se tem beneficiados, quantos, e que renda tem, e quem os apresenta.

10.Se tem conventos, e de que religiosos, ou religiosas, e quem são os seus padroeiros.

11.Se tem hospital, quem o administra e que renda tem.

12. Se tem casa de Misericórdia, e qual foi a sua origem, e que renda tem; e o que houver de notável em qualquer destas coisas.

13. Se tem algumas ermidas, e de que santos, e se estão dentro ou fora do lugar, e a quem pertencem.

14. Se acode a elas romagem, sempre, ou em alguns dias do ano, e quais são estes.

15. Quais são os frutos da terra que os moradores recolhem com maior abundância.

16. Se tem juiz ordinário, etc., câmara, ou se está sujeita ao governo das justiças de outra terra, e qual é esta.

17. Se é couto, cabeça de concelho, honra ou beetria.

18. Se há memória de que florescessem, ou dela saíssem, alguns homens insignes por virtudes, letras ou armas.

19. Se tem feira, e em que dias, e quanto dura, se é franca ou cativa.

20. Se tem correio, e em que dias da semana chega, e parte; e, se o não tem, de que correio se serve, e quanto dista a terra aonde ele chega.

21. Quanto dista da cidade capital do bispado, e quanto de Lisboa, capital do Reino.

22. Se tem algum privilégio, antiguidades, ou outras coisas dignas de memória.

23. Se há na terra, ou perto dela alguma fonte, ou lagoa célebre, e se as suas águas tem alguma especial virtude.

24. Se for porto de mar, descreva-se o sitio que tem por arte ou por natureza, as embarcações que o frequentam e que pode admitir.

25. Se a terra for murada, diga-se a qualidade dos seus muros; se for praça de armas, descreva-se a sua fortificação. Se há nela, ou no seu distrito algum castelo, ou torre antiga, e em que estado se acha ao presente.

26. Se padeceu alguma ruína no terramoto de 1755, e em quê, e se está reparada.

27. E tudo o mais que houver digno de memória, de que não faça menção o presente interrogatório.



Parte II: O que se procura saber da serra


1. Como se chama.

2. Quantas léguas tem de comprimento e quantas tem de largura, aonde principia e acaba.

3. Os nomes dos principais braços dela.

4. Que rios nascem dentro do seu sítio, e algumas propriedades mais notáveis deles; as partes para onde correm e onde fenecem.

5. Que vilas e lugares estão assim na Serra, como ao longo dela.

6. Se há no seu distrito algumas fontes de propriedades raras.

7. Se há na Serra minas de metais, ou canteiras de pedras, ou de outros materiais de estimação.

8. De que plantas ou ervas medicinais é a serra povoada, e se se cultiva em algumas partes, e de que géneros de frutos é mais abundante.

9. Se há na Serra alguns mosteiros, igrejas de romagem, ou imagens milagrosas.

10. A qualidade do seu temperamento.

11. Se há nela criações de gados, ou de outros animais ou caça.

12. Se tem alguma lagoa ou fojos notáveis.

13. E tudo o mais que houver digno de memória.


Parte III: O que se procura saber do rio


1. Como se chama assim, o rio, como o sitio onde nasce.

2. Se nasce logo caudaloso, e se corre todo o ano.

3. Que outros rios entram nele, e em que sitio.

4. Se é navegável, e de que embarcações é capaz.

5. Se é de curso arrebatado, ou quieto, em toda a sua distância, ou em alguma parte dela.

6. Se corre de norte a sul, se de sul a norte, se de poente a nascente, se de nascente a poente.

7. Se cria peixes, e de que espécie são os que traz em maior abundância.

8. Se há nela pescarias, e em que tempo do ano.

9. Se as pescarias são livres ou algum senhor particular, em todo o rio, ou em alguma parte dele.

10. Se se cultivam as suas margens, e se tem muito arvoredo de fruto, ou silvestre.

11. Se têm alguma virtude particular as suas águas.

12. Se conserva sempre o mesmo nome, ou começa a ter diferente em algumas partes, e como se chamam estas, ou se há memória que em outro tempo tivesse outro nome.

13. Se morre no mar, ou em outro rio, e como se chama este, e o sitio em que entra nele.

14. Se tem alguma cachoeira, represa, levada, ou açudes que lhe embaracem o ser navegável.

15. Se tem pontes de cantaria, ou de pau, quantas e em que sítio.

16. Se tem moinhos, lagares de azeite, pisões, noras ou algum outro engenho.

17. Se em algum tempo, ou no presente, se tirou ouro das suas areias.

18. Se os povos usam livremente as suas águas para a cultura dos campos, ou com alguma pensão.

19. Quantas léguas tem o rio, e as povoações por onde passa, desde o seu nascimento até onde acaba.

20. E qualquer coisa notável, que não vá neste interrogatório.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O FORAL DE 1332 - TRANSCRIÇÃO E NOTAS, por Carlos Casimiro de Almeida

E
n nome de deus amen.[1]
Sabham quantos e∫ta carta virem que nós, ffrey Johane, abbade, e o Cõvento do Monesteiro d alcobaça. Damos a vós, probadores, e a todos vo∫∫os ∫∫oçe∫∫ores, as no∫∫as herdades de∫∫e logo do alfeyzeram, da mota e da torre de fremõdo, como ∫∫on devi∫ados e demarcados per as devi∫ões que ∫∫e ∫∫eguem:
primeyramente como parte pela almoynha velha que ffoy da mouraria cõ barrãtes[2] e dali pelo valado carro e dy aa cruz de Johã d outeyro, pela carreyra, daí a augua dos mo∫queyros,[3] pela vena da angra; e di ∫∫ay∫∫e pelo arneiro de gõçalo e di pel encuberta ao marco que ∫∫ée no cume[4] ao marco de barva torta; e dy ao valado do pumar que ∫∫é no cume, como vay por e∫∫e valado aa eyra do barreyro que ffez gil rroiz[5] — e di como ∫∫e vay ao vi∫o ao marco que ∫∫ée na cabeça de ∫ob´la ca∫a de Leonardo; e dy ao marco que ∫∫ee na cabeça de çima d ouival [sic] de rrecobal, pelo caminho velho, e di a huum marco que ∫∫ee aperto en humma cabeça antre o caminho velho de charnaaes e o caminho d obidos que vay pera a çella; e di derivanmte como trave∫∫a o caminho da Cella e vai∫∫e aá rribeyra de ∫∫o a Grãja do ∫outo, hu ∫∫ee marco po∫to, e dy ao porto do pinheyro e di como parte adiãte cõ o termho da Cella e vay∫∫e aa varzea redõda. De∫i como parte cõ o termho da Cavalariça, que fica pera nós, e cõ a vinha da torre, a qual ffica por do termho do alfeyzerã.
Os quaaes pobradores devedes ∫eer Cento e nõ meos. Damos a vós as ditas terras ∫o taaes preitos e cõdicoes: que vós lavredes e ffruiteviguedes as ditas herdades bem e fielmente; e rrõpades e chãtedes vinhas e olivaaes; e ffaçades ∫alinhas de ∫al; e que dedes a nós e ao dito no∫∫o Monesteiro, en cada huum ano pera todo ∫empre, a quarta parte de todolos bens fruitos e renovu com que des hi der; e outro∫∫i do ∫al en paz e en ∫alvo ∫alvãdo; que das vinhas olivaaes e pomares que ffezerdes de novo devedes dar a quarta parte em paz e en ∫alno [sic]. o vinho no lagar e a tinta e as olivas colheitas na eyra. E devedes dar de cada ca∫aria ∫enhos alqueires de trigo na eira que ∫eja recebedoyro por fogaça, e ∫enhas galinhas por dia de O Sã Miguel; e todolos outros moradores que nõ ouverem herdade dem senhas galinhas polas moradas. E vós devedes vingar e∫∫as herdades de pos tres anos compridos, e ante nõ, Morãdoas cõtinoadamente per vós ou per outrem e lavrãdo e rõpendo cõtinoadameente; e o que a∫∫i nõ fezer que ∫∫eja dos ∫obreditos abbade e Cõvento de lha tolher nos dereitos tres anos. E vós nõ devedes vender e∫∫as herdades nem parte delas e ∫∫e as que∫erdes vender fazerdelo ∫aber ao que por nós morar no dito logo do alfeyzeram. e ∫∫e hy por nós nõ morar; nenguum nõ sejades teudo de vyrdes ∫obre∫to anos mays de∫ ali adeãte; vendedeo aa tal pe∫oa que faça anos o no∫∫o fforo e pague os ditos no∫∫os dereitos. E ∫∫seo a∫∫i nõ ffezer a venda nõ valha.
E por que nós nõ podemos e∫aifar palha pera nós quãdo hy formos, e pera e∫∫es que morarem no ca∫telo pera nõ reçeberdes deles nojo, cada huum lavrador deve dar huuma carrega de palha na eyra. e ∫∫e lha nõ demãdarem na eira nõ lhe ∫∫ejã de poys teudos. E todos os que viverem per almocravaria devem nos ffazer ∫∫enhas careiras cada ano cada huum cõ ∫∫a be∫ta.
E rreteemos pera nós o ca∫telo do alfeyzerã, cõ ∫as moradas e entradas e ∫aidas, a∫∫i como ãtre nós e vós; e a vinha que chãmã de pero neto, e a orta, a∫∫i como ∫ta ∫∫arrada . E rretemos pera nós todalas ∫∫ainhas ffeytas cõ ∫∫as entradas ∫∫aidas e perteenças. E rreteemos pera nós moynhos e azenhas, ffeytas e por ffazer, pi∫ões, Lagares de vinho e d azeite, fornos, rrelegos, açougues, portageens, moordomado, alcaidaria; e todolos outros ∫∫enhorios e dereitos[6] rreaaes, per qual gui∫a, quaisquer que sejã; tã bem do mar e do rrio como da terra. E o rrelego ∫eja pelo co∫tume de Santaren.
E vós devedes dar, bem e fielmentte, cõpridam~te, as dezimas e as premicias aa Egreja; todos vós devedes a aleger vo∫o alvazil por dia de Sã Miguel e pre∫entardelo a nós e nós juramentalo e cõfirmalo; e o alcayde ∫∫eja vezinho; e damos vos medidas e foro de Sãtarem en todalas outras cou∫as.
E vós devedes logo abrir a varzea da mota, tã bem aberta de meios come as ∫ergentes[7] de cõtra os mõtes e mãteelas pera ∫empre a vo∫∫a cu∫ta. E devedes meter guardadores jurados que guardem os paães, as vinhas e as abertas, e põerdes pena sobrelos danadores. Danos que ∫∫e fezerem ãtre nós e vós corregem∫∫e de vezino a vezinho, ∫egundo co∫tume de Sãtaren.
E vós devedes trabalhar logo per tal gui∫a que façades ca∫as e moradas, de gui∫a que ata Natal primeiro que vem, ou ãte ∫e ãte poderdes, cada huum ∫eja hi rre∫idente pera rrõper lavrar e ffrutivigar, de gui∫a que pare∫ca nõ mengua [pã] per cada huu. E ∫∫e alguum de vós ou de vossos ∫∫oçe∫∫ores, per negregença nõ qui∫er [?] proveitar na ∫∫a ca∫aria, ou a nõ fruytvigar, ou a de∫emparar, ou nõ rrõper, ou nõ chãtar vinhas e olivaaes, ou nõ fezer as ditas ∫aynhas, ou nõ pagar a nós os no∫∫os dereytos e foros ∫obreditos, ou nõ guardar e cõprir todalas cõdições de∫ta carta e cada huuma delas — nós vos po∫∫amos con∫trenger por todo a∫∫y como for dereyto.
E vós devedes dar dos lagares, ata Sã cibraão, tres ∫∫oldos do dia e da noyte, e dali adeãte cinquo ∫∫oldos; outro∫∫y do dia e da noyte, ainda ainda [sic] que sejades mays ajuntados en huum. E nós vos devemos fazer lagares ∫egundo cõpreze ao logar; e ∫∫e os nã fezermos devedes nolo defrõtar que os façamos, ata tres vezes, e de cada vez aver huum mes de∫paço; e dali a deãte ∫∫e os nõ fezermos faça∫∫e o que for dereyto.
E vós devedes ∫∫eer boos va∫∫alos e leaaes aa ordim. E vós devedes ameter acolher o pã [d, riscado] todolos de vo∫∫a ca∫a; e ∫∫e me∫ter for alguuns obreyros, meterdelos e pagam∫∫e do mõte ãte que ∫∫e parta. E outorgamo∫ com que po∫∫ades ∫emear ∫enhas teeigas de çevada, pera vo∫∫as be∫tas e pera vo∫∫os boys, e ∫∫e dela venderdes ou colherdes darddes a nós o vo∫∫o [?] quarto. Outro∫∫i das favas e ervilhas, çebolas, alhos e fruyta, po∫∫ades comer en verde ∫em maa maliçia; e das que colherdes, ou en rre∫tar, des ou vendardes, dardes en de a nós o quarto; e os no∫∫os gaados e os vo∫∫os devem paçer as hervas e bever as aguas de∫∫uum, de gui∫a que nõ façã dano. E nós devemos tapar o no∫∫o pomar de gui∫a que pare∫ca que he bem tapado e ∫∫e o a∫∫i nõ taparmos os gaados que hy entrarem nõ ∫∫ejã teudos a corregimento.
E nós, ∫∫obreditos cento pobradores e lavradores, por nós e por todos no∫∫os ∫∫oçe∫∫ores e∫ta carta e todalas condições dela e cada huuma delas louvamos e outorgamos. En te∫temunhos das quaes cou∫as, nós, ∫obreditos abbade e Cõvento, mãdamos en de fazer duas cartas: huuma que ffica rregi∫trada no livro da no∫∫a notaria e e∫ta que damos a vós, ∫∫elada do ∫∫elo de nós, ∫obredito abbade. E nós, Cõvento, por que de co∫tume de no∫∫a ordim, ∫∫elo nõ avemos opponimento[8] do ∫∫elo do dito no∫∫o abbade, en esta carta louvamos e outorgamos.
Dada en alcobaça. Vyte e huum dia d outubro. Era de mil ccc e ∫etenta anos» — e portanto 1332.


________________________________________

[1] Esclarece o historiador e meu amigo Valentino Viegas, da Torre do Tombo, que deve tratar-se do registo aqui existente, como era costume, visto o documento não apresentar assinaturas. Estas constariam, sim, das cartas originais: a que foi dada aos moradores e a que ficou no Mosteiro.
Para uma mais fácil leitura e melhor compreensão, procedi a algumas alterações ligeiras.
[2] Deve corresponder ao ponto onde está o marco divisório das freguesias de Alfeizerão e Salir de Matos, junto à ponte sobre o rio de Tornada.
Os campos em frente, excluindo a Mota, seriam salinas, razão por que não se referem os limites a poente.
[3] «Augua dos Mosqueiros» e «angra» devem ser a mesma coisa: tratar-se-á do salgueiral que as águas de Inverno deixavam alagado até à Primavera — a que a meio do século XX chamávamos a Mata do Padre.
[4] Espanta que a denominação Barba Torta venha de tão longe! Mas não é fácil interpretar a alusão que se lhe faz no âmbito das demarcações.
[5] Será uma abreviatura: num documento de 1440 que transcreve o foral de 1422, parece ler-se Domingues. Mais natural porém seria Rodrigues.
[6] Segue-se palavra que não consegui entender.
[7] A palavra tem relação com o verbo latino servir: poderá significar vala de escoamento, sarjeta,  mas também serventia —  termo muito usual na área, no sentido de caminho de acesso a certos campos.
[8]Dificuldades de leitura devidas ao estado de conservação da carta (particularmente a humidade, que, embebendo o pergaminho, misturou caracteres do rosto e do verso da folha) suscitaram-me e obrigaram a pequenos cortes. Sem prejuízo para a compreensão.

Carlos Casimiro de Almeida


_________________________________________________________________________________


Nota: a transcrição deste foral foi publicada - e era inédita - por Casimiro de Almeida na sua monografia Alfeizerão - Apontamentos para a sua História, do ano de 1995, com edição da Junta de Freguesia de Alfeizerão. Propus ao autor reproduzi-la aqui, para estar disponível em formato eletrónico para leitura ou estudo por parte dos interessados.
José Lopes





segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O CASTELO E O ENGENHEIRO – um arrazoado sobre um desenho icónico do castelo de Alfeizerão


Fig. 1 - Desenho, retocado, do castelo de Alfeizerão

(in O Archeologo Português, vol. VIII, n.º 4, p. 92, Janeiro de 1903, edição do Museu Ethnologico Português, Lisboa, Imprensa Nacional, 1903)


Resumo:
            O castelo de Alfeizerão possui esta imagem icónica, que é o desenho feito no século XVIII pelo sargento-mor de infantaria José António Monteiro de Carvalho. Desde o virar do século XIX até aos nossos dias, esse desenho foi repetido sucessivamente em monografias e obras de arqueologia, e reproduzido em painéis de azulejo e gravuras, condescendendo-se por vezes em lembrar que data do século XVIII, ou a detalhar que o seu autor era o dito Monteiro de Carvalho e que foi desenhado para obsequiar a rainha D. Maria I. 
Ao invés do que se poderia supor pela “legenda” que acompanha o desenho, um desenho algo majestoso criado para agradar uma rainha, este não é mais do que uma miniatura que adorna a cercadura de uma carta geográfica da Estremadura oferecida à rainha numa data imprecisa, balizada pela sua ascensão ao trono em 1777 e a morte de Monteiro de Carvalho em 1780.
Para enquadrar a realização e as condições em que surgiu a Carta Geográfica da Estremadura e este desenho do castelo em particular, alinhavaremos alguns ténues apontamentos biográficos sobre a figura do seu criador.

Engenheiro e artista
José António Monteiro de Carvalho foi militar e engenheiro e dele possuímos numerosos elementos biográficos reunidos por Sousa Viterbo. Foi um estudante brilhante na Academia de Fortificações e na Aula de Esfera (classe pública de matemáticas) do Colégio de Santo Antão, e em virtude dos seus progressos é nomeado pelo Conselho de Guerra no ano de 1751 como Ajudante de Infantaria com exercício de engenharia para a província de Trás-os-Montes (VITERBO, 1904, p. 175).
Sobre o seu contexto familiar, Viterbo transcreve documentos que nos indicam a sua ascendência até aos avós, sendo que os pais dele, Francisco Monteiro Rebelo e Isabel Maria, eram naturais, ele de Lisboa, da freguesia de Nossa Senhora dos Anjos, e ela do Vilar, Cadaval e também nos informa que contraiu matrimónio com Maria Rosa Joaquina, natural e baptizada na freguesia de Nossa Senhora do Socorro, em Lisboa (VITERBO, 1922, p. 389). Por um outro autor, Volkmar Machado, é-nos dito que uma irmã de Monteiro de Carvalho, Joana Inácia, ou Joana do Salitre, por ai residir, foi uma pintora lisboeta de muito renome nesse tempo, distinguindo-se como retratista e pintora de painéis de cariz religioso, e sobre a sua produção artística, considera Volkmar Machado: «O seu estilo, sem ser bom, é tolerável, atendendo ao seu sexo» (MACHADO, 1922, p. 106).
Monteiro de Carvalho é nomeado, juntamente com outras personalidades, para constituir por três anos o governo da instituída Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, preenchendo os cargos políticos da Companhia, que compreendiam um Provedor, doze Deputados e um Secretário. O diploma é assinado por Sebastião José de Carvalho e Melo e foi publicado no Porto a 31 de Agosto de 1756 (SILVA, 1830, pp. 426-441).
Mas é em Lisboa, e com o terramoto de 1755, que se notabiliza como engenheiro. Logo em Dezembro de 1755, é Monteiro de Carvalho quem inicia o inventário (o tombo) das praças, ruas e edifícios públicos e a medição da cidade, bairro a bairro, uma descrição que servirá de base ao quimérico e grandioso «Plano para a Reedificação da Cidade de Lisboa», exarado em Decreto com a data de 29 de Novembro de 1755, e que um diploma posterior com o mesmo título, publicado a 12 de Junho de 1758, esmiuçará rua a rua, praça a praça (SILVA, 1830, p 757). O conjunto dessas plantas delineadas por ele chegou até nós sob a forma do «Livro das Plantas das Freguesias de Lisboa», num total de 36, assinadas pelo engenheiro e onde se descreve as paróquias de Lisboa com os seus limites e confrontações (DGA/TT, Códices e documentos de proveniência desconhecida, n.º 153).
Para fazer cumprir o Plano, foi instituída uma Inspecção Geral do Plano que deveria levar os particulares a seguirem-no, obrigando-os a urbanizar os seus lotes de acordo com as pretendidas especificações. Para tal, são nomeados os Inspectores de Bairro e Monteiro de Carvalho, como Inspector de Obras, assume uma função conectora entre eles e fica encarregue de sanar conflitos entre os proprietários de terrenos, sendo o homem no terreno que melhor representava a vontade e os interesses da Inspecção Geral (RIJO, s/d). Entre demolições e construções, o plano titubeia e quase não progride.
Gustavo de Matos Sequeira, falando do sonho pombalino da nova capital, escreve: “O marquês, porém, não conseguiu ver iniciado sequer esse estupendo enxadrezado de ruas que ia até às fortificações de Campolide, valorizando-lhe uns terrenos que possuía para lá da Cruz das Almas e do Arco do Carvalhão. Foram-se as ruas traçando aos poucos e as Reais Obras não tinham remédio senão ir cedendo a pouco e pouco, abdicando do plano original e transigindo com as necessidades urgentes de construção e com o capricho dos proprietários. O tenente-coronel José António Monteiro de Carvalho – o “bota-abaixo” – além de ter sido encarregado das demolições que lhe granjearam a alcunha, foi também encarregado de executar o plano a que me refiro. Naturalmente, porque viu a quási impossibilidade de tal execução, elaborou um projecto seu que, ao que parece foi, em parte, aceite e aprovado porque em alguns locais da cidade se lhe deu realização (SEQUEIRA, 1917, pp. 481-482). Noutro tomo da mesma obra, o autor aquilata da forma seguinte a alcunha de “bota-abaixo”: «Pior do que o abalo propriamente dito foi o incêndio que, durante cinco noites e cinco dias, lavrou na cidade; e creio que pior do que isso tudo foi o sargento-mor José António Monteiro de Carvalho – o famigerado Bota-Abaixo – que, à picareta e à bala razourou toda a Baixa. O Paço da Ribeira foi metralhado; os camartelos pombalinos acabaram com o resto» (SEQUEIRA, 1916, p. 39). Na mesma obra e na página precedente, Gustavo de Matos Sequeira reconhece como um «trabalho ingrato» a função de Monteiro de Carvalho como «dirigente técnico das numerosas demolições» que tinham de ser feitas na capital.
Por alvará de 21 de Dezembro de 1760, Monteiro de Carvalho é nomeado «Arquitecto das obras do Conselho da Fazenda Real», cargo deixado em aberto pelo óbito do anterior detentor, o capitão Eugénio dos Santos de Carvalho (VITERBO, 1904, p. 176). Nessa qualidade, prossegue com a reedificação de Lisboa mas de uma forma menos draconiana, focado em cada uma das suas freguesias e atendendo aos interesses dos proprietários dos terrenos e imóveis. Essa linha de acção é bem acolhida quando intenta construir em terreno chão ou onde existem prédios muito arruinados, mas encontra séria resistência onde já existem imóveis erguidos ou em bom estado de conservação. Com o tempo, esse projecto acaba também por ser abandonado da mesma forma que o plano original (SEQUEIRA, 1916, p. 159). Do que ainda conseguiu construir em Lisboa, seguindo ou à revelia de um plano-mestre, fez uma relação manuscrita, compulsada por Gustavo de Matos Sequeira e que se intitulava: «Relação das Propriedades de casas edificadas pelo Plano Pombalino» (SEQUEIRA, 1916, p.15).
Uma das muitas realizações que foram confiadas a Monteiro de Carvalho foi a construção do novo hospital de Lisboa, que substituiria o Hospital Real de Todos os Santos destruído em Novembro de 1755, obra gizada para aproveitar o edifício do Colégio de Santo Antão que a Coroa havia confiscado aos jesuítas. Num diploma assinado pelo então Conde de Oeiras e datado de 27 de Setembro de 1769, se decreta que «Que a referida obra se faça de jornal com todos os materiaes por conta do dito Hospital. Que o Sargento mór de Infanteria com exercício de Engenheiro José Monteiro de Carvalho seja o Director dela. Que de acordo com elle se nomeye hum Mestre Pedreiro e outro Carpinteiro para debaixo das ordens do mesmo Sargento mor dirigirem os Artífices de seus respectivos officios» (Viterbo, 1922, pp. 388-389). O novo hospital aí nascido seria baptizado de S. José em homenagem ao monarca.
Tirando Lisboa e o que por lá fez, Monteiro de Carvalho parece ter viajado um pouco por todo o país, conhecendo-se-lhe plantas de localidades e fortificações disseminadas pelo território, da província de Trás-os-Montes ao Alentejo. No entanto, uma das suas obras mais surpreendentes, porque inesperada, é um livro com um título dilatado, o «Diccionario portuguez das plantas, arbustos, matas, arvores, animaes quadrupedes, e reptis, aves, peixes, mariscos, insectos, gomas, metaes, pedras, terras, mineraes, &c. : que a Divina Omnipotencia creou no globo terraqueo para utilidade dos viventes» (MONTEIRO DE CARVALHO, 1765). A obra, de valor científico duvidoso, é uma amálgama de descrições (algumas fantasistas) e definições que deve ter colhido de fontes várias, e na qual é legítimo supor que tenha acrescentado algo de seu, retirado da sua própria observação das «cousas naturaes» do país. Mas a obra serve um propósito claro: lisonjear e agradar ao marquês de Pombal, a quem o livro é expressamente dedicado: «por muitas razões, sendo a mais principal huma, que he a de não parecer ingrato; porque como tenho a inestimável honra de criado seu, seria sacrilégio da obrigação, e delicto contra o agradecimento deixar de o consagrar a V. EXCELENCIA, maiormente tendo recebido incomparáveis benefícios da sua generosa mão, sempre grande em favorecer». E a dedicatória prossegue no mesmo tom antes de colocar o seu nome sob a frase: «Seu mais humilde, fiel e obediente servo». Um pouco mais adiante, no prólogo, alude às suas andanças pelas províncias do reino: «porém, o que pudemos averiguar com certeza, e experiências certas nos annos que neste exercício nos occupámos, examinando particularmente pelas Províncias deste Reino aquellas cousas naturaes, de que ha maior conhecimento, he o que por hora se publica (…)».
Com a morte de D. José I em 1777 e a demissão do Marquês de Pombal, o seu sucessor, o terceiro Marquês de Angeja (D. Pedro José de Noronha Camões de Albuquerque Moniz e Sousa), ordena a suspensão das obras públicas de reconstrução de Lisboa, que prosseguem depois disso em função da vontade (e do capital) dos privados. O próprio Marquês de Angeja assume o cargo de Inspector geral das Obras Públicas e do plano de reedificação da cidade.
Foi nos seus três últimos anos de vida, entre a morte de D. José e o seu próprio óbito, que Monteiro de Carvalho elaborou três das quatro Cartas Geográficas que chegaram até nós.

As Cartas Geográficas  
Conhecem-se quatro cartas geográficas elaboradas por Monteiro de Carvalho para oferecer ao (à) monarca, certamente, com o mesmo propósito adulador que presidiu á feitura do referido “Diccionario…”. No conjunto, cobrem todo o território nacional, à excepção do “Reyno do Algarve” (talvez a morte do engenheiro tenha abortado esse projecto algarvio, se porventura existiu).
Todas as quatro cartas apresentam o mesmo modelo: uma mapa da província a preto e branco onde o oriente, lugar onde o sol nasce, está colocado no topo do mapa, ocupado pelo medalhão da dedicatória. A emoldurar o mapa, está desenhado uma cercadura com medalhões com plantas e desenhos de fortificações e lugares da província tratada na Carta Geographica. As Cartas foram desenhadas em papel envernizado e coladas sobre tela.
Cronologicamente, só temos uma certeza: a primeira de todas é a CARTA GEOGRAPHICA DA PROVINCIA DE ENTRE DOURO MINHO E TRAS OS MONTES, porque foi a única dedicada a D. José. A data desta carta é incerta, podendo recair em qualquer dos anos do reinado de D. José, entre 1750 e 1777, mais rigorosamente a partir de 1751, quando Monteiro de Carvalho troca Lisboa por paragens transmontanas, e presumivelmente antes de 1774, data em que D. Mariana Vitória assume a regência por incapacidade do rei. O estado de conservação dessa carta não é muito bom e encontra-se esgarçada (intencionalmente?) no sítio onde estaria escrito o nome do soberano. Todas as outras cartas são dedicadas á rainha D. Maria I, que subiu ao trono em 1777.
Se obedeceram a um plano artístico estruturado, à primeira devem ter sucedido a Carta Geographica da Província da Beira,Carta Geographica da Provincia da Estremadura e a Carta Geographica da Provincia do Alentejo. Pela qualidade artística, ou cuidado na sua concepção, a observação das cartas apoia a ordem que supusemos para elas. Na primeira carta, dedicada a D. José I, as plantas das fortalezas e praças apresenta o melhor nível de detalhe. Na Carta da Província da Beira, a primeira oferecida à rainha, além das plantas, encontramos desenhos (com alguma qualidade e intenção paisagística) dos castelos e das casas na sua envolvência, como acontece com os da Covilhã ou Celorico da Beira (“Serolico”). Na Carta da Província da Estremadura, as fortalezas desenhadas são mais sumárias em detalhe, e um traço, por vezes contínuo, perfila o monte onde se ergue a fortaleza, ou o vale atravessado pelo Aqueduto das Águas Livres. Na última Carta, a da província do Alentejo, só se vêem plantas de fortalezas e praças fortificadas, algumas, como a de Marvão, extremamente pobres artisticamente (mesmo falando de arquitectura).
     Monteiro de Carvalho é sobretudo um arquitecto, não alardeia grandes virtudes de gravador de paisagens - as paredes das casas e castelos não apresentam textura nem detalhes ínfimos, mas aparecem lisas; e ele desenha a forma das casas nas encostas pelo seu contorno e ângulos, como as desenharia um mero observador sem grande propensão para as artes. Nas plantas arquitectónicas, o risco da sua profissão, mostra-se seguro, com a tranquilizadora exactidão que qualquer pessoa pode extrair da geometria. Os desenhos, como as plantas, sugerem uma colecção de esboços e exercícios arquitectónicos reunida pelo engenheiro durante as suas viagens pelas províncias do país. São, ao todo, sessenta e sete medalhões decorados, em que ele teria usado esses esboços e exercícios para valorizar os mapas das províncias, realizados ou finalizados, à excepção do primeiro, nos seus derradeiros três anos de vida.
    
A Carta Geográfica da Estremadura
Esta Carta Geográfica tem as dimensões de 133 por 95 centímetros. Ao topo, lê-se na dedicatória central da cercadura: “Carta Geographica da Provincia da Estremadura que A S. Magestade Fidelissima e Augustissima Senhora D. Maria I Raynha de Portugal oferece o Sargento Mor Engenheiro Jozé Monteiro de Carvalho”.
     Visualizando a nossa região com mais detalha, vemos que “Alfeizirão” está mais deslocado para norte, distorção que encontramos igualmente em alguns mapas setecentistas e que pode ser devido a uma posicionamento viário da vila, à sua situação na estrada real que ligava a Pederneira (“Pedreneira”) ás Caldas. Enquanto as vilas na orla de lagoas e enseadas, ou na margem dos rios, são representadas mais fielmente no mapa, as vilas interiores (e Alfeizerão já o era nesta época) tendem a aparecer incorrectamente figuradas.
Partindo da dedicatória, a cercadura artística do mapa exibe nos 16 medalhões decorados, plantas ou desenhos de castelos ou fortalezas da Província e, como excepção, o desenho do aqueduto das Águas Livres. Entre os castelos, temos os dois castelos dos coutos de Alcobaça:

Fig. 2 - Os castelos de Alcobaça e Alfeizerão
na Carta Geográfica da Província da Estremadura

Este é o tal desenho do castelo de Alfeizerão (“Alfeizirão”) que foi oferecido á rainha D. Maria I. Comparando-o com as diversas reproduções que dele conhecemos (n’O Archeologo Português, no Mosteiro e Coutos de Alcobaçade Manuel Vieira Natividade, e outras obras), é notório que algumas pequenas alterações foram introduzidas nas cópias realizadas: corrigiu-se o traçado da torre da direita, eliminando a sobreposição do motivo vegetal da moldura do medalhão e melhorou-se o realismo da alvenaria das muralhas e torres, desenhando-se nelas a malha das pedras que as formariam. Outra diferença curiosa é a vegetação que espreita e desponta pelo castelo, que no original de Monteiro de Carvalho está muito bem desenhada, e nas cópias reduz-se, por vezes, a novelos de traços confusos e nervosos. O aprimoramento do desenho original, também acrescentou arbustos e ervas, e até uma árvore, no morro do castelo, para abolir a sua monotonia.

Fig. 3: Detalhe do castelo de Alfeizerão na mesma Carta Geográfica

Algumas dúvidas subsistem em relação a este desenho. Se foi realizado antes ou depois do Grande Terramoto de 1755 (a carta geográfica é, como vimos, posterior) e se estamos em presença de um desenho realista, presencial, do castelo, realizado por Monteiro de Carvalho, ou se ele foi composto a partir de uma descrição, ou de um esboço riscado por terceiros. As Memórias Paroquiais de 1758 (DGA/ANTT, Memórias paroquiais, vol. 2, nº 53, p. 465 a 472) narram que «teve o ditto castello muita ruina, e cahio muita parte,  mas sempre lhe ficaram bastantes torres ilezas».
 Sobre as dúvidas apontadas, apenas podemos formular uma opinião, e na nossa opinião, o desenho do castelo de Alfeizerão (como o do castelo de Alcobaça), é um esboço feito no local, antes do grande terramoto. E falamos de esboço porque é isso que temos pela frente, uma silhueta, um desenho do contorno e volume das torres e panos de muralha, com o sombreado nas áreas indispensáveis e os sucintos apontamentos da vegetação e dos relevos do monte onde o castelo se ergue. E corremos o risco de supor que ele é anterior ao Terramoto de 1755 pelo aspecto intacto da fortificação, onde não se vislumbram traços de que nele tenha caído “muita parte”. Em suma, Monteiro de Carvalho, teria usado aqui um esboço anterior a 1755, desenhado por si, à semelhança dos outros sessenta e seis desenhos e plantas que empregou na criação das cartas geográficas.
Se olharmos a questão numa linha cronológica, temos de ter presente que o rei D. José I morre no ano de 1777 e com a subida ao trono de D. Maria I e a demissão imediata do Marquês de Pombal gera-se no reino um clima de antagonismo para com os familiares e os homens da confiança do Marquês. José Monteiro de Carvalho, que o tinha como amo e mecenas, teria sentido um receio natural de ser arrastado nessa maré-vazante pombalina, e no espaço de três anos, e com economia de meios, compõe as três cartas geográficas que dedica à rainha D. Maria I. Usa a mesma técnica e a mesma cercadura em todas elas, e ocupou os medalhões com plantas ou desenhos reproduzidos de esboços prévios (e isto continua a ser uma conjectura). Muitos dos desenhos de fortificações são também pálidos esboços, como o do castelo de Alfeizerão, mas cumprem o que se pretende deles. Alguma inexactidão nas plantas ou nos mapas, ou alguma ausência de perfeccionismo artístico na execução dos desenhos, não seriam relevantes a ponto de comprometer o valor artístico daquela oferta à rainha, com cujo favor e graça contaria o engenheiro para se suster de cair em desgraça política. O que conseguiu, mesmo considerando que não viveu muito mais tempo do que o rei que serviu durante quase toda a sua vida.
Apesar das mudanças políticas e da instabilidade latente que se seguiu à queda do Marquês de Pombal – do qual se considerava o mais humilde, fiel e obediente servo -  Monteiro de Carvalho logrou permanecer à frente das obras públicas do reino como «Arquitecto do Conselho da Fazenda», cargo que desempenhará até ao ano da sua morte. A confirmação desse facto vem-nos de um documento do dia 17 de Maio de 1780, um alvará de D. Maria I para nomear um novo Arquitecto das Obras do Conselho da Fazenda: «Eu, a Rainha, faço saber aos que este alvará virem, que eu hey por bem nomear a Joaquim de Oliveira para architecto das obras do Conselho da Fazenda, de cuja incumbência se achava encarregado o sargento mor de infantaria com exercício de engenheiro José Monteiro de Carvalho, já falecido (…)» (VITERBO; 1922, p. 220).




BIBLIOGRAFIA:

MACHADO, Cyrillo Volkmar – Collecção de Memorias relativas ás vidas dos pintores e escultores, architetos e gravadores portuguezes e dos estrangeiros que estiverão em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922.

MONTEIRO DE CARVALHO, José - Diccionario portuguez das plantas, arbustos, matas, arvores, animaes quadrupedes, e reptis, aves, peixes, mariscos, insectos, gomas, metaes, pedras, terras, mineraes, &c. : que a Divina Omnipotencia creou no globo terraqueo para utilidade dos viventes, Lisboa, Oficina de Miguel Manescal da Costa, Impressor do Santo Ofício, 1765.

RIJO, Delminda, e MOREIRA, Francisco, (s.d.) - A Freguesia de Santa Cruz do Castelo nas Décimas de 1776, publicação do Gabinete de Estudos Olisiponenses da CML, In http://geo.cm-lisboa.pt/fileadmin/GEO/Imagens/GEO/Demografia_historica/SantaCruzCastelonasDecimas.pdf, acedido em 2 de Janeiro de 2014 em http://geo.cm-lisboa.pt/.

SEQUEIRA, Gustavo de Matos - Depois do Terremoto – Subsídios para a História dos Bairros Ocidentais de Lisboa, vol. I, edição da Academia de Ciências de Lisboa, Lisboa, 1916..

SEQUEIRA, Gustavo de Matos - Depois do Terremoto – Subsídios para a História dos Bairros Ocidentais de Lisboa, vol. II, edição da Academia de Ciências de Lisboa, Lisboa, 1917.

SILVA, António Delgado da - Colleção da Legislação Portugueza, desde a ultima compilação das ordenações – Legislação de 1750 a 1762, Volume I, Tipografia Maigrense, Lisboa, 1830.

VITERBO, Sousa (coordenação de) – Diccionario histórico e documental dos architectos, engenheiros e constructores portuguezes ou a serviço de Portugal, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1904.

VITERBO, Sousa (coordenação de) – Diccionario histórico e documental dos architectos, engenheiros e constructores portuguezes ou a serviço de Portugal, vol. III, Lisboa, Imprensa Nacional, 1922.


MATERIAL CARTOGRÁFICO:
- CARTA GEOGRAPHICA DA PROVINCIA DE ENTRE DOURO MINHO E TRAS OS MONTES DEDICADO A MAGESTADE FIDELISSIMA E SEMPRE AUGUSTA DE EL REY DE PORTUGAL E DOS ALGARVES DOM [ ...]NOSSO SENHOR POR JOZEPH MONTEIRO DE CARVALHO, SARGENTO MOR DE INFATARIA COM EXERCÍCIO DE ENGENHEIRO (BNP, cota D-158-R).

- CARTA GEOGRAPHICA DA PROVINCIA DA BEIRA OFERECIDA A S. MAGESTADE FIDELISSIMA E AUGUSTISSIMA SENHORA D. MARIA I RAYNHA DE PORTUGAL / PELO SARGENTO MOR DE INFANTARIA COM EXERCICIO DE ENGENHEIRO JOZÉ MONTEIRO DE CARVALHO (BNP, cota D-159-R).

- CARTA GEOGRAPHICA DA PROVINCIA DA ESTREMADURA QUE A S. MAGESTADE FIDELISSIMA E AUGUSTISSIMA SENHORA D. MARIA I RAYNHA DE PORTUGAL OFERECE O SARGENTO MOR ENGENHEIRO JOZÉ MONTEIRO DE CARVALHO (BNP, cota D-156-R).

- CARTA GEOGRAFICA DA PROVINCIA DO ALENTEJO QUE A S. MAGESTADE FIDELISSIMA E AUGUSTISSIMA SENHORA D. MARIA I E RAYNHA DE PORTUGAL OFERECE O SARGENTO MOR ENGENHEIRO JOZÉ MONTEIRO DE CARVALHO (BNP, cota D-157-R).

sábado, 25 de outubro de 2014

Grafias do Olhar 1: RAMALHO ORTIGÃO

                A estrada a S. Martinho e a Alcobaça, é simplesmente maravilhosa de paisagem; e nada vi jamais para lhe antepor como tranquila, risonha e pacífica expressão da natureza rústica e da vida rural. Na grande planície, em torno dos pingues campos de Alfeizerão, a pequena baía de S. Martinho do Porto parece embeber-se e penetrar na poética doçura do solo, com a voluptuosidade dum beijo aquático dado à campina pelo oceano. Para o lado oposto do caminho até á cordilheira que vem de Sintra, e cujo perfil violáceo se esbate ao longe nas transparências do céu, é o largo e majestoso vale salpicado de casais alvejantes, entre as vastas searas ondulosas e os densos bosques de pinheiros sobre consecutivos e suaves cômoros virentes de vegetação brava, cobertos de fetos, de giestas e de urze, desabrochando á beira da estrada em flores que se não vêem ao longe, bebidas pela grande massa verde-negra, e são as estrelas doiradas do tojo, os turbantes azuis das alcachofras, e as pontas prateadas das moitas do travisco, sobre que caem em regaçadas do valado, os cachos das madressilvas.


(Ramalho Ortigão, citado por Raul Proença no volume II do “Guia de Portugal”, página 603, edição original de 1927, reedição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991).